Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
364/14.9T8BRR-F.L1-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPENSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Não existe o impedimento à compensação a que se refere o artigo 99.º, n.º 4, alínea a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, quando as dívidas a compensar não se constituíram após a data de declaração da insolvência, estando verificados antes daquela data os requisitos das alíneas b) e a) do n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil.
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


1. A Massa Insolvente de “D... Limitada” intentou acção, com processo comum, contra “B... ACE” pedindo a sua condenação no pagamento de € 150.972,22 correspondente a trabalhos prestados pela “D...” à Ré, quantia titulada por três facturas que não foram pagas.

Alegou, em síntese, que no âmbito de uma relação contratual com a Ré, de trabalhos na barragem do Foz Tua, realizou trabalhos de subempreitada, que não foram pagos e que agora peticiona.

A Ré, que foi regularmente citada, não negou a execução dos trabalhos, nem a falta do respectivo pagamento.

Porém, excepcionou a compensação, invocando ser titular de créditos sobre a massa insolvente, os quais estão reconhecidos na lista definitiva elaborada pelo administrador daquela insolvência, nos respectivos autos de reclamação do passivo.

Perante tal compensação, o pagamento devido à Autora deve ser reduzido.

Por se entender desnecessária a produção de prova, já que dos autos constavam todos os elementos que permitiam decidir, foi logo proferido o saneador-sentença.

Neste, a acção foi julgada parcialmente procedente e a Ré condenada “a pagar à Autora a quantia equivalente à factura n.º 1542, no valor de € 3 463,68, vencida em 3 de Novembro de 2014, acrescida de juros de mora à taxa legal até integral pagamento, declarando-se compensados os demais créditos da Ré com os contra créditos da Autora, correspondentes às facturas 1524 e 1547”.

Inconformada, a Autora apelou.

Alegou e, a final, formulou as seguintes conclusões (expurgadas da doutrina e jurisprudência citadas):
- A sentença decide mal ao considerar que o momento de constituição da dívida, que releva nos termos do artigo 99.º, n.º 4, alínea a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, é o da realização da obra.
- Os direitos dos credores da massa insolvente não podem ser ultrapassados, devendo ser exercidos de acordo com o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
- Não foi considerado o disposto no contrato de subempreitada, havendo incorrecta submissão dos factos ao direito.
- Uma correcta aplicação do artigo 99.º, n.º 4, a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas conduz à inadmissibilidade de compensação quanto às facturas 1524 e 1547.
- Nos termos do contrato de subempreitada a dívida constituiu-se 60 dias após a recepção da factura, data a partir da qual a Ré tem obrigação de pagar o preço.
- Ou seja, quanto às facturas 1524, 1542 e 1547, respectivamente em 15.12.2014, 3.11.2015 e 17.3.2015.
- A sentença recorrida violou o disposto no artigo 99.º, n.º 4, alínea a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.

A recorrida contra alegou pedindo a manutenção do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
a) Em 10 de Novembro de 2014 foi decretada a insolvência da D...
b) Por documento particular de 9 de Julho de 2013, a “B... ACE” declarou ser empreiteira, a “P..., Limitada” e a “D..., Limitada”, declarou ser subempreiteira na realização de determinados trabalhos na barragem de Foz Tua, da qual é dona a “E... SA”, nos termos e condições de fls. 173 a 192 do apenso B.
c) No âmbito daquela relação contratual a D... emitiu a factura n.º 1524, com o valor de €97.088,18; a factura n.º 1542, com o valor de €4.463,68; e a factura n.º 1547 com o valor de €47011,27, que não foram pagas pela Ré, nem contestado o seu teor.
d) No dia 11 de Dezembro de 2014 a “B... ACE” comunicou ao administrador da massa insolvente da “D..., Limitada”, por carta registada, com aviso de recepção, que foi por este recebida, que efectivava a compensação de créditos, que diz ser titular sobre a insolvência, no valor de €240.374,10.
e) Por declaração de 8 de Janeiro de 2015 enviada àquele administrador da massa insolvente, declarou efectivar uma segunda compensação de créditos sobre a mesma massa.
f) Por cartas de 9 de Março de 2015 o administrador da massa insolvente da D... comunicou à Ré a resolução dos actos de compensação de créditos acima mencionados.
g) A Ré fez dois adiantamentos à D..., no valor de €50.000,00, em Fevereiro de 2014 e de €75000,00 em Julho de 2014.
h) Os créditos invocados nestes autos pela Ré e nas declarações de compensação referidas em d) e e) encontram-se reconhecidos pelo administrador de insolvência na lista definitiva apresentada nos termos do artigo 129.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (apenso B).
i) A D... saiu da obra da qual era subempreiteira em Outubro de 2014 tendo, desde então, deixado de prestar serviços para a Ré.

3. No núcleo essencial, e seguramente único, da sua alegação, a recorrente imputa à decisão recorrida a violação da alínea a) do n.º 4 do artigo 99.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas por admitir a compensação com as dívidas à massa insolvente.

Importa, desde já, que se façam algumas considerações sobre o instituto da compensação.

Trata-se de uma forma de extinção de duas obrigações quando o credor de uma é devedor de outra.

Busca-se, então, um “encontro de contas” para evitar pagamentos recíprocos, não obrigando a cumprir quem seja, simultaneamente, credor do seu devedor.

Vem regulamentada nos artigos 847.º a 856.º do Código Civil, daí resultando a sua natureza potestativa, dado que não opera “ipso jure” (cf., v.g., os Profs. Vaz Serra – “Compensação” – BMJ, 31, 13 ss – e Castro Mendes – “Compensação de Obrigações com lugares diferentes de pagamento”, 1973; e Acórdãos do STJ, de 2 de Julho de 2015 – proc. nº 9182/12.3YIPRT-A.C1.S1 e de 16 de Fevereiro de 2016 – proc. nº 17099/08-0TVLSB.L1.S1).

A natureza potestativa e receptícia implica que se opere por declaração de uma das partes à outra, nos termos dos artigos 848.º, n.º 1 e 224.º do Código Civil, podendo ser efectuada judicialmente.

A “vexata quaestio” entre a formulação por reconvenção ou por excepção peremptória (Profs. Vaz Serra –“Algumas considerações em matéria de compensação no processo”, RLJ 104.º, 276 ss; e Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 6.ª ed, 973 – está hoje resolvida na alínea c) do n.º 1 do artigo 266.º do Código Civil, deixando de valer a tese de que, se o demandado, verificando ser credor de quantia que excedesse o crédito do demandante apenas podia optar pela reconvenção para peticionar a diferença, já que actualmente, pode fazê-lo, desde logo, quer por via de acção, quer por excepção.

Alcançado o conceito, encontram-se os requisitos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil, mas o n.º 2 admite compensação parcial quando as dívidas não sejam de igual montante e o n.º 3 dispõe que “a iliquidez da dívida não impede a compensação”.

A citada alínea a) dispõe que o crédito a compensar deve ser “judicialmente exigível” assim arredando as obrigações naturais (artigo 402.º), as sujeitas a condição ainda não verificada ou a prazo ainda não vencido (veja-se, a propósito, o Prof. Menezes Cordeiro – “Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário”, 2003, p. 113 a 115 – que também faz o “distinguo” entre créditos activos e passivos; o Acórdão da Relação do Porto de 19 de Janeiro de 2006 – 0536641 – afirmou que “o legislador ao usar a expressão ‘exigível’ se quis referir a um crédito certo, seguro e não meramente hipotético ou eventual. Enquanto não estiver reconhecido o crédito não pode o mesmo servir de sustento a uma compensação de créditos. (…) O contra crédito já tem de estar definido – para poder ser exigível – no momento em que se alega a compensação de créditos.” (cf., ainda, os Profs. Menezes Cordeiro – “Direito das Obrigações”, 2002, II, 196 – e Pires de Lima e A. Varela – “Código Civil Anotado”, II, 3.º ed., 137 – a insistirem que, como regra obrigacional geral, e à parte da disciplina específica dos contratos, a compensação do artigo 847.º “é aquela que pode ser imposta por uma das partes à outra”; ainda, na mesma linha, os Profs. A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 7.ª ed., II, 204 e Pessoa Jorge, “Lições de Direito das Obrigações”, 1966, 284).

E há que não confundir a exigibilidade com mera expectativa (Prof. Anselmo de Castro – “Direito Processual Civil Declaratório”, I, 172 e, entre outros, o Acórdão do STJ, de 14 de Dezembro de 2006 – proc. nº 06 A3861). Tem de existir uma obrigação vencida, incumprida e não extinta (cfr. ainda o Acórdão do STJ, de 2 de Março de 2010 – proc. nº. 160/2001.S3.1.ª).

Tratando-se de execução o crédito exequendo só poderá ser compensado por outro que também já tenha força executiva (neste sentido, quer directo, quer em insinuação/fundamento v. os Acórdãos do STJ, de 22 de Junho de 2006, de 14 de Dezembro de 2006 – proc. nº 06 A3861 e de 1 de Julho de 2014 – proc. nº 11148/12.9YIPRT-A.L1.S1 e o Prof. A. Varela, RLJ, 121/148, a enfatizar a necessidade da prestação do contra crédito poder ser imposta coactivamente).

3.1. Aqui chegados, há que abordar a questão concretamente suscitada, a prender-se com a exegese do artigo 99.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE).

Como regra os titulares de créditos sobre a insolvência podem compensá-los com dívidas à massa.

O n.º 1 do preceito exige, porém, que ocorra pelo menos um dos seguintes requisitos:
- Serem os pressupostos legais da compensação anteriores à data da declaração da insolvência;
- Ter o crédito sobre a insolvência preenchido antes do contra crédito da massa os requisitos do artigo 847.º do Código Civil.
Mau grado esta disponibilidade liminar, a compensação é vedada nas situações do n.º 4, das quais só iremos abordar – por ser a aqui questionada a da alínea a) [“Se a dívida da massa se tiver constituído após a data da declaração de insolvência, designadamente em consequência da resolução de actos em benefício da massa insolvente.”].

Ora, da análise atenta da matéria de facto atrás elencada verifica-se ser liminarmente admissível a compensação por preenchido o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 99.º do CIRE.
De facto, trata-se de créditos judicialmente exigíveis, de acordo com os critérios antes explanados, sendo que não surgem atingidos por qualquer das situações da alínea a), “in fine” do n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil, tratando-se também de obrigações “da mesma espécie e qualidade” (alínea b) do n.º 1 daquele preceito).
A exigibilidade revelou da interpelação, consistente na emissão de facturas com prazo de cumprimento. (cf. Parecer do Prof. Rui de Alarcão e de J. Sousa Ribeiro, junto ao proc. nº 6A4010, do STJcitado no Acórdão de 23 de Janeiro de 2007).

De outro lado também se provou que o credor comunicou ao administrador da massa insolvente, em 11 de Dezembro de 2014, o propósito de compensar os créditos das facturas 1542, 1524 e 1547, que não foram pagas, nem contestado o seu teor.

Assim cumpriu o que a natureza potestativa da compensação lhe impunha.

Os créditos referidos nas alíneas d) e e) dos factos provados foram reconhecidos pelo administrador na lista definitiva (artigo 129.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas).

A factura 1524 é datada de 16 de Outubro de 2014; a factura 1547 é de 16 de Janeiro de 2015.

A insolvência da recorrente foi decretada em 10 de Novembro de 2014.

Porém a D... saiu da obra da qual era subempreiteira em Outubro de 2014 tendo, desde então, deixado de prestar serviços à Ré – recorrida, sendo, mesmo judicialmente, de presumir que os créditos são anteriores a esse termo.

É, pois, cristalino que as dívidas a compensar não se constituíram após a data de declaração da insolvência, estando verificados os requisitos das alíneas b) e a) do n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil antes daquela data (cf. Drs. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código de Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª ed., 477).

Não existe, assim, o impedimento à compensação a que se refere o artigo 99.º, n.º 4, alínea a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.

Improcede, pelo exposto, o núcleo central da argumentação da recorrente.

Decisão.

4. Termos em que se acorda em negar provimento à apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 15 de Setembro de 2016.


Maria Manuela B. Santos G. Gomes
Fátima Galante
Gilberto Jorge


Decisão Texto Integral: