Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1651/13.9TBMTJ.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.Tendo o autor, em ação de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do ato jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do ato em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 5.º n.º 3 do CPC.

II.Tal intervenção oficiosa, cuja admissibilidade está pacificamente firmada desde a prolação do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ datado de 23.01.2001 e publicado, sob o n.º 3/2001, no D.R., 1.ª série, de 09.02.2001, não exige, em regra, a prévia auscultação das partes, ao abrigo do n.º 3 do art.º 3.º do CPC.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 14.6.2013 José intentou ação declarativa sob a forma ordinária (ação de impugnação pauliana) contra António e Leonilde.

O A. alegou, em síntese, que na sequência de um acidente de trabalho sofrido ao serviço do 1.º R., ele e o 1.º R. chegaram a um acordo no âmbito do respetivo processo laboral, o qual foi homologado. Como o 1.º R. não cumprisse tal acordo, o A. instaurou ação executiva contra o 1.º R., tendo sido penhorado um imóvel, procedendo-se ao respetivo registo pela Ap. 1247 de 2013/01/11. Sucede que em 26.3.2013 os ora RR. separaram-se, de pessoas e bens, na Conservatória do Registo Civil de Viseu e, na mesma data, outorgaram, na Conservatória do Registo Civil de Viseu, escritura de partilha do património conjugal, nos termos da qual os três únicos bens do casal, ou seja, o aludido imóvel e dois veículos automóveis, pelos RR. avaliados no total de € 21 877,64, foram atribuídos à 2.ª R., ficando a 2.ª Ré obrigada ao pagamento de tornas no valor de € 10 938,82, que o 1.º R. declarou, na partilha, já ter recebido. Ora, o valor das tornas atribuídas ao 1.º R. coincide com o da dívida que este tem para com a segurança social, pelo que o A. vê-se impossibilitado de satisfazer o seu crédito contra o 1.º R.. Tal foi querido por ambos os RR., sendo certo que o valor real dos aludidos bens excede os € 300 000,00.

O A. terminou formulando o seguinte petitório:
Nestes termos e nos demais de direito, designadamente de acordo com o disposto no artigo 616 do Código Civil:
A)– Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, com a consequente declaração de nulidade do processo de separação de pessoas e bens, por mútuo consentimento n.º 1875/2013 celebrados entre os Réus.
B)– Devem os dois bens móveis e bem imóvel prédio misto acima referido serem restituídos ao património do Primeiro Réu, na medida em que tal venha a ser necessário para satisfação do direito de crédito do Autor, tutelado por um título executivo e por uma penhora.
C)– Deve ser reconhecido ao Autor o direito de executar o bem imóvel supra referido do património do Primeiro Réu.”

Citado, o Réu não contestou.

A Ré contestou a ação, alegando desconhecer o afirmado pelo A. quanto ao acidente de trabalho, ao acordo judicialmente homologado e à instauração de execução. Afirmou que quis fazer a partilha de bens quando soube que o marido, de quem já estava separada, havia desbaratado parte das poupanças do casal no jogo e em negócios de agiotagem. Quando tomou conhecimento de que fora penhorado ½ do referido imóvel, informou o Sr. agente de execução de que não aceitava a comunicabilidade da dívida e pediu o prazo legalmente estipulado para juntar aos autos de execução a certidão da pendência de separação de pessoas e bens, que esteve na origem da partilha. O valor pago pela R. a título de tornas corresponde ao valor real dos bens adquiridos. A R. não quis ajudar o R. a furtar-se ao cumprimento das suas obrigações, sendo certo que o R. é possuidor de bens móveis de valor suficiente para acautelar os interesses do A. e desenvolve uma atividade profissional que poderá garantir o ressarcimento das quantias de que é devedor.

A Ré concluiu pela improcedência da ação, por não provada.

O A. replicou, concluindo como na petição inicial.

Foi proferido saneador tabelar, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Em 17.01.2017 a Sr.ª administradora de insolvência informou nos autos que o 1.º R. havia sido declarado insolvente, por sentença proferida em 06.12.2016.

Apurou-se nos autos que a ação de execução supra referida fora declarada suspensa, em virtude do decretamento de insolvência do 1.º R., e que o processo de insolvência fora suspenso, ao abrigo do art.º 156.º do CIRE, face à pendência da presente ação de impugnação pauliana.

Realizou-se audiência final e em 08 de maio de 2017 foi proferida sentença que julgou a ação procedente, por provada, tendo sido emitido o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a presente ação procedente por provada e consequentemente decido:
a)- Julgar ineficaz em relação ao Autor a partilha do Património Conjugal no âmbito de processo de separação de pessoas e bens por mútuo consentimento nº 1875/2013 efetuada pelos Réus António e Leonilde junto da Conservatória do Registo Civil de Viseu em 26 de Março de 2013 relativamente ao prédio misto, sito na T..., M... N... ou Quinta C..., freguesia de M..., concelho de M..., descrito na Conservatória do Registo Predial de M... sob o nº ....3/2......., podendo o Autor executá-lo no património do obrigado e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, sempre com observância do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 127º do CIRE;
b)- Custas a cargo da Ré e da massa insolvente do Réu.
Registe e notifique.

A Ré apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A.Mesmo que seja de admitir que pode haver convolação oficiosa de um pedido de nulidade de uma atribuição patrimonial na sua mera ineficácia em relação a um credor do alienante, não pode tal convolação ser feita sem dar cumprimento ao disposto no n.° 2 do CPC.
B.Ao contrário da nulidade do negócio, que implica a devolução de tudo quanto tiver sido prestado e que de alguma forma restitui ambas as partes do negócio ao seu statuo quo ante, a ineficácia em relação ao credor do transmitente transfere para o adquirente do bem a responsabilidade do transmitente.
C.A exemplo do que acontece com outros mecanismos do Ordenamento Jurídico vocacionados para permitirem o aproveitamento dos negócios jurídicos (redução, conversão) não pode, de acordo com os princípios da boa-fé, ser tal transferência imposta sem dar ao interveniente nesse negócio a possibilidade de lhe pôr termo.
D.É que a intenção de salvaguardar o negócio não pode transformar-se numa forma de penalizar mais o terceiro que nele interveio do que a dissolução desse negócio.
E.Uma tal interpretação da lei cria uma ameaça para os adquirentes onerosos de bens a qualquer devedor, na medida em que através da impugnação pauliana este pode transferir para o adquirente a sua dívida, sem sequer deixar a oportunidade a este de pôr termo ao negócio supostamente lesivo dos direitos do credor.
F.Interpretação essa especialmente perversa se a natureza do negócio oneroso for transformada em gratuita pela mera avaliação de uma desproporção entre a contrapartida paga e uma qualquer expectativa do seu alienante: pode gerar-se um frutuoso ramo de negócios de limpeza de passivos através da aliciação de terceiros de boa fé para a compra de bens de qualquer devedor, a preços irresistíveis, apenas para transferir para estes, por via da sucessiva impugnação pauliana (procedente por tal negócio ser convertido em "não oneroso" por causa dessa alegada desproporção), as responsabilidades do devedor.
G.Qualquer que pareça ser a constelação de interesses que tornam a situação dos autos especial, os princípios que dela resultam são altamente lesivos para a segurança do tráfego económico: nenhum adquirente poderá mais fazer um bom negócio sem temer as possíveis consequências dessa sua fortuna.
A apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada, “impondo-se a comunicação à ora Recorrente da intenção de convolar o pedido formulado pelo A., por forma a que esta possa exercer plenamente os seus direitos de defesa e tomar, em função disso, as opções que melhor acautelarem os seus interesses (que poderão até passar pela dissolução voluntária do negócio -- não já por anulação, por ter passado o prazo – mas pela celebração de novo negócio de partilha que devolva ao seu marido a metade do imóvel que dele adquiriu, por erro ou dolo), assim se FAZENDO JUSTIÇA.

O A. contra-alegou, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A.Foi dado cumprimento ao artigo 3 n.º 2 do CPC.
B.A responsabilidade transferiu-se também para a Ré.
C.Atendendo ao valor da dívida presente mais de 15.000,00 euros, e futura de mais de 64.415,00 euros, já transitada em julgado, não há lugar à redução e ou conversão, tanto mais que os Réus disseram que não tinham outros bens ou fontes de rendimento, como então pagariam os créditos do A.. O único penalizado até hoje é o A..
D.Há total proporcionalidade entre o valor do bem e o crédito do Autor presente e futuro, uma vez que o mesmo é vitalício.
O apelado terminou pedindo que se mantivesse a decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.

Para além das questões que sejam de conhecimento oficioso, cabe ao tribunal ad quem apreciar tão só aquelas que emerjam das conclusões da alegação do recorrente (artigos 635.º n.º 4 e 608.º n.º 2 parte final do CPC).

Assim, nesta apelação a questão que se suscita é se o tribunal a quo proferiu uma decisão surpresa, tendo sido indevidamente preterida a prévia advertência à R. de que o tribunal iria converter o pedido de declaração de nulidade da partilha do património conjugal dos RR. numa declaração de ineficácia dessa partilha em relação ao A..

O tribunal a quo deu como provada, e não foi relevantemente impugnada, a seguinte matéria de facto.

1No âmbito de processo emergente de acidente de trabalho que correu termos sob o nº 23/08.1TTBRR.1 no Tribunal de Trabalho do Barreiro em que foi sinistrado José M...S...A..., aqui Autor, e entidade patronal António, aqui Réu, em sede de tentativa de conciliação realizada no dia 05 de Janeiro de 2010, foi obtido acordo entre sinistrado e entidade patronal, mediante o qual foi reconhecido que o sinistrado José foi vitima de um acidente ocorrido em 11 de Setembro de 2007, no Samouco, ao serviço da entidade patronal António, mediante a remuneração de €250,00 x 14 meses = €3.500,00 – salário anual, cuja responsabilidade não se encontrava transferida para qualquer seguradora.
Em exame médico realizado neste Tribunal o sr. Perito médico converteu a ITA em IPA por força do disposto no art.º 42º do Decreto Lei nº 143/99, de 30 de Abril.
Foi fixada a pensão anual devida ao sinistrado no montante de €2.800,00 com início no dia seguinte ao da conversão.
O sinistrado reclamou ainda o pagamento de €3.675,00 correspondente ao período de ITA desde a data do acidente e até 11 de Março de 2009, data da conversão.
A entidade patronal aceitou o acidente como de trabalho bem como o nexo de causalidade entre este e as lesões, aceitou a responsabilidade pelo salário acima indicado e concorda como resultado do exame médico realizado no Tribunal pelo que aceitou pagar a pensão, bem como a quantia reclamada a título de incapacidades temporárias, conforme documento junto a folhas 116 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea A) dos factos admitidos por acordo).

2Por decisão datada de 25 de Janeiro de 2010 foi homologado o acordo judicial obtido em sede de tentativa de conciliação a que alude a alínea A) nos precisos termos em que o mesmo se encontra elaborado, conforme documento junto a folhas 117 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea B) dos factos admitidos por acordo).

3Por decisão datada de 10 de Maio de 2011 proferida no âmbito dos autos de incidente de revisão de incapacidade proposto por António e no qual é sinistrado José, foi decidido que o sinistrado encontrava-se definitivamente afetado de 12,6% de IPP com IPATH, desde 11 de Outubro de 2010 (data do requerimento de revisão), em consequência do acidente participado nos autos, e foi fixada ao sinistrado a pensão anual e vitalícia de €1.838,20 devida desde a referida data e pagável nos termos do artigo 51º do Decreto Lei nº 143/99, de 30 de Abril, bem como do pagamento do subsidio de elevada incapacidade no montante de €4.836,00 nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 23º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, conforme documento junto a folhas 118 e 119 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea C) dos factos admitidos por acordo).

4No âmbito do processo nº 23/08.1TTBRR-D que correram termos pelo Tribunal de Trabalho do Barreiro por decisão datada de 06 de Junho de 2014 foi reconhecido o crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, I.P. no valor de €7.241,94, acrescido de juros de mora vencidos até Fevereiro de 2013, no montante global de €10.580,62, acrescido de juros vincendos desde tal data e foi determinado que, depois de precipuamente atendidas as custas da execução, se dê pagamento em primeiro lugar ao crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, I.P. e em segundo lugar o crédito do exequente José, conforme documento junto a folhas 120 e 121 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea D) dos factos admitidos por acordo).

5Junto da Conservatória do Registo Civil de Viseu em 26 de Março de 2013 com vista à Partilha do Património Conjugal no âmbito de processo de separação de pessoas e bens por mútuo consentimento nº 1875/2013 compareceram António e Leonilde, onde consta como descrito na relação de bens a partilhar o seguinte ativo: verba nº 1: prédio misto, sito na T..., M... N... ou Quinta C..., freguesia M..., concelho de M..., descrito na Conservatória do Registo Predial de M... sob o nº ......3/2......., com inscrição de aquisição a favor dos partilhantes pela AP. 5 de 1987/10/29, sobre o qual existe um ónus de penhora a favor de Marcos pela Ap. 1274 de 2013/01/11, únicas inscrições em vigor e inscrito na matriz urbana sob o artigo 4...., com o valor patrimonial e atribuído de 17.622,26€ e matriz rústica sob o artigo 62, secção B, com o valor patrimonial para efeitos de IMT e atribuído de 2.755,38€, com o valor patrimonial e atribuído total de 20.377,64€; verba nº 2: veículo automóvel, com a marca Mitsubishi, modelo Pajero, matrícula ...0-6...-...Q, com o valor atribuído de €500,00; e verba nº 3: veículo automóvel, com a marca Volvo, modelo F125524x2, matrícula X...-...5-4..., com o valor atribuído de 1.000,00€ (alínea E) dos factos admitidos por acordo).

6Consta ainda da partilha a que alude a alínea E) que acordaram que António tinha direito a haver de Leonilde o valor de €10.938,82 a título de tornas e a Leonilde foram adjudicadas as verbas nºs 1, 2 e 3, tendo ainda António declarado já ter recebido as tornas devidas pela partilha, pelo que dá plena quitação (alínea E) dos factos admitidos por acordo).

7O prédio misto, sito na T..., M... N... ou Quinta C..., freguesia de M..., concelho de M..., possui a área total de 23.520 m2, é composto de cultura arvense e árvores de fruto, com a área de 23.363 m2, e por um prédio urbano de rés do chão com 6 divisões para habitação, uma arrecadação e garagem, com a área de 156,74 m2 (conforme certidão emitida pela Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis do M... junta a folhas 107 verso a 108 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

8– O referido prédio possui ainda picadeiro coberto e cavalariças.

9– O veículo automóvel constante do ponto 05 de matrícula X...-...5-4... possui a matrícula cancelada desde 23 de Abril de 2015 e o veículo de matrícula ...0-6...-...Q foi vendido a terceiro, encontrando-se a aquisição a favor deste registada através da Ap. ....7 em 25 de Agosto de 2015 (certidões folhas 106 verso e 107).

10Os bens constantes do ponto 05 são os únicos bens propriedade dos Réus.

11– A Ré sempre teve conhecimento do acidente de trabalho sofrido pelo Autor e do constante dos pontos 01 a 04.

12– Através do constante do ponto 5 pretenderam os Réus, muito em particular a Ré, acautelar os seus bens.

13– No âmbito dos autos de execução que correram termos pelo Tribunal de Trabalho do Barreiro a aqui Ré, após ter sido notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 812º, nº 1 do Código de Processo Civil, requereu, em 15 de Maio de 2015, que o imóvel aí penhorado fosse vendido através de propostas em carta fechada e pelo valor base de €350.000,00 (conforme documento junto a folhas 75 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

14– No âmbito do processo de insolvência que corre termos pela 2ª Secção de Comércio do Barreiro – Instância Central – Comarca de Lisboa, sob o nº 3760/16.3T8BRR, foi proferida decisão, transitada em julgado no dia 27 de Dezembro de 2016, foi o Réu António declaro insolvente.

15– Do relatório de avaliação efetuado ao imóvel junto a folhas 220 a 241 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta que o perito (nomeado no âmbito dos autos de execução que correram termos sob o nº 23/08.1TTBRR-C na 2ª Secção do Tribunal de Trabalho do Barreiro), não entrou no seu interior devido “às opções do executado”, o imóvel encontra-se, à data de Junho de 2016, a ser utilizado pelo executado, por sua filha e pelo marido desta, e avaliou o prédio em €60.980,00.

O tribunal a quo enunciou ainda os seguintes.

Factos não provados.

A– A Ré não reside com o Réu.
B– As edificações construídas no prédio misto não têm licença de utilização e/ou estão construídas ilegalmente.
C– A escritura de separação de bens e partilha foi realizada em Viseu devido ao facto de nem todas as conservatórias possuírem competência para proceder simultaneamente à separação de bens e partilha de bens.
D– Tendo o Réu tratado de toda a documentação e marcação do ato notarial e informado a Ré que tinha de se deslocar a Nelas para receber dinheiro de um cliente.
E– O Réu é possuidor de bens móveis de valor suficiente para pagar a quantia devida ao Autor.

O Direito.

Na formulação da Constituição da República Portuguesa (CRP), “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” (n.º 1 do art.º 20.º da CRP). A defesa dos direitos e interesses em tribunal deverá fazer-se mediante processo equitativo (n.º 4 do art.º 20.º da CRP), o que pressupõe dar às partes em conflito a possibilidade de exporem as suas razões e de apresentarem as suas provas, em igualdade de circunstâncias, inclusive em resposta à atuação processual da contraparte (cfr., v.g., artigos 3.º, 4.º, 415.º do CPC).

Por força das alterações introduzidas no CPC de 1961 pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, com a redação fixada pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9, o legislador aprofundou o papel das partes na resolução do litígio, alargando o seu envolvimento ativo às várias fases do processo, em termos que assim ficaram espelhados no n.º 3 do art.º 3.º do CPC, reproduzido no mesmo artigo do atual Código:
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

É sabido que, se no que concerne à matéria de facto o tribunal está, no essencial, limitado às alegações das partes (n.ºs 1 e 2 do art.º 5.º, 552.º n.º 1 al. d), 572.º al. c), do CPC), o mesmo não sucede no tocante “à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (n.º 3 do art.º 5.º). Como reza o brocado latino, “jura novit curia”. Porém, as partes têm o direito de ser ouvidas acerca do enquadramento jurídico do litígio, de forma a poderem influenciar a decisão também a esse nível. Isto poderá levar a que, passada a fase dos articulados e já na fase de decisão final, o tribunal deva abrir um incidente de auscultação prévia das partes, se se lhe deparar uma solução de direito do litígio com que as partes não podiam contar e sobre a qual não tiveram antes a possibilidade de se pronunciarem.

Revertamos ao caso dos autos.

Como é notório, a ação sub judice é uma “ação de impugnação pauliana”, tendo sido expressamente identificada como tal pelo A..
O cumprimento da obrigação é assegurado pelos bens que integram o património do devedor (art.º 601.º do Código Civil). O património do devedor constitui assim a garantia geral das suas obrigações. A lei concede aos credores meios de conservação dessa garantia geral. Entre eles conta-se a ação pauliana ou, na terminologia do Código Civil de 1966, a ação de impugnação pauliana (art.º 610.º e seguintes do Código Civil).

A impugnação pauliana visa os atos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito dos quais resulte “a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade” (alínea b) do art.º 610.º do Código Civil).

Com ela não se questiona a validade do ato impugnado, mas a sua eficácia perante o credor. “Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”(n.º 1 do art.º 616.º do Código Civil).

A esta evidência, contudo, nem sempre corresponde a adequada formulação pelo credor da pretensão requerida ao abrigo da impugnação pauliana. Pondo-se a questão, se acaso o autor, alicerçado nos fundamentos de impugnação pauliana, pedir em juízo a anulação ou declaração de nulidade do ato impugnado, com o consequente retorno ao património do devedor do bem visado, pode o juiz, sem violação da limitação do tribunal ao peticionado (atualmente, art.º 609.º n.º 1 do CPC), adequar o veredito final ao regime substantivamente previsto, condenando nos termos da mera ineficácia preceituada no citado n.º 1 do art.º 616.º do Código Civil. Como bem se referiu na sentença recorrida, a resposta positiva a essa questão está pacificada desde há muito, na sequência do acórdão do STJ, de uniformização de jurisprudência, proferido em 23.01.2001 e publicado, sob o n.º 3/2001, no D.R., 1.ª série, de 09.02.2001.

Nesse acórdão firmou-se a seguinte jurisprudência:
Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º do Código de Processo Civil [atualmente, artigo 5.º n.º 3 do CPC].”

Ora, o supra afirmado verdadeiro escopo da impugnação pauliana e, bem assim, a descrita possibilidade de ajustamento oficioso, pelo tribunal, do efeito a declarar, são dados sobejamente adquiridos na comunidade jurídica, plenamente previsíveis para um profissional medianamente informado e diligente, não justificando, pois, as delongas provocadas pela audição complementar ora reclamada pela apelante. Conforme aduzido por Lopes do Rego, “a audição excepcional e complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” (Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, 2004, Almedina, p. 33).

Como se viu, na petição inicial, o A., após aduzir toda a fundamentação julgada necessária para impugnar paulianamente a partilha de património realizada pelos RR., tendo em vista atingir, sobretudo, o imóvel supra identificado, para com ele obter o pagamento do seu crédito, terminou com um pedido de declaração de nulidade desse negócio, com a consequente, na sua formulação, “restituição dos bens ao património do 1.º R.”.

O tribunal a quo, como consta na sentença recorrida, procedeu à adequada formulação do alcance da causa de pedir invocada pelo A. e dos efeitos a ela associados e, consequentemente, no uso dos poderes que pacificamente lhe são reconhecidos, procedeu à conversão do peticionado nos termos do dispositivo supra transcrito.

No que, pelas razões expostas, não merece, face à questão subsistente nas conclusões do recurso, qualquer censura.

Note-se que os efeitos penalizadores do terceiro adquirente, mencionados nas conclusões do recurso, advenientes da procedência da impugnação pauliana, são modelados pelo legislador tendo em consideração os interesses em presença, atendendo à natureza gratuita ou onerosa do negócio e à boa ou má-fé do adquirente, reconhecendo-se ao terceiro adquirente, perante o devedor transmitente, os direitos previstos no art.º 617.º do Código Civil. Tais efeitos resultam, naturalmente, das descritas opções do legislador e não da vontade do julgador, vertida numa particular interpretação da lei.

A apelação é, assim, improcedente.

DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante, porque nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 20.12.2017

Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins