Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11774/19.5T8LSB-H.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
SAÚDE PÚBLICA
RISCO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Tendo sido decidido nos autos de regulação das responsabilidades parentais (processo principal) que o menor “… fica a residir à guarda e cuidados da mãe, … na China”, sendo indiscutível a conexão pessoal do objeto do litígio com a ordem jurídica portuguesa, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer dos autos de incumprimento dessa decisão (processo apenso) se a exequibilidade da decisão de regulação só se pode concretizar com a intervenção dos tribunais portugueses, ou seja, se o direito invocado não po(de) tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, nos termos do fator de atribuição dessa competência previsto na alínea c), do art.º 62.º, do C. P. Civil.

2.Tendo sido decidido nesses mesmos autos que o menor passará o período de férias de Verão com o pai, pelo período mínimo compreendido entre o dia 2 de Julho e o dia 17 de Agosto, devendo estar em Lisboa, pelo menos desde o dia 2 de Julho, essa decisão, ao proporcionar a convivência do menor com o pai, em contexto familiar, corresponde ao superior interesse do menor estabelecido pelo n.º 8, do art.º 1906.º, do C. Civil, segundo o qual “O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores…”.

3.As circunstâncias excecionais decorrentes da pandemia SARS-COVID 2, nomeadamente no que respeita a eventual risco para a saúde do menor, não sendo determinantes da alteração dessa decisão, poderão ser consideradas no seu acatamento/cumprimento quando ocorrerem, se ocorrerem e nos seus termos concretos, que não meramente hipotéticos, devendo para o efeito ser suscitadas no processo para decisão do tribunal, tendo-se em atenção que, quer no cumprimento da decisão do tribunal, quer no exercício de quaisquer direitos as partes não podem deixar de agir de boa-fé, dentro do fim social e económico dos respetivos direitos/deveres, como dispõem os art.ºs 334.º, do C. Civil e 8.º e 542.º, do C. P. Civil.


(Sumário elaborado pelo Relator)



Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.


1.–RELATÓRIO:


No âmbito da tramitação processual do apenso F (Incumprimento das Responsabilidades Parentais) aos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais relativos ao menor Philip …, nascido a 11 de Agosto de 2014, em que é requerente Eduardo … e requerida … Yi, progenitores do menor, foi proferida decisão em 16 de junho de 2021 com o seguinte conteúdo:
 “3.- Relativamente ao período de férias de Verão com o pai, ouvidas todas as partes e ponderada a necessidade de permanência do menor, em tempo de qualidade com a família paterna, da qual a criança está privada a maior parte do ano, determina-se que esse período ocorra pelo período mínimo compreendido entre o dia 2 de Julho e o dia 17 de Agosto, devendo estar em Lisboa, pelo menos desde o dia 2 de Julho.
Preferencialmente o menor deverá vir com a mãe ou com qualquer outro familiar ou pessoa de confiança desta, (atento o prejuízo laboral que invoca com a sua deslocação) em qualquer das hipóteses de voos indicados pelo progenitor, ou noutra igualmente viável à sua escolha, que permita a chegada a território ibérico no dia 2 de Julho.
Caso a mãe não consiga viajar com o menor, ou encontrar pessoa idónea para o acompanhar, deverá o menor sozinho com acompanhamento de menores pela companhia aérea, em qualquer das opções de voo indicadas.
Para tal efeito, deverá a mãe no prazo de 3 dias após esta notificação, à sua Ilustre Mandatária comprovar que efetuou as necessárias reservas aéreas.
Caso não disponha de liquidez financeira para tal, o pai efetuará o pagamento necessário e tal quantia será descontada nas mensalidades de alimentos ainda por efetuar.
A ausência de cumprimento atempado do agora ordenado pela progenitora, quanto à reserva de voo, determinará a sua condenação numa sanção compulsória diária de €150,00, sendo valorada como incumprimento deliberado e culposo do regime de contatos fixado.
A questão da marcação do voo e do pagamento determinado e sua realização deverá ser realizada entre Ilustres Mandatárias, de modo direto e entre ambas certificada, atenta a necessidade deste procedimento ser célere, porquanto a comunicação através do tribunal potencialmente inviabilizaria as marcações atempadas da viagem”.

Inconformada com essa decisão a progenitora requerida dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo que seja declarada a incompetência dos Tribunais portugueses para decidir no presente apenso atenta a residência do Menor na China, a revogação da decisão e a substituição por outra que determine a permanência do menor na China e a deslocação do pai aquele país para passar o período de férias escolares com ele e sendo, em qualquer caso, considerado justificado o não comparecimento, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
A.Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 16.06.2021 (Inicialmente proferido por lapso no âmbito do apenso G), o qual fixou como período de férias a passar neste ano pelo menor com o pai o compreendido entre 02 de julho e 17 de agosto de 2021, determinando ainda que o menor se apresentasse em Lisboa, preferencialmente acompanhado pela mãe ou outro familiar ou pessoa da confiança desta e, em caso de impossibilidade fazer a viagem entre Shanghai e Lisboa ou outra capital europeia, sozinho.
B.De acordo com a sentença que fixou as responsabilidades parentais nos presentes autos, no passado dia 30.12.2020, o Menor Philip mostra-se confiado à guarda e cuidados na Mãe, com quem reside, na China, passando com o Progenitor 2/3 de todas as suas interrupções letivas iguais ou superiores a um mês e a totalidade da interrupção letiva se inferior a um mês.
C.A Mãe não tem, sob pena de perder o emprego possibilidade de viajar para Portugal a fim de entregar o menor ao Pai e, no regresso sujeitar-se a 21 dias de quarentena, além de que, não é cidadã europeia, não reside em Portugal ou qualquer outro país da Europa, já não é casada com o Pai do Menor e também não tem nenhum familiar ou pessoa da sua confiança que pudesse acompanhar o Menor, sobretudo se tivermos em conta que para a entrada em espaço europeu é necessário um visto que não é fácil de conseguir.
D.Obrigar o Menor a fazer a viagem entre a China e a Europa sem o acompanhamento de qualquer dos pais, para além de uma violência, é fazê-lo incorrer num evidente risco para a sua saúde completamente desnecessário, sobretudo se tivermos em conta que para a realização de tal viagem, o Philip ter de realizar um teste Covid 72 horas antes de entrar no avião e um outro no regresso à China, bem como ser sujeito, aquando do seu regresso à China, a uma quarentena obrigatória de 21 dias (14 dos quais fechado num quarto de hotel e mais 7 fechado em casa), quarentena essa durante a qual ainda terá de realizar mais três testes de Covid.
E.No total, para passar pouco mais de um mês na Europa com o Pai, o Menor teria de ser sujeito a uma viagem de avião da China para a Europa, de 12 horas, totalmente desacompanhado de qualquer familiar ou pessoa de referência, efetuar 5 testes de despiste à Covid 19, verificar e submeter durante 14 dias um código de saúde com medição de temperatura diária e sujeitar-se ainda a 21 dias de quarentena na China antes de poder regressar à sua vida normal.
F.Durante o período pandémico que atravessamos, várias são as companhias aéreas que não dispõem sequer do serviço de acompanhamento de menores nas viagens para a Europa, atentos os riscos envolvidos e nenhuma, absolutamente nenhuma dispõe de tal serviço durante o mês de agosto no regresso à China, nem se compreendendo assim como regressaria o Menor à China no fim das suas férias com o Pai.
G.E tudo porque o seu Pai, na situação que o mundo atravessa, preferiu sujeitar o filho de 6 anos a todos esses procedimentos e sobretudo a uma quarentena de 21 dias ao invés de se meter ele num avião e ir até à China passar as férias com o Menor.
H.Ao contrário de Portugal e do resto da Europa que atravessam atualmente uma 4a vaga da pandemia de COVID 19, em Xangai, cidade na qual o Menor vive com a Mãe, não existem, na comunidade, desde há mais de ano, quaisquer casos de infeção por Sars-cov 2.
I.O interesse do Philip impunha que não se sujeitasse o menor a uma tal viagem, permanecendo o Menor na China e podendo, naquele país, o Pai estar com ele pelo período estabelecido de 2/3 das férias escolares.
J.Apesar de a doença provocada pelo vírus SARS-COV 2 ser tendencialmente menos perigosa em crianças, não estão previstas neste momento inoculações a esta faixa etária e são precisamente estes os que mais estão a ser infetados e a sofrer com a doença.
K.Ao contrário do Philip, quer a Recorrente quer o pai do Menor estarão a breve prazo totalmente inoculados, não fazendo qualquer sentido que, dos três, o único que seja sujeito a uma viagem de avião com os riscos inerentes, seja precisamente o Philip, que não se encontra vacinado nem irá estar nos próximos meses.
L.Ao decidir que o Menor com apenas 6 anos de idade viajaria para a Europa desacompanhado a fim de passar pouco mais de um mês nas suas férias com o Pai, sujeitando-o não só ao risco de ser infetado no decurso da viagem, bem como à sujeição a inúmeros testes à COVID 19 e ainda a uma quarentena obrigatória de 21 dias no regresso à China, o despacho recorrido não teve em consideração o interesse do Philip, tendo o tribunal a quo feito errada interpretação do disposto nos arts 28° do RGPTC e 1871, n.° 1 e 1906, em especial o n.° 7 do CC dispositivos que violou.
M.Devia ao invés o tribunal a quo ter interpretado tais normativos no sentido de dever ser o Pai (maior e vacinado) a deslocar-se à China, sujeitando-se se necessário fosse à realização de testes COVID 19 e à quarentena obrigatória de 21 dias para entrada naquele país e não o Philip, desse modo se garantindo a saúde do Philip, ao mesmo tempo que o interesse do Menor de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores.
N.A Recorrente e o menor têm nacionalidade chinesa, residem ambos na China, sendo que a guarda e as responsabilidades parentais do Philip se encontram atribuídas por decisão judicial igualmente naquele país, à Mãe, não sendo suposto segundo a decisão que naquele país obriga a Recorrente, que o menor sequer seja enviado para a Europa, a fim de passar férias com o Pai, ainda para mais desacompanhado.
O.Tendo conta o disposto nos arts. 9°, n.° 1, 10° e 41°, n.° 1 do RGPTC, bem como a data de instauração do incidente de incumprimento — Abril de 2021 - os Tribunais Portugueses neste momento não são sequer territorialmente competentes para conhecer do alegado incumprimento, exceção que expressamente invoca para os legais efeitos.
*

O apelado contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
A.Entende o Recorrido que bem decidiu o Tribunal a quo no Despacho recorrido, o qual teve em consideração o superior interesse do menor ao ter concretizado o período de férias de Verão do Philip com o Pai, pelo período mínimo compreendido entre o dia 2 de julho e o dia 17 de agosto, devendo estar em Lisboa, pelo menos, desde o dia 2 de julho, ponderada a necessidade de permanência do menor, em tempo de qualidade com a família paterna, da qual a criança está privada a maior parte do ano.
B.Entende a Recorrente que o Despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que determine a permanência da criança na China, deslocando-se o Pai àquele país a fim de passar o período de férias escolares com o filho.
C.Em primeiro lugar, invoca a Recorrente que, tendo em consideração o disposto nos artigos 9.°, n.° 1, 10.° e 41.°, n.° 1, do RGPTC e tendo em conta, também, a data de instauração do incidente de incumprimento deduzido pelo Pai — abril de 2021, os Tribunais Portugueses não são, neste momento, territorialmente competentes para conhecer do alegado incumprimento.
D.Em segundo lugar, invoca que o Despacho recorrido não teve em consideração o interesse do Philip, tendo o Tribunal a quo feito uma errada interpretação do disposto nos artigos 28.°, do RGPTC e 1871.°, n.° 1 e 1906.°, em especial o n.° 7, do CC, dispositivos que, no seu entender, violou.
E.Contudo, o presente recurso carece de qualquer fundamento, seja de facto seja de Direito, não passando de um expediente dilatório utilizado pela ora Recorrente, a quem não agradou a decisão tomada pelo Tribunal de primeira instância.
F.Relativamente à exceção de incompetência territorial dos Tribunais Portugueses invocada pela Recorrente, a mesma nunca poderá proceder, por força dos critérios de conexão — (i) o Pai tem residência em território português, (ii) são os direitos do Pai às férias que estão em discussão, (iii) o menor teve residência habitual no território português até há meses atrás, o que significa que a sua residência habitual ainda é o território português, (iv) a decisão proferida quanto à residência do menor ainda não transitou em julgado e (v) não existe qualquer forma de fazer valer os direitos do Pai, nomeadamente de suscitar o incumprimento de uma decisão que não é reconhecida em território chinês, o que sempre atribuiria competência internacional ao Tribunal Português.
G.Sendo certo que se encontrava a correr, em momento anterior ao da decisão dos Tribunais Chineses e à instauração de uma ação de incumprimento pelo Pai, com data de abril de 2021, uma ação em Portugal na qual se discutia e discute precisamente o mesmo objeto,
H.E que a Mãe nunca suscitou, na primeira vez que interveio nos autos, qualquer incompetência dos Tribunais Portugueses, antes tendo apresentado múltiplos requerimentos de resposta e, até, um incidente de incumprimento, que corre como apenso G ao presente processo, pelo que, mesmo que existisse incompetência, o que não se concebe, deve esta considerar-se sanada atendendo às respostas da Recorrente sem que tal exceção tivesse sido por esta invocada na primeira intervenção no processo.
I.Relativamente à suposta errada interpretação do disposto nos artigos 28.°, do RGPTC e 1871.°, n.° 1 e 1906.°, em especial o n.° 7, do CC, tal argumento não pode igualmente colher.
J.Quanto ao artigo 28.°, do RGPTC, o Despacho recorrido mais não se tratou do que uma concretização da decisão proferida na sentença de 30/12/2020, indicando, em concreto, (i) o período de férias de Verão do menor com o Pai, o qual seria compreendido entre o dia 2 de julho e o dia 17 de agosto e (ii) a forma como tal deveria ser efetivado, no caso, devendo ter a Mãe assegurado a viagem do menor a Portugal.
K.Isto na medida em que o Tribunal a quo entendeu conveniente e necessário ordenar as referidas diligências em ordem a executar a decisão final que havia sido tomada, logrando justificá-lo.
L.Quanto aos artigos 1871.°, n.° 1 e 1906.°, em especial o n.° 7, do CC, os mesmos não têm aplicação no presente caso, não se vislumbrando, por essa via, de que forma poderá ter sido feita uma errada interpretação dos mesmos, o que a Recorrente não logra, sequer, fundamentar.
M.Sendo certo que, nenhuma decisão que determine os dias em que um filho deverá passar férias de Verão com o Pai, atenta "a necessidade de permanência do menor, em tempo de qualidade com a família paterna, da qual a criança está privada a maior parte do ano", se pode mostrar contrária aos preceitos legais invocados pela Recorrente, pelo que não procede também tal argumentação.
N.A acrescer, o Despacho recorrido teve igualmente em consideração o superior interesse da criança, não podendo, igualmente, colher os argumentos falsos e falaciosos avançados pela Mãe para sustentar tal afirmação, os quais só vêm demonstrar que a Mãe nunca teve intenção de cumprir a determinação ínsita no Despacho recorrido.
O.Não só o Tribunal a quo não decidiu que o menor viajasse para a Europa desacompanhado, nunca tendo sido essa uma opção válida, já que o menor teria sempre que viajar acompanhado, fosse pela sua Mãe, que ardilosamente se esquivou a tal facto, fosse por alguém da confiança da mesma, fosse por algum acompanhante de menores da companhia aérea.
P.Como o risco de o menor ser infetado no decurso da viagem é residual em face das medidas de segurança, neste momento, adotadas nos aeroportos e pelas companhias aéreas, e, por comparação com períodos anteriores, como aqueles em que a Mãe viajou de avião com o menor.
Q.Sendo certo que a sujeição do menor a testes à Covid 19 e a demais constrangimentos decorrentes de medidas de segurança e prevenção para poder viajar e deslocar-se decorrem da realidade em que o Mundo se encontra, mostrando-se, no caso, uma exigência menor face à necessidade de o menor e de o Pai estarem juntos.
R.Não colhendo igualmente o argumento de que deveria ter sido o Pai a deslocar-se à China para estar com o filho, já que devem também ser preservadas e desenvolvidas as raízes europeias da criança, a sua ligação com a sua família paterna, a sua cultura portuguesa e espanhola, a sua ligação com o Pai num ambiente familiar e não num hotel na China, devendo, assim, ser promovido o enraizamento da criança com a sua cultura europeia.
S.O incumprimento da Progenitora em não ter permitido a criança voar para a Europa para passar as suas férias de Verão com o Pai, em incumprimento do que fora determinado pelo Tribunal a quo, e, em consequência o não comparecimento do menor, não pode, por isso, considerar-se justificado.
T.Deve, por isso, ser negado provimento ao recurso da Recorrente, confirmando-se o Despacho recorrido nos exatos termos em que foi proferido, com todas as demais consequências legais, designadamente relativas ao seu incumprimento.
U.E ser desconsiderado o pedido de declaração de incompetência dos Tribunais Portugueses para decidir do presente apenso.
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Também o Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
1.Através do despacho recorrido, datado de 16-06-2021, foi determinado que, no período de férias escolares de verão de 2021, os convívios do menor Philip com o pai, deveriam decorrer entre o dia 2 de Julho e o dia 17 de Agosto de 2021, cabendo à mãe trazer o Philip a Portugal e o pai a levá-lo à China no termo das férias;
2.A deslocação do menor a Portugal para conviver com o pai, é a solução que melhor acautela o direito do menor Philip em estar um período mais alargado de tempo com o progenitor e com a família paterna;
3.Com a solução aventada pela progenitora (de os convívios decorrerem na China), o convívio entre pai e filho sempre seria muito mais reduzido e sem contacto com a família alargada, nem com a cultura europeia, em claro prejuízo para o menor, o qual já passa longos períodos de tempo sem qualquer contacto com o progenitor;
4.Ao menor Philip não são conhecidas patologias que o coloquem em particular situação de perigo perante a doença originada pelo coronavírus e que impeçam a sua deslocação, de avião, para a Europa;
5.A pandemia, por si só, não pode servir de pretexto para impedir o convívio entre pais e filhos, sendo que, no dia 18 de março de 2020, quando foi decretado o estado de emergência em Portugal (Decreto do Presidente da República n.° 14-A/2020, de 18 de março), regulamentado, através do Decreto n° 2-A/2020 de 20/03, o legislador português estabeleceu exceções ao recolhimento obrigatório, quando estejam em causa "o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente." ou "deslocações para visitas, quando autorizadas" (no seu art. 5°, n° 1, al. j) e k));
6.A decisão proferida que fixou a residência do menor na China não transitou ainda em julgado, pelo que não pode considerar-se que os Tribunais Portugueses tenham deixado de ser competentes para a apreciação do respetivo incumprimento;
7.Considerando, além do mais, que em Portugal decorreu todo a prova tendente à decisão final (nos autos principais), afigura-se-nos que a jurisdição portuguesa se encontra em melhores condições para decidir o suscitado incumprimento, não existindo informação nos autos que a mesma ação, tenha sido proposta pelo progenitor, na China.
8. O douto despacho recorrido fez, assim, correta interpretação dos factos e adequada aplicação do direito, pelo que deve ser mantido.


2.FUNDAMENTAÇÃO.

A)OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a referenciada pelo despacho recorrido por reporte à sentença de 30 de dezembro de 2020, proferida no processo principal, a qual, pela sua extensão, só será materialmente transportada para esta decisão na medida em que tal se revelar necessário.

B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consistem em saber se a) os tribunais portugueses são competentes para o incidente de incumprimento (conclusões N) a O)) e se b) a decisão recorrida acautela o superior interesse do menor no que respeita à sua deslocação para passar férias com o pai e seu agregado familiar (conclusões A) a M)).

Vejamos.

1.-Quanto à primeira questão, a saber, se os tribunais portugueses são competentes para o incidente de cumprimento.
A exceção da competência internacional dos tribunais portugueses foi já apreciada e decidida no apenso B ao processo de regulação das responsabilidades parentais, por decisão de 4 de fevereiro de 2020, razão pela qual o despacho recorrido se não pronunciou, sequer, sobre essa mesma questão.
E nem tinha que o fazer pois, suscitada e decidida a questão, mais não restaria aos intervenientes processuais que respeitar a decisão proferida, inibindo-se de reincidir sobre a mesma, como lhe impõe os institutos da litispendência e do caso julgado, consagrados nos art.ºs 577.º, al. I), 580.º a 582.º e 619.º a 622.º, do C. P. Civil.
Não obstante, a apelante esgrime agora dois argumentos a favor da sua pretensão, quais sejam, que a guarda e as responsabilidades parentais do menor se encontram também atribuídas à mãe por decisão judicial chinesa que não determina que o menor passe férias com o pai na Europa e que atento o disposto nos art.ºs 9.º, n.º 1, 10.º, e 41.º, n.º 1, do RGPTC (Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro), os tribunais portugueses não são sequer territorialmente competentes para conhecer do incumprimento.
Ora, quanto ao primeiro argumento vale o já expendido a propósito do valor de caso julgado da decisão sobre incompetência internacional proferida no apenso B, pelo que a questão da competência internacional se encontra definitivamente decidida, sendo certo que, por um lado, se desconhecem as vicissitudes que terão conduzido a uma segunda decisão, por tribunal de outro Estado, se é que a mesma existe, e por outro, se trata de questão subtraída ao poder de decisão desta Relação por força do mesmo instituto do caso julgado e também dos limites à jurisdição dos tribunais da cada Estado.
Quando ao segundo argumento, que encontrando-se agora o menor a residir em território chinês, os tribunais portugueses não são territorialmente competentes para conhecer do incumprimento, dispõe o n.º 1, do art.º 9.º do RGPTC, citado, que “Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado”.

Nos autos principais, de regulação das responsabilidades parentais foi, com efeito, decidido pela sentença de 30 de dezembro de 2020, que “Nestes termos, decide-se regular as responsabilidades parentais de Philip …, nascido a 11 de Agosto de 2014, da seguinte forma:
“1.º - O menor Philip … fica a residir à guarda e cuidados da mãe, ... YI, na China”.
Prima facie, em aplicação, a contrario,do disposto na alínea a),do art.º 62.º, do C. P. Civil, os tribunais portugueses não seriam os tribunais competentes para a apreciação do incumprimento.
Acontece, todavia, que, como a própria apelação inculca com a invocação do primeiro argumento já referido, que a exequibilidade da decisão de 30 de dezembro de 2020 só se pode concretizar com a intervenção dos tribunais portugueses, o mesmo é dizer que o direito invocado não po(de) tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, pelo que, sendo indiscutível a conexão pessoal do objeto do litígio com a ordem jurídica portuguesa, a competência internacional dos tribunais portugueses resulta do fator de atribuição previsto na alínea c), do art.º 62.º, do C. P. Civil.

Improcede, pois, esta primeira questão.

2.Quanto à segunda questão, a saber, se a decisão recorrida acautela o superior interesse do menor no que respeita à sua deslocação para passar férias com o pai e seu agregado familiar[1].
A apelante não questiona - nem poderia questionar atento o disposto no n.º 8, do art.º 1906.º, do Código Civil, segundo o qual “O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores…” - que a convivência do menor com o pai, nas férias de verão, em contexto familiar, como pai e filho que são, corresponda ao superior interesse do menor, mas insurge-se contra os termos em que foi estabelecida a deslocação do menor entre o país onde reside com ela, mãe, para junto do pai, dizendo que essa deslocação constitui um grande sacrifício e risco para a saúde do filho.

Como acima consta, o segmento da decisão recorrida cujo cumprimento, na visão da apelante, poderá implicar risco para a saúde e sacrifício pessoal do menor é o seguinte:
“Preferencialmente o menor deverá vir com a mãe ou com qualquer outro familiar ou pessoa de confiança desta, (atento o prejuízo laboral que invoca com a sua deslocação) em qualquer das hipóteses de voos indicados pelo progenitor, ou noutra igualmente viável à sua escolha, que permita a chegada a território ibérico no dia 2 de Julho.
Caso a mãe não consiga viajar com o menor, ou encontrar pessoa idónea para o acompanhar, deverá o menor sozinho com acompanhamento de menores pela companhia aérea, em qualquer das opções de voo indicadas”.

Trata-se da realização de uma viagem aérea, de longa distância, de um menor agora com sete (7) anos de idade, com os cuidados habituais, de acompanhamento, pela mãe, familiar ou pessoa por ela escolhida, podendo essa viagem, residualmente, ser realizada com serviço de acompanhamento de menores da empresa de transporte aéreo.

A viagem, em si mesma, é apenas mais uma das muitas viagens realizadas pelos progenitores e pelo menor, como constante da decisão de regulação de responsabilidades parentais e demonstrado nos autos.

A preparação dessa viagem exigirá a ação da apelante e nessa medida constituirá para si um sacrifico, o qual encontra uma justificação racional no interesse do próprio filho em manter uma relação de proximidade com o pai, cuja importância e riqueza se realça em face da hipotética situação oposta e que seria a diluição dos laços familiares pela distância e encontros esporádicos.

Nesta matéria, de sacrifício para o menor e também de sua mãe, podemos, pois, assentar em que o mesmo é comportável e corresponde ao padrão do agregado familiar constituído por mãe, pai e filho.

Resta-nos, pois, apreciar a questão do invocado risco para a saúde do menor.

A apelante situa esse risco no contexto mundial atual da pandemia SARS-COVID 2 e nas determinações internacionais e nacionais para a conterem, tecendo a esse propósito vários cenários de cumprimento da determinação da decisão recorrida.

Acontece, todavia, que as decisões dos tribunais se estruturam, antes de mais, em factos reais e concretos, apenas podendo considerar realidades hipotéticas quando tal seja imposto ou permitido por lei, como acontece a mero título de exemplo, entre outros, com a indemnização de danos futuros, prevista no n.º 2, do art.º 564.º, do C. Civil.

A decisão recorrida tomou, pois, em consideração as condições concretas e comuns das viagens entre a residência do menor e da mãe, por um lado, e do pai, por outro, e não quaisquer hipotéticas condições excecionais que possam resultar da atual pandemia ou outras circunstâncias, de natureza geral ou particular.

Essas circunstâncias excecionais, nomeadamente no que respeita a eventual risco para a saúde do menor, só poderão ser consideradas no acatamento/cumprimento da decisão recorrida quando ocorrerem, se ocorrerem e nos termos concretos em que venham a ocorrer, que não meramente hipotéticos, devendo para o efeito ser suscitadas no processo para decisão do tribunal, tendo-se em atenção que, quer no cumprimento da decisão do tribunal, quer no exercício de quaisquer direitos, as partes não podem deixar de agir de boa-fé, dentro do fim social e económico dos respetivos direitos/deveres, como dispõem os art.ºs 334.º, do C. Civil e 8.º e 542.º, do C. P. Civil.

O tribunal recorrido determinou que o menor esteja na companhia do pai “compreendido entre o dia 2 de Julho e o dia 17 de Agosto, devendo estar em Lisboa, pelo menos desde o dia 2 de Julho”, para o que se torna necessário realizar a viagem entre a sua residência habitual e a do pai.

Só em face de cada concreta viagem se poderá determinar se existem causas impeditivas de realização da mesma, as quais deverão ser apresentadas em tribunal para que o mesmo possa decidir qual é, nessas circunstâncias, o superior interesse do menor.

Note-se, aliás, que a própria decisão comporta um segmento decisório de fixação de “sanção compulsória” que só é compreensível se dirigida a ação ou omissão culposas da inadimplente, não podendo abranger causas objectivas estranhas como as impostas, eventualmente, por decisões das autoridades nacionais e internacionais, nomeadamente, em face da pandemia SARS-COVID 2.

Não se vislumbra, pois, que o cumprimento da decisão recorrida, apesar de ter sido proferida em tempo de pandemia SARS-COVID, só por si, seja suscetível de constituir risco para a saúde do menor.

Improcede, pois, esta segunda questão e com ela a apelação.

C)-SUMÁRIO
1.-Tendo sido decidido nos autos de regulação das responsabilidades parentais (processo principal) que o menor “… fica a residir à guarda e cuidados da mãe, … na China”, sendo indiscutível a conexão pessoal do objeto do litígio com a ordem jurídica portuguesa, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer dos autos de incumprimento dessa decisão (processo apenso) se a exequibilidade da decisão de regulação só se pode concretizar com a intervenção dos tribunais portugueses, ou seja, se o direito invocado não po(de) tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, nos termos do fator de atribuição dessa competência previsto na alínea c), do art.º 62.º, do C. P. Civil.
2.-Tendo sido decidido nesses mesmos autos que o menor passará o período de férias de Verão com o pai, pelo período mínimo compreendido entre o dia 2 de Julho e o dia 17 de Agosto, devendo estar em Lisboa, pelo menos desde o dia 2 de Julho, essa decisão, ao proporcionar a convivência do menor com o pai, em contexto familiar, corresponde ao superior interesse do menor estabelecido pelo n.º 8, do art.º 1906.º, do C. Civil, segundo o qual “O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores…”.
3.-As circunstâncias excecionais decorrentes da pandemia SARS-COVID 2, nomeadamente no que respeita a eventual risco para a saúde do menor, não sendo determinantes da alteração dessa decisão, poderão ser consideradas no seu acatamento/cumprimento quando ocorrerem, se ocorrerem e nos seus termos concretos, que não meramente hipotéticos, devendo para o efeito ser suscitadas no processo para decisão do tribunal, tendo-se em atenção que, quer no cumprimento da decisão do tribunal, quer no exercício de quaisquer direitos as partes não podem deixar de agir de boa-fé, dentro do fim social e económico dos respetivos direitos/deveres, como dispõem os art.ºs 334.º, do C. Civil e 8.º e 542.º, do C. P. Civil.

3. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida
Custas pela apelante.



(Orlando Santos Nascimento)
(Maria José Mouro)
(José Maria Sousa Pinto)



[1]O princípio do superior interesse da criança que enforma esta matéria encontra-se consagrado, entre outros, no art.º 1906.º, n.ºs 5, 6 e 8, do Código Civil, no art.º 4.º, al. a) da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo), aplicável ex vi art.º 4.º do RGPTC e no art.º 40.º, n.ºs 1, 3 e 9, do RGPTC