Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21559/16.5T8LSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ORDEM DOS CONTABILISTAS CERTIFICADOS
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Em acção de condenação, na qual se pretende obter a condenação da Ré Seguradora a pagar a um cliente de um técnico oficial de contas, os prejuízos que a actuação deste lhe causou no exercício da sua actividade, a Ordem dos Contabilistas Certificados carece de legitimidade para propôr a respectiva acção.


SUMÁRIO: (elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa. 


Relatório:


Nos presentes autos de ação declarativa com processo comum, a ré "Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A." veio pedir, para além do mais, a sua absolvição da instância, por procedência da exceção dilatória da ilegitimidade.

Alega, para tanto e em síntese, que a presente ação é de condenação, pelo que a autora, na qualidade de tomadora do seguro que pretende acionar, não tem interesse direto em demandar por, a existir algum prejuízo, o mesmo não existe na esfera jurídica da autora.
 
A autora, apesar de ter sido notificada para responder às exceções invocadas, não apresentou qualquer articulado resposta. Contudo, na sua petição inicial, no que se refere ao pressuposto da legitimidade ativa alegou que, na qualidade de tomadora do seguro, é parte no contrato de seguro de Responsabilidade Civil Profissional titulado pela apólice n° 130400260450901.
 
Foi proferido despacho que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa, absolvendo a Ré da instância.

Foram dados como assentes os seguintes factos:
A)– A "Real Seguros, S.A." foi incorporada, por fusão, na sociedade "Lusitânia-Companhia de Seguros, S.A.";
B)– A autora celebrou com a ré um contrato de seguro de Responsabilidade Profissional, titulado pela apólice n° 130400260450901, cuja cópia consta a fls. 19vº dos autos, que entrou em vigor no dia 27.03.2004 e vigorou até 01.04.2012, e onde consta, para além do mais, "Tomador de Seguro: Ordem Técnicos Oficiais de Contas.  (. . .). Limite máximo de indemnização por sinistro e anuidade: 50.000,00. (. . .). Em toda e qualquer reclamação por sinistro ao abrigo destas coberturas haverá sempre que deduzir à indemnização uma franquia de 10% num mínimo de 500,00, que será aplicada aos sinistros participados a partir de 01.08.2011, independentemente da data de ocorrência do sinistro".
  
C)– Nas "Condições Particulares" do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional titulado pela apólice acima identificada, cuja cópia consta a fls. 21 dos autos, consta, para além do mais, "(. . .). 2. Segurado: Técnico Oficial de Contas, inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, cuja obrigação de subscrição deste seguro se encontra estabelecida pelo nº 4 do art. 5º do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas. 3. Âmbito de cobertura: Para além do que se expressa nas Condições Gerais da Apólice, o âmbito de cobertura da mesma, compreende: a) As indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a Clientes e ou Terceiros, desde que resultem de atos ou omissões cometidos durante o exercício da atividade de Técnico Oficial de Contas; (. . .)";
D)– Nas "Condições Gerais" do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional titulado pela apólice acima identificada, consta, para além do mais, "(. . .). Artigo 1°- Definições: Seguradora: A entidade legalmente autorizada para exercer a atividade seguradora e que subscreve, com o Tomador do Seguro, o presente contrato de seguro; Tomador do Seguro: A pessoa, singular ou coletiva, que celebra o contrato de seguro com a Seguradora, sendo responsável pelo pagamento dos prémios; Segurado: A pessoa, singular ou coletiva, cuja responsabilidade civil se garante nos termos do presente contrato de seguro e que se encontra identificada nas Condições Particulares da apólice; Terceiro: Aquele que, em consequência de um sinistro coberto por este contrato, sofra uma lesão que origine danos suscetíveis de, nos termos da lei civil e desta apólice, serem reparadas ou indemnizados; Sinistro: O evento ou série de eventos resultantes de uma mesma causa suscetível de fazer funcionar as garantias do presente contrato".
E)– Com data de 26.11.2014, Ana Maria Gomes dos Santos Reis, notária no Cartório Notarial em Macedo de Cavaleiros, enviou a "Ajustamentos-Gabinete de Gestão e Consultoria, Ld.", a missiva cuja cópia consta a fls. 44 dos autos, onde consta, para além do mais, "(,  . .) vem pela presente dar conhecimento a VEx"s da decisão do pedido de revisão oficiosa que me negou a restituição dos valores de retenção na fonte de IRS efetuados sobre as minhas remunerações, dos anos de 2005 a 2008 e, em consequência comunicar que atribuo total responsabilidade à "Ajustamentos-Gabinete de Gestão e Consultaria, Ld. a", nas pessoas dos Exmos Senhores AP, enquanto responsável pela empresa, e NA, na qualidade de TOC que tem a seu cargo a elaboração da contabilidade da minha atividade profissional, pelo erro cometido na preenchimento das declarações mensais de remuneração a esses anos, que incluíram indevidamente valores que foram por mim liquidados. Face ao exposto, solicito a VExas O pagamento de uma compensação que cubra o meu prejuízo resultante da liquidação indevida das retenções na fonte dos anos de 2005 a 2008. (. . .)";
                                                                                                      
F)–  Com data de 27.11.2014, NA enviou à autora, e esta recebeu, o pedido de ativação de seguro de responsabilidade civil profissional do mesmo, conforme consta a fls. 56/57 dos autos;
G) Com data de 20.04.2015, a ré enviou a NA, e este recebeu, a carta cuja cópia consta a fls. 44vº dos autos, onde consta, para além do mais, "Confirmamos a receção da vossa participação de sinistro, que originou a abertura do nosso processo em assunto. (. . .). Face ao exposto, não podemos dar satisfação à vossa pretensão, tendo o nosso processo sido encerrado. (. . .)";
H)– Na presente ação a autora termina a sua petição inicial pedindo seja a ré condenada a pagar imediatamente os danos sinistrados e participados pelo contabilista certificado NA, no montante total de 69.897,00.

Inconformada recorre a Autora, concluindo que:
- A ora Apelante, não concorda com a decisão proferida por entender que foi violado o art. 30.° do CPC - Conceito de legitimidade.  
- A supra referida norma, deveria ter sido interpretada e aplicada no sentido de se entender a ora Apelante como parte legítima da ação por si intentada, e consequentemente, a ação de condenação sob a forma de processo comum seja julgada procedente por provada e por via disso a Ré condenada a pagar imediatamente os danos sinistrados e participados pelo Contabilista Certificado NA, no montante total de 69.897,000 (Sessenta e nove mil, oitocentos e noventa e sete euros).
 
Ora vejamos: 
- De acordo com a Lei nº 139/2015 de 7 de setembro, que transformou a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas em Ordem dos Contabilistas Certificados, e altera o respetivo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei nº 452/99, de 5 de novembro, em conformidade com a Lei nº 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, a Ordem dos Contabilistas Certificados é a pessoa coletiva de direito público representativa dos profissionais que exercem a atividade profissional de contabilista certificado.
- Tendo como atribuições estatutariamente previstas no artigo 3.° do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, entre outras, defender a dignidade e o prestígio da profissão, defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros e representar os contabilistas certificados perante quaisquer entidades públicas ou privadas. 
- Os contabilistas certificados, relativamente à Ordem e de acordo com o artigo 69.°, nº 2 al. b) do supra referido Estatuto, têm, o direito a "Recorrer à proteção da Ordem sempre que sejam cerceados os seus direitos ou que sejam criados obstáculos ao
regular exercício das suas funções"                                                                                                          
- Nos termos definidos nas Condições Particulares que regem o contrato de seguro celebrado entre a ora Apelante e a Ré, esta última, assumiu perante o tomador de seguro, a Ordem dos Contabilistas Certificados, a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da atividade profissional desenvolvida pelos seus segurados (contabilistas certificados com inscrição em vigor), garantindo, o eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais ocorridas no exercício da sua atividade. 
- Na presente ação, diz o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa na sua sentença ao processo agora recorrido que "A parte é sempre legítima se se apresentar como titular da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial.", mais acrescentado que "Sendo a legitimidade um pressuposto processual, a mesma deverá ser aferida pela causa de pedir e pelo pedido formulado.".  
- Cabendo à Ordem dos Contabilistas certificados defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros e representar os contabilistas certificados perante quaisquer entidades públicas ou privadas, 
- e sendo o Contabilista Certificado, NA, membro ativo da Ordem dos Contabilistas Certificados,
tendo, com a ocorrência do sinistro participado e não coberto pela Ré, ocorrido um dano na esfera jurídica do mesmo, 
- Considera-se que a Apelante tem interesse em agir na presente ação,  
- No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo nº 09A0145, de 03.03.2009, conclui-se da seguinte forma "porque não haveria  a A. de ter interesse em agir, quando pretende salvaguardar os interesses dos seus associados e os seus próprios, numa ação em que ela própria é parle legítima ao ser um dos sujeitos do contrato de seguro em causa?" respondendo à colocada questão da seguinte forma "É claro que tem interesse processual. Na verdade, agindo a Ré no interesse dos seus associados, competindo-lhes defender os direitos destes e as suas prerrogativas perante a Ré, designadamente, não se vê como possa negar-se interesse em agir quando a A. pretende que os aludidos sinistros estão abrangidos por uma cláusula contratual que ela própria negociou e acordou com a Ré/seguradora".

- Apesar de no Acórdão citado estarmos perante uma ação de simples apreciação positiva, fica clara a legitimidade da Ordem dos Contabilistas Certificados sempre que se pretende salvaguardar os interesses dos seus membros.  
- Assim, outra interpretação do art. 30º do CPC, que não a de entender legítima a Ordem dos Contabilistas Certificados, não se pode aceitar pois, apesar de estarmos perante uma ação de condenação, por ter ocorrido um dano efetivo na esfera jurídica de um membro da Ordem dos Contabilistas Certificados, na prossecução das suas competências estatutariamente consagradas, compete à ora Apelante, salvaguardar os interesses dos seus membros.  
                                                                                                     
Nestes termos, requer-se que seja concedido provimento ao presente recurso e anulada a douta decisão recorrida por incorreta interpretação do art. 30º do CPC, na parte em que absolve da instância a Ré por falta de legitimidade processual da ora Apelante e que o tribunal conheça do mérito da causa, devendo a Ré ser condenada a pagar imediatamente os danos sinistrados e participados pelo Contabilista Certificado NA, no montante total de 69.897,00€ (Sessenta e nove mil, oitocentos e noventa e sete euros).

Cumpre apreciar.

A questão que se coloca é a de saber se, numa acção visando a condenação da seguradora a pagar ao contabilista certificado Nuno Afonso – que não é parte nos autos – os danos sinistrados e ao abrigo do contrato de seguro celebrado entre a Ordem e a Seguradora Ré, a Ordem é parte legítima enquanto autora de tal acção.

Na decisão recorrida e perante a invocação, pela Autora, de um acórdão do STJ afirmando a legitimidade da Ordem dos Contabilistas Certificados, entendeu-se que no caso abordado no aludido acórdão estávamos perante uma acção de simples apreciação, enquanto que a presente acção é uma acção de condenação.

Vejamos.

A Ordem dos Contabilistas Certificados celebrou com a Ré um contrato de seguro de Responsabilidade Profissional, no qual figura como tomadora do seguro, e cujo âmbito de cobertura compreende as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a clientes ou a terceiros desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de técnico oficial de contas.

Entendendo-se como segurado, “a pessoa, singular ou colectiva, cuja responsabilidade civil se garante no presente contrato de seguro e que se encontra identificada nas Condições Particulares da apólice.”

Na presente acção é peticionada a condenação da Ré seguradora a pagar os danos sinistrados e participados pelo contabilista certificado NA.

Dispõe o art. 30º nºs 1 e 2 do CPC que o Autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, sendo que tal interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção.

Sendo considerados titulares do interesse relevante para efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (nº 3 do mesmo art. 30º). 

Como salienta Rui Pinto – “Notas ao Código de Processo Civil”, I, pág. 65 - “... “o interesse consiste na vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da acção (...) Por outro lado, por força da articulação com o nº 1, essa vantagem ou desvantagem devem ser directas e não apenas reflexas (...) A expressa e excepcional previsão de uma legitimidade em sub-rogação no art. 606º do CC confirma que na sua ausência a legitimidade não existiria”.

No caso dos autos, a fonte do direito peticionado reside, numa primeira linha, no contrato de seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre a Autora e a Ré.

É, digamos, a condição inicial, o pressuposto jurídico que, a verificar-se determinada ocorrência, fundamenta o direito à indemnização.

No entanto, aqui colocam-se duas possibilidades diversas. Uma é a que centra no próprio contrato de seguro, desde as diligências preliminares para a sua celebração até à interpretação do clausulado definitivo. E neste caso, não restam dúvidas que os titulares do interesse juridicamente relevante, face ao litígio concreto que se coloca, serão as partes contraentes.

Outra possibilidade é a de aplicar o clausulado contratual a uma situação concreta que ele prevê e tutela. Nomeadamente e como consta da apólice, o seguro cobre as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado em consequência de danos patrimoniais causados a clientes ou a terceiros desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas.

Neste segundo caso, os titulares do interesse, mesmo na formulação efectuada pela Autora, serão o Técnico Oficial de Contas que pretende que a seguradora assuma a responsabilidade pelo pagamento de indemnização ao cliente ou a terceiro, e, obviamente, a seguradora.
 
Dir-se-á que mesmo numa acção de condenação existe um momento prévio de interpretação do clausulado do contrato, do qual emerge a responsabilidade de indemnizar. Contudo, não é esse o objecto da acção, modelado pelo respectivo pedido. O que se pretende é que a seguradora, ao abrigo do contrato, assuma a responsabilidade do TOC NA pelos danos causados à cliente AR, por actos ou omissões ocorridos no exercício da sua actividade profissional de técnico oficial de contas.

Ora, perante isto, não se vislumbra em que medida se pode falar de um interesse directo da Ordem dos Contabilistas Certificados na procedência da acção.
                                                                                                              
Certamente que a Ordem dos Contabilistas Certificados, como pessoa colectiva de direito público representa os profissionais que exercem a actividade de contabilista certificado, tendo como atribuições defender a dignidade e o prestígio da profissão, defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros e representá-los perante quaisquer entidades públicas ou privadas. Todavia, este interesse não é directo, ou seja, não representa a vantagem que se pretende obter com a procedência da acção.

Se a presente acção viesse a proceder, a Ré seguradora teria de assumir a responsabilidade do TOC NA, pagando à cliente deste, AR os danos participados pelo aludido TOC.

O que está em causa é o pagamento de uma indemnização e tal pagamento não tem como destinatário, directo ou indirecto, a Autora.

A doutrina expendida no acórdão do STJ de 03/03/2009 – disponível no endereço da dgsi – situa-se num plano diverso, o da apreciação do clausulado contratual e da susceptibilidade de este abranger determinado tipo de danos causados a terceiros, clientes dos segurados. Naturalmente que para indagar o sentido e extensão da aplicação de uma cláusula contratual, a legitimidade assenta nas partes que o negociaram e contrataram, ou seja a Ordem dos Contabilistas Certificados e a seguradora.

Conclui-se assim que:
– Em acção de condenação, na qual se pretende obter a condenação da Ré Seguradora a pagar a um cliente de um técnico oficial de contas, os prejuízos que a actuação deste lhe causou no exercício da sua actividade, a Ordem dos Contabilistas Certificados carece de legitimidade para propôr a respectiva acção.

Termos em que se julga a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.



LISBOA, 3/5/2018



António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais