Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1216/22.4T9AMD.L1-9
Relator: RENATA WHYTTON DA TERRA
Descritores: PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
SILÊNCIO DO ARGUIDO
NE BIS IN IDEM
CARTA DE CONDUÇÃO
PERDA DE PONTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Não viola o princípio ne bis in idem, nem o princípio da proporcionalidade, a cassação de um título de condução, como estabelecido no art.º 148º, n.º 4, al. c) do Código da Estrada, em consequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos a esse título de condução pela prática de contraordenações estradais.
II- Não se trata de valorar novamente os mesmos factos considerados nas contraordenações estradais anteriores, mas sim de partir do facto incontestável de que o arguido perdeu todos os pontos atribuídos no seu título de condução, de acordo com o art.º 121º-A do mesmo código e apurar quais as consequências. A consequência necessária deste facto é a cassação do título de condução.
III- Não viola o art.º 32º, n.º 1 e 10 da CRP (violação do direito de defesa), a interpretação de que o silêncio do arguido - quando notificado para se pronunciar por carta registada com prova de recepção e com a advertência expressa de que o silêncio será tido como aceitação - corresponde a não oposição a que a decisão do Tribunal se realize por despacho, sem realização de audiência de julgamento, nos termos do disposto no art.º 64º, n.º 2 do DL 433/82, de 27.10.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório:
No âmbito do Processo de cassação n.º 479/2021 foi decidido:
“Face ao que antecede, e verificados que estão os pressupostos da cassação nos termos da alínea c) do n. º 4 e 10 do artigo 148. º do Código da Estrada, determino a cassação do título de condução n. º ... pertencente a A.”

Notificado da decisão administrativa, o arguido A apresentou impugnação judicial, ao abrigo do disposto nos art.ºs 59.º e seguintes do DL 433/82, de 27.10, pugnando:
- pela nulidade da decisão final de cassação por falta de elementos essenciais e a que a lei obriga; ou
- pela nulidade da decisão final de cassação de título de condução por a mesma assentar numa norma ferida de inconstitucionalidade, uma vez que é retirado ao impugnante um direito regularmente adquirido;

A impugnação judicial foi admitida, por despacho de 13.05.2022, proferido no âmbito do Processo de Recurso de Contraordenação n.º 1216/22.4T9AMD, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oestes, Juízo Local Criminal da Amadora, Juiz 2.
Foi proferida decisão por despacho face à não oposição dos intervenientes, nos termos do art. 64º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro.
Foi proferida decisão final datada de 14.7.2022 com o seguinte teor:
“Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto e, em consequência, mantém-se na íntegra a decisão administrativa recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC´s.”
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Desta decisão veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 123 a 132 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem como objeto a Sentença proferida pela Meritíssima Juiz a quo.
II. Inicia o Douto Tribunal a quo: “Decidido que os autos contêm todos os elementos necessários ao conhecimento do recurso e prolação de decisão por despacho e uma vez que, devidamente notificados para declararem a sua oposição a que a decisão se efectuasse por mero despacho, nos termos do artigo 64º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10, o recorrente nada disse e o Ministério Público afirmou a sua não oposição, nada obsta à prolação de decisão da causa de imediato, sem recurso a audiência de julgamento.”
III. Considera a Sentença ora recorrida que “por força da subtracção sucessiva de pontos por cada condenação em sanção de inibição de conduzir ao recorrente, este ficou com zero pontos, sendo certo que não impugnou as decisões condenatórias relativamente a tais sanções e que as mesmas se mostram transitadas em julgado.”
IV. O Arguido foi julgado e condenado nos autos em epígrafe na cassação do título de condução, por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148.º do Código da Estrada.
V. No final de cada período de três anos sem que exista registo de contra- ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ultrapassar o limite máximo de quinze pontos, nos termos do nº 2 do artigo 12l.º-A.
VI. A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do nº 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
VII. Para efeitos do disposto no artigo 149.º, n.º 1, alínea c), o Ministério Público comunica à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária os despachos de arquivamento de inquéritos que sejam proferidos nos termos do nº 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o nº 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal.
VIII. Através da entrada em vigor da Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto de 2015, em 01 de Junho de 2016, o legislador introduziu no ordenamento jurídico rodoviário português o denominado sistema de carta de condução por pontos.
IX. Anote-se que o artigo 148.º, n.º 4 do Código da Estrada descrimina as consequências resultantes da perda de pontos, esclarecendo a alínea c) que a perda total de pontos importa a cassação do título de condução.
X. Todavia, cumpre anotar que o artigo 148.º do Código da Estrada não estabelece apenas em que circunstâncias é que o condutor perde pontos, e quantos.
XI. Pelo contrário, o aludido preceito legal prevê igualmente em que casos é que são atribuídos pontos ao condutor – sendo esta uma concretização do disposto no artigo 121.º-A, n.ºs 2 e 3 do Código da Estrada.
XII. Aqui chegados, cumpre recordar que o Recorrente foi condenado pela prática de quatro contraordenações graves e uma muito grave, determinando a perda da totalidade dos pontos – cf. artigo 148.º, n.º 2 do Código da Estrada.
XIII. Porém, verifica-se que os factos pelos quais o Recorrente foi condenado ocorreram num muito curto espaço temporal, não tendo, por conseguinte, operado qualquer sistema de ganho de pontos que contrabalançasse aquela perda, conduzindo, assim, à perda total de pontos e à consequente cassação da carta de condução.
XIV. Por este motivo, o Tribunal a quo ao aplicar a norma 148.º do Código da Estrada, viola a Constituição da República Portuguesa.
XV. Viola o ne bis in idem (previsto no art. 29.º, n.º 5, da CRP e consagrado no art. 54.º da CAAS como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais) a presente sentença.
XVI. Pois, o arguido cumpriu as penas aplicadas no âmbito dos processos citados na sentença a quo.
XVII. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.
XVIII. Com efeito como pressuposto material da aplicação da pena acessória deveria averiguar-se da especial censurabilidade do condutor no caso concreto.
XIX. Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.
XX. Ora, em todos os acontecimentos, verifica-se a omissão do elemento subjetivo, isto é, inexistiu qualquer intenção do respondente de agir dolosamente, em violação das disposições penais
XXI. Viola também o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
XXII. A sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena).
XXIII. Sem conceder, sempre se defende que se deve ter por excessiva a pena de aplicada, uma vez que o Arguido não tem antecedentes criminais, é pessoa bem-educada, bem considerada e com estima dos familiares, amigos e colegas, pacífica e completamente cumpridora dos seus deveres em sociedade, pelo que atendendo à factualidade resultante da produção de prova, às circunstâncias e ao facto de ser trabalhador e precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional.
XXIV. Acresce que, veio o Tribunal a quo notificar, em 13.05.2022, o arguido e o Ministério Público para declararem e se opõem a que seja proferida decisão por mero despacho, sem necessidade de julgamento.
XXV. Realizada a notificação, veio o Ministério Público, expressamente, manifestar a sua não oposição à decisão por mero despacho, tendo-se o arguido remetido ao silêncio.
XXVI. Entendeu o Tribunal a quo face à não oposição Ministério Público e ao silêncio do arguido decidir por despacho, precisamente o, ora, em crise.
XXVII. Deste modo, mostra-se o recorrente prejudicado nos seus direitos e garantias de defesa com a proferição da Douta decisão mediante despacho e interpretação do seu silêncio sobre a oposição a tal forma de decisão como de assentimento e não oposição a tal possibilidade.
XXVIII. O que se tem por disforme à Constituição, por violação dos n.ºs 1 e 10 do art.º 32.º e consequente privação do arguido do direito constitucional ao contraditório, a interpretação do art.º 64º n.º 2 do DL 433/82 no sentido de o mesmo colocar sobre o arguido um ónus de expressamente se opor à decisão por mero despacho e interpretar o seu silêncio como uma não oposição.
XXIX. A douta decisão recorrida assenta no que se julga uma falácia argumentativa, sem que tenha sido efetuada qualquer prova da sua culpabilidade, pois a uma omissão de produção de prova juntou-se uma deliberada ausência de audição, nada autorizando que se presuma por provado.
XXX. Não poderá ser assacada qualquer infração ao arguido, não tendo o mesmo qualquer culpa pelo que, atenta a inexistência da mesma e na senda do princípio nulla poena sine culpa, deverá o presente processo de contra- ordenação ser arquivado contra si por inexistência de fundamento legal.
XXXI. A dita violação do direito de defesa, porque redunda na preterição da realização da audiência de julgamento - diligência essencial para a descoberta da verdade -, consubstancia uma nulidade processual, enquadrável na al. d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP.
XXXII. Deste modo, se requer, mui respeitosamente a V. Exas., a admissão e procedência do presente recurso, com a consequente revogação da douta decisão proferida, atentos os vícios de que o mesmo padece (preterição do exercício do contraditório, violação de princípios constitucionais e omissão quanto a factos essenciais, designadamente que estabelecem o elemento subjetivo (negligência)) e absolvição do recorrente.
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE DOUTAMENTE SERÃO SUPRIDOS POR V. EXAS., DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA E ANULADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, DECIDINDO-SE QUE: “O ORA ARGUIDO/RECORRENTE CUMPRIU AS INJUNÇÕES QUE LHE FORAM COMETIDAS, SENDO QUE O PROCESSO DEVERIA EXISTINDO UMA CLARA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM, ARTIGO 29.º, Nº 5 E 18.º, N.º 2 DA CRP, ANULANDO-SE O DESPACHO DE RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO E, CONSEQUENTEMENTE, O JULGAMENTO E A SENTENÇA, DEVENDO AQUELE DESPACHO SER SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE, APLICANDO O NE BIS IN IDEM, REJEITE A ACUSAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO”, PROFERINDO-SE UMA ADOMESTAÇÃO COMO SUFICIENTE PARA REPROVAR A CONDUTA DO RECORRENTE, QUE FICARÁ CIENTE DO CARÁTER PUNITIVO DA MESMA, OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, ATENUANDO-SE SUBSTANCIALMENTE A COIMA APLICADA PARA O MÍNIMO LEGAL COMPORTÁVEL E PROPORCIONAL OU, SEM CONCEDER, ABSOLVENDO-SE MESMO O RECORRENTE DA PRÁTICA DA ALEGADA INFRAÇÃO, FAZENDO V. EXAS. SE ASSIM NÃO SE CONSIDERAR, SEMPRE SE
DEVERÁ CONSIDERAR QUE: DEVERÁ AO ARGUIDO, AQUI, RECORRENTE, SER APLICADA A OPORTUNIDADE DE FREQUÊNCIA DE FORMAÇÃO SOBRE AS REGRAS ESTRADAIS, OU AINDA A RETIRADA DE TÍTULO DE CONDUÇÃO COM POSSIBILIDADE IMEDIATA DE OBTER NOVO TÍTULO DE CONDUÇÃO.
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ A DOUTA SENTENÇA SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE SE COADUNE COM A PRETENSÃO EXPOSTA, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!
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Ao recurso apresentado, veio o Ministério Público responder, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 134 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos:
“(…) O ora recorrente pugna pela “(…) revogação da douta decisão proferida, atentos os vícios de que o mesmo padece (preterição do exercício do contraditório, violação de princípios constitucionais e omissão quanto a factos essenciais, designadamente que estabelecem o elemento subjetivo (negligência) e absolvição do recorrente.” ---
Cremos que não assiste razão ao arguido ora recorrente, na medida em que a sentença proferida pelo Tribunal a quo, não merece qualquer reparo, não se mostra violado qualquer preceito legal, concretamente, aqueles que o arguido vem referir, e fez correcta valoração da prova, e correcta aplicação do direito. ---
Nada há a censurar, devendo a decisão recorrida ser integralmente confirmada, e ser julgado improcedente o recurso, com o que será feita JUSTIÇA. --"
***
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a fls. 138 e 139 dos autos, pugna pela manifesta improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. PPenal, nada veio a ser acrescentado.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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Fundamentação:
  São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal a quo:
“a) O recorrente é titular da carta de condução nº ....
b) Do Registo de Infrações de Condutor referente ao recorrente constam os seguintes averbamentos:
- Processo de contraordenação nº 388174684:
a) Infração prevista e punida nos termos dos artigos 81º nº 1 e 81º nº 6 alínea b) do Código da Estrada, qualificada como contraordenação muito grave, de acordo com o previsto na alínea j) do artigo 146º do Código da Estrada, praticada em 03/06/2018;
b) Decisão proferida em 15/04/2020, notificada ao arguido em 30/06/2020 e tornada definitiva em 21/07/2020;
c) Sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 150 dias;
d) Perda de cinco pontos, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.

- Processo de contraordenação nº 128308656:
a) Infração prevista e punida nos termos dos artigos 27º nº 1 e 27º nº 2 alínea a) 2º parágrafo do Código da Estrada, qualificada como contraordenação grave, de acordo com o previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 145º do Código da Estrada, praticada em 06/04/2018;
b) Decisão proferida em 20/03/2019, notificada ao arguido em 10/04/2019 e tornada definitiva em 06/05/2019;
c) Sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias;
d) Perda de dois pontos, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.

- Processo de contraordenação nº 400493721:
a) Infração prevista e punida nos termos do artigo 28º nº 1 alínea b) e artigo 28º nº 5 conjugado com o artigo 27º nº 2 alínea a) 2º parágrafo do Código da Estrada, qualificada como contraordenação grave, de acordo com o previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 145º do Código da Estrada, praticada em 29/08/2017;
b) Decisão proferida em 21/02/2019, notificada ao arguido em 01/04/2019 e tornada definitiva em 23/04/2019;
c) Sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias;
d) Perda de dois pontos, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.

- Processo de contraordenação nº 400387190:
a) Infração prevista e punida nos termos do artigo 28º nº 1 alínea b) e artigo 28º nº 5 conjugado com o artigo 27º nº 2 alínea a) 2º parágrafo do Código da Estrada, qualificada como contraordenação grave, de acordo com o previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 145º do Código da Estrada, praticada em 12/08/2017;
b) Decisão proferida em 21/02/2019, notificada ao arguido em 10/04/2019 e tornada definitiva em 06/05/2019;
c) Sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias;
d) Perda de dois pontos, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.

- Processo de contraordenação nº 127093281:
a) Infração prevista e punida nos termos dos artigos 27º nº 1 e 27º nº 2 alínea a) 2º parágrafo do Código da Estrada, qualificada como contraordenação grave, de acordo com o previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 145º do Código da Estrada, praticada em 27/03/2017;
b) Decisão proferida em 21/02/2019, notificada ao arguido em 25/05/2019 e tornada definitiva em 17/06/2019;
c) Sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias;
d) Perda de dois pontos, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 148º do Código da Estrada.
2.2. Factos não provados
Não há.”

É a seguinte a motivação da decisão sobre a matéria de facto do Tribunal a quo:
“O Tribunal formou a sua convicção com base no teor dos autos de contra ordenação, RIC, notificações e decisões administrativas juntas aos autos.”
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Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º do CPPenal, aplicável por força do disposto no art.º 74.º, n.º 4, do RGCO e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).

Questões que cumpre apreciar:

- violação do princípio ne bis in idem e do principio da proporcionalidade, princípios constitucionais plasmados nos art.ºs 29, n.º 5 e 18º, n.º 2 da CRP, por o recorrente já ter cumprido as sanções aplicadas no âmbito dos respectivos processos contraordenacionais, não podendo ser valorados novamente os mesmos factos para efeitos de cassação da carta de condução;

- viola o art. 32º, n.º 1 e 10 da CRP (violação do direito de defesa), a interpretação de que o silêncio do arguido corresponde a não oposição a que a decisão do Tribunal se realize por despacho, sem realização de audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 64º, n.º 2 do DL 433/82, de 27.10?
           
Cumpre apreciar.
Previamente, impõe-se definir quais são os poderes do tribunal de recurso em matéria contraordenacional e estabelecer a diferença entre direito penal e direito contraordenacional.
De acordo com o disposto no art. 74º, n.º 4, do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), o recurso para a 2ª instância é restrito à matéria de direito.
Neste tipo de processo uma questão relativa a matéria de direito e conexionada com o objeto processual, ainda que não tenha sido debatida em 1.ª instância, poderá ser alegada e decidida em sede de recurso para a 2.ª instância.
No processo contraordenacional, em sede de recurso, o Tribunal de 2.ª instância pode decidir sobre questões de direito, ainda que estas não tenham sido objeto da impugnação judicial, competindo-lhe também apreciar os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e as nulidades (não sanadas) nos termos do art.º 410.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal - Acórdão de fixação de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 23 de maio de 2019.
  Eduardo Correia (in Direito Criminal, I, 1963, Reimpressão com colaboração de Figueiredo Dias, Almedina, 1968/1971, no § 2.º, ponto 8 - O ilícito criminal e o ilícito administrativo, págs. 20 a 34) ao abordar o problema dos termos em que deve fazer-se a distinção entre o direito criminal e o direito administrativo, refere que entre a simples indemnização civil de perdas e danos por um lado, e a pena criminal por outro, existe um grupo de sanções específicas que correspondem a um tipo específico de ilícito: o ilícito criminal administrativo, situado entre o ilícito civil e o ilícito criminal de justiça. Afirma o Autor referido que o traço principal da caracterização do direito criminal administrativo reside, de um ponto de vista material, no específico conteúdo do ilícito.  Os bens jurídicos não são aqui, como no direito criminal de justiça, valores ou interesses fundamentais da vida comunitária ou da personalidade ética do homem, mas simples valores de criação ou manutenção de uma certa ordem social e por consequência mais ou menos indiferentes à ordem moral.
Figueiredo Dias em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Fase I, Centro de Estudos Judiciários, 1983, págs. 315 a 336, e republicado na colectânea Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, volume I, Problemas gerais, págs. 19 a 33, chama a atenção para dois pontos.
A autonomia do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal é antes de tudo uma autonomia dogmática, como se revela nos 16 primeiros artigos do Decreto-lei n.º 433/82, chamando o Autor a atenção para o que dispõe o artigo 32.º, de acordo com o qual as normas do Código Penal (de 1982) constituem direito subsidiário relativamente ao direito substantivo das contra-ordenações; o que bem se compreende, aliás, considerando que o direito das contra-ordenações, se não é direito penal, é em todo o caso direito sancionatório de carácter punitivo (tal como o é, v. g., o direito disciplinar).
Posto isto avançaremos para a análise das questões directamente colocadas nas alegações de recurso.
1.ª questão
- violação do princípio ne bis in idem e do principio da proporcionalidade, dos princípios constitucionais plasmados nos arts. 29, n.º 5 e 18º, n.º 2 da CRP, por o recorrente já ter cumprido as sanções aplicadas no âmbito dos respectivos processos contraordenacionais, não podendo ser valorados novamente os mesmos factos para efeitos de cassação da carta de condução;

Cumpre desde logo esclarecer que as alegações de recurso quer em sede de motivação, quer em sede de conclusões, são extremamente confusas e pouco incisivas, defendendo até o MºPº a apreciação por decisão sumária, por entender ser o recurso manifestamente improcedente.
Quanto à violação do principio ne bis in idem -
É o direito penal que define as condutas delituosas de acordo com o princípio da legalidade (artigo 1º do Código Penal).
A ordem jurídica penal tem a função substancial de selecionar os comportamentos (e omissões) humanos mais graves e prejudiciais, suscetíveis de prejudicar valores fundamentais à convivência em sociedade, descrevendo aquelas infrações penais (tipificação) e concretizando as sanções correspondentes.
Nos estados de direito democrático, o direito penal caracteriza-se, designadamente, pelo princípio da intervenção mínima, enquanto as respetivas normas adjetivas primam pela garantia máxima dos direitos individuais fundamentais, defendendo, deste modo, os direitos humanos positivados nas Constituições e no direito internacional.
Uma dessas garantias é consubstanciada pelo princípio ne bis in idem.
Tais dicotomias, garantias e princípios têm expressão na nossa Constituição:
Artigo 29.º
(Aplicação da lei criminal)
1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
2. (…).
3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.
4. Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
6. Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

Proibindo, expressamente, que alguém possa ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o legislador constitucional consagrou, materialmente, uma verdadeira exceção dilatória – o caso julgado – conhecida sempre que tenha havido o impulso processual inicial para a abertura de um novo processo penal que tenha por objeto um crime que já tenha sido julgado por sentença transitada em julgado.
A verificação da existência de caso julgado implica a extinção do processo penal novo iniciado após a formação daquele, constituindo, assim, uma causa de extinção da ação penal indevida.
Aplicando mutatis mutandis tais princípios às contraordenações, dificilmente se percebe o que o recorrente pretende.
Com efeito, neste processo está unicamente em causa a cassação do título de condução e não as cinco contraordenações em que houve lugar à condenação do arguido em coima, em sanção acessória de inibição de conduzir e à perda de pontos. Os factos relativos a cada uma das contraordenações não estão já aqui em consideração, uma vez que cada uma das cinco decisões transitou em julgado.
Está aqui em causa o disposto no art.º 148º, n.º 4, al. c) do Código da Estrada:
“4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.”
E nos termos do n.º 10 do mesmo artigo:
“10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.”
Ou seja, é iniciado um processo autónomo quando o condutor perdeu a totalidade dos pontos do seu título de condução.
Foi o que aconteceu in casu. A ao incorrer na prática de cinco contraordenações estradais, acabou por perder a totalidade dos pontos atribuídos ao seu título de condução.  A perda da totalidade dos pontos atribuídos tem como consequência a cassação do título de condução, como estabelece o n.º 4, al. c) do art. 148º do Código da Estrada.
Não se trata, pois, de valorar novamente os mesmos factos considerados nas contraordenações estradais anteriores, mas sim de partir do facto incontestável de que o arguido perdeu todos os pontos atribuídos no seu título de condução, de acordo com o art. 121º-A do mesmo código e apurar quais as consequências. A consequência necessária deste facto é a cassação do título de condução.
Não há manifestamente repetição de factos ou de decisão relativamente ao arguido e à cassação do seu título de condução.
Invoca ainda o recorrente o disposto no art.º 18.º, n.º 2, da CRP, relativamente ao princípio da proporcionalidade e se a norma do art.º 148º, n.º 4, al. c) do Código da Estrada, que prevê a cassação do título de condução, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade.
O recorrente funda o seu juízo de inconstitucionalidade numa alegada violação do princípio da proporcionalidade.
Este princípio divide-se em três subprincípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito).
Como vem sendo entendido, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão.
A adequação significa que a providência se mostra adequada ao objectivo almejado, se destina ao fim da norma e não a outro.
A racionalidade implica justa medida; que o órgão competente proceda a uma correcta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos), que a providência não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido.

O Tribunal Constitucional tem entendido que, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade na definição de crimes e na fixação de penas, apenas sendo de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, n.º 2 da Constituição, em casos de inquestionável e evidente excesso, essa liberdade ainda será mais ampla, quando não se está perante matéria criminal, mas apenas de mera ordenação social.
No acórdão nº 132/2011, disponível em www.tribunalconstitucional.pt., o Tribunal Constitucional esclareceu o seguinte:
“(…) Como tem este Tribunal entendido, a fixação da dosimetria sancionatória, maxime, em sede contra-ordenacional, encontra-se no âmbito de um amplo espaço de conformação do legislador, só devendo ser censuradas “as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal proíbe o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. (…) As sanções (nos ilícitos de mera ordenação social) não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais – para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social” (cfr. Acórdão n.º 574/95, disponível no mesmo sítio da internet).
Em síntese, está em causa um relevante interesse da segurança rodoviária que pretende proteger-se com a cassação do titulo de condução, não sendo o direito a conduzir um direito absoluto e a cassação não implica a perda definitiva da faculdade (“direito”) de conduzir, mas apenas a perda da habilitação e o impedimento de obter novo título durante dois anos, após o que o arguido se pode habilitar novamente a conduzir.
Neste enquadramento, não vislumbramos que a sanção estabelecida revele desproporcionalidade que justifique um juízo de inconstitucionalidade.
Nem se vê que a norma em causa seja inconstitucional.

2.ª questão
- viola o art. 32º, n.º 1 e 10 da CRP (violação do direito de defesa), a interpretação de que o silêncio do arguido corresponde a não oposição a que a decisão do Tribunal se realize por despacho, sem realização de audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 64º, n.º 2 do DL 433/82, de 27.10?

Dispõe o art.º 64º do DL 433/82, de 27.10:
Artigo 64.º
Decisão por despacho judicial
1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.
4 - Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.
5 - Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.

E por sua vez dispõe o art.º 32º n.º 1 e 10 da CRP:
Artigo 32º
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
       (…)
 10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

O despacho proferido a 13.5.2022 pelo Mmº Juiz a quo é o seguinte:
“Notifique o Recorrente e o Ministério Público para, em 10 dias, dizerem nos autos se não se opõem a que a decisão seja tomada por simples despacho, nos termos do disposto no artigo 64º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção do Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro e do Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro, e com a advertência de que, nada dizendo, o silêncio será tido como aceitação da prolação de decisão por simples despacho.”
Dos autos resulta que o recorrente foi notificado por carta registada com prova de recepção, a 23.5.2022, do teor deste despacho e nada disse.
Do requerimento de impugnação judicial apresentado verifica-se que não foi pedida a realização de qualquer diligência de prova, requerendo apenas o arguido que fosse declarada a nulidade da decisão final de cassação com dois fundamentos alternativos. Assim, o Mmº juiz a quo entendeu, e bem, que não se justificava a realização de audiência de julgamento. O MºPº não se opôs à decisão por despacho e o arguido também não, pois notificado pessoalmente para declarar se se opunha nada disse, tendo sido expressamente advertido que se nada dissesse se entendia que não se opunha a que a decisão relativa à impugnação judicial fosse tomada por despacho.
Assim, não se vislumbra minimamente em que é que foi preterido o direito de defesa do arguido ou o exercício do contraditório.
O arguido impugnou judicialmente a decisão administrativa, não requereu produção de prova, viu apreciada a sua impugnação por despacho, tal como prevê a lei ordinária e recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão proferida em 1ª instância, sendo que o seu recurso foi admitido.
Pelo exposto, improcede também nesta parte o recurso.

Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 9ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso do arguido A e em manter a decisão recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (art.ºs 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e art.ºs 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal).
Notifique (art.º 425.º, n.º 6, do CPP).

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2023
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra
Maria José Cortes
Paula de Sousa Novais Penha