Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
827/2005-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
COMITENTE
COMISSÁRIO
DANOS PATRIMONIAIS
RESPONSABILIDADE
CULPA PRESUMIDA DO CONDUTOR
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se aleguem e provem factos que tipifiquem uma relação de comissão, relação que não assenta no simples facto de alguém conduzir um veículo por “conta de outrem” ou “sob a direcção e interesse de outrem”, mas antes numa relação de dependência entre o comitente e o comissário, em que este actue mediante ordens ou instruções daquele.
II - Não se tendo provado que o condutor do veículo agia por conta do proprietário e mediante ordens ou instruções daquele não se pode concluir que o condutor era comissário e, assim, a presunção de culpa do n.º 3 do artigo 503º tem necessariamente de se afastar.

III - Afastada a culpa presumida e não permitindo os factos considerar verificada a culpa efectiva do condutor do veículo, há que recorrer ao regime da responsabilidade pelo risco, tal como a define o artigo 506º do Código Civil, como fundamento legal do direito à indemnização invocado pelo lesado deste acidente.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.

No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, A intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra a Ré Companhia de Seguros, pedindo a condenação desta a pagar uma indemnização não inferior a Esc.: 6.201.299$00, acrescida dos juros legais, invocando, em síntese, que da ocorrência de um acidente de viação da responsabilidade do segurado da Ré, resultaram danos atinentes ao custo do reboque do seu veículo, à imobilização do mesmo durante a sua reparação e a lucros cessantes decorrentes da impossibilidade de cumprir um contrato de fornecimento e transporte.

Citada a Ré, veio esta requerer o chamamento à autoria do segurado, o qual foi admitido e veio contestar pedindo a sua absolvição do pedido, alegando, em síntese, não existir nexo de causalidade entre os danos alegados e o acidente de viação que serve de causa de pedir à presente acção.

O Autor replicou.

Prosseguiram os autos os seus trâmites, sendo proferido despacho saneador e elaborada a especificação e a base instrutória e, por fim procedeu-se a audiência de discussão e julgamento sendo depois proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando a R. seguradora em conformidade.

Inconformado com a decisão, veio o A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

(…)

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde foram colhidos os legais vistos, pelo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.

A questão a resolver é a de saber a indemnização devida ao apelante deve ser fixada com base na responsabilidade pela culpa como aquele defende ou se com base na responsabilidade no risco, como se entendeu na decisão recorrida.

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II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.

Consideram-se provados os seguintes factos:

(…)

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III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.

 Estabelece o artigo 503º, n.º 3 (1ª parte) do Código Civil que “aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte”.

A previsão citada faz recair sobre o condutor por conta de outrem uma presunção de culpa pelos danos acusados no exercício da condução de veículos. E como se definiu no Assento do STJ de 14/04/83 (hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência) aquele normativo estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo, por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular ou titulares do direito à indemnização.

Porém, como também tem sido entendido com certa uniformidade na jurisprudência, só a existência de uma relação de comissão faz presumir a culpa do condutor, sendo certo que essa relação de comissão tem de ser encontrada fora de aplicação do artigo 503º n.º 1, pois as expressões aí referidas – “direcção efectiva” e “interesse próprio” - são apenas elementos balizadores dessa norma, ou seja, somente dizem respeito à responsabilidade pelo risco e apenas servem para determinar esta e não a responsabilidade por culpa, mesmo que presumida.

Convém, a propósito citar o Assento do STJ de 20-10-94 - que tem força obrigatória geral, no que respeita à uniformização de jurisprudência (face ao estabelecido no art. 732º- A do CPC) -  que veio estabelecer que "o dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se aleguem e provem factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500º n.º 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo"[1].

Sucede que a verificação de tal relação de comissão, não assenta no simples facto de alguém conduzir um veículo por “conta de outrem” ou “sob a direcção e interesse de outrem”, pois que, como se referiu,  as expressões “direcção efectiva” e “interesse próprio” constantes do art. 503º, n.º 1 são tão somente elementos balizadores dessa norma, ou seja, só dizem respeito à responsabilidade pelo risco e só servem para determinar esta e não a responsabilidade por culpa, ainda que presumida que deverá aferir-se através de factos tipificadores alegados e provados pelo lesado. A existência da relação de comissão, por isso, não se basta com a mera constatação de o proprietário e o condutor do veículo serem pessoas diferentes e este o conduzir “com conhecimento e autorização daquele” ou “sob o interesse e direcção daquele".

Como bem se defendeu no Ac do Porto de 8.10.2002 o art. 503º, n.º 3 do Código Civil, estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, isto é, do comissário, presunção valida mesmo entre ele e os titulares do direito à indemnização. Mas o condutor de um veículo só deve ser considerado comissário quando tenha sido encarregado de uma comissão, traduzindo-se esta na realização de actos de carácter material ou jurídico e se integram numa tarefa ou função confiada a uma pessoa diversa do interessado. E uma comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, agindo este mediante ordens ou instruções daquele. Não se tendo provado que o condutor do veículo agia por conta do proprietário e mediante ordens ou instruções deste não se pode concluir que o condutor era comissário e, assim, a presunção de culpa do n.º 3 do artigo 503º tem necessariamente de se afastar[2].

Saliente-se que para se concluir pela existência de uma situação de comissão torna-se necessário que se alegue e que se apure factualidade que a caracterize como tal, pois que, sendo de presumir a coincidência entre a qualidade de proprietário e a direcção efectiva de um veículo, não é legítimo e nem se pode concluir que o terceiro que conduz um veículo automóvel o faz, necessariamente, como comissário do seu dono, cabendo ao lesado a demonstração dessa relação de comissão.

Note-se ainda que, conforme Parecer do Professor A. Varela, "Nenhum fundamento existe para distinguir, nos seus efeitos, entre a culpa (do comissário) provada por presunção legal, nos termos da primeira parte do n.º 3 do artigo 503º do Código Civil, e a culpa demonstrada por qualquer outro meio de prova". E se "havendo apenas culpa presumida, o comissário responde por todos os danos causados aos lesados, sem qualquer limitação fundada no risco e apenas podendo beneficiar da redução prevista no artigo 494 do Código Civil, e também o comitente responde por todos os danos causados no acidente"[3].  No mesmo sentido se defendeu no Ac. da Relação do Porto de 10.12.98 que “a responsabilidade do condutor comissário pelos danos causados, quando não ilidiu a presunção legal da sua culpa, repercute-se no proprietário do veículo”[4].

Ora, no caso em recurso, alega o apelante que se está perante uma relação de comissariado, deste modo existindo uma presunção de culpa, não ilidida pela Ré nem pelo chamado, pelo que o tribunal “a quo” julgou mal, por isso, a acção ao considerar que se estaria perante uma responsabilidade pelo risco e ao fazer a aplicação da disposições contidas no art. 508º CC, devendo, assim, ser substituída por outra a condenar no pedido.

Sucede, porém, que na matéria de facto considerada provada não releva factualismo que vá ao encontro do defendido pelo apelante, pois que, na parte que interessa, apenas se provou que o veículo, causador dos danos, de matrícula XN-90-57, pertencente a Mário Rui Marino Crispim, era conduzido na altura do acidente sob a direcção e no interesse do seu dono.

Não decorre, com efeito, dos factos que o condutor daquele veículo, agisse como comissário, ou seja, mediante ordens ou instruções daquele, numa relação de subordinação ou dependência. E só em virtude desta circunstância que se compreende que o comitente responda independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia, também, a obrigação de indemnizar e desde que o facto danoso tenha sido praticado, por ele, no exercício da função que lhe foi confiada.

Acresce que se é possível, através de presunções naturais, concluir que o proprietário tem a direcção efectiva do veículo e que a utilização deste se faz no seu próprio interesse, por ser normal e corrente que assim seja, já não é lícito partir daí, em segunda presunção, para a conclusão de que o terceiro que o conduz é comissário daquele[5].

Não se verifica, assim, uma relação de comissão, no caso dos autos, em que apenas se provou que o veículo era conduzido sob a direcção e no interesse do seu dono.

Afastada a culpa presumida e não permitindo os factos considerar verificada a culpa efectiva do condutor do veículo, há que recorrer ao regime da responsabilidade pelo risco, tal como a define o artigo 506º do Código Civil, como fundamento legal do direito à indemnização invocado pelo lesado deste acidente, tal como se fez na sentença recorrida, que, entende-se, efectuou correcta aplicação da lei.

Refira-se, no entanto, que visando a uniformização de jurisprudência, o Acórdão do STJ de 25-03-2004 consagrou a interpretação de que “o segmento do art. 508º, nº 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo art. 6º do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Dec. Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro”[6].

Assim, embora a obrigação de indemnizar assente na responsabilidade objectiva, o montante da indemnização não está sujeito a qualquer montante máximo, a partir da entrada em vigor do DL 3/96.

Mas porque o acidente dos autos se verificou em 18.06.1994, não pode ser aplicado ao caso dos autos o novo regime.

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.

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IV.  DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento à apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2005.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

MARIA MANUELA GOMES

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[1] In BMJ 456/19.
[2] Acessível em http://www.dgsi.pt/trp.
[3] in "Boletim da Ordem dos Advogados", Janeiro de 1984)
[4] Acessível em http://www.dgsi.pt/trp.
[5] Vd. Ac. da Rp de 13.02.2001, acessível em http://www.dgsi.pt/trp. 
[6] Acessível em http://www.dgsi.pt/stj.