Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7888/15.9TDLSB.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A Massa Insolvente é um património autónomo – composto por todos os bens e direitos (ativo) que integram o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como pelos bens e direitos que este adquira na pendência do processo de insolvência (art. 46º do CIRE) – e que visa a satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, sendo para o efeito liquidada, não podendo ser confundida com a sociedade insolvente.

Por isso, os poderes do Administrador da Massa Insolvente cingem-se, tão só, à liquidação do dito património, não tendo poderes de representação da sociedade insolvente para além dos que se dirigem àquela liquidação.

Relativamente aos crimes em causa (crimes de participação fraudulenta em assembleia geral, p.p. pelo art. 517º do Cód. das Sociedades Comerciais; burla qualificada, p.p. pelos arts. 217º e 218º do CP; branqueamento, p.p. pelo art. 368º-A, nº 2 e recetação, p.p. pelo art. 231º, de falsificação de documento, p.p. pelo art. 256º, al. d), todos do CPA) a Massa Insolvente não é titular de um interesse imediato e direto no resultado do processo-crime, na medida em que o processo-crime não tem por objeto os bens que integram a massa, mas a realização da Justiça penal, não sendo a ofendida nos autos, em termos de se poder dizer que é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, após Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,


–Relatório


No âmbito do Processo com o nº 7888/15.9TDLSB que corre termos no Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi proferido despacho a indeferir a intervenção nos autos como assistente da Massa Insolvente de I., SA, e, consequentemente a não admitir a instrução requerida.
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Sem se conformar com a decisão a Massa Insolvente de I., SA interpôs o presente recurso pedindo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que admita a sua constituição como assistente e, em consequência admita o seu requerimento de abertura de instrução.

Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
1.–O despacho recorrido afecta directamente a Recorrente, impedindo-a de se constituir como assistente, e, consequentemente, de requerer a abertura de instrução, sendo a única afectada pelo despacho recorrido, pelo que tem legitimidade para recorrer nos termos da última parte da alínea d) do nº 1 do art. 401º do CPP.
2.–A Assistente requereu, nos termos do art. 68º nº 3 a) do CPP a sua constituição como assistente, tendo, para o efeito, liquidado a taxa de Justiça devida nos termos do nº 1 do art. 8º do Regulamento das Custas Processuais.
3.–A Recorrente tem como propósito através do Requerimento de Abertura de Instrução formulado, que seja apurada a conduta imputada ao administrador único da Insolvente, o arguido A. , e o mesmo condenado pela prática dos crimes identificados, sendo evidente o conflito de interesses que determina o entendimento do despacho recorrido.
4.–A Insolvente, que tem como representante legal único o principal Arguido nos presentes autos, não tem legitimidade ativa para se constituir assistente uma vez que foi o seu representante legal que praticou as condutas ou atos dolosos imputados, os quais lesam o património da insolvente (massa).
5.–O administrador único da Insolvente praticou os factos denunciados pela Recorrente pelo que, naturalmente, não teria qualquer interesse em agir, nem em nome próprio, nem em nome da Sociedade Insolvente.
6.–As funções e exercício do administrador da insolvência (em cumprimento de um dever legal de interesse público) prendem-se essencialmente, com a liquidação da massa insolvente, mas não exclusivamente!
7.–Tratando-se de responsabilidade criminal do administrador único da sociedade declarada insolvente, a representação e a defesa dos interesses patrimoniais da sociedade (massa insolvente) perante atos dolosos do seu administrador pertence ao Administrador da Insolvência.
8.–O despacho recorrido põe em causa a função do Administrador de Insolvência consistente em prover à conservação e frutificação dos direitos da insolvente, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica, conforme decorre do art. 55º nº 1 b) do CIRE.
9.–Ainda que assim não se entenda, o que se admite por mera cautela e dever de patrocínio, sempre se dirá que a Recorrente deveria ser admitida a se constituir assistente na medida em que é titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação.
10.–Efetivamente, a Massa da Insolvente, representada pelo Administrador de Insolvência, ora Recorrente, é titular de um interesse imediato e direto no resultado do processo-crime que tem por objeto os bens que integram a massa e que foram retirados à esfera patrimonial da insolvente pelo seu administrador, constituído arguido.
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O Ministério Público contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
1.–Inexiste qualquer fundamento para alterar a decisão recorrida.
2.–O ofendido, para efeitos de constituição como assistente, não pode ser qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui o seu objeto imediato.
3.–O titular dos direitos protegidos no caso dos autos, atentos os crimes em causa (crimes de participação fraudulenta em assembleia geral, p.p. pelo art. 517º do Cód. das Sociedades Comerciais; burla qualificada, p.p. pelos arts. 217º e 218º do CP; branqueamento, p.p. pelo art. 368º-A, nº 2 e recetação, p.p. pelo art. 231º, de falsificação de documento, p.p. pelo art. 256º, al. d), todos do CP) é a Sociedade I. , pelo que é essa sociedade quem dispõe de legitimidade para intervir nos autos e se constituir assistente, representada pelos titulares dos seus órgãos sociais e não pelo Administrador de Insolvência.
4.–Os poderes de representação do Administrador da Insolvência estão limitados aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência, extravasando das suas funções todas as questões que respeitem a processos crime.
5.–Qualquer conflito de interesses entre a representação da Sociedade Insolvente e o arguido seu administrador é ultrapassável pela sua representação pelos titulares dos órgãos sociais que a compunham à data da insolvência que se mantém em funções (cfr. art. 82º, nº 1 do CIRE).
6.–A defesa dos direitos patrimoniais da sociedade insolvente, por parte do Administrador da Insolvência, eventualmente lesados pela conduta dos arguidos, ainda que o processo crime tenha sido arquivado, pode sempre ser assegurada com recurso aos meios civis.
7.–O recorrente Administrador de Insolvência não possui legitimidade para se constituir assistente pelo que não pode requerer a abertura da instrução.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido da improcedência do recurso.

A recorrente respondeu, dando por integralmente reproduzidas as motivações de recurso.
                                     
Efectuado o exame preliminar foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
No âmbito dos presentes autos, o Ministério Público entendeu que realizadas as diligências de investigação tidas por pertinentes para a descoberta da verdade material, não resultaram das mesmas indícios suficientes que permitam formular um juízo de prognose de condenação dos arguidos, em sede de julgamento, e, em conformidade, proferiu despacho de arquivamento, que integra fls. 1286 a 1321.
A participante “Massa Insolvente da I., S.A.”, devidamente representado por advogado, veio requerer, simultaneamente, a constituição como assistente nos presentes autos e a abertura da fase de instrução contra os arguidos A., AG., JB, AR, MP e SV, em conformidade com o disposto no art. 287.º, n.º 1, al. b) do Cód. Processo Penal, pugnando pela pronúncia dos seis arguidos pela prática de um crime de sequestro, p.p. pelo art. 158.º do Cód. Penal, e pugnando, ainda, pela pronúncia dos dois primeiros arguidos pela prática dos crimes de participação fraudulenta em assembleia geral, p.p. pelo art. 517.º do Cód. das Sociedades Comerciais, de burla qualificada, p.p. pelos arts. 217.º e 218.º, de branqueamento, p.p. pelo art. 368.º-A, n.º 2, de receptação, p.p. pelo art. 231.º, e de falsificação de documento, p.p. pelo art. 256.º, al. d), todos do Cód. Penal, por requerimento que integra fls. 1353 a 1380.
Por promoção, que integra fls. 1394, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de a requerente ser admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente.
Notificados os arguidos para, querendo, se pronunciarem sobre o pedido de constituição como assistente, apenas os arguidos A., AG., MP e SV  se pronunciaram, por requerimento que integra fls. 1422 a 1427, manifestando o entendimento de a requerente não dever ser admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente, por carecer de legitimidade para o efeito.

Cumpre decidir.

Determina-se no art. 68.º, n.º 1, al. a) do Cód. Processo Penal: “Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferem esse direito:
- os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (...)”.
Constata-se que além dos outros titulares referidos nas alíneas b) a e) do aludido n.º 1, podem, genericamente, constituir-se assistentes os ofendidos, sendo considerados como tais os titulares dos interesses que a lei visa especialmente proteger com a incriminação.
Cotejando-se o determinado no art. 68.º, n.º 1, al. a) do Cód. Processo Penal vigente, verifica-se que o legislador consagrou, para efeitos de constituição de assistente, um conceito de ofendido entendido em sentido restrito. Para o efeito referenciado não pode ser considerado “ofendido” qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui objecto imediato do crime – cfr. o doutrinado por Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, pp. 512 e 513.
Os titulares de interesses mediata ou indirectamente protegidos não podem ser englobados na abrangência do conceito de ofendido para os efeitos consignados no citado art. 68.º, n.º 1, al. a).
Nas palavras de Germano Marques da Silva, “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime” – Curso de Processo Penal, Vol. I, Editora Verbo, 2.ª ed., 1996, pp. 244; no mesmo sentido, Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Livraria Almedina, 2021, pp. 782.
Deste modo, só podem constituir-se como assistentes os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – art. 60.º, n.º 1, al. a) do Cód. Processo Penal.
Sendo a qualidade de ofendido a condição necessária para a constituição de assistente, todavia é insuficiente por a lei unicamente considerar como ofendido, para tal intento ou propósito, aquele que é titular dos interesses especialmente protegidos pela incriminação, estando arredados todos os outros que apenas sofrem danos com o crime – nesse sentido, na jurisprudência, cfr., por todos, Ac. STJ de 20/01/1998, relatado por Dias Girão, in CJSTJ, VI, t. 1, pp. 163 a 165.
Ora, no caso sub judice, estando em causa a eventual prática de crimes, designadamente de participação fraudulenta em assembleia geral, p.p. pelo art. 517.º do Cód. das Sociedades Comerciais, de burla qualificada, p.p. pelos arts. 217.º e 218.º, de branqueamento, p.p. pelo art. 368.º-A, n.º 2, de receptação, p.p. pelo art. 231.º, e de falsificação de documento, p.p. pelo art. 256.º, al. d), todos do Cód. Penal, relativamente aos quais a sociedade comercial “I.  – Gestão e Investimentos Imobiliários, S.A.” se sente atingida no seu património, sendo certo que esta sociedade comercial, não obstante ter sido judicialmente declarada insolvente, ainda não se encontra extinta, é essa sociedade e não a respectiva Massa Insolvente quem dispõe de legitimidade para intervir nos autos na qualidade de assistente.
Atente-se que, após a declaração de insolvência da sociedade comercial e até à sua extinção, a sociedade dissolvida mantém a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicáveis até à sua extinção, que apenas ocorre com o registo do encerramento da liquidação, as normas atinentes às sociedades não dissolvidas. Na realidade, entre o momento da declaração da insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período de vida útil da sociedade em que coexistem duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem, como resulta, de forma clara, do disposto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cujos arts. 55.º e 82.º preveem as funções que incumbem ao administrador da insolvência, e as funções que incumbem aos titulares dos órgãos sociais, direcionando-se as funções do administrador da insolvência para a liquidação da massa insolvente e limitando-se os seus poderes de representação aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência.
Um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas que digam respeito a processos-crime, pelo que, quanto a estas questões, a representação da sociedade comercial incumbirá ao respectivo representante legal (gerente ou administrador, consoante se trate de uma sociedade por quotas ou de uma sociedade anónima), em conformidade com os termos estatutários (art. 82.º, n.º 1 CIRE).
Pelo que se deixa exposto, constata-se que a participante “Massa Insolvente da I.,  S.A.” carece de legitimidade para se constituir assistente nos autos, indeferindo[1]se a requerida constituição de assistente.
Uma vez que a requerente “Massa Insolvente da I.,  S.A.” não foi admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente, carece de legitimidade para requerer a abertura de instrução, em conformidade com o disposto no art. 287.º, n.º 1, al. b) do Cód. Processo Penal.
Termos em que, por inadmissibilidade legal, não se admite a instrução requerida pela “Massa Insolvente da I., S.A.” (art. 287.º, n.º 3 Cód. Processo Penal).
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Apreciando:
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em questão está a legitimidade da recorrente Massa Insolvente para se constituir como assistente.
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Nos autos, em que se investigava a prática de crimes de participação fraudulenta em assembleia geral, p. e p. pelo art. 517º do Cód. das Sociedades Comerciais, e de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º e 218º, branqueamento, p. e p. pelo art. 368º-A, nº 2, receptação, p. e p. pelo art. 231º, e falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, al. d), todos os normativos do Cód. Penal, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento.
Visando a abertura de instrução, a ora recorrente Massa Insolvente de I., SA veio requerer a sua constituição como assistente, o que foi indeferido por falta de legitimidade.

No presente recurso, a Massa Insolvente de I., SA alega que deve ser admitida como assistente porque:
- ainda que as funções e exercício do administrador da insolvência se prendam essencialmente com a liquidação da massa insolvente, havendo responsabilidade criminal do administrador único da sociedade declarada insolvente por factos que lesam o património da insolvente, a representação e a defesa dos interesses patrimoniais da sociedade pertence ao Administrador da Insolvência porque o arguido não se pode constituir assistente.
- o despacho recorrido põe em causa a função do Administrador de Insolvência consistente em prover à conservação e frutificação dos direitos da insolvente, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica, conforme decorre do art. 55º nº 1 b) do CIRE.
- a Massa da Insolvente, representada pelo Administrador de Insolvência, é titular de um interesse imediato e direto no resultado do processo-crime que tem por objeto os bens que integram a massa e que foram retirados à esfera patrimonial da insolvente pelo seu administrador, constituído arguido.

Nos termos da alínea a), do nº 1, do art. 68º, do Cód. Proc. Penal,podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (…)”.

Importa assim, e antes de mais, averiguar se a recorrente é ofendida nos autos, em termos de se poder dizer que é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

A resposta só pode ser negativa.

A Massa Insolvente é um património autónomo – composto por todos os bens e direitos (ativo) que integram o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como pelos bens e direitos que este adquira na pendência do processo de insolvência (art. 46º do CIRE) – e que visa a satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, sendo para o efeito liquidada. Por isso, os poderes do Administrador da Massa Insolvente cingem-se, tão só, à liquidação do dito património, não tendo poderes de representação da sociedade insolvente para além dos que se dirigem àquela liquidação.

Ou seja, a Massa Insolvente não pode ser confundida com a sociedade insolvente.

Não é a Massa Insolvente que é titular de um interesse imediato e direto no resultado do processo-crime, na medida em que o processo-crime não tem por objeto os bens que integram a massa, mas a realização da Justiça penal.

Ou seja, não é a recorrente quem é ofendida nos autos, em termos de se poder dizer que é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

Como bem refere o despacho recorrido, a sociedade insolvente “não obstante ter sido judicialmente declarada insolvente, ainda não se encontra extinta (…) após a declaração de insolvência da sociedade comercial e até à sua extinção, a sociedade dissolvida mantém a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicáveis até à sua extinção, que apenas ocorre com o registo do encerramento da liquidação, as normas atinentes às sociedades não dissolvidas. Na realidade, entre o momento da declaração da insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período de vida útil da sociedade em que coexistem duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem, como resulta, de forma clara, do disposto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cujos arts. 55.º e 82.º preveem as funções que incumbem ao administrador da insolvência, e as funções que incumbem aos titulares dos órgãos sociais, direcionando-se as funções do administrador da insolvência para a liquidação da massa insolvente e limitando-se os seus poderes de representação aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência.

A circunstância de o administrador único da sociedade declarada insolvente ser arguido nos autos não muda os poderes de representação definidos pelas normas citadas.
Neste mesmo sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.05.2017 (Proc. 108/15.8PCLRA.C1), citado pela Digna PGA e sumariado nestes termos: I– A massa insolvente de sociedade comercial, representada pelo administrador da insolvência, não tem legitimidade para se constituir assistente no âmbito de processo penal. II– A legitimidade para aquele fim é da própria sociedade, representada pelos entes singulares que, à data da declaração da insolvência, são titulares dos órgãos sociais da pessoa colectiva”.

Refere-se no douto acórdão que: “é incontroverso que com a declaração de insolvência, a sociedade dissolvida entra em liquidação, mantendo, contudo, a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicáveis até à sua extinção, com o registo do encerramento da liquidação, as normas atinentes às sociedades não dissolvidas – [cf. artigos 146º, n.ºs 1 e 2 e 160º, n.º2 do CSC], conservando-se os órgãos sociais do devedor, após a declaração de insolvência, em funcionamento – [cf. artigo 82.º, n.º 1 do CIRE]. Caminhando um pouco mais no seio do quadro legal. O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente - [cf. artigo 1.º do CIRE]. A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo - [artigo 46.º, n.º 1 do CIRE]. (…) a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – [cf. artigo 81.º, n.º 1 do CIRE], assumindo este a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência – [cf. o n.º 4 do artigo 81.º], cabendo-lha a exclusiva legitimidade, durante a pendência do processo de insolvência, para propor e fazer seguir as ações a que se reporta o artigo 82.º do CIRE, as quais, nos termos do seu n.º 6, correm por apenso ao processo de insolvência. (…) Da análise que precede do quadro legal, quer quanto ao fim do processo de insolvência, quer quanto às funções, exercício e poderes do administrador da insolvência, quer, por fim, quanto à coexistência, após a declaração de insolvência – nos termos sobreditos - da sociedade e até à sua extinção, de duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõe [cf. acórdão do TRC de 25.06.2014 (proc. n.º 2140/06.3TAAVR-A.C1; no mesmo sentido vide os acórdãos do TRE de 15.10.2013 (proc. n.º 33/10.9IDEVR.E1), TRL de 12.10.2011 (proc. n.º 674/08.4IDLSB-A.L1-3), TRC de 28.09.2011 (proc. n.º 123/09.0IDSTR.C1)], não se vê como se possa defender, num processo crime, a admissão como assistente da massa insolvente, representada pelo respetivo administrador. Nem as normas que dispõem sobre a legitimidade para tanto, a saber as inscritas no artigo 68.º do CPP, o permitem, nem tal se mostra compatível com a posição processual e atribuições do assistente – [cf. o artigo 69º do CPP]. Como, aplicando a lei, decidiu o despacho recorrido quem, no âmbito do processo penal, representa a sociedade insolvente são os respetivos representantes legais à data da declaração da insolvência, os quais se mantém em funções em tudo o que seja alheio à administração e disposição da massa insolvente ou à representação do devedor para efeitos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, restrições estas onde manifestamente não se inscreve a intervenção, precedida da admissão, como assistente no processo penal” .

Este entendimento também não põe em causa a função do Administrador de Insolvência decorrente do art. 55º nº 1 b) do CIRE na medida em que nada contende com a situação económica da recorrente, que pode sempre recorrer à jurisdição civil para salvaguardar os seus interesses económicos.
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Decisão

Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e confirmam o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
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Lisboa, 17.05.2022

(processado e revisto pela relatora)

(Alda Tomé Casimiro)
(Anabela Simões Cardoso)