Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14913/22.5T8LSB.L1-1
Relator: TERESA HENRIQUES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
TRANSMISSÃO DE ACÇÕES
CONTRATO DE CESSÃO DE ACÇÕES
LEGITIMIDADE DO SÓCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.–A propriedade sobre as acções – independentemente da sua forma de representação ou da modalidade que revestem – não se transmite por mero efeito do contrato” e também que “não se dá apenas e tão só por efeito do modo”, só se efectuando por força do contrato e do modo.

2.–Carece de legitimidade para intentar a providência cautelar de suspensão de deliberações sociais a requerente que se arroga a qualidade de sócia com fundamento exclusivo no contrato de cessão de acções.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


I.–Relatório


I.A.–Antecedentes
A apelante intentou contra a apelada a presente providência cautelar de suspensão de deliberações sociais peticionando que seja suspensa, com inversão do contencioso, a deliberação tomada na Assembleia Geral de 23.05.2022 que procedeu à designação dos órgãos sociais da segunda.

Alegou, em síntese, o seguinte:
1.–É detentora de 49,77% do capital social da sociedade requerida desde 30-11-2019, por lhe terem sido vendidas 303637 acções por C.deJ.L. C.;
2.–C.C. faleceu em 21-01-2022 e deixou como herdeiros legitimários O. F. M. E. L. de C.(cônjuge), C.M.M. de C.(filho), C.C. de C.B.(neta) e C.M. de C.(filho) e, como herdeira testamentária da quota disponível, a recorrente:
3.–C. C. o mesmo foi administrador único da sociedade requerida até ao seu falecimento;
4.–Os herdeiros legitimários têm conhecimento da sua qualidade de acionista da sociedade desde, pelo menos, 07.04.2022 por ocasião de uma reunião havida entre todos os herdeiros;
5.–Apenas em 07.06.2022 teve conhecimento da assembleia ocorrida a 23-05-2022 que deliberou sobre a designação de órgãos sociais para o triénio em curso de 2021 a 2024;
6.–Só em 07.06.2022 teve conhecimento da assembleia ocorrida em 23-05-2022 que deliberou sobre a designação de órgãos sociais para o triénio em curso de 2021 a 2024;
7.–Da acta desta assembleia consta falsamente que esteve representada a totalidade do capital social da sociedade, o que não aconteceu porque não esteve presente, não tendo sido convocada, e nem aquele documento lhe foi enviado;
8.–A deliberação tomada é inexistente ou, pelo menos, nula;
9.–Para além de ser assim contrária à lei, essa deliberação é suscetível, pela sua natureza, de causar dano apreciável, tendo sido tomada com o objetivo de obtenção de benefícios ilegítimos em prejuízo da requerida e dos seus acionistas.

A apelante foi posteriormente notificada para alegar factos concretos que permitissem concluir pelo alegado dano apreciável.
Cumprindo com o ordenado, referiu que o dano resultava da natureza da deliberação, a eleição de órgãos sociais e das consequências dos futuros actos dos mesmos.

A apelada deduziu oposição alegando, em síntese, o seguinte:
1)–Inexiste probabilidade séria da existência do direito porquanto: a) o contrato de cessão de ações com base no qual a requerente funda a sua legitimidade é anulável nos termos do art.1687º,n.º1,CCiv. por não ter tido o consentimento do cônjuge do cedente, com quem o falecido C. de J. L. C. era casado em comunhão geral de bens, sendo que a saúde mental da mesma está a ser objecto de avaliação em processo de acompanhamento de maior ; b) à data da outorga do contrato também as faculdades mentais C. de J. L. C. se encontravam degradadas devido a um AVC sofrido em 2014.
2)–A requerente não apresentou qualquer prova da qualidade de accionista, na aludida reunião de 07-04-2022, não tendo apresentado aquele contrato de cessão de ações nem os títulos devidamente endossados;
3)–Não está demonstrada a declaração prevista no art.102º do Código Valores Mobiliários (CVM), nem a comunicação da transmissão às Finanças prevista no art.138º,n.º1,Código do Imposto Sobre o Rendimento de Pessoas singulares(CIRS), nem foi referido o modo de pagamento das acções;
4)–A deliberação impugnada não padece de qualquer vício, não se encontrando sequer prevista legalmente a inexistência jurídica assacada à mesma.
5)–Inexistem quaisquer danos apreciáveis resultantes da deliberação, pelo contrário, a mesma impôs-se por forma a manter o funcionamento normal do estabelecimento explorado pela sociedade e assegurar no imediato o cumprimento das obrigações com fornecedores, trabalhadores e com o Estado, nomeadamente Segurança Social e Finanças, em causa para além de que, não se verificando os pressupostos que permitem decretar a presente providência cautelar, deve improceder também a inversão de contencioso.

Foi oportunamente proferido saneador-sentença que julgou o procedimento improcedente e indeferiu o pedido de suspensão da deliberação em questão.

I.B.–Conclusões

Recorrente
1.–A Requerida, ora Recorrente, não se conforma com a decisão de 1.a instância, por entender que a mesma enferma de erro de Direito.
2.–Da junção dos documentos e ainda do que foi alegado quer em sede de Requerimento Inicial quer em sede de Oposição e ainda dos factos indiciariamente provados, não poderia concluir- se, per si, pela inexistência da qualidade de sócia da Recorrente.
3.–A Recorrente demonstrou a sua qualidade de acionista e o porquê de entender que o referido contrato de cessão de ações era manifestamente válido, não se verificando qualquer causa que determinasse a anulabilidade e/ou invalidade do contrato oponível a Recorrente.
4.–Da factualidade indiciariamente provada resulta que, a 30-11-2019, C.de J.L.de C. vendeu à requerente M.S.G.dos S. 303.637 ações da sociedade requerida P.M., S.A., representativas de 49,77% do seu capital social, pelo preço de € 300.000,00.
5.–Resultando igualmente da factualidade provada que C.de J.L.de C. era casado com O.F.M.E.L.de C.desde 1964, não tendo esta prestado o seu consentimento àquela venda de ações.
6.–Ainda que não tivesse de facto sido prestado o consentimento da cônjuge, o Tribunal a quo não poderia ter concluído pela sua invalidade desde logo porque apesar do artigo 8º do Código das Sociedades Comerciais não lograr aplicação direta ao caso dos presentes autos, destinando-se o mesmo apenas a regular as relações do cônjuge titular da participação social com a sociedade, sempre terá de ser considerado em complemento do artigo 1678º nº2 do Código Civil, no sentido de que as participações sociais podem tratar-se de bens que são administrados por um só cônjuge e assim passiveis de serem onerados ou alienados sem o consentimento do outro cônjuge – aliás tal como decidido pelo acórdão mencionado pela Recorrente em sede de 1ª instância e que continua a aderir a tal posição.
7.– A norma do artigo 1678º nº2 não obsta a que outra lei regule, pontualmente, de modo diverso a administração e alienação de certos bens do casal, atendendo a situações concretas e em atenção a interesses particulares.
8.–Estando as participações sociais na exclusiva administração do cônjuge sócio, e aplicando-se o artigo 8 nº2 por analogia, tinha o cônjuge sócio legitimidade para alienar as participações sociais por seu ato exclusivo, sem necessidade do consentimento do cônjuge.
9.–A Recorrente, enquanto terceira de boa-fé, desconhecia em absoluto se tal consentimento tinha sido prestado ou não – não tendo a obrigação de conhecer.
10.–A Recorrente apenas tinha conhecimento que o cedente CC, além de ser o acionista maioritário da Requerida, era também o administrador único daquela, pelo que era evidente que ao tempo da alienação das ações, o cedente era o administrador exclusivo das participações sociais que alienou.
11.–Era o cedente que exercia todos os direitos inerentes às ações em apreço e ainda era este que tomava todas as decisões respeitantes à vida corrente da sociedade.
12.–Ainda que se entendesse que a referida cessão de ações estava dependente do consentimento do cônjuge, o que se equaciona à cautela e por mero dever de patrocínio, não podia o Tribunal a quo concluir, per si, que o contrato de ações enfermava de invalidade e que se verificavam fundadas dúvidas quanto ao preenchimento do primeiro dos requisitos atinente à qualidade de sócia da Requerente porquanto dispõe o artigo 1687º nº1 que “Os actos praticados contra o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 1682.º, nos artigos 1682.º-A e 1682.º-B e no n.º 2 do artigo 1683.º são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros, ressalvado o disposto nos n.ºs 3 e 4 deste artigo.”
13.–Em momento algum é alegado ou sequer demonstrado que foi requerida a anulabilidade do referido negócio por quem de direito, sendo certo que quem teria legitimidade para requerer tal anulabilidade sempre seria o cônjuge sobrevivo ou os seus herdeiros em representação desta.
14.–Não poderia o Tribunal a quo substituir-se à posição adotada pelo cônjuge sobrevivo, não tendo o Tribunal legitimidade per si para requerer tal anulação.
15.–Ademais, nos termos do artigo 1687º no 3 do Código Civil “Em caso de alienação ou oneração de móvel não sujeito a registo feita apenas por um dos cônjuges, quando é exigido o consentimento de ambos, a anulabilidade não poderá ser oposta ao adquirente de boa fé.”
16.–No caso dos presentes autos estamos perante uma cessão de ações, logo essas ações como títulos representativos do capital social da Recorrida, são coisas móveis nos termos do disposto nos artigos 204º e 205º nº1 do Código Civil.
17.–A Recorrente desconhecia que o referido consentimento não tinha sido prestado, tendo esta estado de boa-fé na celebração do referido negócio, resultando apenas provado que a Recorrente manifestou a sua vontade negocial nos termos expostos no contrato celebrado entre as partes, não tendo sequer sido demonstrado ou alegado pela aqui Recorrida que a Recorrente não se tratava de uma adquirente de boa-fé aquando da celebração daquele contrato.
18.–Assim, além de não se ter verificado que tenha sido suscitada a anulabilidade do referido contrato por quem de direito e a quem é conferida tal legitimidade – a saber a cônjuge que não prestou o consentimento, ou os seus herdeiros em representação desta - ainda que tal consequência jurídica tivesse sido requerida, o que se equaciona à cautela e sem prescindir, estando a Recorrente de boa-fé na celebração do contrato de cessão de ações, tal anulabilidade nunca lhe poderia ser oponível, resultando assim manifestamente provado o preenchimento do primeiro requisito para o provimento da persente providência, a saber a qualidade de sócia da Recorrente.
19.–O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, decidindo de forma deficiente e infundamentada neste ponto, razão pela qual, especificadamente, se impugnam nos termos e para os efeitos do art.º 640º do CPC o decidido em 1ª Instância.
20.–O Tribunal a quo incorreu ainda em erro manifesto pelo facto de considerar que pelo facto de os requisitos do artigo 102º do CVM não estarem preenchidos são demonstrativos de que falha o primeiro dos requisitos de decretamento da providência.
21.–O negócio jurídico translativo da propriedade das ações é regido pelo princípio da autonomia privada, pelo que os contratos de transmissão de valores mobiliários com natureza meramente obrigacional estão sujeitos à liberdade de forma consagrada no artigo 219º do Código Civil.
22.–A falta de entrega, ou de declaração no título, ou do registo na conta do adquirente, ou de registo nos livros da sociedade não determina a invalidade do contrato celebrado.
23.–A circunstância de não ter sido demonstrado que não tenham sido observadas as regras no prescrito artigo 102º do CVM, não contende, minimamente, com a validade formal de tal negócio jurídico.
24.–Mesmo que as partes nada tenham estipulado quanto à obrigação do alienante de efetivar o “modo” através do qual serão transmitidas as ações, a obrigação do alienante de efetivação do “modo” decorre do fim do contrato e da interpretação das declarações negociais das partes.
25.–Não se verificando os atos exigidos por lei, tal não é, per si, demonstrativo de que se verifica uma invalidade de contrato, apenas cabendo à Recorrente, caso já tivesse tomado conhecimento desse facto, meramente imputável ao alienante, através do instituto da execução específica, requerer judicialmente o cumprimento do contrato e, quando for caso disso, a efetivação do “modo” - neste sentido vide Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sob o no 2794/2007-1, de 07/12/2007.
26.–A Recorrente nunca tomou conhecimento que as formalidades previstas no artigo 102º do Código dos Valores Mobiliários não tinham não tinham sido cumpridas.
27.–Nestes termos, por tudo o anteriormente exposto, requer-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por acórdão que decida em função do supra alegado para que se faça Justiça!

Em contra-alegações a recorrida pugnou pela manutenção do julgado.

I.C.–Objecto do recurso
A única questão colocada à consideração do tribunal resume-se a aferir da qualidade de accionista da recorrente, primeiro requisito necessário para a apreciação do seu pedido de suspensão de deliberação social.

II
II.A

A primeira instância considerou indiciariamente provada matéria:
1)–A Requerida foi constituída a 24-06-1946, com o seguinte objeto social: confeitaria, pastelaria e cervejaria – cfr. certidão permanente junta a 08-09-2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2)–A Requerida foi constituída com o capital social de € 110.100,00, sendo atualmente de € 610.100,00, obrigando-se com a intervenção de dois administradores ou do Administrador Único – cfr. certidão permanente junta a 08-09-2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3)–O seu capital social mostra-se repartido da seguinte forma, desde o registo do aumento de capital pela Ap. 142, de 24-03- 2015, nos seguintes termos:
Montante do aumento: 500.000,00 Euros
Modalidade e forma de subscrição: dinheiro, subscrito pelos sócios M.V.A.– 205.685,50 Euros, O.V.A.C.G. –106.250,75 Euros, MarM.L.P.G.– 100.000,00 Euros ,M.V.– 35.000,00 Euros,J.A.M.B.– 25.000,00 Euros, I.M.F. Vi. de S.D. – 27.798,00 Euros, M.I.N.M. – 265,75 Euros.
Capital após o aumento: 610.100,00 Euros Artigo(s) alterado(s): 3o.
Sócios e quotas:
Quota: 243.303,00 Euros
Titular: M.V.A.
(...)
Quota: 129.647,00 Euros
Titular: O.V.A. da C.G.
(...)
Quota: 122.020,00 Euros
Titular: M. de L.de P.G. (...)
Quota: 42.707,00 Euros
Titular: M.l.Vi.
(...)
Quota: 36.606,00 Euros
Titular: J.A.M.B.
(...)
Quota: 5.312,00 Euros
Titular: M.I.N.M.
(...)
cfr. certidão permanente junta a 08-09-2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4)–Pela Ap. 5, de 28-04-2015, foi registada a transformação da Requerida em sociedade anónima e designação de membro(s) de órgão(s) social(ais), pela forma que segue:
Firma: P. M., S.A.
Natureza jurídica: sociedade anónima
Capital: 610.100,00 Euros
Data de Encerramento do Exercício: 31 Dezembro Ações:
Número de ações: 610100
Valor nominal: 1,00 Euros
Natureza: nominativas ou ao portador
cfr. certidão permanente junta a 08-09-2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

5)– Pela Ap. 5, de 23-03-2017, foi registada a designação de membro(s) de órgão(s) social(ais) e secretário pela forma que segue:
Órgão(s) Designado(s):
Administrador Único:
Nome/Firma: C. de J.L.C.
NIF/NIPC: 1.......7
Cargo: Administrador Único
(...)
Prazo de duração do(s) mandato(s): 2017/2020
Data da deliberação: 2017-03-07
cfr. certidão permanente junta a 08-09-2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

6)– Pela Ap. 104, de 02-11-2017, foram registadas as seguintes alterações ao contrato de sociedade:
Artigo(s) alterado(s): 5º Acções:
Natureza: nominativas
Menção: Pendente processo de conversão das ações nos termos do art. 6º do D.L. 123/2017, de 25.09
cfr. certidão permanente junta a 08-09-2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

7)–Pela Ap. 59, de 24-05-2022, foi registada a Designação de membros(s) de órgão(s) social(ais), pela forma que segue: Órgão(s) designado(s):
Conselho de Administração:
Nome/Firma: P.N. de C.
NIF/NIPC: 2........1
Cargo: Presidente
(...)
Nome/Firma: J.J.E.B.
NIF/NIPC: 1........1
Cargo: Vogal
(...)
–Prazo de duração do(s) mandato(s): Quadriénio 2021/2024
Data da deliberação: 2022.05.23
cfr. certidão permanente junta a 08-09-2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8)–O falecido C.de J.L.C. era casado, sem convenção antenupcial, com C.de J.L.C. desde 23-02-1964 – cfr. doc. 2 junto com a Oposição, constante de fls. 67 a 69 do suporte físico dos autos, cujo teor qui se dá por integralmente reproduzido.
9)–C. de J.L.C. faleceu a 21-01-2022, com 82 anos, no estado de casado com O.F.M.E.L.C. – cfr. certidão do assento de óbito junta como doc. 3 do Requerimento Inicial, constante de fls. 24 e 24 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10)–Por escritura pública de “habilitação de herdeiros”, datada de 16-03-2022, foi declarado que, no dia 21-01-2022, faleceu C. de J.L.C. (...) Que o falecido deixou testamento outorgado no dia vinte e cinco de Junho de dois mil e vinte, no Cartório Notarial de Odivelas a cargo da Notária (...) a folhas cento e cinco do Livro de Testamentos número nove-T, (cuja validade será determinada no meio judicial competente) no qual institui herdeira da sua quota disponível, M.S.G. dos S., NIF 2.......8. Divorciada (...) e nomeou testamenteira I.S.P.F. da C., que por instrumento de recusa outorgado no dia catorze de fevereiro de dois mil e vinte e dois, no Cartório Notarial de M...L...D...N..., veio recusar a testamentaria.
Que o falecido deixou como seus únicos e universais herdeiros legitimários:
i)- O cônjuge, O. F. M. E. L. C. (...) ii)- Os filhos:
a.-C.M.M. de C. (...);
b.-C.M. de C. (...);
c.-A neta, C.C.C.B. (...), em representação da filha pré-falecida do autor da herança, M.F.M.C.B..
Que não há outras pessoas que, segundo a lei e o referido testamento, prefiram aos indicados herdeiros ou com eles possa concorrer à sucessão da mencionada herança.
(...) – cfr. certidão da escritura de Habilitação de Herdeiros junta à Oposição como doc. 3, constantes de fls. 70 a 75 do suporte físico dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
11)–Por escritura pública denominada “Testamento”, outorgada a 25-06-2020, foi declarado ter comparecido como outorgante C. de J.L.C. (...) e por ele foi dito:
Que tem descendentes.
Que, por este seu primeiro testamento, deixa a quota disponível dos seus bens, a M.S.G.S., divorciada,
Que nomeia sua testamenteira, I.S.P.F.C., advogada (...) – – cfr. certidão da escritura de Habilitação de Herdeiros junta à Oposição como doc. 3, constantes de fls. 70 a 75 do suporte físico dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
12)–Por escrito particular denominado Contrato de Cessão de Acções, datado de 30-11-2019, em que figuram como outorgantes C. de J.L.C., referindo-se ser o mesmo casado como O.F.M.E.L. C. sob o regime da comunhão geral de bens, na qualidade de cedente/transmitente e M.S.G.S. (...), na qualidade de cessionária/adquirente, refere-se que o mesmo é celebrado e reciprocamente aceite o presente contrato de transmissão de ações referentes à sociedade comercial anónima denominada “P. M., S.A.”, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa com o NIPC 5........6, com sede na Avenida ..... ....., no ... C, ....-... - L_____, e que se refere pelas cláusulas seguintes e, no que for omisso, pela legislação aplicável:
Cláusula 1ª
Disse o Cedente que é titular de quinhentas e sessenta e oito mil cento e oitenta e duas ações, na sociedade “P.M. , S.A.”, (...) com o capital social de 610.100,00€ (seiscentos e dez mil e cem euros), representado por seiscentas e dez mil e cem ações, no valor de um euros cada, inteiramente liberadas.
Cláusula 2ª
Pelo presente contrato o cedente transmite à cessionária 293.637 (duzentas e noventa e três mil, seiscentas e trinta e sete) ações por si subscritas, compostas por 29 títulos de 10.000 (dez mil) ações cada um, dos números 270.001 a 530.000, 550.001 a 570.000 e 600.001 a 610.000; 12 títulos de 1.000 (mil) ações dos números 574.001 a 586.000; 16 títulos de 100 (cem) ações dos números 597.501 a 598.600 e 599.201 a 599.700; 2 títulos de 10 (dez) ações dos números 599.941 a 599.950 e 17 títulos de 1 (uma) ação dos números 599976 a 599.987 e 599.994 a 599.998;
Cláusula 3ª
Que as ações atrás referidas são transferidas pelo preço de 300.000,00 (trezentos mil euros), cujo pagamento foi integralmente realizado, pelo que dá o cedente à cessionária plena e integral quitação.
(...) – cfr. doc. 2 junto com o Requerimento inicial, constante de fls. 22 a 23 verso do suporte físico dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
13)–No dia 07-04-2022, pelas 10h00, teve lugar, na morada da sede da Requerida, uma reunião de herdeiros de C. de J.L.C., encontrando-se presentes: C.M.M. de C., por si e como gestor de negócios de O.F.M.E.L. C.J.J.E.B. como procurador de C.C. de C. B., R.J. na qualidade de gestor de negócios de C. M. de C., A.J.S. de S., como procurador anunciado de M.S.G. dos As., mas cuja procuração não foi aceite, A.L.M.D., advogada, e M.R. de C.F.M., advogada, ambas mandatárias de todos os herdeiros legitimários como declararam, e J.F.R., na qualidade de representante a herdeira testamentária M.S.G. dos S., aqui Requerente, tendo este último, designadamente, declarado que relativamente à “P. M., S.A.”, não foi ainda convocada a assembleia geral, sendo que os acionistas da sociedade não são apenas os herdeiros aqui representados, mas também outros acionistas que importa convocar para que a deliberação possa ser válida, informando, desde já que a herdeira testamentária além de herdeira é também acionista da referida sociedade. – cfr. certidão junta como doc. 4 do Requerimento Inicial, constante de fls. 25 a 35 do suporte físico dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
14)–Da ata número 1/2022 constante aos vinte e três dias do mês de maio do ano de dois mil e vinte e dois, pelas onze horas, reuniu na Alameda ..... ..... ....., nº... ...,-1...-... - L____, a Assembleia-geral Extraordinária da Sociedade (...).
Verificando-se que estava representada a totalidade do capital social, nos termos do artigo cinquenta e quatro do Código das Sociedades Comerciais, os presentes acordaram, por unanimidade, constituir-se validamente em Assembleia-geral, com dispensa de formalidades prévias de convocatória, para deliberarem sobre os seguintes pontos da ordem de trabalhos:
Ponto único: Deliberar sobre a designação dos membros dos órgãos sociais para o quadriénio atualmente em curso 2021 a 2024 e respetiva remuneração; (...). Após confirmar a lista de presenças, o Presidente da Mesa da Assembleia-Geral declarou verificadas as condições para que a Assembleia pudesse reunir e deliberar, encontrando-se representada a totalidade do capital social e dos correspondentes direitos de voto. Iniciada a sessão, entrou-se de imediato no Ponto único da ordem de trabalhos, sendo dado conhecimento aos presentes do falecimento em 21 de janeiro de 2022 do Administrador único C. de J.L.C. (...). Assim torna-se urgente a sua substituição, sob pena da sociedade incumprir com todas as suas obrigações legais. Considerando que, não obstante dos mandatos anteriores terminaram em 31 de Dezembro de 2020, não foi feita a designação para o mandato correspondente ao quadriénio 2021 a 2024, tendo-se mantido em funções os órgãos designados. Em face do falecimento do administrador único, torna-se urgente resolver este assunto, pelo que é aprovado por unanimidade designar os seguintes órgãos sociais, para completar o mandato correspondente ao quadriénio 2021-2024:
Mesa da Assembleia-geral:
Presidente da Mesa da Assembleia-Geral – C.M.M. de C.S. da Mesa da Assembleia-Geral – C.Cr. de C.B.
Conselho de Administração: designado nos termos do previsto no artigo décimo terceiro número um e três dos estatutos em vigor, aprovados em Assembleia geral de 26 e Outubro de 2017, constituído por dois membros:
i)- Presidente do Conselho de Administração: P.N. de C. (...) ii) Vogal: J.F.J.E.B. (...)
Mais é deliberado que o Conselho de Administração agora designado entre imediatamente em funções e não aufira remuneração, ficando também dispensado de realizar descontos para a segurança social uma vez que já o fazem através de outra entidade.
O Fiscal único será designado na Assembleia Geral de Aprovação de contas a realizar o mais rapidamente possível.
(...)–cfr. fotocópia certificada da ata 1/2022 junta ao Requerimento Inicial como doc. 5, constante de fls. 36 a 39 do suporte físico dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
15)– Em Anexo à ata número 1/22 consta a lista de presenças da qual consta como tendo estado presentes os herdeiros de C. de J. L. C. representados pelo cabeça-de- casal O.F.M.E.L.C. com uma participação de 55% correspondente a 335.555 ações com o valor nominal de 1,00€ cada, O.F.M.E.L.C. com uma participação de 40% correspondente a 244.040 ações com o valor nominal de 1,00€ cada e M.I.N.M. com uma participação de 5% correspondente a 30.505 ações com o valor nominal de 1,00€ cada – cfr. doc. 8 junto com a contestação, designadamente o anexo ao mesmo constante de fls. 96 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
16)–Corre termos no Juiz 24 do Juízo Local Cível de Lisboa ação especial de maior acompanhado requerida a 30-11-2021 por C.M. M. de C. e em que é beneficiária a sua mãe O.F.M.E.L.C. em que, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 07-07-2022, foi decidido:
1.–Declarar o acompanhamento provisório da requerida, maior, O.F.M.E.L.C. (...).
2.–Nomear como acompanhante provisório da beneficiária referida no ponto anterior, seu filho, C.M.M. de C. (...) nas seguintes atribuições:
2.1.–Gestão das questões inerentes à saúde da requerida;
2.2.–Celebração de um contrato de apoio domiciliário a pessoa idosa com pessoa/empresa experiente, profissional e qualificada para prestação de cuidados vários, nomeadamente, higienização pessoal, gestão medicamentosa, confeção de refeições e outras tarefas domésticas, acompanhamento nas ausências da habitação/deslocações;
2.3.–Representação da Beneficiária para atos de administração do seu património imobiliário, que não envolvam alienação ou oneração do mesmo, administração das suas contas bancárias, com admissão de débitos globais (o total de todos os débitos parcelares) até ao máximo de 4.000€ (quatro mil euros) mensais e outros bens mobiliários, que igualmente não envolvam a sua alienação ou oneração.
2.4.– Representação da Beneficiária, para atos de administração para gerir sociedade em que a Beneficiária detenha participações sociais, participar e deliberar em Assembleias gerais das mesmas e tomar as medidas que se mostrem necessárias, com exclusão dos que envolvam a sua alienação.
2.5.–Representação da beneficiária, para instaurar ações judiciais que visem salvaguardar o património desta;
2.6.–Representação pelo aqui recorrente e filho da Beneficiária, no desempenho das funções de cabeça-de-casal que compitam a esta por óbito de seu marido C. de J.L.C., adotando as medidas, incluindo o recurso aos tribunais, para salvaguarda do património da herança.
3.–A presente decisão provisória vigorará até à prolação da decisão definitiva a proferir na ação, salvo o disposto no artigo 140o do CC. – cfr. doc. 6 junto com a oposição, constante de fls. 82 a 92 do suporte físico dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
17)–A 16-07-2022 sobreveio sentença de 1a instância neste processo de ação especial que julgou a ação improcedente, por não provada – cfr. sentença em apreço para cujo acesso se obteve autorização diretamente junto do processo 28505/21.2T8LSB, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
18)–Da sentença em apreço foi interposto recurso admitido a 16-08-2022 com efeito suspensivo - cfr. despacho de admissão de recurso para cujo acesso se obteve autorização diretamente junto do processo 28505/21.2T8LSB, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
19)–A cônjuge de Ca. de J.L.C., O.F.E.L. de C., não autorizou a cessão de ações aludida no facto 12).
20)–A requerente não foi convocada nem esteve presente na Assembleia-geral aludida no facto provado 14).

II.–B

Estipula o art.º 380º ,n.º1, CPC, que « Se alguma associação ou sociedade ,seja qualquer for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer no prazo de 10 dias ,que a execução dessas deliberações seja supensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável.»

Os requisitos para a procedência da providência são assim dois: i)ilegalidade da deliberação ou desconformidade da mesma como contrato ; ii)existência de dano apreciável para o sócio ou sociedade.
A qualidade de sócio configura-se como uma condição de legitimidade para o exercício do direito de pedir a suspensão e tem que se verificar à data da deliberação e do pedido de suspensão.[1]
O requerente terá de justificar a qualidade de sócio, apresentando na petição inicial a respetiva prova. Essa prova será, em regra, realizada com a exibição de documento escrito (certidão da conservatória do registo comercial) se se trata de sociedade por quotas e, no caso de sociedade anónima, com exibição do título representativo das acções ou da inscrição em conta. [2]
Porém, porque o artigo 380.o não impõe qualquer formalidade ad probationem, tem-se entendido como suficiente, para a apreciação deste requisito, um juízo de mera probabilidade ou de verosimilhança.[3]
Ora a primeira instância indeferiu a providência por entender que a recorrente não demonstrou cabalmente a sua qualidade de sócia porque : i) o contrato é inválido porque assinado apenas por um dos cônjuges quando o regime de casamento é o da comunhão geral; ii) não se mostra cumprido o determinado no art.102ºCVM; iii) a qualidade de herdeira testamentária é irrelevante por não estar demonstrada a partilha da herança.
Analisando
A recorrente alega ser sócia porque em 30.11.2019 adquiriu, pelo preço de €300.000,00, 293.637 acções da apelada a C.C., detentor de 568.180 acções da mesma sociedade e seu administrador único .
Juntou o documento denominado “contrato de cessão de acções”, sendo que a assinatura do falecido C.C. não foi impugnada.
No entanto não juntou as acções em questão.
E a recorrida defendeu-se invocando, no que releva: i) a anulabilidade do contrato por não constar do mesmo a assinatura do cônjuge com quem o falecido era caso no regime de comunhão geral de bens, nem a menção da sua autorização para o acto de disposição; ii) a omissão de apresentação dos títulos e o incumprimento do preceituado no art.102º CVM.
No que respeita à anulabilidade do contrato cumpre referir o seguinte.
O art.1687º,n.º1, CCiv, sanciona com a anulabilidade a alienação, por um só cônjuge, de bens que só pelos dois possam ser alienados.
Mas a anulação só pode ser arguida pelo cônjuge preterido, ou pelos seus herdeiros se for o caso (cfr.art.1687º,n.º1,CCiv,parte final).
No caso dos autos a recorrida não é, manifestamente, o cônjuge do falecido C.C. carecendo de legitimidade para arguir o vício de falta de assinatura do cônjuge, sendo totalmente irrelevante que tenha sido solicitado o acompanhamento de maior da mesma.
E não sendo a anulabilidade de conhecimento oficioso (cfr.art.287º,n.º1, cciv), a sentença pronunciou-se indevidamente.
Quanto à falta de cumprimento do art.102ºCVM.
A recorrente apresentou o contrato desacompanhado dos títulos.
A transmissão de acções regulou-se, inicialmente pelo disposto no Código das Sociedades Comerciais, CSC, aprovado pelo DL n.º262/86,02.09.
Assim o art. 326º,n.º1,CSC, dispunha que as acções nominativas se transmitiam entre vivos por declaração do transmitente escrita no título e pelo pertence lavrado no mesmo e averbado no livro de acções da sociedade por esta efectuados. Quanto às acções ao portador, o art. 327º,n.º1,do mesmo normativo, estatuía que a sua transmissão se efectuava pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício dos direitos sociais.
A transmissão obedecia, pois, a um esquema tradicional, e apenas relativamete a acções tituladas: por endosso, no caso de no caso de acções nominativas; por tradição no das acções ao portador.[4]
O aparecimento de acções escriturais, introduzidas pelo DL n.o no 229-D/88, 04.07, obrigou a prever novos esquemas de transmissão.
Segundo dispunha o artigo 5º,n.º1, desse diploma: “A transmissão de acções escriturais opera-se pela inscrição da alienação, na conta do alienante, e da aquisição, na conta do adquirente, a qual, no caso de este ainda não ser accionista, será para o efeito aberta ”.
Posteriormente, o Código do Mercado de Valores Mobiliários ,CMVM,, aprovado pelo DL n.º142-A/91,10.04, veio regular os valores escriturais, revogando o DL n.o 229-D/88, de 4 de Julho .
Como refere Menezes Cordeiro[5] as matérias relativas à transmissão de tais valores transitaram, com desenvolvimento, para o novo Código: artigos 67º, 68º e 69º .
Finalmente o actual Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo DL n.º486/99, de 13 de Novembro, CVM, que revogou o CMVM, também legislou sobre matéria das sociedades comerciais revogando os já referidos art.326º e 327º do CSC, e legislando sobre o assunto. Assim sendo as regras imediatas sobre transmissão de acções regulam-se pelo CVM, e são as seguintes:
- as acções escriturais transmitem-se pelo registo na conta do adquirente ( art.80º,n.º1);
- as acções tituladas nominativas transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto do intermediário financeiro que o represente (102º,n.º1)
No que releva para os autos importa averiguar se a transmissão de acções se dá por mero efeito da celebração do negócio jurídico translativo (v.g., do contrato de compra e venda), nos termos do artigo 408º, no 1, CCiv, como pretende a recorrente ou se, como entendeu a primeira instância e sumariamente referiu a recorrida , depende da observância das formalidades exigidas pelo art.102º, no 1, CVM,- (i) declaração no título, ou (ii) o registo na conta do adquirente, ou (iii) o registo nos livros da sociedade.
A questão não é pacífica.
A título de exemplo referem-se apenas três autores.
COUTINHO DE ABREU[6] refere que a exigência de uma causa para a transmissão de acções é pressuposta e, por isso, não é necessária uma referência expressa da lei nesse sentido. E a explicitação da necessidade da declaração de transmissão escrita no título,ou do registo em conta, atesta a sua essencialidade para que a transmissão das acções se efective. O mero acordo entre transmitente e transmissário produz efeitos entre as partes – mas não produz, por si só, a transmissão das acções.
E, porque produz efeitos entre as partes , a recorrente«... adquire o direito a requerer o registo das acções. Mas estes são meros direitos de crédito, não são faculdades de um direito absoluto, do direito de propriedade. O contrato, por si só, não fez nascer, na esfera jurídica do adquirente, o direito de propriedade sobre as acções; a mera celebração do contrato entre o transmitente e o adquirente, desacompanhada do “modo”, não transfere para este a propriedade das acções.»[7]
Vera Eiró entende que o CVM regula exaustivamente a matéria da transmissão de valores mobiliários (neles incluídos as acções das sociedades anónimas) e tratando-se de regras especiais, o regime instituído naquele diploma prevalece sobre o regime geral consagrado no artigo 408º, nº 1, CCiv, segundo o qual, ressalvadas as excepções previstas na lei, a transferência de direitos reais sobre coisa determinada opera por mero efeito do contrato.[8] Menezes Cordeiro[9], em sentido oposto, entende que a transmissão das acções opera, em princípio, por força do contrato transmissivo, típico ou atípico, que tenha sido concluído entre as partes ,sendo regra tradicional dos países latinos, genericamente consagrada no art.408º,n.º1, CCiv.
A jurisprudência tem seguido maioritariamente a primeira posição ,referindo-se apenas o mais recente Ac do STJ de 15.02.2023[10],que cita extensa doutrina(incluindo os autores já referidos) e jurisprudência a se adere, e para o qual se remete, e em cujo sumário, no que releva, se pode ler o seguinte:« I– O contrato de compra e venda de acções nominativas só fica perfeito, operando a transmissão da propriedade sobre tais bens, quando tenham sido devidamente cumpridas, pela entidade responsável, as formalidades especialmente exigidas pelo artigo 102º, no 1, do Código de Valores Mobiliários, concretamente quando exista declaração escrita de transmissão inscrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente, ou seja, o denominado modo.
II– Sem tais formalidades essenciais, legalmente estabelecidas pela legislação de natureza especial que regula juridicamente o regime dos valores mobiliários (o Código de Valores Mobiliários), a declaração negocial gerará efeitos de natureza obrigacional, consubstanciados no direito do transmissário à exigência da prossecução das condutas idóneas à perfeição do negócio (declaração no título e diligências para o registo junto da emitente), sob pena de integral ressarcimento, no plano indemnizatório, dos prejuízos causados, a ter lugar nos termos gerais, mas não efeitos de natureza real, o que constitui um desvio ao regime regra consignado no artigo 408o, no 1, 1a parte, do Código Civil.III...IV...»

Entende-se assim que o contrato de cessão desacompanhado dos respectivos títulos não confere à recorrente a qualidade de sócia, falhando um dos pressupostos necessários, legitimidade, para a propositura da providência.

Nesse segmento concorda-se com a sentença impugnada.

III–
Considerando o que se acaba de expor julga-se improcedente a apelação, e confirma-se a sentença impugnada.
Custas pela apelante.


Lisboa 16.05.2023


Teresa de Sousa Henriques
Isabel Brás Fonseca
Fátima Reis Silva



[1]1 PAIS DE AMARAL, Direito Processual, Almedina,2019,55; LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, CPC,Anot.Almedina,2008,I,Vol,94 e Pinto Furtado, TRC de 08.11.2011,proc. n.o158/10.0T2AVR-A.c2(Carvalho Martins );STJde 20.05.1997,proc. n.o97A313(Silva Paixão)in www.dgsi.pt
[2]Lebre de Freitas e outros (ob.cit.94, e 380)entendem que o documento é essencial para efeitos de verificação de um pressuposto processual.
[3]Ac. TRC de 08.11.2011, proc.n.o158/10.0T2AVR-A.C2(Carvalho Martins); TRL de 08/03/2012,proc. 10903/11.2TBBNV.L1-8(Isoleta Costa);TRC de 01.06.2’21,proc. n.o3553/20.3T8CBR.C1(Vítor Amaral) in www.dgsi.pt
[4]Menezes Cordeiro, CSC Anot,3a ed.1108.
[5] Ob. Cit.1108
[6] Curso de DtoCom.,Vol. II,Das Sociedades,Almedina,371.
[7]Ac. STJ de 05.02.2019, proc. n.o95/14.0T8BGC.G1.S1(Paulo Sá) in www.dgsi.pt
[8] VERA EIRÓ ,A Transmissão de Valores Mobiliários – As Acções em Especial, THEMIS – Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano VI, No 11, 2005, 145 a/185.
[9]Manual de Dto Sociedades,Almedina,V.II, 663/665.
[10]Proc. n.o721/17.9T8GMR-H.G2.G1.S1(Luís Espírito Santo)in www.dgsi.pt