Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3128/16.1T8LSB.L1-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: REGIME IMPERATIVO DE BENS
CONJUGES
DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES
DOCUMENTO ESCRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.–  Os cônjuges, ainda que casados sob o regime de separação de bens, possam fazer doações um ao outro, logo que tal regime de separação tenha sido o convencional; apenas nos caso de celebração de casamento sob o regime imperativo da separação de bens é que tal faculdade lhes é vedada – artigo 1762.º do Código Civil.

II.–  No âmbito do artigo 1763.º, n.º 1, do Código Civil, sempre que esteja em causa a proteção de interesses de terceiros, deve ser cominada com nulidade toda a doação que não tiver sido acompanhada de documento escrito, como ali se refere; quando a discussão se circunscrever aos interesses dos membros do casal e/ou ex-casal, a prova quanto à natureza desses bens poderá ser realizada por qualquer meio permitido em Direito.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.–RELATÓRIO:

         
J. propôs ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra E., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 71.349,04 respeitante a capital e juros até à 08 de Fevereiro de 2016 e ainda nos juros de mora vincendos, à taxa legal, desde essa data e até integral pagamento, sobre a quantia de € 60.000,00.

Para o efeito alegou, em síntese, que foi casado com a Ré e que na pendência do casamento, e no exercício da sua atividade de criador de cavalos, comprou um cavalo que veio mais tarde a vender. Após, depositou parte do produto dessa venda na conta da sua mulher e aqui Ré, para que esta lho restituísse. No entanto, esta apesar de instada para o efeito, não o fez, razão pela qual vem agora pedir a sua condenação no cumprimento dessa obrigação invocando, para o efeito, a existência de um contrato de depósito.

Referiu ainda que, para o caso de assim de não ser entendido, sempre teria de ser declarada a nulidade da doação, por vigorar no casamento entre o mesmo e a aqui Ré o regime de separação de bens e não ter sido cumprido o formalismo do artigo 1763.º do Código Civil.
 
Por fim, invocou ainda o instituto do enriquecimento sem causa cujos pressupostos cumulativos defende estarem presentes e que determinariam a procedência da ação.

Em contestação a Ré invocou a exceção de caso julgado, mais referindo que o cavalo mencionado nos autos lhe foi oferecido pelo seu então marido, aqui A., que teve a seu cargo o treino e manutenção do mesmo e ainda que a quantia que foi depositada na sua conta bancária correspondeu a compensação pela venda do cavalo que lhe pertencia, concluindo, assim, que nada há a devolver. Pediu ainda a condenação do A. enquanto litigante de má-fé.

O A. respondeu relativamente à litigância de má-fé e à exceção de caso julgado, defendendo a não verificação de qualquer delas.

Teve lugar audiência prévia, em que foi conhecida a invocada exceção, tendo-se concluído pela sua não verificação, e em que foram fixados os factos assentes e os temas da prova.

Procedeu-se à realização de Audiência de Julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação improcedente, dela absolvendo a Ré.

Inconformado com o assim decidido, o A. interpôs recurso de Apelação no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:

1.–(A)-Apesar de constar dos temas da prova e dos factos dados como provados, estranhamente a douta sentença preferida pelo Tribunal ‘a quo’ não se pronunciou, nem muito menos solucionou, questão que para além de ser do seu conhecimento oficioso (‘ex vi’ artigo 286.º, do Código Civil), foi efetivamente suscitada pelo Recorrente e objeto de resposta da contraparte.

2.–(B)-Assim, ao deixar de tomar partido face à validade da suposta doação entre casados, ocorrida em 2002 e respeitante ao equídeo «Sol», ao abrigo do disposto nos artigos 1762.º e 1763.º, do Código Civil, o Tribunal ‘a quo’ “contaminou” a sentença com o vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do preceituado no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.

3.–(C)-Ademais, é patente que a sentença recorrida ostensivamente incumpriu com as exigências de fundamentação constantes do artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, designadamente no que concerne à identificação e análise crítica das provas.

4.–(D)-Por um lado e no que concerne à prova documental, ter-se-á forçosamente de inferir que a letra do acto decisório não permite determinar a relevância (ou falta dela...) dada a cada um dos documentos juntos aos autos.

5.–(E)-Por outro, torna-se evidente que relativamente aos depoimentos das testemunhas, o julgador “abrigou-se” em silogismos genéricos e vazios, absolutamente inaptos a explicar porque determinaram ilidida a presunção do registo de propriedade do equídeo, impedindo o Apelante de recorrer da matéria de facto precisamente por ignorar as razões influentes na convicção plasmada na sentença.

6.–(F)-Não tendo o Tribunal ‘a quo’ logrado fazer completa indicação das provas e indispensável exame crítico das mesmas, das duas uma: i) ou a sentença é nula nos termos conjugados dos artigos 154.0, 607.0, n.os 3, 4 e 5, e 615.0, n.0 1, al. b), do Código de Processo Civil; ii) ou esta padece de uma nulidade processual, nos termos do postulado no artigo 195.0, n.0 1, do Código de Processo Civil, por desrespeito dos pressupostos de fundamentação ínsitos no artigo 607.0, n.0 4, desse diploma legal [neste sentido ‘vide’ Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-10-2015, proc. n.0 161/09.3TCSNT.L1-2, disponível ‘in’ www.dgsi.pt].

7.–(G)-Face à apontada omissão de pronúncia respeitante à alegada doação entre casados concernente ao cavalo «Sol», ao abrigo do disposto nos artigos 1762.0 e 1763.0, do Código Civil, o Apelante, com o fito de evitar transformar a presente peça processual em improfícuo “exercício” de «copy & paste», reitera e dá por integralmente reproduzido o argumentário expendido nos artigos 32.0 a 36.0 e 41.0 a 44.0, da petição inicial.

8.–(H)-Acrescenta, contudo, o facto de nos termos conjugados dos artigos 1763.0, n.0 1 e 220.0, do Código Civil, a doação do equídeo «Sol», a ter ocorrido, o que apenas se invocou por cautela e dever de patrocínio, padecer do vício de nulidade por inobservância de forma escrita, o qual deveria ter sido declarado na sentença, com os efeitos previstos no artigo 289.º e 291.º, ambos do mesmo diploma legal.

9.–(I)-Tratando-se de questão jurídica alegada pelo Recorrente, respondida pela Apelada e, inclusivamente, do conhecimento oficioso do Tribunal (cfr. artigo 286.º, do Código Civil), deverá o Tribunal ‘ad quem’ – ao ter afastado, repita-se, infundadamente, a presunção do registo a favor do Apelante e, dessa forma, considerar a existência de doação – determinar a nulidade da aludida doação entre casados, por força do preceituado nos n.os 1 e 2, do artigo 665.º, do Código de Processo Civil.

Conclui, assim, pelo provimento do recurso com a consequente revogação da decisão recorrida por douto acórdão que:

a)- determine a nulidade da sentença, por enfermar do vício de omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil;

b)- declare nula a sentença por violação do preceituado nos artigos 154.º, 607.º, n.os 3, 4 e 5, e 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil ou, subsidiariamente, qualifique tal invalidade como “mera” nulidade processual, de acordo com o postulado no artigo 195.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, por desrespeito dos pressupostos de fundamentação ínsitos no mencionado artigo 607.º, n.º 4;

c)- considere verificada a nulidade da suposta doação entre casados, respeitante ao equídeo «Sol» e alegadamente ocorrida em 2002, por inobservância da exigência de forma escrita, por aplicação conjunta dos artigos 1763.°, n.° 1, e 220.°, ambos do Código Civil.

A Ré contra-alegou sustentando a manutenção da sentença proferida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II.–FACTOS PROVADOS

1.–A. e Ré casaram entre si, sob o regime de separação de bens, em 28 de Julho de 1990 (doc. 1 da P.I.).

2.–De acordo com o boletim de inscrição da Associação Portuguesa de Criadores do Cavalo Puro Sangue Lusitano o cavalo Sol, nascido em 22 de Abril de 1999, à data de 18 de Março de 2008, era propriedade do A..

3.–No decurso do ano de 2010, o A., no exercício da atividade de criador de cavalos, vendeu o cavalo Sol a Z., por valor não inferior a € 200 000, 00.

4.–Parte do preço, no valor de € 60 000, 00, foi transferido em 26 de Novembro de 2010 e depositado na conta n.º...  do “Barclays Bank Portugal”, de que a Ré é titular.

5.–No ano de 2012, o A. apresentou queixa-crime e deduziu pedido de indemnização cível contra a ora Ré E..

6.–O pedido formulado pugnava pela condenação da arguida, ora Ré, como autora material e na forma consumada, na prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1 e n.º 4 al. b) ex vi, art.º 202.º, al. b), todos do Código Penal, bem como no pagamento do montante global de € 70.016, 99, relativos a danos patrimoniais e juros.

7.–Este processo correu os seus termos no Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Local, Secção Criminal - J3, sob o n.º 941/12.2TDLSB.

8.–Este processo foi alvo de sentença absolutória na primeira instância relativamente à matéria penal e à matéria cível.

9.–Foi objeto de recurso por parte do A. e a Relação de Lisboa confirmou a decisão proferida em 1.ª instância.

10.–A decisão transitou em julgado em 14 de Outubro de 2015.

11.–Dos factos dados como assentes no processo-crime consta:

- no âmbito da sua atividade profissional de criador de cavalos e em circunstâncias ao certo não apuradas, o ofendido no final do ano de 2010 havia procedido à venda de um equídeo denominado “Sol” a Z. através da sociedade “RP... AG”, venda efetuada por quantia não concretamente apurada, mas superior a 200 000, euros;

- por motivos e em circunstâncias não concretamente apuradas, foi depositada a quantia de 60 000 euros relativa ao preço de venda do cavalo “Sol” na conta n.º... do Barclays Bank Portugal, titulada pela arguida, através de transferência bancária ocorrida na data de 26 de Novembro;

- a arguida apropriou-se de tal quantia a que deu destino não apurado, integrando-a a sua esfera patrimonial em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 26-11-2010 e 26-7-2011, não obstante interpelada pelo ofendido para proceder à sua entrega em datas e vezes não concretamente apuradas;

- o cavalo Seal foi comprado pela arguida e pelo ofendido em partes iguais em 2011, para ser oferecido à filha de ambos;

- não obstante este cavalo ter sido pago por ambos, também ele ficou registado em nome do ofendido e não obstante a arguida ter contribuído com metade para sua aquisição em 14-12-2010 no valor de 25 000 euros.

12.–Por sentença proferida em 29 de Julho de 2013, foi decretado o divórcio entre A. e Ré.

13.–O cavalo Sol foi adquirido com fundos pertença exclusiva do A.

14.–O A. ofereceu o cavalo Sol à Ré, como presente de anos, em 10 de Fevereiro de 2002.

15.–A quantia de € 70.000,00 também referente ao preço da venda foi transferida para conta do A. de que este era o único titular.

16.–A quantia de € 70.000,00 também referente ao preço da venda foi transferida para conta conjunta de A. e Ré.

17.–Do preço da venda do cavalo foi transferida a quantia de € 60.000,00 para conta da Ré, para que esta os fizesse seus.

18.–Com eventual relevo para a decisão não se provou:

- que A. e Ré tenham acordado que a quantia de € 60.000,00 depositada na conta da Ré seria entregue ao A. quando este o solicitasse;

- qual a exata origem da quantia transferida para a conta da Ré.

19.–Motivação apresentada pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância:

Os temas da prova 1, 5 e 6 foram dados como assentes pelas partes no decurso da audiência de discussão e julgamento.

Resta, assim, fundamentar a matéria dos temas da prova 2, 3 e 4.

As declarações de parte foram contraditórias entre si, insistindo A. e R. na versão dos factos adiantada nos articulados. No entender do tribunal, em tese, tanto poderia ser verdade que a quantia de € 60 000, 00 seria para devolver ao A., como que seria para compensar a Ré pela venda de cavalo que lhe tinha sido oferecido, mas que fora mantido e treinado a expensas do marido.

As declarações de parte, em suma, pouco adiantaram para a descoberta da verdade. A. e R. depuseram de forma inflamada e convicta dos seus direitos e com indignação relativamente à postura assumida pelo ex-cônjuge, não tendo o tribunal meios para determinar quem fala verdade. Note-se que decorre dos autos que já não se trata de um primeiro depoimento, estando, pois, ambos avisados relativamente ao que deveria ocorrer.

Quanto à testemunha JH...esta sabia apenas que o cavalo era conhecido como sendo do A. e que era ele quem dava as ordens atinentes. Não está, porém, posto em causa pelas partes que os cuidados com o equídeo teriam origem no A., que era o entendido na matéria.

Ana... depôs no sentido de que o cavalo era do pai, tendo sido apresentado à família no picadeiro do Morgado Lusitano, não se recordando de que tivesse sido em alguma ocasião especial.

As testemunhas Jorge..., Clara.. e José..., ao invés, declararam ter conhecimento de que se tratara de um presente e esclareceram pormenores correlacionados.

Com base neste confronto e atentos os pormenores verosímeis e circunstanciados relatados pelas últimas testemunhas aludidas, o tribunal ficou convicto de que o cavalo foi efetivamente oferecido à R..

Por outra parte, não foi suficientemente esclarecido o motivo pelo qual a transferência teria ocorrido para a conta da R. e o dinheiro aí se teria mantido, sem que, passado um período de tempo relevante, tivesse ingressado na esfera jurídica do A., ao invés, mantendo-se na conta da Ré”.

III.–FUNDAMENTAÇÃO.

O conhecimento das questões por parte deste Tribunal de recurso encontra-se delimitado pelo teor das conclusões ali apresentadas salvo quanto às questões que são de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil Revisto.

O conteúdo de tais conclusões deve obedecer à observância dos princípios da racionalidade e da centralização das questões jurídicas objeto de tratamento, para que não sejam analisados todos os argumentos e/ou fundamentos apresentados pelas partes, sem qualquer juízo crítico, mas apenas aqueles que fazem parte do respetivo enquadramento legal, nos termos do disposto nos artigos 5.º e 608.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil Revisto.

Constituem questões colocadas pelo Apelante à consideração deste Tribunal de recurso:

1.- Saber se a sentença proferida é nula, por violação do disposto no artigo 651.º, n.º 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil Revisto;
 
2.- Se a doação do cavalo identificado nos autos é nula, por realizada no âmbito do casamento celebrado no regime de separação de bens e sem que tivesse sido observada a forma escrita.

Vejamos, pois, cada uma destas questões, pela ordem que acima se deixaram expostas.

Defende o Apelante que a sentença enferma de nulidade integrável no disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil Revisto, uma vez que ocorreu omissão de pronúncia sobre questões que concretamente colocou à apreciação do Tribunal - como é o caso da nulidade da doação entre casados em que vigore o regime de separação de bens, e a falta de observância de forma quanto a essa mesma doação -, assim como não cumpriu com as exigências legais de fundamentar e analisar criticamente a prova realizada em Julgamento e a prova documental junta aos autos, concluindo, assim, pela invocada nulidade da sentença proferida.

Conhecendo, podemos desde já deixar expresso que a verificação da nulidade prevista pelo artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil Revisto, verifica-se quando o juiz não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Ora, salvo sempre o devido respeito, a Motivação apresentada pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância é extensa e pormenorizada, tendo realizado uma exaustiva enumeração dos meios de prova tidos em consideração e analisado criticamente a prova realizada em Audiência e a prova documental existente no processo com o que, cumpriu o senhor Juiz o dever constitucionalmente garantido às partes e imposto ao Tribunal de fundamentar a decisão – artigo 208.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
 
A forma como o senhor Juiz justificou a fixação da prova permite compreender como foi formada a respetiva convicção, em termos lógicos, permitindo, ainda, compreender o enquadramento de cada um desses factos entre si e o seu respetivo escrutínio.
 
Contrariamente ao afirmado pelo A./Apelante, a discordância quanto à formação da convicção do julgador não constitui qualquer nulidade da sentença conforme decorre do n.º 5 do artigo 607.º e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil Revisto. Por outro lado, o processo lógico que determinou o senhor Juiz a chegar a uma determinada convicção encontra-se também plasmado na sentença e, como podemos verificar, os factos dados como Provados e Não Provados não foram sequer objeto de impugnação nos termos do disposto nos artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil Revisto.

E nem se diga que o facto de ter contestado a prova positiva quanto à propriedade do cavalo em causa nos autos ser da aqui Apelada com a circunstância de o registo desse mesmo cavalo se encontrar em seu nome, é uma impugnação direta de tal realidade.

Com efeito, o registo em análise constitui apenas e tão só uma presunção “juris tantum” daquele direito e que pode ser contrariada pela realização positiva de prova em contrário, como o foi neste caso e está devidamente fundamentado na parte da sentença respeitante à convicção do Tribunal. Assim sendo, não tendo essa prova sido contrariada nos termos processuais, sempre o facto deve ser entendido como não impugnado.

Contrariamente ao afirmado pelo Apelante, sempre esteve na sua disponibilidade impugnar a prova realizada em Audiência, com base na prova testemunhal ali prestada, pelo que, sempre o mesmo poderia, caso assim o entendesse, indicar os meios de prova que, no seu entender, imporiam entendimento diverso, impugnação essa a ser realizada nos termos do disposto nos artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil Revisto, conforme já acima deixamos expresso, prerrogativa que entendeu não utilizar.

Concluindo, sempre se dirá que o senhor Juiz fixou os Factos Provados e Não Provados, acompanhando essa concretização com a indicação dos meios de prova em que sustentou essa fixação, com o que deu cumprimento ao disposto no artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil Revisto.

E, ainda que outro fosse o entendimento do aqui Apelante, é consensual na jurisprudência que, apenas a total ausência de fundamentação de facto e/ou de Direito, pode fundar este tipo de nulidade que, neste caso concreto, como já acima afirmarmos, não se verifica.

Não se verifica, pois, a invocada nulidade da sentença por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil Revisto.

Também quanto à verificação da nulidade prevista pelo artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil Revisto, podemos concluir pela sua não verificação. Esta nulidade verifica-se quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, dever que lhe é imposto pelos artigos 608.º, n.º 2 e 5.º n.º 3 deste mesmo diploma legal, e que se pode traduzir no dever imposto ao juiz, de não ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, assim como de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

As questões que o juiz deve conhecer são aquelas que integram as pretensões formuladas pelas partes, muito embora o juiz não esteja obrigado a apreciar todos os argumentos e/ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista. Da mesma forma, e relativamente ao respetivo enquadramento legal, o juiz não se encontra sujeito às razões jurídicas invocadas pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do Direito – artigo 5.º do Código de Processo Civil Revisto.

Por fim, retenha-se que as nulidades da sentença, enquanto vício intrínseco, devem ser apreciadas no contexto e fundamentação constante da sentença, dela não fazendo parte os erros na apreciação da matéria de facto e/ou incorretos enquadramentos das normas jurídica aos factos dados como provados que, neste último caso, integram erros de julgamento, a averiguar em sede distinta.

Na decisão sob recurso, e distintamente do afirmado pelo aqui A./Apelante, o senhor Juiz conheceu expressamente do pedido pelo mesmo formulado, apenas o enquadrando em distinta sede jurídica.
 
Com efeito, segundo o entendimento defendido na sentença, a questão jurídica foi apreciada nos exatos termos em que foi colocada pelo aqui A./Apelante, que configurou a presente ação como uma ação de responsabilidade civil baseada na violação dos deveres decorrentes de um contrato de depósito celebrado entre as partes e que, conforme também ali defendeu, foi incumprido pela aqui Ré/Apelada.

Ora, após o senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância ter chegado à conclusão que tal contrato de depósito não foi firmado entre as partes, aliás, que tal contrato nunca existiu, o senhor Juiz proferiu decisão a absolver a Ré e entendeu, nesse contexto, não ter de apreciar os demais fundamentos invocados para sustentar a negação realizada pelo A. em sede de resposta à contestação, quanto à defesa ali apresentada pela Ré, mormente, porque em face da prova realizada, concluiu pela verificação de uma realidade distinta e com um enquadramento jurídico que dispensava outro tipo e argumentação.

Resulta, assim, sem margem para qualquer dúvida, que no enquadramento jurídico realizado pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância foi indicado o normativo que se entendeu aplicável ao caso dos autos, ali se especificando as razões de facto e de Direito julgadas aplicáveis, não resultando que tenha ficado por conhecer questões que o devessem ser, pelo que, também quanto a este ponto, não se verifica a invocada nulidade.

Questão distinta é a do enquadramento jurídico a realizar, ou seja, a aplicabilidade do Direito aos factos, sendo esta uma questão do fundo da causa que, como já acima referimos, vamos passar a conhecer como sendo a segunda das questões colocadas pelo aqui A./Apelante.

Antes, porém, cumpre proceder à retificação do Ponto 1 dos Factos Provados em que se omite que o regime de separação que vigorava entre os cônjuges – os aqui A. e Ré -, era o de separação convencional. Este elemento consta de documento junto aos autos pelo próprio A./Apelante – doc. 1 junto com a petição inicial - e deve ser tido em consideração na decisão a proferir por implicar um enquadramento jurídico que influencia a apreciação do Direito a aplicar – artigo 607.º, n.º 4 e 663.º , n.º 2, do Código de Processo Civil Revisto.

Deve, pois, o Ponto 1 dos Factos Provados passar a ter a seguinte redação:

A. e Ré casaram entre si, sob o regime convencional de separação de bens, em 28 de Julho de 1990

Aqui chegados podemos desde já afirmar que, contrariamente ao afirmado pelo Apelante, nada obsta a que os cônjuges, ainda que casados sob o regime de separação de bens, possam fazer doações um ao outro, logo que tal regime de separação tenha sido o convencional, como foi o caso aqui em apreciação – Ponto 1 dos Factos Provados.

Com efeito, apenas nos caso de celebração de casamento sob o regime imperativo da separação de bens é que tal faculdade é vedada aos cônjuges – artigo 1762.º do Código Civil.

Questão distinta é a de se saber se, pelo facto de ser lícita a doação de bens entre cônjuges casados sob o regime consensual da separação de bens, estes estão desonerados do cumprimento das formalidades impostas por lei, no caso, a elaboração de um de documento escrito por parte do doador, como é o caso da doação de bens móveis, sob pena de nulidade – artigo 1763.º, n.º 1, do Código Civil.

Estamos, pois, perante uma situação em que a aplicabilidade do artigo 1763.º, n.º 1, do Código Civil, deve ser objeto de interpretação e conciliação com o recente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, n.º 12/2015, de 02 de Julho de 2015, em que se discutia uma situação muito similar àquela que agora nos ocupa.

Vejamos, pois, o que se dispõe em cada uma destas mencionadas disposições.

Artigo 1763.º, n.º 1, do Código Civil:
A doação de coisas móveis, ainda que acompanhadas da tradição da coisa, deve constar de documento escrito”.

Sumário do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, n.º 12/2015, de 02 de Julho de 2015:
“Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do artigo 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”.

A lógica subjacente a este acórdão uniformizador é a de permitir que, quando estão em causa apenas os interesses dos cônjuges, estes possam socorrer-se de quaisquer meios de prova para poderem afirmar a natureza dos seus bens uma vez que os interesses que a norma pretende diretamente proteger são os interesses de terceiros no confronto com os do casal e/ou ex-casal.

Trata-se, no fundo, da defesa da verdade material em relação à realidade meramente formal, numa tentativa de proteger os legítimos interesses dos cônjuges, sempre que tal discussão se encontre circunscrita aos interesses dos cônjuges e/ou ex-cônjuges, ou seja, em que não intervenha interesses de terceiros, sendo estes que a formalidade imposta pela norma pretende proteger.

O que nos leva a poder concluir, por identidade de razões, que à aqui Apelada era lícito realizar a prova – que efetivamente realizou -, que o cavalo Sol lhe foi doado pelo seu marido passando, assim, a integrar o seu património, como bem próprio, entendimento que não prejudica os interesses de terceiros, que não estão aqui em discussão.

Ou seja, no âmbito da citada norma legal [artigo 1763.º, n.º 1, do Código Civil], sempre que esteja em causa a proteção de interesses de terceiros, deve ser cominada com nulidade toda a doação que não tiver sido acompanhada de documento escrito, como ali se refere; quando a discussão se circunscrever aos interesses dos membros do casal e/ou ex-casal, a prova quanto à natureza desses bens poderá ser realizada por qualquer meio permitido em Direito.

Tal como se conclui no citado Acórdão de Fixação de Jurisprudência (embora reportado à norma constante do artigo 1723.º, alínea c), do Código Civil mas que, neste caso, pode ser também aplicada ao artigo 1763.º, n.º 1, do mesmo diploma legal): “não se retira ao preceito (…) o carácter de norma imperativa; (…) Trata-se apenas de não aplicar a norma imperativa quando não está presente a razão que, indubitavelmente, a justifica” e que, em quaisquer destes casos, se reporta à proteção dos interesses de terceiros credores.

Mas, a verdade é que, ainda que assim se não entendesse, sempre o comportamento assumido pelo aqui Apelante teria de ser analisado à luz do instituto do abuso de direito, o que nos conduziria a igual resultado prático, como passamos a expor.

Assim, dispõe o artigo 334.º do Código Civil, que:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Vejamos, em primeiro lugar, os contornos específicos deste instituto, na modalidade do “venire contra factum proprium” aquele que se entende ser o aplicável ao caso aqui em análise.

Relativamente a este instituto, refere Menezes Cordeiro (Da Boa-fé no Direito Civil, Almedina, vol. II, pág. 746/7):
 
“O âmbito extenso de que o venire contra factum proprium se pode revestir requer uma delimitação prévia, ainda que empírica e provisória, do alcance figurativo da fórmula. Desse modo, só se considera como venire contra factum proprium a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor. Por outro lado, afasta-se também, à partida, a hipótese de o factum proprium, por integrar pressupostos de autonomia privada, surgir como acto jurídico que vincule o autor em termos de o segundo comportamento representar a violação desse dever específico; acionar-se-iam então os pressupostos da chamada responsabilidade obrigacional e não os do exercício inadmissível das posições jurídicas. Feitas essas precisões, há venire contra factum proprium, em primeira linha, numa de duas situações: quando uma pessoa em termos que, especificamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique, e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa atuação e, depois, se negue”.

Também Batista Machado, referindo-se a este instituto (Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, in Obra Dispersa, I, Coimbra Editora, pág. 416), refere:

“O ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira. Pode tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.

Em anotação publicada na Revista da Ordem dos Advogados, n.º 58, pág. 964, Batista Machado voltará a afirmar:

“O venire traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. (…) No plano dogmático, o venire aparece hoje ligado fundamentalmente à doutrina (da protecção) da confiança: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos. Por isso, o critério básico do venire é o da exigência da tutela da confiança. E sabido que a proteção da confiança não é absoluta. De outro modo, as soluções jurídicas acabariam por espelhar apenas aquilo em que, por uma razão ou por outra, as pessoas acreditassem. Por isso, ela requer a verificação de condições particulares, que se podem apurar a partir da análise do Direito positivo.
Resumidamente, podem apontar-se quatro pressupostos da proteção da confiança através do venire:

1.º– uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.º– uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.º– um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.º– uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.

Também como se refere no Acórdão no STJ de 11 de janeiro de 2011 – Proc. 2226/07-7TJVNF.P1.S1, relatado pelo senhor Conselheiro Sebastião Póvoas: “O abuso de direito, que dispensa o “animus nocendi” tem por base a existência de um direito subjetivo na esfera jurídica do agente, já que tem como principal escopo impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, comportando duas modalidades: “venire contra factum proprium” e situações de desequilíbrio, como sejam o exercício danoso inútil, a atuação dolosa e a desproporção grave entre o exercício do titular excrescente e o sacrifício por ele imposto a outrem” (disponível em www.dgsi.pt/jstj)

Analisemos, pois, se os factos dados como Provados podiam incutir na Apelada a legitima convicção de que o cavalo Sol era um presente oferecido pelo seu marido e aqui Apelante, no dia do seu aniversário (da Apelada) e que, como tal, integraria o seu património próprio.

Temos como matéria assente que o aqui Apelante exerce a sua atividade profissional como criador de cavalos e que, nessa medida, a oferta de um cavalo à esposa surge como um ato perfeitamente natural, uma vez que o mesmo detém conhecimentos técnicos, quer em relação aos equídeos, quer em relação aos respetivos valores dos mesmos, o que lhe permitiria proceder a uma oferta deste tipo de presente.

Aliás, tal como o fez em relação à aqui Apelada em 2002, também em 2011 o Apelante ofereceu, conjuntamente com a aqui Apelada, à filha comum, um cavalo que ficou registado em seu nome (do Apelante), repetindo o mesmo comportamento registal que tinha tido em relação à oferta operada à aqui Apelada quanto ao cavalo Sol.

Desde já se diga que se compreende as razões que determinaram o Apelante a ter tido este tipo de comportamento registal. Na verdade, tendo o mesmo como atividade profissional a criação de cavalos, é medianamente compreensível que se torne mais simples e económico ter os animais registados em seu nome, quer por razões ligadas à própria burocracia inerente a este tipo de atividade, quer pelos cuidados a prestar a estes animais por cuidadores e treinadores e que implicam custos que podem ser suportados e dedutíveis nessa mesma atividade.

Aliás, tal como acima já se referiu, o Apelante não contestou a propriedade do cavalo que, em conjunto com a Apelada, ofereceram à filha comum e que, aceitou ser desta, e que, tal como o cavalo que aqui está em apreciação, também se encontrava registado como propriedade do Apelante. 

Por outro lado, note-se que apenas no final do casamento entre Apelante e Apelada [que se manteve desde 28 de Julho de 1990 até 29 de Julho de 2013], é que o Apelante veio suscitar a questão da titularidade do cavalo “Sol”. Mais concretamente, apenas em 2012 (data da entrada do processo crime por parte do aqui Apelante contra a aqui Apelada e do qual esta foi absolvida), é que começaram os mencionados desentendimentos quanto à titularidade do equídeo, numa altura, aliás, coincidente com o decurso da ação de divórcio que correu termos entre ambos e que tinha sido instaurada em 2011 (Proc. 1436/11.7TMLSB) – fls. 12 dos autos e reportado a documento junto pelo aqui Apelante.

Recorde-se que em 2010 – data da venda do cavalo Sol pelo aqui Apelante -, esse problema não se levantou. Nesse ano, e reportado ao preço de venda desse cavalo, foram depositadas as quantias de € 70.000,00 em conta titulada apenas pelo Apelante (Ponto 15 dos Factos Provados), € 70.000,00 em conta conjunta titulada pelo Apelante e pela Apelada (Ponto 16 dos Factos Provados) e € 60.000,00 em conta apenas da Apelada e para que esta os fizesse seus (Ponto 17 dos Factos Provados).

Assim sendo, temos um cavalo que o Apelante ofereceu à Apelada em 10 de Fevereiro de 2002, como prenda de anos, e que acabou por ser vendido em 2010 por um valor não inferior a € 200.000,00 (Ponto 3 dos Factos Provados).

Ora, não sendo legítimo “adivinhar” o que se terá passado entre Apelante e Apelada, então cônjuges, a verdade é que é perfeitamente plausível que o Apelante tivesse retirado ao valor do “presente” oferecido à sua então esposa (o mencionado cavalo Sol), o valor correspondente aos custos com a manutenção e treino desse mesmo cavalo, ao longo dos anos, o que permitiria compreender a “divisão” do valor daquela venda nas parcelas acima mencionadas. Seja como for, e tal como consta da materialidade dada como Não Provada, desconhece-se a “exata origem da quantia transferida para a conta da Ré”/Apelada, ou seja, desconhece-se se tal montante corresponde ao valor do presente inicial, se acrescido, se diminuído, de qualquer outra importância e/ou de qualquer outro acerto de contas operada entre as partes.

Mas a verdade é que, tenha ou não sido essa a combinação entre os então cônjuges, tal factualidade é inócua para a decisão a proferir. Certo é que o Apelante ofereceu à Apelada o cavalo “Sol”, o que lhe era lícito, não tendo reduzido a escrito essa doação. No entanto, o comportamento que manteve durante os anos de casamento e, mais concretamente, no momento da venda do cavalo, demonstram que sempre considerou esse cavalo como sendo propriedade da sua consorte, realidade que foi alterada com a instauração da ação de divórcio que esta lhe moveu.

Até então, o facto de não ter reduzido a escrito essa doação não causou ao Apelante qualquer dúvida quanto à verdadeira titularidade do equídeo. Por outro lado, entre casados, não é comum que um cônjuge peça ao outro, em face de uma “prenda” que lhe é oferecida, que reduza a escrito essa doação. A formulação desse pedido por parte do cônjuge “agraciado” pode mesmo ser entendido, como é fácil de se prever, como um acto de desconfiança por parte do “ofertante” que vê a bondade do seu acto ser posta em causa, salvaguardados os casos, obviamente, de cônjuges com conhecimentos jurídicos ou a quem os mesmos foram prestados, situações que não estão configuradas nesta ação.

Este tipo de formalidade legal – redução a escrito da doação entre casados - tem na sua base a proteção de “terceiros” que poderiam ver o património de um dos cônjuges “esvaziado” perante fictícios atos de doação entre casados, o que o legislador pretendeu salvaguardar com a obrigatoriedade de redução a escrito deste tipo de doações.

Quando as questões surgem no âmbito do próprio casal – e não há afetação de direitos de terceiros, como é aqui o caso -, é legítimo discutir-se a existência dessa doação, bem como a boa ou má-fé do doador perante a ausência de tal documento sendo que era a este que se impunha a sua feitura e entrega à donatária e aqui Apelada.

Pretender, como o pretende o Apelante, neste momento e nesta sede – já depois de ver naufragar a ação crime que instaurou contra a aqui Apelada – socorrer-se de uma questão formal para obter os seus intentos quanto à nulidade da doação por falta de forma é, salvo o devido respeito, um comportamento que se integra como “venire contra factum proprium”, como já acima deixamos expresso e que, como tal, não pode ser atendido.

Perante esta realidade sempre teríamos de concluir que, no presente caso, estamos perante uma situação de abuso de direito, por parte do Apelante, na modalidade de “venire contra factum proprium”, instituto que, como já sublinhamos, se destina a tutelar a confiança legítima da parte demandada.

Com efeito, o Apelante pretende exercer o seu direito de obter a nulidade e da doação realizada à Apelada, então sua esposa, há mais de dez anos atrás, de forma ilegítima por, manifestamente, exceder a boa-fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.

Assim, ainda que se entenda o disposto no artigo 1763.º, n.º 1, do Código Civil - obrigatoriedade de redução a escrito da doação realizada entre casados -, se aplica ao caso aqui em apreciação, sempre teríamos de concluir que o exercício desse direito, por parte do aqui Apelante, é ilegítimo por ultrapassar os limites que a ética, a boa-fé e o fim social não toleram.

Na verdade, o comportamento agora assumido pelo Apelante é contrário àquele que o mesmo objetivamente assumiu durante anos, em que fez crer quer à Apelada, quer aos amigos comuns – testemunhas neste processo -, que a doação do cavalo Sol àquela, no dia do seu aniversário, correspondia a um ato de liberalidade da sua parte, ato de liberalidade esse que, diga-se, é perfeitamente natural no âmbito do casamento. E é também perfeitamente natural que, neste quadro familiar e social, a Apelada e todos os amigos que desse facto tinham conhecimento, acreditassem que o Apelante se iria comportar em conformidade com o sentido que deu a essa mesma doação.
 
Seja como for, e como muito bem foi referido pela senhora Juiz do Tribunal de 1.ªInstância, nesta sede não estamos já a discutir a doação em si, mas sim, a quantia de € 60.000,00 depositada na conta da Apelada que, muito embora também seja referente à venda do cavalo Sol, desconhece-se a sua exata origem, como já acima deixamos assinalado. Aliás, foi com base nesse mesmo depósito que o aqui Apelante estruturou a presente ação como sendo de responsabilidade civil, como acima já deixamos expresso.
Por outro lado, não se tendo provado que tenha existido qualquer acordo entre Apelante e Apelada para que esta última procedesse à devolução da quantia de € 60.00000 ao aqui Apelante, sempre a conclusão a retirar seria a de que este não tem qualquer base legal para poder peticionar a entrega desse dinheiro e, muito menos, chamar à colação o instituto do enriquecimento sem causa que, como muito bem se encontra explicado na sentença em apreciação, nunca poderia ter lugar em face da comprovada justificação para a deslocação patrimonial da quantia de € 60.000,00 para o património da Apelada, como já acima deixamos referido.

Assim sendo, sempre a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, que se mostra bem fundamentada, deve ser confirmada por este Tribunal de recurso.


IV.–DECISÃO

Face ao exposto, julga-se improcedente a Apelação, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

Custas pelo Apelante.



Lisboa, 16 de Janeiro de 2018


Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo                                                
Maria da Conceição Saavedra