Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27643/19.6T8LSB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CESSAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
REDUÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I - Não constando da ata da assembleia geral de uma associação, como é o caso da Ré, que aí tenha sido deliberada a denúncia de contrato de prestação de serviços celebrado com a Autora (uma sociedade de Revisores Oficiais de Contas que tinha o cargo de Fiscal Único), tal facto não pode ser considerado provado, configurando uma mera conclusão jurídica (que não tem cabimento em sede de decisão da matéria de facto) retirada pelo Tribunal a quo do facto (esse sim provado) de ter sido designada/eleita, na dita Assembleia Geral, uma nova sociedade para o cargo de Fiscal Único.
II - Em sentido amplo, a denúncia de um contrato traduz-se numa declaração de vontade unilateral recetícia de uma das partes no sentido de que não pretende a renovação de contrato renovável (o que talvez seja mais apropriado designar por oposição à renovação) ou de contrato celebrado por tempo indeterminado (denúncia em sentido estrito).
III - Não estando, no caso dos autos, demonstrada uma qualquer declaração unilateral de denúncia do contrato (nada tendo sido comunicado nesse sentido, com a antecedência contratualmente prevista ou mesmo outra), não se pode entender que tenha existido uma denúncia ilícita, mas antes uma revogação tácita do contrato, cuja cessação se dá apenas porque veio a ser designada/eleita uma nova sociedade para o desempenho das mesmas funções, aplicando-se o disposto nos artigos 1154.º a 1156.º e 1171.º do CC.
IV - Embora um contrato de prestação de serviços como o dos autos possa ser celebrado intuitu personae, ou seja, em razão da pessoa do contraente, sendo a mesma determinante na decisão de contratar, no caso sub judice, os factos provados não implicam que o contrato em apreço assim deva ser qualificado, tendo sido celebrado com uma sociedade de Revisores Oficiais de Contas que havia sido eleita em assembleia geral para o cargo de Fiscal Único, nada constando no contrato no sentido da obrigatoriedade de aquela estar representada no que concerne à execução do contrato, por um determinado sócio.
V - Prevendo-se numa cláusula do contrato que “(N)a falta de cumprimento do estipulado na cláusula 2ª (quanto ao pré-aviso de denúncia do contrato com a antecedência de 30 dias relativamente à data da Assembleia Geral em que sejam eleitos os órgãos sociais para novo mandato), o Outorgante em falta indemnizará o outro no montante correspondente a pelo menos metade do período em falta até ao fim do mandato para que seria reeleito o segundo Outorgante”, não se está perante uma cláusula penal compensatória ou indemnização, antes se tratando de uma cláusula penal em sentido estrito, com função tendencialmente compulsória e também sancionatória, já que estatuída pelas partes abstraindo da existência e montante de eventuais danos decorrentes da inobservância do dever acessório de pré-aviso previsto na referida cláusula 2.ª do contrato.
VI - Não é de aplicar oficiosamente à citada cláusula o regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25-10 (RJCCG), porque se trata de um contrato individualizado e nada sugere que o seu conteúdo tenha sido previamente elaborado pela Autora e que a Ré não tenha podido influenciar o mesmo, antes tudo apontando para que tenha sido negociado entre as partes e até para a possibilidade dessa negociação prosseguir ao longo da execução do contrato.
VII - Concluindo-se que a Autora, com a penalidade imposta, teria direito à quantia de 10.701 €,  justifica-se, ao abrigo do disposto no art.º 812.º, n.º 1, do C, reduzir equitativamente o valor da mesma (na proporção de 1/3), por se mostrar muito exagerada face à falta “menor” da Ré, considerando que o contrato apenas foi “descoberto” quando se deu a nomeação do Fiscal Único para o período de 2019 / 2021 e uma vez que, a partir de meados de 2018, a Ré já vinha transmitindo ao representante da Autora o seu desconforto com a manutenção dele em funções, pelo que a Autora podia ter antecipado como provável que, na próxima Assembleia Geral, já não viria a ser eleita para o cargo de Fiscal Único.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

ITG - INSTITUTO TECNOLÓGICO DO GÁS, PCUP, Ré-reconvinte na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, foi intentada por AB - AB & ASSOCIADO, SOCIEDADE DE REVISORES OFICIAIS DE CONTAS, LDA., interpôs o presente recurso de apelação da sentença (na parte em que a ação foi julgada procedente).
Na Petição Inicial, apresentada em 18-12-2019, a Autora pediu que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 10.701€, a título de indemnização, acrescida dos juros de mora legais vencidos desde 30 de maio de 2019 até integral e efetivo pagamento, alegando, para tanto e em síntese, que:
- Entre Autora e Ré foi celebrado um contrato de prestação de serviços pelo qual aquela se obrigou a prestar à Ré, mediante contrapartida monetária, os serviços próprios do cargo de Fiscal Único, durante o mandato de 1997-1998, considerando-se o contrato automaticamente renovado pelos triénios seguintes caso não fosse denunciado por uma das partes, mediante pré-aviso, a formular, por meio idóneo, com a antecedência de 30 dias reportada à data da assembleia geral que procedesse à eleição dos órgãos sociais da Ré;
- Com a eleição de novo Fiscal Único em assembleia geral realizada a 30-05-2019, a Autora viu denunciado esse contrato, sem qualquer pré-aviso, pelo que a Ré deve ser condenada a indemnizá-la, conforme expressamente clausulado no contrato, pagando o valor equivalente à remuneração de metade do período em falta até ao fim de novo mandato, o que, no caso, equivale a 15 meses e meio;
- Sendo os honorários anuais, àquela data, no valor de 8.856€, pagos em parcelas mensais de 738€, e tendo a Autora, após ter sido interpelada para proceder ao pagamento da indemnização devida, vindo a pagar apenas o valor de uma remuneração mensal, está em dívida a quantia total de 10.701€ (738 x 14,5).
A Ré apresentou Contestação, em que se defendeu, por impugnação motivada, bem como por exceção e reconvenção (pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de quantia de 66.149,40 €), alegando, em suma, que:
- Na prestação dos serviços por parte da Autora existiram faltas éticas e profissionais graves, não tendo sido detetadas uma série de situações que determinaram a necessidade de realização de uma auditoria às contas e negócios sociais da Ré, com o que esta despendeu a quantia peticionada em reconvenção, e que determinaram o despedimento com justa causa da Diretora Financeira da Ré;
- A substituição da Autora como Fiscal Único era do conhecimento daquela desde, pelo menos, 2018;
- O contrato invocado pela Autora, consubstanciado no documento 1 junto com a Petição Inicial, já não estava em vigor;
- Mesmo que estivesse em vigor, tratar-se-ia de contrato de adesão, sendo de considerar nula a cláusula que impunha tal penalidade;
- A não se entender assim, a cláusula penal indemnizatória, por excessiva, deverá ser reduzida por equidade.
A Autora replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção e pedindo a condenação da Ré como litigante de má fé.
Teve lugar audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador e de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento, com a produção de prova requerida pelas partes, designadamente a prestação de declarações pelos seus legais representantes e depoimentos testemunhais.
Foi proferida a sentença (recorrida), cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Face ao exposto e sem necessidade de outras considerações:
· Julgo procedente por provada a acção e, consequentemente, condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 10.701€ (dez mil, setecentos e um euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, mora legais vencidos desde 30 de Maio de 2019 até integral e efetivo pagamento;
· Julgo improcedente por não provada a reconvenção e, consequentemente, absolvo a autora do pedido reconvencional;
· Julgo improcedente por não provado o pedido de condenação como litigante de má fé e, consequentemente, dele absolvo a ré.
Custas pela ré.
Registe e notifique.”
Inconformada com a sentença, na parte em que o Tribunal julgou a ação procedente, veio a Ré interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (sublinhado nosso):
A. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual condenou a Recorrente ao pagamento de uma indemnização, no valor de €10.701,00, por incumprimento do prazo de pré-aviso previsto no Contrato.
B. A disposição legal contida no n.º 4 o artigo 607.º do CPC obriga o Juiz a, na fundamentação da sentença, apreciar criticamente a prova produzida, o que a sentença recorrida não fez, tal levando consequentemente, ao desacerto da decisão a que se chegou.
C. O Tribunal a quo desvalorizou as declarações de parte prestadas pelo Legal Representante da Recorrida, bem como o alcance das mesmas, aproveitando, apenas, as declarações que apenas lhe eram favoráveis.
D. Nos pontos 7., 8., 10. e 12. da matéria de facto, o Tribunal a quo considerou provado que:
“7. Sem prejuízo do estabelecido em sede de pré-aviso para a denúncia do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Autora e Ré, tal facto não consubstanciava motivo impeditivo de reeleição da Autora, pela assembleia geral da Ré, se esta (assembleia geral) assim o determinasse.
8. No âmbito do referido contrato, ficou ainda estipulado, que, na falta de cumprimento do referido pré-aviso exigido para a denúncia do contrato de prestação de serviços, “(...) o Outorgante em falta indemnizará o outro no montante correspondente a pelo menos metade do período em falta até ao fim do mandato para que seria reeleito o segundo Outorgante [a autora]”.
(...) 10. A Autora prestou os serviços contratados até ao dia 30 de maio de 2019, e cobrava nesta data, honorários anuais, que importavam a quantia de 8.856,00€ (oito mil oitocentos e cinquenta e seis euros) - (7.200€ + 23% IVA) - os quais eram pagos em parcelas mensais de 738,00 € (setecentos e trinta e oito euros).
11. (...)
12. Na assembleia geral realizada e por deliberação a autora viu denunciado o contrato de prestação de serviços celebrado em 1 de março de 1998”.
E. Tais pontos apenas resultaram como provados, pelo facto de o Tribunal a quo ter considerado que o Contrato celebrado a 1 de Março de 1998 apenas foi denunciado na Assembleia Geral de eleição dos Órgãos Sociais da Recorrente, realizada a 30 de Maio de 2019.
F. Contudo pela prova produzida nos presentes autos, incluindo das declarações de parte do Legal Representante da Recorrida, apenas é possível extrair a conclusão de que tal Contrato não se encontrava em vigor, já que o mesmo teria como elemento essencial a nomeação do ROC o Sr. Dr. AM.
G. O Contrato celebrado tinha por objecto a designação como Fiscal único do Revisor Oficial de Contas, o que necessariamente tem natureza intuitu personae.
H. Considerando o términus do desempenho como ROC do Sr. Dr. AM, naturalmente que o Contrato deixou de produzir seus efeitos, por esvaziamento do seu elemento essencial.
I.  Sendo certo que, após tal términus, a Recorrida continuou a prestar serviços, através do seu sócio Sr. Dr. AB, porém não estando esta relação regulada por qualquer contrato escrito.
J. Tanto assim é que, durante o desempenho das funções de Fiscal Único pelo Sr. Dr. AB, a Recorrida não fez qualquer referência a tal Contrato.
K. Pelo que, desde então, não se encontra em causa um mero “desconhecimento” por parte da Recorrente da existência do Contrato, mas sim uma verdadeira não execução do mesmo.
L. Nessa senda, deveria o Tribunal decidido no sentido de não ter ocorrida qualquer denúncia do Contrato na Assembleia de 30 de Maio de 2019 e, consequentemente, não ter sido desrespeitado qualquer prazo de pré-aviso.
M. Pelo que deve considerar como não provados os factos acima indicados, ou seja, os factos provados 7, 8, 10 e 12.
N. Não obstante o acima exposto, ainda que assim não seja entendido pelo Tribunal ad quem – o que não se concede – sempre se diga que do ponto de vista da aplicação do Direito, a sentença em crise merece crítica por parte da Recorrente.
O. Com efeito, considera a Recorrente que o Tribunal errou ao não considerar como nula a cláusula 2.ª do Contrato, já que o seu objecto é legalmente impossível, para efeitos do artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil.
P. Considerando que o único objecto do contrato era a eleição da Recorrida como Fiscal Único, e que essa nomeação pertence à Assembleia Geral, como poderia a Direcção da Recorrente antever uma não nomeação, por forma a cumprir o pré-aviso previsto na cláusula 2.ª do Contrato?
Q. Pelo que, mal esteve o Tribunal a quo por nada referir relativamente à nulidade desta cláusula, já que, declarada a nulidade da mesma, não se poderia ter considerada a existência de qualquer incumprimento do pré-aviso, e muito menos o direito a qualquer indemnização.
R. Adicionalmente, na sentença em crise, mal andou o Tribunal a quo por não ter aplicado o regime previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, uma vez que o Contrato mencionado nos presentes autos corresponde a uma minuta enviada pelo então Fiscal Único – o Dr. AM –, que a Recorrente se limitou a assinar, aderindo assim ao respectivo conteúdo e não o negociando.
S. De acordo com o disposto no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, são consideradas nulas as cláusulas contrárias à boa-fé.
T. É o caso de uma cláusula que estabelece uma cominação de uma penalidade equivalente a ano e meio de remuneração por eventual falha de cumprimento de um prazo de pré-aviso de 30 dias.
U. Não procedendo qualquer dos argumentos acima mencionados – o que jamais se concede –, a Recorrente não pode aceitar a consideração de que a cláusula penal prevista não é manifestamente excessiva.
V. O valor estipulado na cláusula penal considera-se manifestamente excessiva quando se traduz em valor consideravelmente superior àquele que podem ser os danos incorridos.
W. Veja-se que de acordo com a cláusula penal, a parte faltosa – a Recorrente – teria de indemnizar no valor de 15 meses e meio de remuneração, por não cumprir com o prazo de pré-aviso de 30 dias.
X. Atentas, ainda, as circunstâncias concretas do caso, sempre se diga que tal montante deveria ter sido alvo de redução por parte do Tribunal, já que a Recorrente sempre agiu de boa-fé e com um grau reduzido (ou até mesmo inexistente) de culpa.
Y. Nestes termos, deverá a indemnização arbitrada à Recorrida pelo Tribunal a quo ser substancialmente reduzida para um montante justo e equitativo, próximo do que poderiam ser os reais danos sofridos pela Recorrida, com o incumprimento do pré-aviso estipulado.
Terminou a Apelante pugnando pela revogação da sentença recorrida, a fim de ser substituída por acórdão que considere improcedente o pedido de indemnização formulado pela Autora, “por não ter havido incumprimento do prazo de pré-aviso – por não se encontrar em vigor o Contrato em causa, ou por nulidade das cláusulas aí dispostas” ou, em alternativa, que reduza a indemnização arbitrada, “por manifestamente excessiva a cláusula penal”, sendo substituída “por uma em montante justo equitativo”.
A Autora-Apelada apresentou alegação de resposta, defendendo que seja negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto (dando como não provados os factos vertidos nos pontos 7, 8, 10 e 12 do elenco dos factos provados);
2.ª) Se a Autora não tem direito a uma “indemnização” pela forma como a Ré fez cessar o contrato em apreço, apreciando se o mesmo estava em vigor e se são nulas as cláusulas 2.ª e 4.ª;
3.ª) A ser devida uma quantia, se o seu valor deve ser reduzido de acordo com a equidade.

Factos provados

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (assinalámos com asterisco os pontos impugnados; aditámos nos pontos 2, 3 e 17, por estar plenamente provado, face ao alegado nos artigos 3.º da PI, 24.º e 25.º da Contestação e aos documentos indicados, o que consta entre parenteses retos – cf. art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, ex vi art.º 663.º, n.º 2, e art.º 662.º, n.º 1, do CPC):
1. A Autora tem como objeto social o exercício das funções de revisão legal de contas, auditoria contabilística e financeira e serviços relacionados a empresas ou outras entidades, o exercício de quaisquer outras funções que por lei exigem a intervenção de revisores oficiais de contas, a prestação de serviços de consultadoria e demais funções que por lei sejam atribuídas como as definidas na subsecção I da secção I do capítulo III do título I do DL n.º 487/99 de 16 de novembro, em consonância com o artigo 48.º do mesmo diploma.
2. A Ré [é uma associação (cf. certidão junta como doc. 7) que] tem como objeto social prestar apoio à atividade gasista, particularmente no que se refere à resolução de problemas de natureza técnica e tecnológica, proceder a estudos de carácter técnico e científico, relacionados com o desenvolvimento da atividade gasista em Portugal e colaborar com organismos de investigação, universidades e empresas em projetos de desenvolvimento tecnológico e de inovação industrial, proceder a ensaios e análises laboratoriais de caracterização de matérias primas, de produtos e equipamentos, certificar a conformidade de equipamentos e produtos com especificações e normas aplicáveis, proceder ao estudo e à elaboração de normas para atividade gasista, proceder à elaboração e implementação de programas de garantia de qualidade, apoiar e proceder à formação de técnicos especializados nas áreas em que atua, estabelecer relações com organismos nacionais ou internacionais que prossigam fins análogos aos do ITG, participando neles pela forma mais conveniente, criar e manter um centro de documentação e promover a difusão de informações sobre as atividades técnicas e científicas da atividade gasista, nacional e internacional e promover a transferência de tecnologias, para valorização dos técnicos, indústrias e operadores gasistas nacionais.
3. Em 1 de março de 1998, no âmbito da sua atividade comercial, a Autora celebrou com a Ré um contrato de prestação de serviços [consubstanciado no doc. 1 junto com a PI, do qual consta ter sido celebrado entre ITG – Instituto Tecnológico do Gás, representada pelos Eng.º JG e Eng.º ML como primeiro Outorgante, e a «Sociedade de Revisores Oficiais de Contas “Bernardo & Muralha”, com sede na Rua Tomás Ribeiro, n.º 41 – 3 Dt.º em Lisboa», representada por AM, como segundo Outorgante, e cujas cláusulas têm o seguinte teor:
1ª Tendo a Direcção do primeiro Outorgante deliberado eleger o segundo Outorgante, como Fiscal Único, para um mandato cobrindo os exercícios de 1997 e 1998, e tendo esta aceite a designação, obriga-se o mesmo segundo Outorgante a prestar os seus serviços em regime de completa independência funcional e hierárquica ao primeiro Outorgante com observância dos estatutos deste, das normas constantes do Regime Jurídico dos Revisores Oficiais de Contas, das leis da fiscalização das sociedades, dos princípios de deontologia e disciplina profissionais fixados pela Câmara dos Revisores Oficiais de Contas e das Normas Técnicas de Revisão Legal de Contas aprovados por esta mesma Câmara.
2ª O presente contrato vigora durante o mandato referido na cláusula 1ª considerando-se automaticamente renovado, pelos triénios seguintes, sem prejuízo da actualização das respectivas condições por acordo dos Outorgantes, caso não seja denunciado por algum dos Outorgantes mediante pré-aviso a formular, por meio idóneo, com a antecedência de trinta dias reportada à data da Assembleia Geral que proceda à eleição dos orgãos sociais.
3ª O pré-aviso de denuncia feito pelo primeiro Outorgante não constitui porém motivo impeditivo de reeleição do segundo Outorgante, pela Assembleia Geral do primeiro Outorgante, se esta assim o determinar.
4ª Na falta de cumprimento do estipulado na cláusula 2ª, o Outorgante em falta indemnizará o outro no montante correspondente a pelo menos metade do período em falta até ao fim do mandato para que seria reeleito o segundo Outorgante.
5ª O segundo Outorgante considera-se em efectividade de funções desde o início da vigência do presente contrato, sem prejuízo de ter que garantir o exame das contas dos exercícios cobertos pelo seu mandato.
6ª Para execução das funções que constituem objecto do presente contrato o primeiro Outorgante facultará ao segundo Outorgante instalações adequadas, e todos os meios necessários às tarefas inerentes ao desempenho das respectivas funções.
7ª Para pagamento dos serviços prestados, o primeiro Outorgante pagará ao segundo Outorgante os honorários anuais que as partes convencionarem, com base no anexo II da tabela a que se refere o artigo 160º do Decreto-Lei 422-A/93 de 30 de Dezembro, estabelecendo-se a quantia de 780.000$00 (setecentos e oitenta mil escudos), a qual constitui a avença anual correspondente ao período do primeiro exercício, podendo, contudo ser paga em parcelas mensais, conforme for acordado entre as partes. Sobre este valor incidirá a percentagem de IVA correspondente.
8ª Um atraso de pagamento (total ou parcial) em relação ao ano a que respeita a Certificação Legal das Contas poderá levar a Sociedade de Revisores Oficiais de Contas a suspender os trabalhos conducentes à apreciação dos documentos de prestação de contas.
9ª Constituirá motivo de rescisão com justa causa, se a Sociedade de Revisores Oficiais de Contas assim o entender, um atraso superior a seis meses.
10ª Os honorários serão actualizados após a aprovação de contas de cada exercício, através de acordo escrito o qual se considera, para todos os efeitos aditamento ao presente contrato.
11ª Para além dos honorários o primeiro Outorgante reembolsará o segundo Outorgante das despesas de transporte, de alojamento e quaisquer outras incorridas no exercício das respectivas funções, conforme estipulado pelo nº 2 do art.º 50º do Decreto-Lei nº 422-A/93.
12ª O segundo Outorgante garante nos termos do que estabelece o Estatuto dos Revisores Oficiais de Contas, a sua responsabilidade civil profissional decorrente do exercício de funções impostas pelo presente contrato, mediante contrato de seguro titulado pela Apólice nº 31.650 emitida pela Companhia de Seguros Império.
13ª Os honorários foram convencionados considerando que o primeiro Outorgante não suportará quaisquer encargos estabelecidos por lei e correspondentes à inscrição do segundo Outorgante na Segurança Social.
14ª Para qualquer questão emergente do presente contrato, será competente o tribunal de Lisboa com expressa renuncia a qualquer outra.
15ª As cláusulas do presente contrato poderão ser modificadas por imperativo legal ou por acordo dos respectivos Outorgantes.
16ª O primeiro e segundo Outorgantes comunicarão à Câmara dos Revisores Oficiais de Contas, no prazo de trinta dias o início e a cessação do presente contrato bem como a respectiva resolução, caso ocorra, com a indicação dos motivos que fundamentam.].
4. No âmbito do contrato de prestação de serviços suprarreferido a Autora foi eleita como Fiscal Único da Ré, para um mandato cobrindo os exercícios de 1997 e 1998, tendo a Autora aceite a designação.
5. No âmbito do referido contrato a Autora obrigou-se para com a Ré, a prestar os seus serviços em regime de completa independência funcional e hierárquica com observância dos estatutos da Autora, das normas constantes do Regime Jurídico dos Revisores Oficiais de Contas, das Leis da fiscalização das sociedades, dos princípios de deontologia e disciplina profissionais fixados pela Câmara dos Revisores Oficiais de Contas e das Normas Técnicas de Revisão Legal de Contas aprovados por esta última entidade.
6. O contrato de prestação de serviços outorgado entre a Autora e a Ré, vigoraria durante o mandato de 1997 e 1998, considerando-se automaticamente renovado, pelos triénios seguintes, caso não fosse denunciado por uma das partes, mediante pré-aviso a formular, por meio idóneo, com a antecedência de 30 dias, reportada à data da assembleia geral que procedesse à eleição dos órgãos sociais da Ré.
* 7. Sem prejuízo do estabelecido em sede de pré-aviso para a denúncia do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Autora e Ré, tal facto não consubstanciava motivo impeditivo de reeleição da Autora, pela assembleia geral da Ré, se esta (assembleia geral) assim o determinasse.
* 8. No âmbito do referido contrato, ficou ainda estipulado, que, na falta de cumprimento do referido pré-aviso exigido para a denúncia do contrato de prestação de serviços, “(...) o Outorgante em falta indemnizará o outro no montante correspondente a pelo menos metade do período em falta até ao fim do mandato para que seria reeleito o segundo Outorgante [a Autora].
9. Para pagamento dos serviços prestados, foi estipulado que a Ré pagaria à Autora, os honorários anuais que as partes convencionassem, a qual constituiria avença anual correspondente ao período do primeiro exercício, a qual poderia ser paga em parcelas mensais, conforme fosse acordado entre as partes.
* 10. A Autora prestou os serviços contratados até ao dia 30 de maio de 2019, e cobrava nesta data, honorários anuais, que importavam a quantia de 8.856,00€ (oito mil oitocentos e cinquenta e seis euros) - (7.200€ + 23% IVA) - os quais eram pagos em parcelas mensais de 738,00€ (setecentos e trinta e oito euros).
11. No dia 30 de maio de 2019, foi realizada uma assembleia geral da Ré, na qual foi discutida e aprovada, entre outros pontos da ordem de trabalhos, a eleição dos membros dos órgãos sociais para o mandato 2019/2021.
* 12. Na assembleia geral realizada e por deliberação a Autora viu denunciado o contrato de prestação de serviços celebrado em 1 de março de 1998.
13. E para o triénio 2019/2021 do Conselho Fiscal foi eleito como Fiscal Único efetivo a sociedade DIZ & ASSOCIADOS SROC LDA, representada pelo ROC JD.
14. A Ré apenas pagou a quantia de 738,00€ (setecentos e trinta e oito euros).
15. Em 2014, uma nova administração do ITG deparou-se com inúmeras irregularidades contabilísticas e fiscais, das quais resultaram prejuízos para a Ré, de montante ainda não totalmente contabilizado.
16. Resultado da descoberta das inúmeras “irregularidades contabilísticas e fiscais” foi promovido o despedimento com justa causa da diretora financeira da Ré – Dra. SC.
17. Despedimento que foi confirmado em sentença de primeira instância [datada de 16-05-2016 – cf. doc. 2 junto com a Contestação] e em acórdão do STJ [datado de 23-05-2018 – cf. doc. 3 junto com a Contestação] que confirmou a decisão de despedimento.
18. “Irregularidades” que se constituem nos seguintes factos:
(i) no âmbito de um contrato com o Ministério dos Transportes de Angola, o ITG terá emitido faturas no montante de USD 7.176.000 (sete milhões cento e setenta e seis mil dólares) mas nenhuma delas se encontrava registada na contabilidade do ITG,
(ii) não foram entregues várias declarações de IVA nos anos de 2014 e 2015,
(iii) foram pagos pelo ITG vistos para Angola – e outras despesas relacionadas com Angola – para pessoas que não eram dos quadros da empresa,
(iv) o ITG registava várias despesas e faturas referentes a deslocações e serviços no Dubai, São Paulo, Rio de Janeiro, Amsterdão, Buenos Aires, Singapura, sem que a Ré tivesse qualquer atividade conhecida nesses países;
(v) foram pagos pelo ITG almoços e jantares no fim de semana, no valor de centenas de milhares de euros;
(vi) verificou-se a falta de suporte documental de pagamentos feitos para Angola;
19. Perante as “Irregularidades”, em 2014 / 2015 a nova administração do ITG, decidiu contratar um auditor externo.
20. Recaindo a escolha na PWC.
21. Tendo pago pela realização da auditoria o montante de 66.149,40€.
22. Com a prestação de tais serviços de auditoria, a PwC produziu um relatório que identificou “irregularidades” contabilísticas e fiscais.
23. Factos aqueles todos ocorridos enquanto o Dr. AB “exercia” por escolha da Autora e em representação desta as funções de Fiscal Único.
24. Na Certificação Legal da Contas dos exercícios de 2015, 2016, 2017 e 2018 o ROC AB fez constar “Opinião com reservas”, na primeira por reconhecimento de valores a imputar à TIGS sem existência de contrato e falta de confirmação de transações com o Ministério dos Petróleos de Angola; na segunda por existência de rendimentos a imputar à TICS sem a existência de contrato, impossibilidade de confirmação de transações com Angola, desconhecimento da atividade do escritório em Luanda, falta de apresentação de contas da TIGS, falta de reconhecimento de imparidades de dívidas de dois clientes de Angola; na terceira por impossibilidade de confirmação das transações com o Ministério dos Petróleos de Angola e com o ITG Angola; na quarta por impossibilidade de confirmação das transações com o Ministério dos Petróleos de Angola e com o ITG Angola e por sobrevalorização de ativo.
25. Desde pelo menos, meados de 2018, que a administração do ITG – ora Ré – vinha transmitindo o seu desconforto com a manutenção em funções do Dr. AB.
26. O que lhe foi verbalmente comunicando nos contactos havidos.
27. Em data anterior à da assembleia geral que elegeu os novos órgãos sociais em 2019, a administração do ITG tentou contactar telefonicamente o Dr. AB para informar a sua destituição.
28. Contudo, o Dr. AB, não atendeu essa chamada e nem a devolveu.
29. A Autora nunca fez referência ao contrato de prestação de serviços nas conversas que, através do Dr. AB, manteve com a administração do ITG.
30. Sendo que o contrato junto como documento n.º 1 da PI apenas foi “descoberto”, quando se deu a nomeação do Fiscal Único para o período de 2019 / 2021.
31. Antes dessa data e apesar das conversas mantidas entre as partes, nunca tinha sido referida a existência de tal “contrato” ou a questão do pré-aviso ou da indemnização.

Da modificação da decisão da matéria de facto

A Autora Apelante pretende que sejam considerados não provados os factos vertidos nos pontos 7, 8 10 e 12.
Na sentença consta a seguinte motivação da decisão da matéria de facto (sublinhado nosso, transcreve-se a parte útil):
«A convicção do tribunal, no tocante aos factos provados, resultou da análise crítica do acervo documental e testemunhal carreado para os autos, à luz das regras da experiência comum e das normas atinentes ao ónus da prova.
No que se refere aos depoimentos prestados e declarações de parte:
PF, consultor de profissão.
Prestou um serviço para a ré quanto trabalhava para a PWC. O trabalho consistiu numa investigação que incidiu sobre suspeitas da administração da ITG.
(…) Esta testemunha depôs com isenção e objetividade relativamente aos factos a que foi ouvido e que se reportaram ao modo como foi feita à auditoria que a PWC realizou, quer no que respeita aos procedimentos “padrão” quer no que respeita aos procedimentos adoptados no caso, nomeadamente no que se reportou aos pedidos e fornecimento de elementos contabilísticos necessários. Confirmou tudo quanto consta no relatório elaborado.
Com os mesmo parâmetros depôs a testemunha CC.
CC, consultora financeira.
Esclarece que fez um trabalho de auditoria forense. O trabalho de auditoria forense é de investigação sobre suspeitas de irregularidades, com vista a demonstrar ou não as alegações ou suspeitas de irregularidades.
(…)
LB (declarações de parte da autora).
Revisor Oficial de Costas. É sócio gerente da autora desde 2014 da autora. Antes disso a empresa era a AB Unipessoal, Lda.
Esclareceu que o número de contribuinte da autora é ….
O contrato em causa nos autos foi denunciado porque não houve renovação do mandato do fiscal único; teve conhecimento disso através do AB, talvez em 2019.
Houve uma reunião, talvez no último dia de Julho, que incidiu sobre a indemnização que o ITG pretendia pagar 30 dias e autora entendeu que devia ser a prevista no contrato; estiveram presentes o declarante, o AB e o Eng. JM.
Participou na auditoria do ITG de 2018.
O “risco de familiaridade” é um risco a avaliar pelo auditor. No caso o risco foi sempre considerado baixo. Durante os 18 anos não foi sempre o mesmo auditor, nem a administração do ITG foi composta sempre pela mesma pessoa.
Teve conhecimento do relatório forense apenas com a contestação.
Entre 2015 e 2018 foi sempre o AB o revisor da ré.
Quando foi fazer a auditoria em 2018 encontrou extratos do relatório de perícia forense no dossier de acompanhamento, tomando conhecimento que haviam “problemas”. Na certificação das contas de 2014 (ou seja, contas concluídas em 2015) foram incluídas “reservas de limitação de âmbito”, por não haverem concluir sobre a matéria a que se referiam os extractos.
Antes de 2018 não teve conhecimento detalhado das circunstâncias motivadoras das “reservas de limitação de âmbito”.
A base de trabalho de um revisor são os registos contabilísticos de suporte.
Para nas contas não ser detectada uma operação é preciso que não esteja registada em nenhum dos 4 aspectos de uma operação: rendimentos, pagamentos, gastos e recebimentos. Se não houver registos nem contabilização, não consegue detetar-se uma operação.
Relativamente ao que se afirma no ponto 1 da Certificação Legal de Contas de 2018, esclarece que circularizaram mas não obtiveram resposta do pedido de informação relativamente a Angola. Os órgãos do Conselho de Administração também não tinham mais informação. As reservas mantiveram-se desde 2014 a 2018. Antes de 2014 não havia reservas porque não houve conhecimento das operações.
Existindo gastos/deslocações no Dubai, Singapura, São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires, só teve conhecimento de despesas que todas somadas são pouco mais de €1000,00.
O “fiscal único” é a empresa (a autora); esta designa um dos seus sócios para revisor efectivo de determinada entidade nos termos do art.º 128º do Estatuto do ROC.
O que define quem é o ROC é a própria relação que o revisor tem com a sociedade.
No contrato de 1.3.98 era o Dr. AM o ROC e não o AB.
O representante da autora demonstrou não ter conhecimento directo da actividade de AB durante os autos em que fez menção em que as funções de “fiscal único” foram desempenhadas por este – entre 2015 e 2018; os factos que, até 2018, lhe foram dados a conhecer foram-no pelo referido AB, demonstrando o declarante que não tinha qualquer relacionamento com a ré, com a actividade desta ou com o desempenho de funções de fiscal único que estavam atribuídas a AB e, antes disso o Dr. AM. Não pudemos deixar de notar que o próprio declarante disse haver 4 aspectos em que pode ser detectada uma operação e que basta que se verifique estranheza relativamente a um deles para que o fiscal único encete diligências no sentido de a verificar.
JM (declarações de parte da ré)
Engenheiro de profissão. Administrador da ré.
Não conhecia o contrato de prestação de serviços a que se referem os autos. Nunca AB referiu a existência do contrato.
O declarante é presidente do conselho de administração do ITG não remunerado desde 2013, indicado/designado pelo associado GALP. A administração do ITG em 2013 era composta por três pessoas: o declarante (indicado pela GALP), o Dr. JP e a pessoa indicada pela BP.
Em 2013 os resultados negativos eram de mais de 200.000 euros para receitas de cerca de €3.200.000,00.
No início de 2014 perguntou como estavam os resultados e os resultados estavam mais negativos, com prejuízos prováveis no final do ano de cerca de €1.000.000,00 para resultados de cerca de €3.000.000,00.
Entendeu haver despesas que tinham de ser explicadas: viagens, despesas de deslocação para Angola de valor “expressivo”, outras as quais se contavam, por exemplo, o pagamento de uma acção de formação para evacuação de pessoas em plataforma petrolífera em alto mar; eram despesas que não encontravam reflexo na acção do ITG. O ITG tem as suas actividades centradas em Portugal.
A dada altura, foram convidados para uma acção de formação para uma ITGA(Angola), instituto que não existia de acordo com informação prestada pela Dra. SC e Dr. JP.
Chegaram (assim) à conclusão que precisavam de fazer uma auditoria às contas do ITG em especial às actividades do ITG fora de Portugal.
Quando a PWH faz a primeira reunião o Dr. PF disse que o silêncio não era uma opção e, assim, a auditoria passou a “forense”.
A Dra. SC (directora administrativa, financeira e TOC) estaria no ITG há 6 ou 7 anos e o Dr. JP há mais.
Andaram mais de um ano para perceber a “natureza” da actuação, o “envolvimento” do AB como ROC, face ao que foi encontrado na contabilidade. Havia facturas/despesas que não tinham a ver com a actividade do ITG e a situação do instituto era de absoluta calamidade. O AB foi mantido nas funções para acabar o que estava a fazer, designadamente no que dizia respeito às contas e à responsabilização por elas.
Disse ao AB que a sua actuação havia sido, no mínimo, de “ingenuidade”, afirmação que fez pela primeira vez em 2014 e foi repetida várias vezes, designadamente após o julgamento que decorreu no Tribunal de Trabalho para o despedimento da Dra. SC.
A partir de dada altura os próprios associados disseram para disponibilizar o AB em 2017 ou 2018. A Dra. RA tentou contactar o AB para lho comunicar e nunca conseguiu; em consequência o AB teve apenas conhecimento desse facto na Assembleia Geral.
O relatório e contas de 2013 ainda não está aprovado.
Após a cessação do contrato entre a sociedade de revisores e o ITG houve uma reunião em que estiveram o declarante e o AB, reunião que aconteceu designadamente para saberem o que se passava quanto ao cumprimento das obrigações fiscais e outra que supõe que tivesse a ver com os honorários do AB.
As declarações prestadas, de forma circunstanciada, não deixaram dúvidas ao tribunal sobre a veracidade do que o declarante afirmou. Foi particularmente expressivo nas preocupações manifestadas pela administração que lhe foi entregue, o que levou o declarante (com formação de engenharia) a procurar explicações para o que lhe levantou suspeitas no que tinha sido a gestão do ITG até à data e que encontrava eco em alguma facturação e em despesas não compagináveis com a manutenção do instituto face aos proventos que eram obtidos. O declarante foi ainda claro em expressar as dúvidas que teve relativamente à intervenção como Fiscal único por parte de AB: ou seja, e tendo em conta que os auditores da PWC lhe deram conta de haver matéria susceptível de configurar a prática de ilícito criminal, o declarante pôs em causa a actividade e a confiança em AB.
Documentos:
O contrato de prestação de serviços celebrado entre a ré e “B e M”, contribuinte nº … representada por AM. Nele a ré dá conta de ter eleito a empresa “B e M” para fiscal único para um mandato de 1997 e 1998, considerando-se, de acordo com a cláusula segunda, automaticamente renovado para os triénios seguintes, caso não fosse denunciado por pré aviso de 30 dias reportado à data da Assembleia Geral que proceda à eleição dos órgãos sociais; acrescenta-se que o incumprimento da cláusula segunda importa a indemnização em montante correspondente pelo mesmos a metade do período em falta até ao fim do mandato para que seria reeleito o segundo outorgante. O contrato data de 1.3.1998.
A acta da Assembleia Geral da autora, datada de 30.5.2019, e que dá conta da aprovação do resultado de exercício de 2019, e da eleição como fiscal único da empresa Diz & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, Lda.
O relatório da PWC, subscrito por PF e CC.
A certidão permanente relativa à ré.
Faturas da quantia desembolsada à PWC.
Documentos de “Certificação Legal de Contas” apresentados pela autora.»
De referir ainda que, na fundamentação de direito da sentença, o Tribunal teceu algumas considerações que, embora deslocadas, não podem deixar de ser vistas como integrando a motivação da decisão de facto, designadamente quando se referiu às declarações de parte prestadas pelo legal representante da Ré, afirmando que: “Ouvido em audiência final, o declarante deu conta ao tribunal da sua preocupação na altura – nomeadamente por causa da necessidade de satisfazer os créditos salariais – em avaliar as razões para os resultados negativos da ré. (…) Nessa senda, entendeu haver uma necessidade de fazer uma auditoria externa às contas da ré, fiável e que não deixasse dúvidas. Não pode o tribunal deixar de notar, tal como o declarante JM referiu, que a sua formação de base é em engenharia. Donde, conclui-se ter uma formação longe de instrumentos que lhe permitam entender os mecanismos contabilísticos ou financeiros da ré; contudo, essa falta de instrumentos não obstaculizou a percepção, em relativamente pouco tempo, que havia despesas suportadas pela ré que não apresentavam explicação plausível”.
Mais ainda quando fez constar que: «O declarante JM, expressou o “desconforto” da administração da ré com a manutenção da presença de um ROC cujo trabalho não espelhou todas as irregularidades encontradas. As declarações foram mais longe, admitindo o declarante que não percecionou de imediato se AB estaria ou não envolvido na falta de transparência das contas da ré. E, de uma forma que não deixou dúvidas ao tribunal da sua veracidade, garantiu que disse a AB, mais do que uma vez, que “no mínimo” este teria sido “ingénuo”.»
A Apelante discorda do decidido, argumentando, em síntese, que: o juiz do Tribunal a quo, na fundamentação da sentença, não apreciou criticamente a prova produzida, o que terá levado ao desacerto da decisão, e desvalorizou as declarações de parte prestadas pelo legal representante da Autora, bem como o alcance das mesmas; o Tribunal a quo considerou que o contrato celebrado a 1 de março de 1998 apenas foi denunciado na Assembleia Geral de eleição dos Órgãos Sociais da Ré, realizada a 30 de maio de 2019, mas da prova produzida [e aqui a Apelante limitou-se a indicar - com respeito pelo disposto no art.º 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do CPC - o doc. 1 junto com a PI e as declarações de parte do legal representante da Autora (LB)], apenas é possível extrair a conclusão de que tal contrato não se encontrava em vigor, já que o mesmo tinha por objeto a designação como Fiscal único do Revisor Oficial de Contas, no caso o Dr. AM, pelo que, quando este cessou o seu desempenho como ROC, o contrato deixou de produzir seus efeitos; pese embora a Ré tenha “continuado” a prestar serviços, através do seu sócio Sr. Dr. AB, esta relação não estava regulada por qualquer contrato escrito, pelo não se trata aqui de mero “desconhecimento” por parte da Ré da existência do contrato; logo, não se pode considerar que tenha ocorrido a denúncia do contrato na Assembleia de 30 de maio de 2019 e, consequentemente, que tenha sido desrespeitado qualquer prazo de pré-aviso.
A Autora-Apelada discorda, lembrando o disposto nos artigos 341.º e 342.º do CC, e 607.º, n.º 5, do CPC, e afirmando, em síntese, que: quanto aos factos provados, o Tribunal a quo considerou, e bem, essencialmente, os documentos juntos aos autos, as declarações das partes e a prova testemunhal produzida, o que impunha ao julgador a decisão tomada; o contrato celebrado visava a prestação de serviços pela sociedade de revisores oficiais de contas, ora Apelada, tendo, à data da sua celebração, sido representada pelo seu representante legal, AM, e posteriormente representada por AB, também seu representante legal; o contrato renovou-se automaticamente até 30-05-2019.
Vejamos.
A Ré-Apelante começa por defender que o Tribunal a quo não apreciou criticamente a prova produzida. É bem certo que, nos termos do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, o juiz, na fundamentação da sentença, deve, após elencar os factos que considera provados e não provados, analisar criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Ora, atentando na motivação constante da sentença, concede-se que o Tribunal a quo poderia ter identificado de forma cabal em que medida os aludidos documentos, declarações e depoimentos foram relevantes para considerar provados (ou não provados – como também foram elencados, em três alíneas) certos e concretos factos, incluindo os ora impugnados.
No entanto, não se vê especial dificuldade em compreender os fundamentos que levaram à decisão de considerar provados os factos constantes dos pontos 7, 8, 10 e 12, sendo certo que, se assim não fosse, equacionaríamos lançar mão do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. d), do CPC (nos termos do qual a Relação deve, mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados).
Com efeito, no tocante aos factos em apreço e, aliás, também a um conjunto alargado de factos (designadamente os vertidos nos pontos 3, 4 e 30) que a Ré-Apelante não impugnou no recurso [pelo menos com observância do disposto no art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC], constata-se que a motivação do Tribunal a quo assenta na análise crítica e conjugada de (i) um conjunto de documentos – com destaque para o doc. 1 junto com a Petição Inicial (pelo qual foi reduzido a escrito o contrato de prestação de serviços), a ata da Assembleia Geral da Autora, a certidão permanente relativa à Ré e os documentos de “Certificação Legal de Contas” apresentados pela Autora - e (ii) das declarações de parte do legal representante da Autora e do legal representante da Ré (este último desde logo quando, ao sumariar as mesmas, se refere “Após a cessação do contrato entre a sociedade de revisores e o ITG”).
A argumentação da Ré-Apelante coloca-nos a dificuldade de envolver não apenas a (re)apreciação da prova produzida, mas também, de certo modo, uma conclusão jurídica, sendo certo que a decisão da matéria de facto, em particular a vertida nos pontos 7 e 12, se presta a isso.
Ouvidas na íntegra neste Tribunal da Relação as declarações de parte do legal representante da Autora, o sócio gerente LB, bem como as do legal representante da Ré [sendo certo que só relativamente às do primeiro a Apelante cuidou de observar o disposto no art.º 644.º, n.º 2, al. a), do CPC], e conjugando-as com o teor do doc. 1 junto com a Petição Inicial, sem olvidar os demais documentos acima referidos, de modo algum somos levados a pensar que o contrato vigente entre as partes não tenha sido reduzido a escrito, tudo apontando, ao invés, para que o contrato celebrado entre as partes em 01-03-1998 tenha sido sucessivamente renovado até que cessou, de facto, com a eleição de novo Fiscal Único (cf. deliberação de 30-05-2019).
Na verdade, embora adiante, ao apreciarmos a 2.ª questão, tenhamos de fazer algumas considerações jurídicas a este respeito, não podemos deixar de reconhecer já, no plano estritamente fáctico, que no contrato consubstanciado no aludido documento 1 figura como primeira outorgante a “Sociedade de Revisores Oficiais de Contas “B & M”, com sede na Rua Tomás Ribeiro n.º 41, 3.º dt., em Lisboa, sendo fora dúvida que esta se trata da sociedade Autora (que tem a sua sede nessa morada), sem embargo de ter sido entretanto alterada a sua firma, conforme explicou aquele seu legal representante, esclarecendo ainda que o Fiscal único é a própria sociedade de ROC, a qual designa um dos sócios para, em representação da sociedade, desempenhar efetivamente tais funções. Diga-se, aliás, que nada de estranho se vê nesta situação, tanto mais que, conforme se alcança da ata de 30-05-2019, algo de idêntico se passou com o novo Conselho Fiscal, aí se identificando como Fiscal Único Efetivo a “DIZ & ASSOCIADOS – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, Lda.”, “representada por JD”, e Fiscal Único Suplente RL.
Veja-se que na certidão permanente da Ré, consultada a 09-11-2007 (doc. 7 junto com a Contestação) figura, para o mandato de 2016/2018, a “AB – AB & ASSOCIADO, SOCIEDADE DE REVISORES OFICIAIS DE CONTAS, LDA.”, com sede na Rua Tomás Ribeiro, 41, 3.º, 1050 – 225 Lisboa, como “Fiscal Único, representado por AB”, e LB como Fiscal Suplente (cf. ap. 3, de 09-09-2016, em que se menciona a deliberação de 23-06-2016). Nessa certidão consta ainda que:
- Mediante ap. 06-08, de 17-06-1992 (extrato atualizado das inscrições n.ºs 1, 4 e 7), para o mandato de 2002-2004 (deliberação de 06-06-2002), o Fiscal Único é a “B & , SROC”, representada por AM” e o Fiscal Único Suplente é AB, ROC;
- Mediante ap. 4, de 22-06-2011, para o mandato de 2010-2012 (deliberação de 31-03-2011), o Fiscal Único é a “AB – AB, SOCIEDADE DE REVISORES OFICIAIS DE CONTAS, UNIPESSOAL, LDA.”, com sede na Rua Tomás Ribeiro, 41, 3.º, 1050 – 225 Lisboa, e o Fiscal Suplente é LB;
- Mediante ap. 8, de 17-09-2013, para o mandato de 2013-2015 (deliberação de 19-07-2013), o “Fiscal Único, representado por AB” é a “AB – AB & ASSOCIADO, SOCIEDADE DE REVISORES OFICIAIS DE CONTAS, UNIPESSOAL LDA.”, com sede na Rua Tomás Ribeiro, 41, 3.º, 1050 – 225 Lisboa, e o Fiscal Suplente é LB.
Atentámos também nas certificações legais de contas juntas com a Réplica, datadas de 20-06-2016, 03-03-2017, 03-04-2018 e 29-05-2019, todas assinadas por AB em representação da “AB – AB & ASSOCIADO, Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, Lda.”, estando comprovado que esta sociedade desenvolveu a sua atividade, auditando as demonstrações financeiras que compreendem os balanços às datas de 31-12-2015, 31-12-2016, 31-12-2017 e 31-12-2018, respetivamente.
Tudo ponderado, não se descortina, no plano fáctico, motivo algum para entender que o contrato que, em 01-03-1998, a Ré celebrou com a Autora, então denominada “B & M”, não tenha sido sucessivamente renovado, cessando quando aquela deixou de desempenhar as funções de Fiscal Único da Ré, por ter sido eleita uma outra sociedade conforme deliberação da assembleia geral de 30 de maio de 2019.
Por outro lado, face ao teor do referido doc. 1 junto com a Petição Inicial, pelo qual foi reduzido a escrito o contrato celebrado entre as partes, é evidente que se encontram provados os factos vertidos em 7 e 8, conforme expressamente estipulado nas cláusulas 3.ª e 4.ª (acima transcritas), sendo indiferente que a Administração da Ré pudesse, em determinada altura, não estar inteirada a respeito da existência desse documento.
Foi também explicado pelo legal representante da Autora como, na sua perspetiva, a denúncia poderia operar, referindo que, no caso de existir uma vontade da Administração da Ré, em denunciar o contrato, bastaria proceder antecipadamente a uma tal comunicação, sendo apresentado depois na Assembleia uma proposta em conformidade (de não renovação do contrato e indicação de nova sociedade a designar para o efeito), competindo à Assembleia Geral decidir se a proposta era ou não aprovada. Ora, esta afirmação vai ao encontro do que ficou previsto na cláusula 3.ª do contrato, uma vez que aí se menciona não existir obstáculo a que a Assembleia deliberasse eleger novamente a sociedade (Autora) para o cargo de Fiscal Único.
Já quanto à prestação dos serviços por parte da Autora, nos termos descritos em 10, é nossa convicção que foram sendo prestados e pagos, em execução do referido contrato, conforme resulta do documento pelo qual foi reduzido a escrito e foi sobejamente explicado pelo legal representante da Autora, além de evidenciado pelas certificações legais de contas acima referidas.
Finalmente, a respeito da matéria vertida em 12, atentámos no teor da ata da Assembleia Geral realizada (cf. cuja cópia foi junta com a Petição Inicial como doc. 2), desde já adiantando não resultar da mesma que, nessa assembleia, por deliberação, “a Autora viu denunciado o contrato de prestação de serviços celebrado em 1 de março de 1998”, sendo a ata omissa quanto a uma deliberação nesse sentido. Aliás, nenhuma referência é sequer feita a esse contrato, tendo, tão só, sido deliberado eleger a lista completa para os órgãos sociais da Ré, incluindo para o Conselho Fiscal (além de outras deliberações que nada têm a ver com o caso).
Ora, a ata é um documento com força probatória para demonstração do que foi deliberado em assembleia geral de uma associação (como é o caso da Ré). Neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão da Relação de Évora de 21-03-2013, proferido no proc. n.º 814/11.6TBABT.E1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança da seguinte passagem do respetivo sumário: “I - A aplicação do Cód. das Soc. Comerciais às associações apenas se faz no estrito respeito pelo art.º 10.º, Cód. Civil. (…) IV - As deliberações da assembleia geral da associação provam-se apenas pela respectiva acta”.
Daí que nos pareça inaceitável considerar provado que a Autora tenha então visto “denunciado” o aludido contrato. Adiante será feito um esforço de enquadramento jurídico dos factos, mas desde já se reconhece que o contrato de prestação de serviços celebrado em 1 de março de 1998 foi sendo sucessivamente renovado, até que cessou face à deliberação tomada na referida Assembleia Geral. Importa, todavia, precisar o que efetivamente se passou e foi deliberado na Assembleia Geral, conforme resulta da respetiva ata, sem estar a tirar daí qualquer conclusão jurídica, como sucede com a formulação que foi adotada na sentença.
Com efeito, é sabido que ao elenco dos factos provados / não provados devem ser levados factos e não conclusões jurídicas, vindo a jurisprudência a entender que, quando isso suceda, tudo se passa como se a resposta a tais questões (supostamente) de “facto” fosse de considerar não escrita. Nesta linha de pensamento, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 07-10-2013, no proc. n.º 488/08.1TBVPA.P1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário: “Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 1.09.2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos. Neste sentido, a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado.” E o acórdão do STJ de 07-05-2014, no proc. n.º 39/12.3T4AGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se parte do respetivo sumário: “I -   Compete ao Supremo Tribunal de Justiça, por tal constituir matéria jurídica, apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado – consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objeto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita.” Numa outra perspetiva, com resultado equivalente, se pronuncia Paulo Ramos de Faria, no seu artigo “Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto)”, publicado na Revista JulgarOnline, novembro de 2017, em que o autor explica a razão de ser do preceito constante do art.º 646.º, n.º 4, do anterior CPC, concluindo que “é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto. Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas.”
No caso dos autos, entendemos que não se justifica eliminar totalmente o ponto 12, antes devendo ser reformulado, dando-se como provada a matéria de facto atinente ao teor da ata, incluindo que na referida Assembleia Geral esteve presente o Dr. AB, como representante do Fiscal Único.
Pelo exposto, improcedem neste particular as conclusões da alegação de recurso, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto, salvo quanto ao ponto 12, cuja redação se decide alterar, passando a ter o seguinte teor:
12. Na Assembleia Geral realizada a 30-05-2019, em que o Dr. AB, representante do Fiscal Único esteve presente, foram tomadas deliberações conforme consta da respetiva ata n.º 57, cuja cópia foi junta com a Petição Inicial como doc. 2, aqui se dando por reproduzido o seu teor, designadamente a deliberação de eleição dos membros dos órgãos sociais para o mandato de 2019-2021, sendo para o Conselho Fiscal, como Fiscal Único efetivo, a “DIZ & ASSOCIADOS – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas Lda.”, representada por é JD (ROC), e, como Fiscal Único Suplente, RL.

Do direito à “indemnização” pela “denúncia” do contrato sem pré-aviso nos termos das cláusulas 2.ª e 4.ª

Na sentença foi atendida a pretensão da Autora de atribuição de “indemnização” no valor de 10.701 €, tendo sido desenvolvida, no que ora importa, a seguinte fundamentação de direito (sublinhado nosso):
“O art.º 420º do CSC define a competência da figura do fiscal único. Estabelece aquele preceito: “(…)”
Ou seja, como o próprio nome indica, a função primeira do “fiscal” é a fiscalização da vida financeira da sociedade, socorrendo-se, nomeadamente, dos elementos contabilísticos que lhe forem apresentados, verificando a regularidade dos livros, os registos e os documentos de suporte; compete-lhe também receber as comunicações de irregularidades, tendo o dever de proceder a todos os exames e verificações necessárias à fiscalização das contas.
No caso dos autos, entre ré e a sociedade autora foi celebrado em 1.3.1998 um contrato de prestação de serviços, cometendo aquela à autora o exercício da função de fiscal único, corporizada numa pessoa singular, pessoa esta que foi entre 2015 e 2018 o ROC AB.
Na data em que o contrato foi celebrado, essa pessoa singular não era o Dr. AB mas sim o “Dr. AM”. Não obstante, dúvidas não há que o contrato foi celebrado com a autora que, em data posterior à da celebração do contrato, alterou a sua denominação e a sua constituição. O que releva no caso concreto, é que os factos que no entender da autora dão causa a indemnização, aconteceram no período em que a função de fiscal único estava entregue à autora (que é uma pessoa colectiva) e foi exercida por AB.
Esse contrato previa uma cláusula penal indemnizatória para a denúncia por parte da ré, quando a denúncia acontecesse sem pré-aviso de 30 dias reportado à data da assembleia geral em que se procedesse à eleição dos órgãos sociais da ré.
De acordo com a factualidade provada, apenas quando a ré, na pessoa do presidente do Conselho de Administração, pretendeu fazer cessar a relação que mantinha com o Fiscal Único, corporizado na pessoa do ROC AB (ou seja, em 2019), foi surpreendida com a existência de um contrato, no qual estava estipulada uma cláusula prevendo indemnização para o caso da cessação da relação contratual acontecer sem pré aviso em data diferente da de 30 dias de antecedência em relação à data de reunião da assembleia geral que procedesse à eleição dos órgãos sociais.
Ora, a ré viu escolhida uma nova administração em 2014, encabeçada por JM, como presidente do C.A.. (…)
Essa auditoria (externa às contas da ré) feita pela PWC veio a apurar várias irregularidades na contabilidade da ré, as quais vieram a redundar num processo disciplinar que culminou com um despedimento judicialmente confirmado e com uma denúncia criminal.
Aponta a ré o seu “desconforto” com a actuação do ROC e as irregularidades encontradas como motivo para a cessação da relação contratual; afirma a autora que as irregularidades não estavam espelhadas na contabilidade e, logo, escapariam ao controlo dos livros e do fiscal único, não havendo justificação para o não pagamento da indemnização por cessação sem aviso prévio.
Resulta evidente da matéria factual apurada, estribada nas declarações da testemunha PF, que a auditoria que foi feita às contas da ré não teve à disposição outros elementos que não aqueles que lhe foram facultados pela própria ré, incluindo-se a menção no relatório de “restrições e limitações” decorrentes da falta de documentos. (…)
Daqui é possível concluir que, ponderando a necessidade de avaliação das despesas a que se referiu a testemunha PF e os aspectos referidos pelo declarante LB, uma aturada fiscalização das contas da ré traria ao de cima, se não todas, pelo menos grande parte das “irregularidades” que posteriormente se descortinaram.
E, este trabalho não terá sido feito de forma completa pelo ROC AB, pessoa que tinha a seu cargo, além do mais, a prática dos actos mencionados na al. c) do nº 1 do artº 420º do CSC. O detectado pelo ROC circunscreveu-se ao que fez constar na Certificação Legal de Contas. A falta de confiança funcional constituiu a razão para que o Conselho de Administração da ré escolhesse outro fiscal único.
(…) É por conseguinte de concluir que era do conhecimento do ROC a desconfiança que pairava sobre a forma como havia executado o seu trabalho e o desconforto que causava a sua presença. De acordo ainda com as declarações do mesmo JM, foi tentado o contacto telefónico com AB no sentido de lhe dar conta que iria ser dispensado, o que não se conseguiu nem AB tendo retornado a chamada.
Daqui se conclui o seguinte:
Por um lado:
A administração da ré foi ao longo do tempo integrada por pessoas diferentes, eleitas e sugeridas pelos membros do instituto. O contrato de prestação de serviços data de 1998 e a cessação só aconteceu em 2019, quando o ROC também já não era a pessoa inicialmente escolhida; a existência de um contrato nunca foi mencionada pelo ROC e surpreendeu, pelo menos, o presidente do C.A da ré.
A administração da ré tentou contactar o ROC para lhe dar conta da sua dispensa, antes da data da realização da Assembleia Geral e, não conseguiu o contacto nem a chamada foi retornada.
A cessação aconteceu em 2019 (mais de 10 anos volvidos sobre a data do contrato), pelos motivos supra referidos, que começaram a ser detectados em 2014/2015 e que o ROC não podia desconhecer tendo em consideração a postura do presidente do CA da ré, a realização de um relatório externo, a apresentação de queixas crime, o despedimento de uma trabalhadora e o juízo de (pelo menos, ingenuidade) que o presidente do C.A. verbalizou junto de AB.
A face visível da autora e por ela escolhida – o ROC AB – viu o seu trabalho ser posto em causa, acompanhou as diligências da ré para o apuro da sua real situação financeira, ouviu do presidente do CA a manifestação do desagrado com o seu desempenho e nada fez e nem devolveu chamadas que lhe foram feitas.
É de admitir que um trabalho mais cuidado da parte do ROC teria detectado irregularidades que não foram mencionadas nas “reservas” incluídas nos Relatório de Aprovação de Contas.
Por outro lado:
O desconhecimento por parte do Conselho de Administração da ré (em funções à data da destituição do Fiscal Único) da existência de um contrato de prestação de serviços, não pode ser imputado à autora, sobre a qual não impedia qualquer obrigação de, a cada alteração dos órgãos sociais, dar conta do contrato celebrado.
O “pré-aviso” não foi cumprido. Este pré-aviso haveria de ter sido dirigido à ré e não apenas tentado, verbalmente, junto de AB.
O ROC pessoa singular e a ré empresa escolhida para fiscal único, e que tem o NIF …, são pessoas distintas. O contrato de prestação de serviços foi celebrado com a ré e não com AB.
Nada demonstra que o ROC tivesse investido em poderes de representação da autora para além do que decorreu do exercício das funções de fiscal único.
Se o mau estar com a presença de AB na ré era do conhecimento daquele, também é de admitir que o mesmo (e também a autora) tivesse criado uma expectativa em relação à sua manutenção. Na verdade, as diligências do presidente do C.A. da ré iniciaram-se em 2014/2015 e só em 2019 foi eleito outro Fiscal Único, ficando de permeio suspeitas, uma auditora externa e um processo disciplinar que culminou em despedimento.
Um trabalho mais cuidado da parte do ROC teria detectado irregularidades que não foram mencionadas nas “reservas”; não obstante, não há indicação que essa eventual falta de cuidado ou qualidade tenha sido apontada ao Fiscal Único - que é a ré – e que o tenha sido como fundamento da cessação do contrato fora do tempo contratualmente previsto, nada constando sequer na acta da reunião.
A cláusula de indemnização inserta na prestação de serviços em causa é uma cláusula penal nos termos a que se refere o art.º 810º do C. Civil. Ou seja, “a convenção através da qual as partes fixam o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual inexecução do contrato” (Galvão Teles in “Direito das Obrigações”, 4ª edição, pág. 350)
A sua existência em casos como o dos autos, reside na necessidade de garantir que não se verificará uma “dispensa” inopinada a meio de um mandato, sem razões plausíveis para tal e gorando uma expectativa que o ROC criou na manutenção no exercício das suas funções de Fiscal Único até ao termo do triénio. Por outras palavras, garante o cumprimento.
(…) Resulta da certidão permanente relativa à ré, que a última deliberação de eleição como fiscal único data de 24.3.2017 e se reporta ao triénio 2016-2018 (inscrição 9). A reunião da AG em que foi deliberada a escolha de outro fiscal único, aconteceu a 30.5.2019 e visava, além do mais, a aprovação das contas do exercício de 2018. Por conseguinte, na data de 30.5.2019 e pressupondo a reeleição do mesmo fiscal único para o triénio 2019-2021, até ao termo do mandato da ré teriam decorrido ainda 31 meses (12 meses x 3 anos - 5 meses do ano de 2019).
A ré não cumpriu o pré-aviso. Logo constitui-se na obrigação de indemnizar nos termos da cláusula penal.
A indemnização prevista como cláusula penal, que a autora líquida em €11.439,00 (dos quais a ré já pagou €738,00€) correspondente metade de trinta e um meses de remuneração, ou seja, no mínimo previsto no contrato.”
A Ré-Apelante considera não ser devida qualquer indemnização, argumentando não estar em vigor o contrato, porque celebrado intuitu personae, e suscitando a nulidade/inaplicabilidade de duas cláusulas contratuais, afirmando designadamente que:
- O Tribunal a quo errou ao não considerar como nula a cláusula 2.ª do Contrato, já que o seu objeto é legalmente impossível, para efeitos do art.º 280.º, n.º 1, do CC, pois, sendo o único objeto do contrato a eleição da Apelada como Fiscal Único e pertencendo essa nomeação à Assembleia Geral, não podia a Direção da Apelante antever uma não nomeação, por forma a cumprir o pré-aviso previsto na cláusula 2.ª do contrato;
- Devia ter sido aplicado o regime previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25-10, uma vez que o contrato corresponde a uma minuta enviada pelo então Fiscal Único – o Dr. AM –, que a Ré-Apelante se limitou a assinar, aderindo assim ao respetivo conteúdo e não o negociando, sendo nula, conforme resulta do disposto no art.º 15.º do DL n.º 446/85, por contrária à boa-fé, a cláusula que estabelece uma cominação de uma penalidade equivalente a ano e meio de remuneração por eventual falha de cumprimento de um prazo de pré-aviso de 30 dias.
A Autora-Apelada, por sua vez, considera acertada a fundamentação da sentença recorrida, argumentando, em síntese, que:
- O contrato de prestação de serviços, celebrado a 01-03-1998, estava em vigor à data da assembleia geral realizada a 30-05-2019, quando a Autora o viu denunciado, sem ter sido respeitado o pré-aviso contratualmente estipulado;
- A denúncia podia ter sido feita, por exemplo mediante email enviado até 30-04-2019, pelo que a cláusula 2.ª do contrato não é nula;
- As cláusulas inseridas no contrato em apreço não podem ser consideradas cláusulas contratuais gerais, nem o contrato em apreço viola a boa-fé;
- Ante a denúncia efetuada, a Autora tem que ser indemnizada, correspondendo a indemnização devida à remuneração relativa a metade do período de 31 meses, ou seja, 15 meses e meio, no total de 11.439 €, dos quais a Ré apenas pagou quantia de 738€.
Apreciando.
Começando por enquadrar juridicamente o contrato, importa ter presente que a Ré não é uma sociedade comercial, mas uma pessoa coletiva de utilidade pública (mais precisamente, uma associação), pelo que nos parece importante sublinhar não ser caso para aplicação direta e em bloco do Código das Sociedades Comerciais, desconsiderando o que esteja expressamente previsto no Código Civil sobre associações. Esta chamada de atenção foi, aliás, feita no referido acórdão da Relação de Évora de 21-03-2013, lembrando que Menezes Cordeiro, (no seu Tratado de Direito Civil Português, vol. I, tomo III, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 566 e 567) começa por afirmar que “não há obstáculos de princípio a tal aplicação, mas tal apenas acontecerá quando na verdade exista uma lacuna e não uma simples falta de regulamentação. Os interesses existentes em torno das associações e em torno das sociedades comerciais (designadamente, as anónimas) são diferentes e têm, à sua escala, dimensões diferentes.
A dita aplicação não é indiscriminada; deve ser feita no escrupuloso cumprimento do art.º 10.º, Cód. Civil.”
Assim, atentando no Código Civil, merece destaque o disposto no art.º 164.º, n.º 1, do CC, nos termos do qual “(A)s obrigações e a responsabilidade dos titulares dos órgãos das pessoas colectivas para com estas são definidas nos respectivos estatutos, aplicando-se, na falta de disposições estatutárias, as regras do mandato, com as necessárias adaptações”.
Por outro lado, há que convocar o Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, aprovado pela Lei n.º 140/2015, de 07-09, em particular o seu art.º 49.º, atinente às modalidades de exercício de funções, cujo n.º 1 tem o seguinte teor:
“1 - O revisor oficial de contas desempenha as funções contempladas no presente Estatuto em regime de completa independência funcional e hierárquica relativamente às empresas ou outras entidades a quem presta serviços, podendo exercer a sua atividade numa das seguintes situações:
a) A título individual;
b) Como sócio de sociedade de revisores oficiais de contas;
c) Sob contrato celebrado com um revisor oficial de contas a título individual ou com uma sociedade de revisores oficiais de contas.”
Sobre o vínculo contratual com ROC preceitua o art.º 53.º deste Estatuto que:
“1 - O revisor oficial de contas só pode exercer auditoria às contas após a celebração, no prazo máximo para aceitação da designação previsto no n.º 5 do artigo 50.º, de contrato escrito de prestação de serviços, que pode seguir o modelo fixado pela Ordem.
2 - O revisor oficial de contas só pode exercer outras funções de interesse público após a celebração de contrato escrito de prestação de serviços, que deve ocorrer no prazo máximo de 15 dias a contar da data da aceitação da proposta de prestação de serviços.
3 - No caso da auditoria às contas, o contrato é celebrado, pelo menos, aquando da designação inicial do revisor oficial de contas, da renovação do mandato e sempre que uma alteração das circunstâncias justifique a alteração dos termos do trabalho.
4 - A nulidade do contrato por inobservância de forma escrita não é oponível a terceiros de boa-fé.”
De referir ainda que a inamovibilidade se encontra expressamente prevista no art.º 54.º do Estatuto, cujo n.º 1 tem o seguinte teor: “1 - Os revisores oficiais de contas designados para o exercício da revisão legal das contas são inamovíveis antes de terminado o mandato ou, na falta de indicação deste ou de disposição contratual, por períodos de quatro anos, salvo com o seu expresso acordo, manifestado por escrito, ou verificada justa causa arguível nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais e na legislação respetiva para as demais empresas ou outras entidades.”
Admitimos que um contrato de prestação de serviços como o dos autos pode ser celebrado intuitu personae, ou seja, em razão da pessoa do contraente, sendo a mesma determinante na decisão de contratar, como sucede quando assumem relevância decisiva as qualidades pessoais e profissionais do concreto prestador do serviço para desempenhar tarefas com especial complexidade técnica e que implicam uma inerente responsabilidade civil e até criminal.
No entanto, no caso sub judice, os factos provados não sugerem que o contrato em apreço tenha sido celebrado em atenção à pessoa do Dr. AM, pois foi celebrado com a Autora, a “Sociedade de Revisores Oficiais de Contas “B & M”, a qual havia sido eleita em assembleia geral para o cargo de Fiscal Único (representada por AM), vindo a sua firma a ser alterada mais tarde (sobre a firma, cf. o art.º 121.º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas), nada constando no texto do contrato (cujas cláusulas acima reproduzimos na íntegra) no sentido da obrigatoriedade de a Autora estar representada no que concerne à execução do mesmo, por um determinado sócio (tão só que esteve representada na sua celebração), tendo o Dr. AB ficado a representá-la até que o contrato, que vinha sendo sucessivamente renovado desde 1998, veio a cessar, de facto, sem qualquer pré-aviso.
Mas vejamos então quando e de que forma é que o contrato de prestação de serviços em apreço cessou, cuidando ainda de analisar da nulidade/aplicabilidade das cláusulas em apreço (matéria que, pese embora não tenha sido apreciada na sentença recorrida, é de conhecimento oficioso – cf. art.º 5.º, n.º 3, do CPC e art.º 286.º do CC).
Atentemos primeiramente no teor da cláusula 2.ª: “O presente contrato vigora durante o mandato referido na cláusula 1ª considerando-se automaticamente renovado, pelos triénios seguintes, sem prejuízo da actualização das respectivas condições por acordo dos Outorgantes, caso não seja denunciado por algum dos Outorgantes mediante pré-aviso a formular, por meio idóneo, com a antecedência de trinta dias reportada à data da Assembleia Geral que proceda à eleição dos orgãos sociais.
Em sentido amplo, a denúncia de um contrato traduz-se numa declaração de vontade unilateral recetícia de uma das partes no sentido de que não pretende a renovação de contrato renovável (o que talvez seja mais apropriado designar por oposição à renovação) ou de contrato celebrado por tempo indeterminado (denúncia em sentido estrito).
No caso dos autos, não se discute que a “denúncia” deste contrato (que pode ser considerado de execução continuada ou duradoura) era discricionária e lícita, assistindo à Ré o direito potestativo extintivo da relação contratual duradoura. O litígio surge porque a Ré, bem vistas as coisas, não procedeu à denúncia da forma e com a antecedência previstas na cláusula 2.ª, acabando o contrato por cessar com a eleição de novo Fiscal Único.
A este propósito, diga-se que nem sequer nos parece que tenha existido uma denúncia (ou resolução) ilícita do contrato, mas sim uma revogação tácita do contrato, na falta de uma qualquer declaração unilateral por parte da Ré de denúncia, nada tendo sido comunicado nesse sentido, com a antecedência contratualmente prevista ou mesmo outra. Na verdade, a cessação do contrato apenas se dá porque veio a ser designada/eleita, na Assembleia Geral realizada a 30-05-2019, uma nova sociedade para o desempenho das mesmas funções (prática dos mesmos atos), aplicando-se o disposto nos artigos 1154.º a 1156.º e 1171.º do CC.
Com esta forma de proceder, a Ré veio a incorrer na obrigação de pagamento de uma determinada quantia (desde já se adiantando que se nos afigura tratar-se de uma penalidade, e não de uma verdadeira indemnização), cujo montante as partes quiseram de antemão fixar, conforme previsto nos termos conjugados das cláusulas 2.ª e 4.ª do contrato, independentemente da existência de quaisquer danos.
A Ré-Apelante pugna pela nulidade/inaplicabilidade de tais cláusulas, invocando, quanto à primeira, o disposto no art.º 280.º, n.º 1, do CC, nos termos do qual “(É) nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”.
Ora, o objeto do contrato em apreço nada tem de legalmente impossível, sendo incorreto afirmar, com faz a Apelante, que o único objeto do contrato era a eleição da Apelada como Fiscal Único. Na verdade, o contrato em apreço não tinha por objeto a eleição da Autora, a qual já havia sido eleita em Assembleia Geral da Ré, tendo o contrato por objeto a prestação de serviços por aquela, à Ré, mediante contrapartida monetária, nos termos aí expressamente previstos.
Nem se vê motivo para considerar impossível que a denúncia operasse nos moldes previstos na citada cláusula. Com efeito, parece-nos que as partes quiseram precisamente acautelar esse procedimento, ao preverem, na cláusula 3.ª, que o “pré-aviso de denuncia feito pelo primeiro Outorgante não constitui porém motivo impeditivo de reeleição do segundo Outorgante, pela Assembleia Geral do primeiro Outorgante, se esta assim o determinar.” Portanto, nada obstava a que fosse pelo competente órgão da Ré comunicada à Autora a denúncia do contrato e que, posteriormente, na Assembleia Geral, viesse (ou não) a ser (r)eleita para o cargo de Fiscal Único a mesma sociedade.
Quanto à invocada nulidade da cláusula 4.ª, recorde-se o seu teor: “Na falta de cumprimento do estipulado na cláusula 2ª, o Outorgante em falta indemnizará o outro no montante correspondente a pelo menos metade do período em falta até ao fim do mandato para que seria reeleito o segundo Outorgante.”
Na sentença recorrida considerou-se que se tratava de uma cláusula penal, conforme previsto no art.º 810.º, n.º 1, do CC, tendo a Ré incorrido na obrigação de indemnizar.
Parece-nos importante lembrar, a este propósito, as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume II, 3.ª edição, Coimbra Editora, págs. 74-75, em anotação ao art.º 810.º do CC, designadamente a seguinte passagem:
“O principal objectivo da cláusula penal é evitar dúvidas futuras e litígios entre as partes quanto à determinação do montante da indemnização. Muitas vezes, porém, ela é fixada com o carácter de verdadeira penalidade, ou, ao contrário, com o intuito de pôr um limite à responsabilidade, nos casos em que os danos possam atingir proporções exageradas em relação às previsões normais dos contraentes. Também pode servir para atribuir carácter patrimonial a prestações que o não têm. (…)
Apesar do carácter acessório que normalmente reveste, nada obsta a que a cláusula penal seja assumida como penalidade para a não realização de determinado acto, sem que a parte se obrigue propriamente à realização desse acto. A, dono da casa de praia, obriga-se a pagar certa quantia ao amigo, como pena ou sanção, se não lhe arrendar a casa no próximo verão, mas sem se obrigar a arrendar-lha (…) Dir-se-á, com Lindacher (cit. por Larenz), que o estabelecimento da sanção para a não realização do acto converte desde o acto em objecto dum dever jurídico, num acto de algum modo prometido. Mas não é inteiramente assim. Se a pessoa se não obrigar à realização do acto, não pode ser condenada a praticá-lo, nem muito menos poderá haver execução específica do acto”.
A problemática das diferentes finalidades ou funções das cláusulas penais é tratada na tese de doutoramento de António Joaquim de Matos Pinto Monteiro (“Cláusula penal e indemnização”), explicando este ilustre Professor a importância de proceder à distinção entre várias espécies de cláusulas penais, consoante o escopo das partes. A sua posição é assim resumida em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/419?mode=full:
“À tradicional redução da cláusula penal (tout court) a um modelo único, Pinto Monteiro contrapõe três diversas espécies de cláusulas penais: cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita; cláusula de fixação antecipada da indemnização; cláusula penal exclusivamente compulsória. O autor rejeita, em conformidade, a doutrina tradicional, que perspectiva a cláusula penal como figura unitária, com uma dupla função e uma natureza mista. Esta perspectiva, no entender de Pinto Monteiro, enferma de vários vícios, não dá resposta satisfatória a importantes problemas de regime - entre os quais o de saber se a pena é exigível ainda que o devedor prove a inexistência de danos - e não atende à diversa finalidade visada pelos contraentes ao recorrerem, em cada caso, à cláusula penal”.
Na jurisprudência, a este propósito, destacamos, a título exemplificativo, três acórdãos do STJ, disponíveis em www.dgsi.pt:
- de 12-09-2019, no proc. n.º 9018/16.0T8LSB.L1.S2, afirmando-se precisamente no respetivo sumário que:
“I. Na cláusula penal em sentido estrito não há nexo de dependência entre o valor da pena convencionada e o montante dos danos sofridos.
II. O preceituado no n.º 3 do artigo 811.º do CC é aplicável apenas na hipótese prevista no n.º 2 da mesma norma, isto é, na hipótese de as partes terem convencionado uma indemnização pelo dano excedente.
III. A redução (equitativa) prevista no artigo 812.º do CC exige que a pena convencionada seja “manifestamente excessiva”, o que significa uma desproporção substancial e uma desproporção ostensiva.
IV. Na ponderação do excesso manifesto devem ser ponderados vários índices e não apenas o da existência e da extensão dos prejuízos efectivos.”
- de 12-01-2021, no proc. n.º 1939/15.4T8CSC.L1.S1, de que citamos, pelo seu interesse, o respetivo sumário:
“I - Por cláusula penal entende-se a estipulação em que alguma das partes se obriga perante a outra, antecipadamente a realizar certa prestação para o caso de vir a não cumprir (ou cumprir retardadamente, ou cumprir de forma imperfeita) a prestação principal a que se vinculou.
II - Pese embora os art.ºs 810.º a 812.º do CC conotarem a cláusula penal com uma função puramente ressarcitória (compensatória ou moratória), nada se encontra definitivamente na lei que impeça as partes, no exercício da sua liberdade contratual, de criarem uma cláusula com uma outra função, como seja (i) a de compelir ao cumprimento através da fixação de uma pena ou sanção (cláusula penal compulsória) e que acresce à execução específica da prestação ou à indemnização pelo não cumprimento, ou (ii) a de compelir ao cumprimento através da fixação de uma obrigação de substituição da execução específica da prestação ou da indemnização pelo não cumprimento, valendo essa obrigação de substituição como a forma de satisfação do interesse do credor.
III - Para efeitos da interpretação da declaração negocial releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia.
IV - (i) Se a letra da cláusula é expressa ao qualificar como quantia indemnizatória a prestação pecuniária devida em caso de incumprimento do contrato; (ii) se o escopo subjacente à vontade de contratar se logra alcançar através dessa quantia; (iii) se a quantia determinada na estipulação coincide normalmente com o valor do dano expectável, (iv) então é de interpretar a declaração negocial no sentido de se estar perante uma cláusula penal com função meramente indemnizatória (fixação do montante da indemnização exigível), e não perante uma pena destinada a pressionar ao cumprimento.”
- e de 18-01-2022, no proc. n.º 889/18.7T8EPS.P1.S1, com abundantes referências de doutrina e jurisprudência, que aqui citamos para melhor compreensão da figura em apreço: «Como é sabido, a cláusula penal tem a natureza de cláusula acessória da chamada obrigação principal assumida no contrato pela parte devedora, tendo essa figura entre nós a sua consagração legal e disciplina nos art.ºs 810º a 812º do Código Civil (cfr., por todos, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil, Anotado, Vol. II, 2ª. ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 63”).
Como escreve Nuno Manuel Pinto Oliveira (in “Cláusulas Acessórias Ao Contrato – Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar, Cláusulas Penais – 2ª. ed., Almedina, pág. 63.”), “A cláusula penal define-se como estipulação por que o devedor promete ao seu credor uma prestação para o caso de não cumprir ou de não cumprir perfeitamente a obrigação. (Cfr. ainda o prof. Vaz Serra, “Pena Convencional”, in “BMJ, nº. 67, págs. 185 – 243”).
Nas expressivas palavras do prof. Pinto Monteiro (in “Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, pág. 86”):
“A cláusula penal, como já vimos, pressupõe a existência de uma obrigação — provindo, em regra, de contrato -, que é costume designar por obrigação principal, a fim de acentuar melhor a acessoriedade da referida cláusula, a sua dependência relativamente à obrigação cujo inadimplemento sanciona. Compreende-se que seja assim: a cláusula penal, em qualquer das suas modalidades, é uma estipulação mediante a qual um dos contraentes se obriga a efectuar uma prestação, diferente da devida, no caso de não cumprir ou de não cumprir nos seus precisos termos a obrigação. Trata-se de simples promessa a cumprir no futuro, com carácter eventual, visto que o compromisso assumido só se efectivará - a pena só será exigível - se e na medida em que o devedor não realize, por culpa sua, a prestação a que está vinculado e a que a cláusula se reporta.
(…) Ao estipular uma cláusula penal, visa-se incentivar o respeito devido à obrigação, de fonte negocial ou imposta por lei, estabelecendo, desde logo, para o efeito, a respectiva sanção, prevenindo a hipótese do seu incumprimento; ou pode ser escopo das partes, tão-só, o de fixar antecipadamente o quantum indemnizatório a que haverá lugar. Seja como for. a existência de uma obrigação surge, assim, via de regra, como pressuposto objectivo da cláusula penal. (…).”
Ainda nas palavras deste último autor (“Sobre a Cláusula Penal”, in Scientia Jurídica, Julho-Dezembro, 1993, pág. 257”) “chamamos cláusula de fixação antecipada do montante da indemnização àquela que as partes, ao estipulá-la visam, tão-só liquidar antecipadamente, de modo ne varietur, o dano futuro. (…). Numa palavra, acordando-se num montante indemnizatório predeterminado, as vantagens e os inconvenientes que daí poderão advir são partilhados pelos dois contraentes: ambos conhecem, de antemão, as consequências de um eventual inadimplemento, e um e outro se submetem ao risco de o prejuízo efectivo ser consideravelmente menor ou maior do que a soma prevista”. (…)
Por sua vez, como é também sabido, as cláusulas penais podem revestir-se em várias modalidades/espécies, e das quais, ressaltamos, no seu sentido amplo, as chamadas cláusulas penais indemnizatórias e as cláusulas penais compulsórias.
No que concerne às primeiras, e servindo-nos novamente das palavras de Nuno Manuel Pinto Oliveira (in “Ob. cit., págs. 63/65”), têm “por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de não cumprimento definitivo, de mora ou de cumprimento defeituoso”, enquanto as segundas têm “por finalidade compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o incumprimento.”
Em sentido mais concreto, e introduzindo um tertio genus, distendeu-se no Ac. do STJ de 27/09/2011 (proc. nº. 81/1998.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt) que “cláusula penal pode revestir-se de três modalidades: a) cláusula com função moratória ou compensatória, dirigida à reparação de danos mediante a fixação antecipada da indemnização em caso de não cumprimento definitivo ou de simples mora do devedor; b) a cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita, em que a sua estipulação substitui o cumprimento ou a indemnização, não acrescendo a nenhum deles, c) e cláusula penal de natureza compulsória, em que há uma pena que acresce ao cumprimento ou que acresce à indemnização pelo incumprimento, sendo a finalidade das partes, nesta última hipótese, a de pressionar o devedor a cumprir, e já não a de substituir a indemnização.”
Refira-se que, conforme vem sendo defendido pela doutrina e pela jurisprudência mais recente, as partes, à luz do princípio da liberdade contratual (art.º 405º do C. Civil) tanto podem atribuir à cláusula ou cláusulas penais fixadas no contrato várias daquelas funções, como inclusive que ela só desempenhe uma delas. (Cfr., entre outros, o prof. Pinto Monteiro, in “O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão, RLJ, Ano 146º, págs. 308/310” - obra essa à qual nos reportamos sempre que doravante a ele nos viermos a referir, sem menção em contrário -, Acs. do STJ de 27/09/2011 (proc. nº. 81/1998.C1.S1 – já acima citado – e de 27/01/2015, proc. 3938/12.9TBPRD-A.P1.S1, disponíveis em www.dgs.pt).»
Transpondo estas considerações para o caso dos autos, atentando no teor do contrato e, em particular, da sua cláusula 4.ª, parece-nos ter sido aí convencionada pelas partes, não propriamente uma cláusula penal compensatória ou indemnização (pelo que, por uma questão de rigor terminológico, não podemos acompanhar a designação feita na sentença recorrida), mas uma penalidade, de modo a que a Ré, no caso de não pretender a renovação do contrato, fosse compelida - para não ficar sujeita a tal sanção -, a proceder à respetiva “denúncia” com pré-aviso nos termos previstos na cláusula 2.ª, sendo “castigada” no caso de incumprir esse procedimento de pré-aviso.
Portanto, estamos perante uma cláusula penal em sentido estrito, com uma função tendencialmente compulsória e também sancionatória, já que estatuída pelas partes abstraindo de eventuais danos decorrentes do incumprimento do dever acessório de pré-aviso imposto pela cláusula 2.ª, ou seja, independentemente da (in)existência e do montante de tais danos (não se está com isto a afirmar a inexistência de prejuízos que possam ter resultado - numa relação de causalidade adequada - do facto de a cessação do contrato não ter sido antecipadamente comunicada, pois tal não se discute no presente processo, já que não constituem a causa de pedir da quantia peticionada).
Posto isto, coloca-se o problema da aplicação oficiosa à dita cláusula do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25-10, conforme defende a Ré-Apelante.
O art.º 1.º deste diploma legal define o respetivo âmbito de aplicação, nos seguintes termos:
“1 - As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.
2 - O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
3 - O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo.”
Ora, de modo algum o contrato em apreço é subsumível na previsão do n.º 1 deste artigo, pois nada indica, antes pelo contrário, que as cláusulas no mesmo vertidas pudessem ser subscritas ou aceites por proponentes ou destinatários indeterminados. É fora de dúvida que se trata de um contrato individualizado. E nada sugere que o seu conteúdo tenha sido previamente elaborado pela Autora e que a Ré não tenha podido influenciar o mesmo, não estando provado o que, a este propósito, esta última afirma na sua alegação recursória. Ao invés, tudo no texto do contrato aponta para que tenha sido negociado entre as partes e até para a possibilidade dessa negociação prosseguir ao longo da execução do contrato (v.g. “sem prejuízo da actualização das respectivas condições por acordo dos Outorgantes”), tanto mais que, conforme expressamente aí consta, a Ré, pessoa coletiva de utilidade pública, apenas o outorgou considerando que já tinha sido deliberado eleger a Autora, sociedade então denominada “Bernardo & Muralha”, como Fiscal Único, deliberação que antecedeu a celebração do próprio contrato.
Sempre se dirá ainda que, ante os factos provados, não se alcança de que forma é que as cláusulas em apreço possam ser contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes (cf. artigos 280.º e 294.º do CC) ou à boa-fé (artigo 762.º, n.º 2, do CC), a qual, como se lembra no citado acórdão do STJ de 12-09-2019, “não constitui uma regra / um princípio geral de validade dos contratos / cláusulas contratuais mas uma regra de conduta do devedor”.
Assim, improcedem neste particular as conclusões da alegação de recurso, impondo-se concluir pela aplicabilidade das citadas cláusulas previstas no contrato em apreço, tendo a Ré incorrido na penalidade (que não obrigação de indemnizar) aí prevista, a qual se mostra corretamente calculada na sentença, considerando que a Autora não viu renovado o contrato em apreço para um novo mandato, relativo ao triénio de 2019-2021, ou seja, para vigorar durante mais 31 meses, e à data da assembleia geral (em 31-05-2019) já haviam decorrido os primeiros 5 meses de 2019, correspondendo a penalidade ao valor da remuneração que seria devida durante metade daquele período (15 meses e meio); como apenas foi paga pela Ré a remuneração relativa a um mês, obtém-se o valor peticionado (14,5 x 738 ꞊ 10.701).

Da redução equitativa do valor da cláusula penal

Na sentença considerou-se não ser caso para reduzir o valor da cláusula penal, o que se justificou nos seguintes termos:
«A lei admite a redução dessa cláusula nos termos a que se refere o art.º 812º do C.Civil, ou seja, de acordo com a equidade e apenas quando a cláusula seja manifestamente excessiva ainda que por facto superveniente.
A este propósito veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.6.2017, no processo 95/05.0TBCTB-H.C1, com o sumário: “(...)”.
E o Acórdão do STJ datado de 19.6.2018 no processo 2042/13.7TVLSB.L1.S2: “(…)”
Ou seja, no funcionamento da cláusula penal não há que indagar se houve prejuízos em consequência do incumprimento do contrato ou qual o seu valor. A cláusula penal só é susceptível de ser reduzida pelo tribunal a pedido do devedor, de acordo com a equidade e quando for manifestamente excessiva.
No caso concreto, ponderando as condições que supra se elencaram, que trazem razão por um e outro lados a ambas as partes, e que redundaram no incumprimento, por parte da ré, do estipulado para a formalização da cessação do contrato, e a expectativa legítima da autora, não se vêm factos que permitam concluir pela “excessiva desproporcionalidade” que há-de presidir a uma redução da cláusula penal. A cláusula penal estabelecida no caso concreto, não se apresenta “manifestamente excessiva” e desproporcionada ao valor dos danos que pudesse causar. Consequentemente, a sua redução ou eliminação carece de fundamento».
A Ré-Apelante pretende que o valor da “indemnização” fixada seja reduzido de acordo com a equidade, por a considerar excessiva, invocando, para o efeito, o disposto no art.º 812.º, n.º 1, do CC, defendendo, em síntese, que:
- Face às circunstâncias do caso, tal montante deveria ter sido alvo de redução por parte do Tribunal, já que a Ré sempre agiu de boa-fé e com um grau reduzido (ou até mesmo inexistente) de culpa;
- Deverá a indemnização arbitrada ser substancialmente reduzida para um montante justo e equitativo, próximo do que poderiam ser os reais danos sofridos pela Ré com o incumprimento do pré-aviso estipulado.
A Autora-Apelada contrapõe, em síntese, que:
- O juízo de excessiva desproporcionalidade deixa grande margem de discricionariedade ao juiz, desdobrando-se o princípio central para avaliação da excessiva desproporcionalidade em 3 subprincípios: (i) princípio da adequação; (ii) princípio da exigibilidade; (iii) princípio da justa medida;
- A cláusula de indemnização inserta na prestação de serviços em causa é uma cláusula penal nos termos a que se refere o art.º 810.º do CC, ou seja, a convenção através da qual as partes fixam o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual inexecução do contrato;
- A sua necessidade em casos como o dos autos, reside na necessidade de garantir que não se verificará uma “dispensa” inopinada a meio de um mandato, sem razões plausíveis para tal e gorando uma expetativa, e visa “indemnizar a expetativa gorada” que a Autora criou na manutenção no exercício das suas funções de Fiscal Único até ao termo do triénio 2019/2021;
- Não existe desproporcionalidade no quantum, porquanto o valor da indemnização não corresponde sequer aos danos patrimoniais sofridos pela Autora.
Apreciando.
Nos termos n.º 1 do art.º 812.º do CC “(A) cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário”.
Tendo presente o que acima referimos quanto à finalidade da cláusula penal em apreço, mostra-se deslocada a argumentação da Ré-Apelante quando afirma que “(O) valor estipulado na cláusula penal considera-se manifestamente excessiva quando se traduz em valor consideravelmente superior àquele que podem ser os danos incorridos, remetendo-nos para o disposto no art.º 811.º, n.º 3, do CC, nos termos do qual “O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal”.
Na verdade, como já vimos, estamos perante uma cláusula penal em sentido estrito, pelo que a obrigação por parte da Ré de cumprir a pena nela fixada se constituiu independentemente do montante e até da existência de danos. Portanto, não se trata aqui de circunscrever a cláusula penal ao montante de quaisquer danos (efetivos) sofridos pela Autora, que não foram (nem tinham de ser) alegados e provados.
Mas também não é correto afirmar, como sugere a Autora na sua alegação de resposta, reproduzindo uma passagem da sentença, que a cláusula penal servia para prevenir uma “dispensa” inopinada a meio do contrato (isso não tem sentido, já que a “dispensa” seria no fim - e não a meio - do “renovado” período temporal de vigência previsto pelas partes).
Tão pouco se diga, como faz a Autora na sua alegação de resposta, invocando o que se refere na sentença, que a cláusula penal visava “indemnizar a expetativa gorada” (supostamente) criada pela Ré na manutenção no exercício das suas funções de Fiscal Único até ao termo do triénio 2019/2021, 
Com efeito, impõe-se um olhar atento para as circunstâncias do caso concreto, em ordem a concluir se há motivo para reduzir o montante da penalidade fixada, merecendo especial atenção os seguintes factos:
9. Para pagamento dos serviços prestados, foi estipulado que a Ré pagaria à Autora, os honorários anuais que as partes convencionassem, a qual constituiria avença anual correspondente ao período do primeiro exercício, a qual poderia ser paga em parcelas mensais, conforme fosse acordado entre as partes.
24. Na Certificação Legal da Contas dos exercícios de 2015, 2016, 2017 e 2018 o ROC AB fez constar “Opinião com reservas” (…).
25. Desde pelo menos, meados de 2018, que a administração do ITG – ora Ré – vinha transmitindo o seu desconforto com a manutenção em funções do Dr. AB.
26. O que lhe foi verbalmente comunicando nos contactos havidos.
27. Em data anterior à da assembleia geral que elegeu os novos órgãos sociais em 2019, a administração do ITG tentou contactar telefonicamente o Dr. AB para informar a sua destituição.
28. Contudo, o Dr. AB, não atendeu essa chamada e nem a devolveu.
29. A Autora nunca fez referência ao contrato de prestação de serviços nas conversas que, através do Dr. AB, manteve com a administração do ITG.
30. Sendo que o contrato junto como documento n.º 1 da PI apenas foi “descoberto”, quando se deu a nomeação do Fiscal Único para o período de 2019 / 2021.
31. Antes dessa data e apesar das conversas mantidas entre as partes, nunca tinha sido referida a existência de tal “contrato” ou a questão do pré-aviso ou da indemnização.
Uma primeira observação se impõe: sendo o prazo de pré-aviso relativamente curto, de apenas 30 dias, e reportado a uma data - de realização da assembleia geral - que nem sequer era fixa (da certidão permanente da Ré até resulta que as assembleias gerais ocorreram em março, maio, junho, julho), parece ser claramente desproporcional o valor da penalidade prevista no contrato, correspondente à remuneração de 18 meses, que, note-se, não seria devida se o pré-aviso de 30 dias tivesse sido observado.
O mais razoável seria a fixação de um prazo que tivesse alguma razão de ser face à atividade desenvolvida pela Autora e à sua remuneração: sendo essa atividade remunerada com honorários anuais e estando centrada na certificação legal de contas face a balanços reportados a 31 de dezembro do ano a que respeitavam, compreender-se-ia, por exemplo, que a indemnização fosse calculada com referência ao período de tempo que faltava para findar o ano então em curso (que, no caso, era de 7 meses).
Por outro lado, a inobservância pela Ré do dever de pré-aviso previsto na cláusula 2.ª do contrato não parece ter sido intencional ou sequer consciente, mas fruto de uma falha ao nível da comunicação interna, considerando que o contrato junto como documento n.º 1 da Petição Inicial apenas foi “descoberto”, quando se deu a nomeação do Fiscal Único para o período de 2019 / 2021, merecendo ainda especial destaque a circunstância de a Ré, apesar de não ter conhecimento das cláusulas do contrato, ter sinalizado junto do representante da Autora, o Dr. AB, a provável não renovação do contrato. Efetivamente, pelo menos a partir de meados de 2018, existiram conversas em que foi transmitindo o “desconforto” com a manutenção em funções deste ROC, o que estava claramente relacionado com os acontecimentos que motivaram o despedimento da Diretora Financeira da Ré – lembramos que o desfecho do respetivo processo judicial apenas se verificou naquela altura, com o trânsito em julgado do acórdão do STJ proferido a 23-05-2018.
Aliás, apesar de os interlocutores nessas conversas, em representação da Ré, não manifestarem ter conhecimento da existência do contrato reduzido a escrito, a Autora, representada pelo Dr. AB, tão pouco lhes lembrou então - no que até pode ser visto como o cumprimento de um dever acessório imposto pela boa fé (cf. art.º 762.º, n.º 2, do CC) - que a denúncia do contrato sempre haveria de ser efetuada com a antecedência de 30 dias reportada à data da Assembleia Geral a realizar para eleição dos órgãos sociais, assembleia na qual aquele esteve presente, sabendo pois quando iria ter lugar.
Ora, ante a existência de conversas, em meados de 2018, em que a Ré transmitiu ao Dr. AB o seu desconforto com a manutenção em funções deste representante da Autora, não nos parece forçoso ou sequer normal que existisse uma expetativa de renovação do contrato em apreço, sendo tal atuação da Ré reveladora de uma séria probabilidade de não vir a acontecer a (re)eleição da Autora para o triénio seguinte (de 2019-2021), o que a deveria ter deixado de “sobreaviso” a esse respeito.
Portanto, a Autora podia ter antecipado como provável que, na próxima Assembleia Geral, já não viria a ser eleita para o cargo de Fiscal Único, por existirem indicadores claros de uma quebra da confiança exigível em funções desta natureza. Se a Autora não percebeu isso ou não o quis ver esclarecido, terá sido devido à forma como se comportou o seu representante e interlocutor, Dr. AB, sendo certo que se tivesse sido possível contactá-lo e/ou se tivesse avaliado corretamente a situação existente e os sinais claros que estavam a ser dados, aquela até teria podido (se é que não o fez) preparar-se, com mais tempo, para a não renovação do contrato em apreço, porventura procurando novos clientes para compensar a perda da Ré como sua cliente.
Tudo ponderado, tendo presente todo o contexto fáctico descrito (em particular os factos provados referidos em 25, 26, 29, 30 e 31), não podemos deixar de entender que, com a penalidade imposta, a Autora, acaba por retirar um benefício substancial muito exagerado de uma falta “menor” da Ré, sendo manifestamente excessiva a “indemnização” fixada, justificando-se, ao abrigo do disposto no art.º 812.º, n.º 1, do CC, reduzir equitativamente o valor dessa penalidade, reputando-se adequado que o seja na proporção de 1/3, obtendo-se assim, descontando o valor já pago (738 €), a quantia de 3.075 € (738 x 15,5 ꞊ 11.439 : 3  ꞊ 3.813 – 738  ꞊ 3.075).
Destarte, procedem em parte as conclusões da alegação do recurso, merecendo o recurso provimento parcial.

Vencidas ambas as partes, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais, da ação e do recurso, em ambas as instâncias na proporção do decaimento, que se fixa em 71% e 29% para, respetivamente, a Autora-Apelada e a Ré-Apelante (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que ora se substitui, decidindo julgar parcialmente procedente a ação e, consequentemente, condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 3.075€ (três mil e setenta e cinco euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 30 de maio de 2019 até integral e efetivo pagamento, absolvendo-a do mais peticionado.
Mais se decide condenar a Autora-Apelada e a Ré-Apelante no pagamento das custas da ação e do recurso, na proporção de 71% a primeira e 29% a segunda.

D.N.

Lisboa, 24-11-2022
Laurinda Gemas
António Moreira
Carlos Castelo Branco