Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3084/2008-1
Relator: JOSÉ GABRIEL SILVA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - O facto de a reserva de propriedade ter sido (eventualmente) constituída para garantia do direito de crédito do recorrente, advindo do financiamento destinado à aquisição do veículo, de nada releva no sentido da sua pretensão, uma vez que na reserva de propriedade, conquanto direito real de gozo, a função de garantia está sempre presente.
II - Mesmo que a reserva de propriedade haja sido funcionalmente utilizada e registada para garantia do pagamento da dívida do financiador, nunca será juridicamente um direito real de garantia, mas, em termos de rigor, uma condição suspensiva aposta com respeito à transmissão da propriedade.
III – A reserva de propriedade não constitui uma garantia real coberta pelas normas dos arts. 824º do C.Civil ou do art. 888º do C.Proc.Civil, que apenas abarcam os direitos reais de garantia e os demais direitos reais (como a reserva de propriedade) que não tenham registo anterior ao registo da penhora.
IV - Perante a anomalia de haver sido ordenada e realizada a penhora de um veículo automóvel em relação ao qual a exequente é titular do direito de propriedade e não qualquer dos executados, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que a agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa (artigos 276º, n° 1, alínea c) e 279º, ex vi do n° 1 do art. 466, do C.Proc.Civil).
FG
Decisão Texto Integral: 1) A aqui Agravante intentou acção executiva e no decorrer do respectivo processo, foi ordenada e concretizada penhora sobre veículo automóvel, relativamente ao qual existia e existe registo de inscrição de cláusula de reserva de propriedade a favor daquele.

1.2) Em sequência de tramitação foi proferido o despacho que consta a fls. 39 destes autos, que exarou, na parte que aqui interessa:
"Devidamente compulsados os autos, verifica-se que, da certidão de ónus e encargos respeitante ao veículo penhorado resulta que a propriedade do mesmo foi reservada a favor do Exequente.
Assim, para que a execução possa prosseguir relativamente a tal bem, posto que, de acordo com o registo, a propriedade é do Exequente e não do Executado (e na execução não podem ser penhorados e vendidos bens próprios daquele), deverá antes de mais comprovar-se nos autos o cancelamento do sobredito registo de reserva de propriedade a favor do Exequente.
Notifique o Exequente para que proceda em conformidade no prazo de quinze dias." 

 1.3) Desta decisão foi interposto recurso de agravo, tendo a Recorrente alinhado as seguintes conclusões:
1. "Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matricula AF, penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo.
2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz a quo competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente.
3 O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.   
4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se
deve agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada.
5. Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da divida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao  “domínio” sobre o bem - pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.
6. Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá, que deveria a exequente - titular da
reserva de propriedade - ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento.
7. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos  5º, nº 1, alínea b) e 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7º e 119º do Código do registo Predial e artigos 408º, 409º, nº 1, 601º e 879º, alínea a), todos do Código Civil."

1.4) Não se registaram contra-alegações.

1.5) Foram dispensados os vistos.

2) A matéria de facto que releva para a presente decisão é a que se refere no relatório, para lá se remetendo atenta a simplicidade factual em causa.

3) Apreciando.

3.1) O que releva, na economia do presente recurso e para efeitos da resolução da questão de direito nele suscitada, é que o exequente nomeou à penhora um veículo automóvel sobre o qual detém o registo da reserva de propriedade a seu favor.
Tradicionalmente, a reserva de propriedade era encarada como uma condição suspensiva do negócio de alienação, mantendo-se a propriedade na titularidade do alienante até integral pagamento do preço[1].
 É bem verdade que diversas tentativas foram ensaiadas no intuito de, por forma mais consentânea com as suas características, qualificar a natureza da reserva de propriedade, sem que, todavia, qualquer delas tenha passado a prevalecer sobre a qualificação tradicional (houve quem a considerasse um direito real de garantia do vendedor, na medida em que reveste a natureza de uma garantia real do crédito e, assim, uma hipoteca mobiliária pelo preço em dívida - Wieacker; ou que o vendedor fica investido na titularidade de um direito de penhor com pacto comissório - Blomeyer); ou ainda que "nos seus termos substanciais o pacto de reserva de propriedade é uma cláusula de garantia que confere ao vendedor o poder de reivindicar o bem no caso de resolução do contrato por incumprimento do comprador" (Bianca), ou também que constitui uma cláusula específica, cláusula acessória atípica, devendo a indagação do regime aplicável partir do seu conteúdo e sentido próprios, sem passar pelo filtro da condição suspensiva e nalguns pontos até em contradição com o regime que desta resultaria (Gama Rose), ou finalmente que "na sequência do reconhecimento ao comprador de um direito real de expectativa e da posse em nome próprio, tanto o alienante como o adquirente detêm um pedaço da propriedade. Tratar-se-ia de uma transferência gradual do direito do vendedor para o comprador: a partilha de propriedade defendida por Raiser)[2].
Em qualquer dos casos, uma coisa é certa: o adquirente não tem a propriedade plena sobre o veículo, porquanto, além do mais, “surge-nos como inevitável em face do direito vigente a aceitação da tese de que a transferência da propriedade, estritamente entendida como transferência da titularidade do direito de propriedade, fica subordinada a uma condição suspensiva”[3].
Parece, desta forma, que, mantendo-se a reserva de propriedade a favor do exequente, o veículo não deveria sequer ter sido penhorado, já que se não tratava dum bem do executado (arts. 601º do C.Civil e 821º, nº 1, do C.Proc.Civil)[4].

3.2) Sustenta, porém, o Exequente/Agravante que é perfeitamente admissível que o detentor da reserva de propriedade possa nomear à penhora o bem sobre que incide tal reserva, porquanto, nesse caso, estará a renunciar implicitamente ao seu "domínio" sobre o bem, tanto mais que, nos casos em que o detentor da reserva de propriedade opta pelo pagamento coercivo da quantia em dívida, deixa de poder fazer operar a reserva de propriedade constituída, deixa de poder reivindicar para si o bem. A não ser assim, no caso de opção pelo pagamento da quantia em dívida, a constituição de reserva de propriedade não só não beneficiaria o respectivo titular, como até o prejudicaria, inclusivamente em relação aos outros credores do devedor.

“Ainda que fosse aceitável atender a uma declaração de renúncia tacitamente efectuada através de mera actuação processual (e, a nosso ver, a propositura da acção de cumprimento não encerra qualquer vontade de renúncia à reserva) não pode esquecer-se que, in casu, desacompanhada da comprovação do cancelamento da reserva de propriedade, a mesma devia ser expressa e formalmente assumida em declaração dotada da força necessária para assegurar a renúncia e para servir de base ao futuro cancelamento do registo[5]” (Acórdão do S.T.J de 12/5/2005)[6].
Na verdade, “a reserva de propriedade tende a manter-se até efectivo pagamento do preço, certo que só esta circunstância desencadeia a transferência do direito de propriedade sobre a coisa vendida, ao que acresce o facto de a penhora em acção executiva não bastar, como é natural, à realização do direito de crédito do credor reservante do direito de propriedade. (...) Por outro lado, atenta a fonte contratual de que a reserva de propriedade deriva, não é um direito a que se possa renunciar livremente, porque se traduz no diferimento contratual de um dos efeitos do contrato de compra e venda acordado entre as partes.
De contrário, estar-se-ia perante uma situação que significaria a extinção da expectativa (direito real de aquisição?) do comprador de adquirir o direito de propriedade por sua exclusiva vontade, o que se revela contrário ao princípio do consenso contratual que decorre do art. 406º, nº 1, do C.Civil”[7].
Ademais, só será eficaz a renúncia à reserva de propriedade desde que registralmente comprovada, através do respectivo cancelamento.
Estabelece, com efeito, o art. 7º do C. Registo Predial (aqui aplicável por força do disposto no art. 29º do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro) que "o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito".
“Daí que, mostrando-se inscrita na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa reserva da propriedade do veículo penhorado a favor da exequente, o que faz presumir a existência do direito e que este pertence ao titular inscrito, se deva concluir que a propriedade daquele se não transferiu para a titularidade dos executados, mantendo-se na esfera jurídica da exequente” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
“Por isso, e sendo certo que o registo automóvel tem que estar em conformidade com a situação substantiva dos bens, designadamente para defesa de terceiros, a penhora do bem cuja reserva de propriedade está inscrita em nome da exequente exigia que esta, previamente, demonstrasse o cancelamento dessa reserva ou que, no mínimo, comprovasse esse cancelamento antes de o processo avançar para a fase da venda executiva” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
“Quando não permitir-se-ia a manutenção nos autos de uma situação claramente contraditória: por um lado, através da penhora (devidamente registada) e subsequente sujeição à venda executiva, atingir-se-ia o pagamento do exequente (e eventuais credores reclamantes) pelo produto da venda do bem; por outro lado, e enquanto durasse a execução, no período que antecedesse a venda continuaria, por força da reserva de propriedade (também devidamente registada) o exequente a gozar da faculdade de exercer o seu direito de resolução do contrato, ressarcindo-se, nomeadamente, através da restituição do veículo” (Ac. do S.T.J. de 12/5/2005).
Assim, pese embora o facto de o Exequente/Agravante haver nomeado à penhora o veículo automóvel sobre cujo direito de propriedade tinha reserva, não pode entender-se que, com tal nomeação, a ela haja renunciado tácita e eficazmente.

3.3) Defende, ainda, o Exequente/Agravante que o facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois, de harmonia com o disposto nos artigos 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
E que, no caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no artigo 832° do Código de Processo Civil (caso a penhora ainda não tenha sido efectuada ou esteja a sê-lo) ou com o que se prescreve no artigo 119° do Código do Registo Predial (caso a penhora já tenha sido realizada e a dúvida surja por o bem não estar registado em nome do executado mas em nome de outrem).
Quanto à pretensa aplicabilidade ao caso em apreço do disposto no art. 119º do Cód. do Registo Predial (aplicável, como vimos, ao registo de automóveis, ex vi do cit. art. 29º do Dec-Lei nº 54/75), cujo nº 1 estatui que: "havendo registo provisório de arresto, penhora ou apreensão em falência ou insolvência de bens inscritos a favor de pessoa diversa do requerido ou executado, o juiz deve ordenar a citação do titular inscrito para declarar, no prazo de dez dias, se o prédio ou direito lhe pertence".
Antes de mais, cumpre esclarecer que “os registos referidos no nº 1 são provisórios por natureza, nos termos da al. a) do nº 2 do art. 92º [do C.R.P.], e são oficiosamente convertidos em definitivos, em face de certidão comprovativa de o citado ter declarado que os bens não lhe pertencem, ou de não ter feito nenhuma declaração, expedida pelo tribunal à conservatória (nº 3)” [8].
“A função desta norma é, como naturalmente se deduz, a de estabelecer um mecanismo que permita a conversão de um registo provisório em definitivo, a de providenciar por uma actualização dos factos inscritos no registo para evitar a sustação de execuções pelo simples facto de o bem penhorado estar indevidamente registado a favor de pessoa diferente do executado” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
In casu" como claramente se infere da competente certidão (fls. 62), o registo da penhora é definitivo. Donde, como é natural, por falta do pressuposto da provisoriedade, não se justifica o recurso ao disposto naquele art. 119º, nº 1” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
“Acresce que o recurso ao mecanismo previsto em tal disposição apenas se justifica relativamente a discrepâncias entre a titularidade do bem e o respectivo registo, quando respeitem a pessoas diversas do exequente e não, como ocorre no caso concreto, com relação a situações em que ele próprio surge como titular inscrito, nas quais existe conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).

3.4) Quanto aqueloutro entendimento propugnado pelo Exequente/Agravante, de que, aquando e após a venda do bem penhorado, o tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos (incluindo a reserva de propriedade) que sobre o bem incidam, por aplicação da disciplina dos arts. 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil:
Dispõe actualmente o art. 888º do C.Proc.Civil que "após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, o agente de execução promove o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil e não sejam de cancelamento oficioso pela conservatória".
Estabelece, por sua vez, o art. 824º do C.Civil que "a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida" (nº 1), sendo que "os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo" (nº 2).
Demos de barato, para facilidade de raciocínio, que é possível, tendo em conta o princípio da liberdade contratual, a aplicação desta figura (reserva de propriedade) a contratos diferentes dos de alienação, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o de compra e venda de veículo automóvel apresenta uma relação de estreita conexão, consubstanciada no facto de o objecto do primeiro - quantia mutuada - representar o preço do segundo [9] [10].
Teria sido isso, afinal, o que ocorreu no caso sub judice, em que a reserva da propriedade sobre o veículo foi estabelecida, não a favor do vendedor, mas em benefício do mutuante, justamente porque o primeiro recebeu, mercê do contrato de mútuo outorgado pelo comprador, o preço convencionado no âmbito da compra e venda do veículo[11].
“Antes de mais, (…) o facto de a reserva de propriedade ter sido (eventualmente) constituída para garantia do direito de crédito do recorrente, advindo do financiamento destinado à aquisição do veículo, de nada releva no sentido da sua pretensão, uma vez que na reserva de propriedade, conquanto direito real de gozo, a função de garantia está sempre presente” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
“Todavia, sempre será de entender que a situações como a agora mencionada não deixam de ser aplicáveis, como é evidente, os efeitos prescritos na lei e próprios da reserva de propriedade como se esta houvesse sido constituída a favor do vendedor. Mesmo que a reserva de propriedade haja sido funcionalmente utilizada e registada para garantia do pagamento da dívida do financiador, nunca será juridicamente um direito real de garantia, mas, em termos de rigor, uma condição suspensiva aposta com respeito à transmissão da propriedade” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
“Donde surja líquida a conclusão de que a reserva de propriedade não constitui uma garantia real coberta pelas normas dos arts. 824º do C.Civil ou do art. 888º do C.Proc.Civil, que apenas abarcam os direitos reais de garantia e os demais direitos reais (como a reserva de propriedade) que não tenham registo anterior ao registo da penhora” (cit. Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005)[12].
“Ora, como a reserva de propriedade, direito real de gozo sobre o veículo automóvel penhorado, está inscrita no registo automóvel com anterioridade em relação ao acto de penhora, certo é que não podia caducar, por força do disposto no nº 2 do artigo 824º do CC, com o acto da venda do veículo” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
“Assim, realizada a venda do veículo automóvel penhorado, não podia o tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 888º do C.Proc.Civil, ordenar o cancelamento da inscrição respeitante à reserva de propriedade, com a consequência de o adquirente ter de suportar aquele ónus na sua esfera jurídico-patrimonial” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).
“Encontramo-nos, pois, perante uma situação em que a penhora (já que foi feita) pode manter-se, mas com base nela não pode a execução prosseguir para a fase da venda, sem que, previamente, o recorrente renuncie à reserva de propriedade e inscreva no registo o respectivo cancelamento” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).

Consequentemente, “perante a anomalia de haver sido ordenada e realizada a penhora de um veículo automóvel em relação ao qual a exequente é titular do direito de propriedade e não qualquer dos executados, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que a agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa (artigos 276º, n° 1, alínea c) e 279º, ex vi do n° 1 do art. 466, do C.Proc.Civil)” (Acórdão do S.T.J. de 12/5/2005).

3.4) Dado o exposto, não há que fazer censura ao despacho recorrido. 

4) Decisão.
Pelo exposto, acordam em conferência os Juízes que constituem esta secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improvido o recurso de agravo interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do agravo a cargo do Agravante.
Notifique-se.
DN.
   Lisboa, aos 29 de Abril de 2008
José Gabriel Silva
Maria Rosário Barbosa
Maria Rosário Gonçalves
_____________________________
[1] Pires de Lima e Antunes Varela (in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, p. 376); Vaz Serra (in RLJ Ano 112º, p. 235); Almeida Costa (in “Direito das Obrigações”, 5ª edição, Coimbra, 1991, p. 232); Armando Braga (in "Contrato de Compra e Venda", Porto, 1990, p. 69). Cfr., na jurisprudência, os Acs. do STJ de 22/02/83 (in BMJ nº 324, pag. 578: relator Santos Silveira); e de 01/02/95 (in BMJ nº 444, pag. 609: relator Sousa Inês).
[2] Cfr., Luís Lima Pinheiro in obra citada, pags. 93 a 120.
[3] Luís Lima Pinheiro, ibidem, pag. 113 e autores aí citados em nota.
[4] Com efeito, na execução para pagamento de quantia certa, o exequente (credor) visa obter o cumprimento duma obrigação pecuniária através do património do executado (devedor). Apreendidos e vendidos bens deste património, procede-se, com o dinheiro realizado, ao pagamento do exequente, que obterá assim, por esta via, idêntico resultado ao da realização da prestação que lhe é devida, segundo o título executivo. Assim, “a nomeação à penhora pelo titular da reserva de propriedade sobre o bem concernente não é conforme à regra que resulta da lei, no sentido de que pelas dívidas do executado apenas os seus bens ou os de terceiro afectos ao cumprimento da obrigação, respondem (artigos 601º CC e 821º CPC)” (Ac. da Rel. de Lisboa de 16/10/2003, proferido no Proc. nº 7341/2003-6 e relatado pelo Desembargador Granja da Fonseca.
[5] Ac. da Rel. de Lisboa de 21/02/2002 in CJ Ano XXVII, tomo 2, pag. 113 (relator: Salvador da Costa).
[6] Efectivamente, “se assim fosse, isto é, se se tratasse de renúncia tácita, não havia meio de se conseguir o seu cancelamento no registo automóvel por falta de título documental adequado” (cit. Ac. RL de 21/02/2002 in CJ Ano XXVII, tomo 2, pag. 113). “Nesta lógica, ainda que o veículo automóvel fosse vendido no âmbito da acção executiva, porque a reserva de propriedade, ou seja, um direito real de gozo, está registada antes do acto da penhora, continuaria a afectar, não obstante a alienação, o veículo automóvel vendido (cfr. artigo 824º, n.º 2 CC)” (ibidem).
[7] Cit. Ac. RL de 21/02/2002 in CJ Ano XXVII, tomo 2, p. 113 (relator Salvador da Costa).
[8] Isabel Pereira Mendes in "Código de Registo Predial", 5ª edição, Coimbra, 1992, p. 243.
[9] Cfr., neste sentido, Vasco Lobo Xavier in "Venda a Prestações, Algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil", Coimbra, 1977, pags. 23 a 25.
[10] Cfr., no sentido de que, “embora a reserva de propriedade, tal como está prevista na lei, tenha sido pensada para contratos de compra e venda, o certo é que o artigo 409º, n.º 1 abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude do objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo”, Luís Lima Pinheiro (in "A Cláusula de Reserva de Propriedade" cit., pp. 33-34) e o Ac. da Rel. de Lisboa de 11/12/1997 (in CJ, Ano XXII, Tomo 5, p. 120).
[11] Cfr., no sentido de que “o facto de as partes terem optado pela reserva de propriedade do veículo automóvel não a favor do vendedor, mas da mutuante, consubstancia uma situação anómala de constituição da reserva de propriedade, mas não se altera o regime legal que decorre da lei”, porquanto “os seus efeitos são idênticos àqueles que derivariam de ela haver sido constituída a favor do vendedor do veículo automóvel que foi penhorado”, o Ac. da Rel. de Lisboa de 16/10/2003 (proferido no Proc. nº 7341/2003-6 e relatado pelo Desembargador Granja da Fonseca.
[12] Como se sabe, nos termos do nº 2 do cit. art. 824º do Cód. Civil, há que distinguir duas espécies de direitos que incidam sobre os bens vendidos. Assim, enquanto os de garantia caducam todos (os bens são sempre transmitidos livres de todos eles, sejam de constituição anterior ou posterior à penhora, tenha ou não havido reclamação na execução dos créditos que eles garantem), já os direitos reais de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias (apenas se exceptuam aqueles direitos de gozo que produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, porque estes também não caducam, se tiverem sido constituídos anteriormente ao mais antigo daqueles actos).