Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
658/10.2PDFUN-E.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: BENS COMUNS DO CASAL
PENHORA
INVENTÁRIO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O inventário para separação de bens, requerido após a entrada em vigor da Lei nº 23/2013, de 5 de Março e do novo Código de Processo Civil, em consequência da

penhora de bens comuns do casal, é da competência dos cartórios notariais e não do tribunal onde pende a execução.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.    RELATÓRIO

                   Maria Sousa -----, Timóteo ----- e João -----, intentaram contra SÉRGIO -------, residente na Rua -------, acção executiva, com vista à cobrança coerciva da quantia de € 45.621,37.

  Fundamentaram os exequentes esta sua pretensão nos seguintes termos:

§ Por acórdão proferido a 10-10-2012 na 2° Secção da Vara de Competência do Funchal, o aqui requerido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, agravado pelo resultado, bem como também foi condenado, na qualidade de arguido/demando civil, no pagamento da quantia de trinta mil euros (30.000,00 euros) aos demandantes civis (aqui exequentes), Maria Sousa ---, Timóteo --- e João ----, na qualidade de herdeiros de Abreu ---- , e ainda no pagamento da quantia de cinco mil (5.000,00 euros) a cada um dos demandantes civis (aqui exequentes), pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um destes. Donde resulta que o requerido/executado, então arguido/demando civil, foi condenado a pagar ao conjunto dos aqui requerentes um total global de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros).

§ A decisão (acórdão) da Vara Mista do Funchal foi integralmente confirmada pelo acórdão da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 26-02-2013.

§ Apesar do acórdão transitado em julgado e das interpelações promovidas pelos aqui requerentes, o requerido continua sem pagar os montantes em que foi condenado. Pelo que deverá proceder o presente requerimento executivo, prosseguindo o mesmo até que se mostrem pagos os montantes em dívida e os mais que se vencerem, incluindo juros, até integral pagamento.

                        Pelo agente de execução foram penhorados:

  • Em 12.05.2014: Saldo bancário: Depósito à Ordem – existente na conta aberta em nome do executado, junto do Banco Caixa Económica Montepio Geral.
  • Em 24.07.2013: Fracção autónoma, destinada a habitação, do tipo T-três (T3), do prédio constituído em propriedade horizontal, denominado Edifício Cidade, designada pela letra AF, situada no terceiro andar (3°), na Rua -------, freguesia e concelho de ----, composta por cozinha, despensa lavandaria, sala, três quartos de dormir, duas casas de banho e uma varanda, pertence-lhe a arrecadação n.° 2 e o uso exclusivo do estacionamento automóvel n.° 16 e do respectivo sótão; com permilagem de 13,8000, área bruta privativa de 98,71 m2, com o valor patrimonial actual de 121.302,27 euros, determinado no ano de 2010, avaliado nos termos  do  CIMI,  inscrito  na  matriz  predial na freguesia de -----, sob o art.° 5466, descrito na Conservatória do Registo Predial de -----, onde se acha registada a aquisição a favor do executado pela Ap. 9 de 2003/12/18.
  • Em 24.07.2013: Vencimento e demais remunerações auferidas pelo executado junto da empresa -----, Sociedade Unipessoal, Lda., com sede em Rua ------

    Foi citado o cônjuge do executado, nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 825.° do Código de Processo Civil, tendo ANA ------, residente na Rua -------, apresentado requerimento, em 20.09.2013, por apenso do processo executivo, de SEPARAÇÃO JUDICIAL DE BENS, contra o executado, seu cônjuge, ANTONIO ------.

    Fundamentou a requerente a sua pretensão, nos seguintes termos:


    1. A Requerente e Requerido contraíram casamento em 27 de Abril de 2002 sem precedência de convenção antenupcial - Doc. 1.
    2. Tendo pois, no que concerne ao regime patrimonial, adotado o regime legal supletivo, qual seja o regime de comunhão de adquiridos.
    3. Na constância do casamento, Requerida e Requerido adquiriram, através de celebração de contrato de compra e venda a fracção autónoma, destinada a habitação, inscrito na matriz predial na freguesia de ------e descrito na Conservatória do Registo Predial de ----- sob o n.° 4615-AF.
    4. Tendo para o efeito, contraído conjuntamente um empréstimo junto ao Banco Caixa Geral de Depósitos, no montante de 50.000,00€.
    5. O qual se encontra especialmente garantido por hipoteca voluntária constituída sobre o mencionado imóvel, conforme comprova certidão de registo predial que ora se junta como doc.2.
    6. Garantindo o montante máximo de 70.369.00€, conforme se alcança do referido documento.
    7. Assim o referido bem, integra o património conjugal da Requerente e do Requerido.
    8. Bem como o recheio da casa de morada de família lá existente.
    9. Sucede que, o Requerido, por Acórdão já transitado em julgado em 22.03.2013, proferido nos autos principais, foi condenado no pagamento de urna indemnização aos exequentes, no valor global que ascende a quantia de 45.62I.37€.
    10. Quantia essa que não se encontra liquidada pelo Requerido, tendo então os ali demandantes cíveis lançado mão da acção executiva para cobrança coerciva do seu crédito,
    11. Procurando satisfazer o seu crédito à custa do património do cônjuge daqui Requerente.
    12. Encontrando-se já penhorado à ordem do mencionado crédito o único bem imóvel comum de ambos os cônjuges, perante a ausência de outros bens pessoais idóneos à satisfação da obrigação exequenda.
    13. Correndo assim a ora Requerente o risco sério de perder o único bem que integra o património conjugal, ao ter sido o mesmo afetado pelo acto executivo de penhora, entretanto efetivado à ordem dos referidos autos.
    14. Sem que lhe possa ser assacada qualquer responsabilidade pelos factos que estiveram subjacentes àquela douta condenação,
    15. Não tendo sequer resultado daquela actuação qualquer beneficio/proveito para o património conjugal.
    16. O Requerido, ali executado, não dispõe dos meios económicos necessários à satisfação daquele montante creditório,
    17. A que diariamente acrescem juros moratórios e compulsórios.
    18. Sabendo a Requerente por via disso que essa dívida todos os meses é maior, uma vez que o requerido executado não dispõe de capacidade financeira idónea para satisfação do mencionado crédito.
    19. Pelo que, atendendo às dificuldades económicas do mesmo e à não-existência de bens próprios que respondam por essas dívidas, necessariamente será assim afectado o património comum da Requerente e Requerido, nomeadamente a casa de morada de família e o recheio lá existente.
    20. Assim, o Requerido foi o único responsável pela existência da dívida que, neste momento ascende a € 45.621,37, que afectará para além do património pessoal do Requerido executado, o património comum de ambos.
    21. Sendo assim urgente prevenir que esta situação não se agrave, designadamente levando a que a ora Requerente veja afecta aos fins da execução a sua meação no património conjugal.

        Terminou a requerente, pedindo a procedência da separação de bens requerida, determinando-se a suspensão da instância executiva até à partilha.

                            Em 26.09.2013, foi proferido o seguinte despacho:

    Atenta a dedução do presente incidente de separação judicial de bens, importa:

    i) ordenar a suspensão da execução, o que será feito no apenso referente ao processo executivo — artigo 740°, n.°2 do Cód. de Proc. Civil (na redação dada pela Lei n.° 41/201.3, de 26 de junho, atenta a data da entrada do presente incidente).

    ii) citar o requerido, o executado António ---- para os termos deste incidente, nomeando-o desde já cabeça--de-casal, por ser o cônjuge mais velho, designando para a prestação do seu juramento e tomada das suas declarações, nos termos dos artigos 79° n.°1 e 24°, n.°1 da Lei n.º 23/2, de 5 de marco, o próximo dia 28 de Outubro de 2013, pelas 14 horas.

    Abra conclusão no processo de execução.

      Em 28.10.2013, foram tomadas declarações de cabeça de casal ao executado/requerido, António ------, o qual declarou:

  • Que o declarante é casado, em segundas núpcias, no regime de comunhão de adquiridos, com Ana -------- cujo casamento foi celebrado a 27 de Abril de 2002.
  • Que existem os bens adquiridos a título oneroso na constância do matrimónio, da relação de bens que neste acto apresenta, instruindo-a com os respectivos documentos, e se que passam a descrever:
  • Do activo:

    Verba 1 -Prédio urbano, correspondente à unidade habitacional, tipo T-Três, descrita na Conservatória do registo predial de Câmara de Lobos sob o n° -----, e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o número 5466, freguesia de -----, com o valor patrimonial de 115.190,00 euros;

    Verba 2 -Prédio urbano, correspondente à unidade comercial, composta por uma sala com acesso para a zona comum do centro comercial, descrito na Conservatória do registo predial de ------ sob o nº -----, com o valor patrimonial de 15.126,74 euros .

  • Do Passivo:

    Verba 1- Crédito a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA, no valor de 70.360,00 euros especialmente garantido por uma hipoteca voluntária constituída sobre o prédio identificado na verba n9 1 do activo.

     Findas as declarações, foi proferido o seguinte Despacho:

    Cumpra o disposto do artº 34º, nº1 ex.vi artº 81, n°1 da Lei 23/2013 de 5 de Março. Notifique.

    Foi apresentado pelo requerido/executado, na qualidade de cabeça de casal, a relação de bens, da qual constavam os bens que compunham o Activo, e a Dívida que compunha o Passivo, em conformidade com as declarações antes prestadas.

      Notificada da relação de bens apresentada pelo executado/requerido, veio a requerente, ANA -------, apresentar requerimento, nos seguintes termos:

    I- Da questão prévia: da incompetência material do Tribunal` para tramitar o presente processo de inventário
    1.       A Requerente, uma vez citada nos termos e para efeitos do disposto no n.° 1 do art.° 740.° do NCPC, deduziu o presente incidente de separação judicial de bens.
    2.      Com efeito, uma vez pedido ao douto tribunal o decretamento da respectiva separação judicial, com fundamento enunciado no n.° 1 do art.° 740.° do NCPC, a referida separação de bens deveria ter sido decretada.
    3.      Sendo que, só após o seu decretamento, e o trânsito em julgado da decisão que o determinasse, a Requerente e Cabeça de Casal, executado nos autos principais procederiam à partilha do património comum, nos termos enunciados no art.° 1770.° do Código Civil.
    4.      Partilha essa que pode logo " ser feita nos cartórios notariais, e, em qualquer caso, por meio de inventário, nos termos previstos em lei especial." Vide n.° 2 do art.° 1770.° do CC na redação que lhe foi conferida pela Lei 23/2013 de 5 de Março.
    5.      Com efeito, pressuposto prévio para a efectivação da partilha do património conjugal, é o decretamento judicial da separação de bens, com o fundamento elencado no n.° 1 do art.° 740.º do NCPC.
    6.      Sendo que, posteriormente, poderão os cônjuges, optarem pela partilha extrajudicial ou em caso de dissenso, pela partilha a realizar-se nos termos da lei de processo de inventário.
    7.      Ora sucede que, com a entrada em vigor da Lei n.° 23/2013, de 5 de Março, a competência para tramitação do processo de inventário passou a ser confiada aos cartórios notariais nos termos do disposto no art.º 3.º do mencionado diploma legal, aplicável aos presentes autos, por força do disposto no art.º 81.° do referido diploma.
    8.      Por conseguinte, é manifesta a incompetência material do douto tribunal, para tramitar o presente inventário.
    9.      Incompetência essa, que é de conhecimento oficioso, e que aqui expressamente se argui para todos os efeitos legais.
    10.      Pelo que, deverá em consequência da mesma, ser sustada a instância executiva relativamente ao bem comum penhorado, até que seja proferida decisão final no processo de inventário a instaurar no cartório notarial competente, o qual apenas poderá ocorrer após o decretamento pelo douto tribunal da separação judicial de bens, oportunamente requerida.
    Sem prescindir e ainda que assim não se entenda, o que não se concede e que só por mero dever de patrocínio se equaciona,

    II - Da reclamação de bens.
    A. Da impugnação dos valores indicados relativos ao activo
    11.     A requerente aceita a indicação dos bens relacionados como activo.
    12.      Impugnando contudo o valor que o mesmo indica.
    13.      Com efeito e no que respeita à Verba 1, figura-se à Requerente, ora reclamante, adequado fixar-se o valor em 85.000,00€, atendendo à idade do imóvel, bem como ao seu mau estado de conservação;
    14.      Por seu turno, o prédio que integra a verba 2, adquirido com as poupanças de ambos os cônjuges, provenientes do trabalho, está subavaliado devendo cifrar-se em 45.000,00, e não no valor de 15.126,74€ como indicado.

      Finalizou, requerendo que, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 33.° da Lei 23/2013 de 5 de Março, seja efectuada a respectiva avaliação dos imóveis, cujo valores foram impugnados, por um perito, a nomear pelo douto tribunal.

                            Em 29.01.2014, foi proferido o seguinte Despacho:

    (…)

    Da incompetência material do tribunal para tramitar o processo de inventário

    A requerente Ana -------  veio alegar que este tribunal é incompetente para tramitar o inventário, cabendo-lhe unicamente proceder à separação de bens, à qual se seguirá o inventário para partilha de bens.

    Notificado, o executado não se pronunciou.

    Ora, salvo melhor opinião, este tribunal não está a tramitar qualquer inventário, mas unicamente um incidente de separação de bens ao qual, nos termos da lei, é aplicável as regras do inventário, pelo que será no âmbito deste incidente que ficará decidido se os bens objeto de penhora e que são da propriedade dos cônjuges ficarão a pertencer a um ou a outro, não sendo necessário qualquer inventário posterior (sob pena de eternizarmos a situação dos exequentes, situação que não foi desejada pelo legislador), de acordo com o disposto nos artigos 740°, n.°1, 81° e 79° da Lei n.° 23/2013, de 5 de Março.

    Assim, salvo melhor opinião e perante o regime jurídico acima traçado, somos de parecer que este tribunal é o competente para a tramitação do incidente de separação de bens, onde se fará a divisão dos bens objeto de penhora entre o executado e a sua mulher.

    Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de incompetência material invocada. Notifique.

    De acordo com a relação de bens, sobre um dos imóveis incide uma hipoteca a favor da CGD, S.A., pelo que ordeno a sua citação para os termos deste incidente.

    Relego para momento posterior a questão da avaliação dos imóveis.

    Inconformada com o decidido, com relação à suscitada incompetência, veio a requerente, ANA -------, interpor recurso de apelação, relativamente ao aludido despacho.

                            São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:


    i. Vem o presente recurso interposto da decisão do douto Tribunal que se julgou materialmente competente para tramitar os termos ulteriores que se seguem ao decretamento da separação de bens, requerida com fundamento no n.° 1 do art.º 740.° do CPC.

    ii. Com efeito, o tribunal a quo ao considerar que in casu, "não se encontra a tramitar qualquer inventário, mas um incidente de separação de bens ao qual, ao qual é aplicável as regras do inventário", fez uma errada interpretação das disposições conjugadas do art° 1770º n.° 2 aplicável ex vi art.° 1772.° do CC, bem como art.° 3.° n° 6, n.° 2 do art.º 2.° e art.° 81.° n.°1 da alínea a) do NRPI.

    iii. Com efeito, entende a Apelante que resulta do disposto no n.° 2 do art.º 1770 do CC, aplicável ex vi art.° 1772.° do CC, que a extinção da comunhão de bens na vigência da sociedade conjugal, e desencadeada com o fundamento no n.º 1 do art.º 740.° do CPC, só se poderá efectivar nos termos consagrados no n.° 2 do art.° 1770.° do CC.

    iv. Isto é, apenas por acordo entre os cônjuges ou por meio de inventário, "nos termos previstos em lei especial."

    v. Sendo certo que, nos termos do disposto no n.° 1 do art.º 81.° do NRPI (novo regime de processo de inventário) quando a separação de bens radique no acto de penhora do património comum de ambos os cônjuges, efectivada no âmbito de uma execução movida apenas contra um deles, será aplicável o regime consagrado no art.º 79.° do NRPI com as especificidades enunciadas na al.a) do n.°1 do art.° 81.° do aludido regime processual.

    vi. Sendo que daí resulta de modo expresso, bem como do disposto no n.° 6 do art.° 3.° do NRPI a atribuição de competência ao Notário para tramitar o processo de inventário, especialmente vocacionado para aquele fim.

    vii. Sendo pois por referência a tais normativos que se deverá operar a delimitação objectiva da reserva jurisdicional no âmbito do incidente de separação de bens a que alude o n.° 1 do art.° 740.° do CPC ;

    viii. Concluindo-se deste modo, que da leitura articulada dos referidos incisos legais, resulta que o tribunal a quo, no âmbito do qual foi requerida a separação de bens continua a ser materialmente competente para apreciar o fundamento do pedido da separação de bens ( reconduzível exclusivamente à constatação dos bens abrangidos pelo acto executivo-penhora), e bem assim para decretar a dissolução da comunhão de bens na vigência da sociedade conjugal;

    ix. Cessando a sua competência material, para os termos ulteriores que lhes segue, designadamente para a tramitação do processo de inventário,
    x. Sendo materialmente competente o notário sedeado no município do lugar da casa de morada de família nos termos previstos no nº 6 do art.º 3.º do NRPI.

    xi. Sem prejuízo do reconhecimento, no âmbito desse processo de inventário, de uma esfera de competência residual ao douto tribunal, a qual se encontra tipificada no n.º 7 do art.º 3.º do NRPI.

    xii. Razão pela qual, deveria o douto tribunal julgar-se materialmente competente para tramitar o inventário destinado à pôr fim a comunhão de bens, requerida pela ora Apelante.

                            Pede, por isso, a apelante, que seja dado provimento ao recurso de apelação, revogando-se a decisão do tribunal a quo.

    O requerente/executado não apresentou contra alegações.

     Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

    ***

    II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

    Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

    Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise da seguinte questão:

    Û  DA COMPETÊNCIA PARA TRAMITAR O INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO  DE BENS REQUERIDO NA SEQUÊNCIA DA PENHORA DE BENS COMUNS DO CASAL.

    ***

    III . FUNDAMENTAÇÃO


    A –
    FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

    Com relevância para a decisão a proferir, importa ter em consideração a alegação factual constante do relatório deste acórdão, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

    ***

    B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

    Insurgiu-se a apelante contra a decisão do Tribunal a quo, que se julgou competente, enquanto Tribunal de execução onde pende o processo de execução intentado contra o cônjuge da apelante, para conhecer e decidir sobre, o que entendeu tratar-se de um incidente de separação de bens, onde se fará a divisão dos bens objecto de penhora entre o executado e a sua mulher, e não um processo de inventário.

      No caso vertente, o cônjuge do executado, na sequência da respectiva citação, requereu no processo de execução, no qual foi penhorado um bem comum do casal, a separação de bens e, fê-lo, já após a entrada em vigor do nCPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, pelo que será este o regime aplicável, conforme, de resto, o entendeu – e bem – o Tribunal de 1ª instância.

    Estatui o artigo 740.º do nCPC, sob a epígrafe “Penhora de bens comuns em execução movida contra um dos cônjuges” :


    1. Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.
    2. Apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha; se, por esta, os bens penhorados não couberem ao executado, podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão.

    É certo que estabelecia o artigo 1406º do aCPC, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 29/2009, de 29/6 e cuja epígrafe era “Processo para a separação de bens em casos especiais” que:
    1. Requerendo-se a separação de bens nos termos do artigo 825.º, ou tendo de proceder-se a separação por virtude da insolvência de um dos cônjuges, aplica-se o disposto no regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, constante de lei especial, com as seguintes especialidades:

    a) O inventário corre por apenso ao processo de execução ou ao processo de insolvência;

    b) O exequente, no caso do artigo 825.º, ou qualquer credor, no caso de insolvência, tem o direito de promover o andamento do inventário;

    c) Não podem ser aprovadas dívidas que não estejam devidamente documentadas;

    d) O cônjuge do executado ou insolvente tem o direito de escolher os bens com que há-de ser formada a sua meação e, se usar desse direito, são notificados da escolha os credores, que podem reclamar contra ela, fundamentando a sua reclamação.

    (…)

    Sucede que no novo Código de Processo Civil, inexiste qualquer artigo com semelhante redacção ao disposto no aludido artigo 1406º

    Por outro lado, e como é sabido, após as várias vicissitude ocorridas com a legislação atinente ao Processo de Inventário, e mantendo-se a intenção do legislador de desjudicializar este processo, a Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, veio aprovar o regime jurídico do processo de inventário, alterar várias normas do Código Civil, do Código do Registo Predial, do Código do Registo Civil e do Código de Processo Civil, tendo entrado em vigor, de acordo com o seu artigo 8.º, no primeiro dia útil do mês de Setembro de 2013.

    Estabelece o artigo 2.º do citado diploma legal (NRPI) que:
    1. O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de se realizar a partilha, a relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança.
    2. Ao inventário destinado à realização dos fins previstos na segunda parte do número anterior são aplicáveis as disposições da presente lei, com as necessárias adaptações.
    3. Pode ainda o inventário destinar-se, nos termos previstos nos artigos 79.º a 81.º, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges

    E, em relação à competência para a tramitação dos processos de inventário, estatui-se no artigo 3.º:
    1. Compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra.
    2. Em caso de impedimento dos notários de um cartório notarial, é competente qualquer dos outros cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão.
    3. Não havendo cartório notarial no município a que  se referem os números anteriores é competente qualquer cartório de um dos municípios confinantes.
    4. Ao notário compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns.
    5. (…)
    6. Em caso de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, é competente o cartório notarial sediado no município do lugar da casa de morada de família ou, na falta desta, o cartório notarial competente nos termos da alínea a) do número anterior.
    7. Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.

                            Acresce que, de acordo com o artigo 79.º:
    1. Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens do casamento for o de separação.
    2. As funções de cabeça de casal incumbem ao cônjuge mais velho.
    3. O inventário segue os termos prescritos nas secções e subsecções anteriores, sem prejuízo de o notário, em qualquer estado da causa, poder remeter o processo para mediação, relativamente à partilha de bens garantidos por hipoteca, salvo quando alguma das partes expressamente se opuser a tal remessa, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil relativo à mediação e suspensão da instância.
    4. Verificando-se a impossibilidade de acordo na mediação, o mediador dá conhecimento desse facto ao cartório notarial, preferencialmente por via eletrónica.
    5. Alcançando-se acordo na mediação, o mesmo é remetido ao cartório notarial, preferencialmente por via eletrónica.

                            Finalmente, resulta do artigo 81.º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe ”Processo para a separação de bens em casos especiais”:
    1. Requerendo-se a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal, nos termos do Código de Processo Civil, ou tendo de proceder-se a separação por virtude da insolvência de um dos cônjuges, aplica-se o disposto no regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, com as seguintes especificidades:

    a) O exequente, nos casos de penhora de bens comuns do casal, ou qualquer credor, no caso de insolvência, tem o direito de promover o andamento do inventário;

    b) Não podem ser aprovadas dívidas que não estejam devidamente documentadas;

    c) O cônjuge do executado ou insolvente tem o direito de escolher os bens com que deve ser formada a sua meação e, se usar desse direito, são notificados da escolha os credores, que podem reclamar contra ela, fundamentando a sua reclamação.
    2. Se julgar atendível a reclamação, o notário ordena avaliação dos bens que lhe pareçam mal avaliados.
    3. Quando a avaliação modifique o valor dos bens escolhidos pelo cônjuge do executado ou insolvente, aquele pode declarar que desiste da escolha e, nesse caso, ou não tendo ele usado do direito de escolha, as meações são adjudicadas por meio de sorteio.

                            Em consonância com o preceituado no artigo 66.º do NRPI, ao juiz apenas se atribui agora competência exclusiva para homologação da decisão da partilha.

                            Com efeito, estatui o nº 1 do citado normativo que: A decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio é proferida pelo juiz cível territorialmente competente.

                            Afirma o Exmo. Juiz do Tribunal a quo no despacho recorrido, que não está a tramitar qualquer inventário, e que será no âmbito do incidente deduzido pela requerente que se decidirá se os bens objecto de penhora ficarão a pertencer a um ou a outro cônjuge, justificando, ao cabo e ao resto, que se assim se não entendesse levaria a eternizar-se a situação dos exequentes.

                            Entende-se que lhe não assiste razão.

      Reconhece-se que o nº 2 do artigo 740º do nCPC, ao aludir à apensação do requerimento de separação de bens, e o facto de, no formulário electrónico disponibilizado no sistema informático de tramitação do processo de inventário regulado pela Portaria nº 278/2013, de 26 de Agosto, não constar um campo específico para as situações de separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal, pode induzir ao entendimento defendido no despacho recorrido – v. no sentido da necessidade de uma interpretação correctiva do preceito, PAULO RAMOS DE FARIA-ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. II, 265.

    Tendo presente o objectivo do legislador de proceder à desjudicialização do processo de inventário, a circunstância de a Lei nº 23/2013, de 5 de Março ter contemplado precisamente as situações aqui em causa, aí se prevendo a faculdade de o exequente, nos casos de penhora de bens comuns do casal, ter o direito de promover o andamento do inventário, faz com que fique ultrapassado ou, pelo menos atenuado, o fundado receio manifestado pelo Exmo. Julgador de 1ª instância da eventual verificação de um prejuízo para a situação dos exequentes.

    Ademais, e como se salienta no Ac. R.P. de 26.06.2014 (Pº 3671/12.1TJVNF-B.P1), acessível em www.dgsi.pt, inexiste qualquer razão válida para que a tramitação do inventário, neste caso especial de separação de bens, não ocorra perante o notário.

    Ora, dúvidas não há que, tendo o cônjuge do executado requerido a separação de bens, em data posterior à entrada em vigor do nCPC e da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, não tem o tribunal onde pende a execução competência para tramitar o processo de inventário para separação de bens, nos casos de penhora de bens comuns do casal, nos termos do Código de Processo Civil, porquanto a lei passou a atribuir competência para tal, ao cartório notarial sedeado no município do lugar da casa de morada de família.

    É tão somente conferida ao juiz do Tribunal onde pende a execução, a competência material para apreciar o fundamento do pedido da separação de bens, designadamente tendo em consideração a natureza da dívida e dos bens penhorados, e determinar, em consequência, a suspensão da execução.

                            Nestes termos, procede à apelação, revogando-se o despacho recorrido, o qual se substitui por outro em que se determina a incompetência do tribunal onde pende a execução para tramitar o inventário para separação de bens comuns do casal, anulando-se, por conseguinte, todo os demais actos já praticados inerentes ao processo de inventário.

    *

      Sem custas no recurso, visto que a apelante não sucumbe no recurso e não se pode considerar que o apelado lhes haja dado causa.

    ***

    IV. DECISÃO

    Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra em que se determina a incompetência do Tribunal a quo para tramitar o inventário para separação de bens comuns do casal, anulando-se, consequentemente, tudo o que foi processado inerente ao processo de inventário.

    Sem custas.

    Lisboa, 11 de Dezembro de 2014

    Ondina Carmo Alves - Relatora

    Eduardo José Oliveira Azevedo

    Olindo dos Santos Geraldes