Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12/17.5IDFUN.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
PLANO DE PAGAMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - A responsabilidade tributária não se confunde com a responsabilidade criminal pela conduta omissiva de entrega de prestações tributárias;
- A administração tributária (através dos seus inspectores tributários) intervém no inquérito crime como órgão de polícia criminal, dependente do Ministério Público (arts.48 e 55, do CPP);
- A concretização da notificação prevista na al.b, do nº4, do art.105, do RGIT só está dependente do andamento do inquérito crime e não de factores exteriores a ele, nomeadamente, de eventuais planos de pagamento da dívida tributária propostos pelo devedor e aceites pela AT;
- A admitir-se que a aceitação pela AT de um plano de pagamento da dívida tributária, impedia a concretização daquela notificação para o devedor pagar em 30 dias a prestação tributária em dívida acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, estaria a conferir-se à AT poderes de oportunidade quanto ao exercício do procedimento criminal, inadmissível face ao princípio da legalidade da acção penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Singular) nº12/17.5IDFUN, da Comarca da Madeira (Juízo Local Criminal do Funchal - Juiz 2), os arguidos, JE e EPA, Lda., foram acusados de três crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos arts.105°, nºs 1, 4 e 7, 6°, n° 1 e 7°, n° 3 do RGIT, aprovado pela Lei n°15/01, de 5 de Junho.

O tribunal, após julgamento, por sentença de 13Junho18, decidiu:
“...
julga-se a acusação procedente, condenando-se o arguido JE , pela autoria de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos art° 105°, n° 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.° 15/01, de 5 de Junho e pelo art° 30°, n° 2 do C. Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 7 (sete) euros, perfazendo um total de 420 (quatrocentos e vinte) euros e a arguida " EPA, Lda", pela autoria de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo art° 105°, n° 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.° 15/01, de 5 de Junho e art° 30°, n° 2 do C. Penal na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo um total de 600 (seiscentos) euros.
....”.

2. Desta decisão recorrem os arguidos JE e EPA, Lda., tendo apresentado motivações das quais extraiu as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida no processo-crime que, sob o nº12/17.5IDFUN e pelo Juízo 2 do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal, condenou os arguidos imputando-lhes os factos descritos na acusação de fls. 296 e s.s., na autoria de três crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art's 105, nºs 1, 4 e 7, 6°, nº1 e 7°, nº3 do RGIT, aprovado pela Lei nº15/01, de 5 de Junho.
2. A sentença recorrida padece do vicio da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410.° n.° 2, alínea b) do CPP);
3. A sentença recorrida deu como provado, entre outros, que:
….
4. Há que interpretar a aplicar correctamente o conceito de obrigação fiscal e o de tutela penal.
5. O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal pois que, como refere Germano Marques da Silva «O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão». Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 113.
6. Para que o mero incumprimento se transforme em crime é necessário algo mais do que este incumprimento e que só se pode traduzir na existência da violação do valor, ou bem jurídico, com base no qual a norma penal tutela.
7. No caso concreto do normativo em análise - o art.s 105, nºs 1, 4 e 7, 6°, nº1 e 7°, nº3 do RGIT, aprovado pela Lei nº15/01, de 5 de Junho - tal valor ou bem jurídico consubstancia-se no desrespeito pela relação de confiança em que assenta a relação fiscal e na circunstância de o arguido não entregar ao estado uma quantia que recebeu como mero substituto dele.
8. A conduta dos arguidos e recorrentes - dado que a quantia "retida" a titulo de IRS nem sequer foi recebida pela EPA do Fundo Social Europeu (FSE) - não violou o bem juridico protegido pela referida norma legal;
9. Apenas existe um mero incumprimento fiscal e este, por si, não tem relevância axiológico normativa que o erija em bem jurídico carente de tutela penal;
10. O crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objetivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária o que, no âmbito do IRS significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária;
11. Ou seja se esta lhe tivesse sido entregue pelo FSE e o recorrente não a entregasse à administração fiscal;
12. O pressuposto do qual se arranca, e constitui denominador comum, é o de que, se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da ação (rectius, desvalor de omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária e temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IRS efetivamente recebido do FSE.
13. O que comprovada e manifestamente não foi o caso nem a conduta dos ora recorrentes;
14. Pelo contrário, resulta provado que "nos três períodos em causa a arguida atravessava enormes dificuldades de tesouraria em virtude de ter ficado privada do recebimento pontual de verbas do Fundo Social Europeu, por motivo que lhe não era imputável, mas antes a disfuncionalidade da plataforma informática da candidatura as verbas, das quais depende, em exclusivo, no exercício da sua actividade societária".
15. A arguida EPA, atravessando dificuldades de tesouraria que não permitiam o pagamento de uma só vez, requereu e pagou na íntegra a quantia em divida a título de IRS num âmbito de um acordo prestacional deferido e autorizado pela autoridade tributária;
16. Todos os requerimentos apresentados pela recorrente EPA ocorreram dentro do prazo dos 90 dias;
17. E quando a 23/6/2017, recebeu notificação da autoridade tributaria, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n°4 do art.105 do RGIT, já há muito que se encontrava a cumprir os planos de pagamento previamente autorizados pela mesma AT, encontrando-se liquidada nessa data €25.285,65 (vinte e cinco mil duzentos e oitenta e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos) no cumprimento deles.
18. Tais planos prestacionais autorizados afastam a exigência de pagamento total dos valores em dívida num só acto e, dessa forma, configurar um crime de abuso de confiança fiscal;
19. A conduta da AT ao deferir um acordo de pagamento em prestações e, simultaneamente, exigir a satisfação integral da dívida viola os princípios da boa-fé recíproca e da colaboração decorrente do art. 59° da LGT, bem como da coerência de procedimentos que tais princípios exigem por parte de actuação do fisco.
20. O tribunal "a quo" ao não pronunciar-se sobre factos e documentos que estão nos autos fez incorreta aplicação da lei;
21. A sentença recorrida traduz numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e num erro notório na apreciação em que se fundamenta o presente recurso;
22. A recorrente invocou a questão do valor superior a 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros) a partir do qual qualifica a conduta como crime é referente a cada trabalhador e não a totalidade de trabalhadores.
23. A sentença recorrida omitiu totalmente esta matéria - o que constitui nulidade que os recorrentes se pretendem prevalecer, como efectivamente se prevalecem, para os devidos efeitos de lei;
24. O crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, que se consuma no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito.
25. Os arguidos e ora recorrentes - fundado em factos ostensivamente públicos e notórios na Madeira e, alguns deles até, no continente português - factos, aliás, exaustivamente documentados nos autos que o tribunal " a quo" também não apreciou e valorou como prova e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeifos de lei - não cometeram, qualquer que seja a modalidade de dolo, o crime de Abuso de Confiança Fiscal previstos e punidos 14° nº1, 16 e 17 do CP e arts.6 n°1, 7 n°3, 105 ns.1, 4 e 7 do Regime Geral de Infrações Tributarias.
26. A conduta dos arguidos e ora recorrentes objecto da respectiva contestação - no contexto de facto e de direito públicos e notórios nela descritos - não pode nem preenche os requisitos do crime de Abuso de Confiança Fiscal (ilicitude, dolo e culpa) previstos e punidos nos arts. 7.° n.° 1 e 3, 31.° do CP (exclusão da ilicitude e culpa),105.° ns. 1, 4 e 7 do Regime Geral de Infrações Tributarias,
27. Com atraso não ilícito e culposo fundada em qualquer conduta praticada pelos arguidos e ora recorrentes, o IRS de retenção da fonte referentes aos períodos de 2016/06, 2016/08, 2016/10 encontram-se totalmente pagos à administração fiscal da RAM.
28. As exigências de prevenção geral e especial a passar á comunidade madeirense de que cometer o crime de Abuso de Confiança Fiscal não é tolerado numa sociedade democrática e num Estado de Direito Democrático (art. 2.° da CRP), no caso destes autos em concreto deve, antes de mais, ter por objecto de apreciação e censura a própria conduta da administração publica regional da Madeira ou, no mínimo, a desnecessidade de aplicação de sanção penal (art. 18.° n.° 2 da CRP).
29. A sentença recorrida ao decidir condenar os arguidos na autoria de três crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art's 105, nºs1, 4 e 7, 6, nº1 e 7, nº3 do RGIT, aprovado pela Lei nº15/01. de 5 de Junho, fez incorrecta interpretação destes e violou, entre outros, o art. 2.° e 18.° n.° 2 da CRP, 31.° do CP, o art.° 59° da LGT (principio da colaboração) e o artigo 2.°, n.° 4 da Lei n.° 53 -A/2006,
30. A sentença recorrida - face aos factos provados e omitidos - fez errada aplicação do artigo 105.° do RGIT ao condenar os arguidos na prática dos crimes de abuso de confiança fiscal.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser revogada a sentença recorrida absolvendo-se os arguidos dos crimes que vêm condenados ou, subsidiariamente, ordenando-se que o Tribunal " a quo" da Comarca da Madeira se digne proferir uma outra decisão em conformidade com os preceitos legais do art.2 e 18 n°2 da CRP, 31 do CP, art.59 da LGT (principio da colaboração) arts. ns.1 e 7, nº3 e 105 do RGIT, aprovado pela Lei nº15/01, de 5 de Junho, artigo 2, n°4, do Código Penal…

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, após o que o Ministério Público respondeu, concluindo pelo seu não provimento.
4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procurador-geral Adjunta, em douto parecer, pronunciou-se pelo não provimento do recurso.
5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
- nulidade da sentença;
- vícios o art.410, nº2, als.b, e c, CPP;
- qualificação jurídica dos factos;
*     *     *
IIº A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor:
A sociedade arguida tem como objecto social o "Ensino profissional", é contribuinte com o n° … e é sujeito passivo de IRS.
O arguido era, à data dos factos, único gerente da arguida, sendo ele quem tomava todas as decisões de gestão da sociedade e sobre o rumo dos negócios, dava ordens aos funcionários, contratava com fornecedores e clientes, pagava aos primeiros, recebia dos segundos e representava a sociedade arguida junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal.
No período compreendido entre o mês de Junho de 2016 e Outubro de 2016 a sociedade arguida teve ao seu serviço diversos trabalhadores, entre os quais LM, MC  e CG, que desempenhavam as suas funções no edifício onde a mesma tinha sede.
No âmbito da sua actividade profissional o arguido, no interesse e em representação da sociedade arguida, não obstante ter retido os montantes devidos pela cobrança do IRS sobre os salários que pagou aos seus trabalhadores e ter entregado as correspondentes declarações de retenção, referentes aos períodos de 2016/06, 2016/08 e 2016/10, não efectuou, nem no prazo legal (20-07-2016; 20-09-2016 e 21-11-2016, respectivamente), nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legalmente estipulado, o pagamento do imposto apurado, no valor de 9.148,00 euros, 8.692,00 euros e 8.042,00 euros, respectivamente.
Os arguidos não efectuaram os pagamentos acima discriminados à Administração Fiscal, fazendo a sociedade suas as referidas quantias, utilizando-as em proveito da actividade societária.
O arguido, por si e na qualidade de legal representante da arguida, foi notificado pessoalmente, no dia 23 de Junho de 2017, para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento voluntário das quantias em dívida, não efectuando, no entanto, nesse prazo, o pagamento integral devido à Administração Fiscal.
Agiu o arguido, no interesse em representação da arguida, de modo livre, voluntária e consciente, sabedor de que as suas relatadas condutas os faziam incorrer em responsabilidade criminal.
Foram pagos, entretanto, em sede de execuções fiscais e no âmbito de um acordo de pagamento faseado entre a arguida e a AT os valores totais em dívida destas obrigações tributárias referidas supra, da seguinte forma:
no que diz respeito ao período de 2016/06 — foi paga a quantia de 762,33 euros a 29/11/16, 31/01/17, 27/02/17, 31/03/17, 02/10/17 e 29/12/17, a quantia de 762,34 euros a 27/09/17, e 30/11/17 e a quantia de 3.049,34 euros a 05/07/17;
no que diz respeito ao período de 2016/08 — foi paga a quantia de 724,33 euros em 29/11/16, 31/01/17, 27/02/17, 31/03/17, 02/10/17 e 29/12/17, a quantia de 724,34 euros em 27/09/17 e 30/11/17 e a quantia de 2897,34 euros em 05/07/17;
no que diz respeito ao período de 2016/10 — foi paga a quantia de 670,17 euros em 31/01/17, 27/02/17, 31/03/17, 27/09/17, 30/11/17 e 31/01/17, a quantia de 670,16 euros em 02/10/17, 29/12/17 e 07/02/18 e a quantia de 2010,50 euros em 05/07/17.
Nos três períodos em causa, a arguida atravessava enormes dificuldades de tesouraria, em virtude de ter ficado privada do recebimento pontual de verbas do Fundo Social Europeu, por motivo que lhe não era imputável, mas antes à disfuncionalidade da plataforma informática de candidatura às verbas, das quais depende, em exclusivo, no exercício da sua actividade societária.
Nos últimos anos, a arguida tem vindo a diminuir a sua actividade societária, em virtude da considerável diminuição dos financiamentos comunitários de que depende, atravessando algumas dificuldades financeiras.
O arguido aufere rendimentos mensais entre três a quatro mil euros.
Tem encargos mensais com habitação da ordem dos dois mil euros.
Tem três filhos ao encargo, de 16, 20 e 23 anos.
Tem como habilitações literárias a licenciatura em direito.
Os arguidos não têm antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS RELEVANTES
O arguido utilizou as quantias referidas nos factos provados em proveito próprio, integrando-as no seu património.

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O arguido prestou declarações sobre o objecto do processo, tendo confessado praticamente toda a matéria objectiva da acusação, designadamente ser o gerente da arguida, esta ter tido os trabalhadores referidos na acusação ao seu serviço, nos períodos aí referidos, terem sido pagos os salários desses trabalhadores nesses períodos, descontadas tas taxa de retenção de IRS, terem sido enviadas à AT as declarações de retenção na fonte e não terem as mesmas sido acompanhadas de meios de pagamento nem pagos os valores nelas em causa nos prazos legais. Justificou essa falta de pagamento tempestivo com o facto de a arguida atravessar enormes dificuldades de tesouraria, em virtude de ter ficado privada do recebimento pontual de verbas do Fundo Social Europeu, verbas das quais depende, em exclusivo, no exercício da sua actividade. O arguido explicou detalhadamente o mecanismo de financiamento comunitário da actividade da arguida e as razões da falta de recebimento pontual das quantias de que depende para satisfazer as suas obrigações, explicações que se afiguraram credíveis e que, conjugadamente com as declarações da testemunha LM e o acervo documental junto aos autos, com a contestação, permitiram dar como provado que a arguida não é responsável pelos atrasos significativos no acesso aos fundos que forma concedidos e de que depende para funcionar. Esta situação foi explicada na contestação de forma assaz pouco sintética e com enorme profusão de pormenores que, pelo seu carácter redundante, se tornou despiciendo dar especificadamente como provados, pois que se resumem na conclusão provada, já referida, da privação de recebimento pontual de verbas do Fundo Social Europeu, por motivo que não era imputável aos arguidos. Alem desta matéria, foi ainda aduzido na contestação o relato de situações relativas a outras actividades de gestão do arguido, relacionadas com a Escola Hoteleira do ... e com outra empresa que gere (cfr. ares 16 a 32° da contestação) que, pela sua falta de relação directa e ausência de relevo para a decisão do objecto deste processo, foram desconsiderados na matéria de facto.
Está documentalmente demonstrado nos autos o cumprimento da obrigação de notificação prevista no art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT (cfr. fls. 180 e 181), bem como o facto de entretanto, mas após o seu prazo de vencimento, terem sido pagas, em prestações, todas as obrigações fiscais referidas nos autos (cfr. fls. 484 e 485).
Ainda retornando às declarações do arguido, ele afirmou expressamente que, perante a falta de fundos suficientes na tesouraria para pagar integralmente os vencimentos dos funcionários e as retenções de IRS que lhes estão associados, optou pelo pagamento dos primeiros, em detrimento das segundas.
Não foi feita prova - antes pelo contrário - que o arguido se tenha apropriado das quantias em causa na acusação.
Depôs ainda o arguido sobre as suas condições sociais, tendo sido com base no seu depoimento, reputado credível, que as mesmas foram dadas como provadas.
Foram ainda vistos os C. R. C. dos arguidos e toda a demais documentação junta aos autos, que se torna despiciendo especificar, vista a confissão quase integral do arguido sobre a matéria objectiva da acusação que foi imputada aos arguidos.
*     *     *
IIIº 1. Invocam os recorrentes a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia em relação ao por si alegado de o valor superior a 7.500,00€ a considerar para qualificação da conduta como crime respeitar a cada trabalhador e não a totalidade de trabalhadores.
Princípio geral de direito adjectivo é o de que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Além do mais, tem o tribunal de deliberar sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa (art.368, nº2, CPP), o que no caso foi cumprido pelo tribunal recorrido.
Quanto aos elementos típicos do crime, o tribunal recorrido considerou estarem em causa três prestações tributárias superiores a 7.500,00€, desse modo se pronunciando sobre o que lhe é imposto pela al.a, daquele art.368, nº2, não incorrendo, por isso, em omissão de pronúncia sobre questão que devesse apreciar (art.379, nº1, al.c, CPP).
Questões, para este efeito, são as questões de fundo, como impressivamente resulta daquela al. c), ao declarar a nulidade da sentença quando o tribunal "...deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia...".
Questões de fundo são as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio e não meros argumentos ou razões.
Improcede, assim, a invocada nulidade.

2. De forma conclusiva os recorrentes referem-se aos vícios das alíneas b, e c, do art.410, nº2, CPP.
O citado preceito legal admite o alargamento dos fundamentos do recurso às hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento»[1].
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto, ocorrendo este vício quando se dá como provado e não provado o mesmo facto.
Por outro lado, «só existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal»[2], isto é, «quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos»[3], ou seja, «quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum»[4]
A eventual desconformidade da matéria de facto provada relativamente à prova produzida e gravada, podendo consubstanciar um eventual erro na valoração da prova, nunca se reconduzirá ao erro notório, conforme atrás definido, jamais configurando o aludido vício.
Pois, para ser notório, tem ele de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova - facilmente perceptível numa leitura minimamente atenta e ponderada, levada a cabo por um juiz com a cultura e experiência da vida que deve pressupor-se num juiz normal chamado a apreciar a questão -, denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das legis artis, ou ainda das regras da experiência comum, ou que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Se o erro só é detectado perante a análise do conteúdo das provas, então estaremos perante um simples erro na apreciação da prova, nunca perante um erro notório, o qual não pode estar dependente dessas provas.
Analisando o texto da decisão recorrida, o mesmo apresenta-se lógico, conforme às regras da experiência comum, não evidenciando qualquer contradição ou erro, muito menos notório, susceptível de integrar qualquer dos vícios previstos no art.410, nº2 do CPP, razão por que não se reconhece a verificação dos apontados vícios.

3. Condenados por crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, os recorrentes alegam que não receberam o que se diz ter por eles sido apropriado (a arguida EPA não recebeu do Fundo Social Europeu a quantia alegadamente "retida" a titulo de IRS – conclusões 8 e segs.).
Contudo, para o caso, são irrelevantes as questões relativas às fontes de financiamento que a sociedade arguida tinha para obter meios para o exercício da sua actividade.
O que interessa é que tendo ao seu serviço os trabalhadores identificados nos factos provados, pagou aos mesmos os salários aí especificados, sendo o salário de cada um integrado por uma parte que é entregue ao próprio e outra parte entregue à AT, correspondente a obrigações tributárias do trabalhador[5].
Foi em relação a estas quantias que ocorreu a omissão dos arguidos, retendo os valores correspondentes àquela parte do salário dos trabalhadores e não os entregando à AT, o que é suficiente para preenchimento do elemento objectivo do tipo criminal.
Alegam que o facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal, mas são os recorrentes que tentam confundir a responsabilidade tributária que não está em causa nestes autos, com a responsabilidade criminal por incumprimento atempado de obrigações fiscais que constitui o objecto deste processo.
Como resulta do preceito incriminador, a conduta só constitui crime se a prestação tributária for de valor superior a 7500€, o que no caso se verifica, pois o que releva são as declarações de retenção, referentes aos períodos de 2016/06, 2016/08 e 2016/10, obrigação declarativa essa que constitui ónus da entidade patronal e não de cada trabalhador, como resulta do art.98, nº1, do CIRS, daí que o valor a considerar seja o relativo a cada uma dessas declarações e não a cada trabalhador, fixando o nº3 daquele preceito o prazo de pagamento a que a entidade patronal está obrigada “…devem ser entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas”.
Provado que os arguidos não efectuaram o respectivo pagamento no prazo legal, nem nos trinta dias posteriores à notificação efectuada pela AT para esse efeito em 23 de Junho de 2017, estão verificadas as condições objectivas de punibilidade previstas nas duas alíneas do nº4, no art.105, do RGIT.
Alegam que quando foram notificados para os efeitos da al.b, do nº4, do art.105, do RGIT, já tinham requerido o pagamento da dívida fiscal em prestações e estavam a cumprir o plano de pagamentos acordado com a AT.
Voltam os recorrentes a confundir a responsabilidade tributária, com a responsabilidade criminal pela sua conduta omissiva.
Considerando as prestações tributárias em dívida, não surpreende que perante o não pagamento voluntário, a AT tenha aceite o pagamento da dívida em prestações, de acordo com plano acordado com o devedor, em vez de optar imediatamente por procedimentos tendentes à sua cobrança coerciva.
Este acordo, visando o recebimento de créditos pena AT, em nada contende com a notificação efectuada para os efeitos da al.b, do nº4, do art.105, do RGIT, pois enquanto aquele acordo se insere nos procedimentos relativos à cobrança do crédito este acto apenas tem a ver com procedimentos relativos à efectivação da responsabilidade criminal do agente.
Alegam que o plano prestacional acordado afasta a exigência de pagamento total dos valores em dívida num só acto, contida naquela notificação.
Contudo, o que está aqui em causa é a responsabilidade criminal que, repete-se, é autónoma e não se confunde com a responsabilidade tributária.
Aquele acordo, apenas impedia a AT de, em acção executiva, exigir imediatamente o pagamento coercivo da obrigação tributária de forma diferente da acordada.
Apelam aos princípios da boa-fé recíproca e da colaboração decorrente do art.59, da LGT, mas tais princípios são próprios das relações obrigacionais e não do direito criminal, em que vigora o princípio da legalidade.
Aceitando a perspectiva dos recorrentes, qualquer plano de pagamento aceite pela AT, suspenderia a responsabilidade criminal, o que conferiria à administração poderes de oportunidade quanto ao exercício do procedimento criminal, pois poderia aceitar um plano de pagamentos dilatado no tempo susceptível de conduzir até à extinção do respectivo procedimento criminal.
Tais poderes conferidos à AT, livre de definir os critérios dos planos de pagamento em relação a cada caso concreto, ofenderiam princípios como a da igualdade (pois poderia aceitar o plano de uns agentes e não de outros, assim os dispensando ou não da responsabilidade criminal por condutas idênticas) e da legalidade da acção penal, nos termos do qual, verificando-se os pressupostos processuais e havendo indícios suficientes da prática do facto, a decisão de submeter o facto criminoso a julgamento é obrigatória para o Ministério Público (art.219, da CRP).
A administração tributária (através dos seus inspectores tributários) intervém no inquérito crime como órgão de polícia criminal, dependente do Ministério Público (arts.48 e 55, do CPP), não sendo admissível a hipótese de a aceitação por ela de um plano de pagamento da dívida tributária poder interferir na obrigação de cumprimento rigoroso de todos os actos de inquérito, nomeadamente, de proceder à notificação prevista na al.b, do nº4, do art.105, do RGIT.
O RGIT não prevê qualquer prazo para a concretização desta notificação, mas a mesma só pode estar dependente do andamento do inquérito crime e não de factores exteriores a ele, nomeadamente, eventuais planos de pagamento da dívida tributária aceites pela AT.
O pagamento da dívida tributária, assim como as dificuldades financeiras da arguida na altura em que ocorreu a conduta omissiva de entrega das quantias devidas, podem ter relevância na avaliação da culpa, mas em nada interferem no preenchimento dos elementos típicos do crime, nem conduzem à exclusão da ilicitude ou da culpa.

Concluindo:
A responsabilidade tributária não se confunde com a responsabilidade criminal pela conduta omissiva de entrega de prestações tributárias;
A administração tributária (através dos seus inspectores tributários) intervém no inquérito crime como órgão de polícia criminal, dependente do Ministério Público (arts.48 e 55, do CPP);
A concretização da notificação prevista na al.b, do nº4, do art.105, do RGIT só está dependente do andamento do inquérito crime e não de factores exteriores a ele, nomeadamente, eventuais planos de pagamento da dívida tributária propostos pelo devedor e aceites pela AT;
A admitir-se que a aceitação pela AT de um plano de pagamento da dívida tributária, impedia a concretização daquela notificação para o devedor pagar em 30 dias a prestação tributária em dívida acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, estaria a conferir-se à AT poderes de oportunidade quanto ao exercício do procedimento criminal, inadmissível face ao princípio da legalidade da acção penal;
*     *     *
IVº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, negando provimento ao recurso dos arguidos, JEe EPA, Lda., acordam em confirmar a sentença recorrida.
Condena-se cada um dos recorrentes em 3Ucs de taxa de justiça.

Lisboa, 11 de Dezembro de 2018

(Relator: Vieira Lamim)

(Adjunto: Ricardo Cardoso)

[1] Vd. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, págs.339, 367; Ac. do STJ de 4/12/2003, Proc. 3188/03, in “Verbojuridico.com/Jurisprudência/STJ”; Ac. do STJ de 19/12/1990 proferido no Proc. nº 41 327, apud MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 11ª ed., 1999, p. 743.
[2] Ac. do STJ de 15/4/1998 (in BMJ nº 476, p. 82).
[3] Ac. do STJ de 10/3/1999 proferido no Proc. nº 162/99 (apud MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 11ª ed., 1999, pp. 744-745).
[4] Ac. do STJ de 11/10/1995 (in BMJ nº 450, p. 110).
[5] Para facilitar pagamento do imposto devido pelo trabalhador, inventou-se o conceito de retenção da fonte, isto é, quem paga os valores (a entidade empregadora) é obrigada a “reter” uma parte do rendimento e entregá-la às finanças em nome do funcionário ou prestador do serviço. Desta forma, o imposto é “retirado” ao valor do rendimento a que o beneficiário tem direito e entregue por parte da entidade pagadora desse rendimento diretamente às finanças.