Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23/14.2PCOER.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: ERRO DE JULGAMENTO
PROVAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I. O erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, às seguintes situações:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.

II. A diferente valoração da prova não se confunde com o erro de julgamento ou com qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.

III. A livre convicção tem que ser objectiva e motivada de modo a permitir um controlo pelos destinatários da mesma, pela sociedade e pelos tribunais de recurso, mas, verificada tal motivação, a mesma só nos casos excepcionais legalmente previstos (erro de julgamento e vícios) ou situações de arbitrariedade ou juízos puramente subjectivos e imotiváveis, é possível ser sindicada por um tribunal de recurso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I           Relatório

Na Comarca de Lisboa Oeste, Instância Local de Oeiras, Secção Criminal, Juiz 2, por sentença de 02/07/2015, constante de fls. 144 a 151, foi o arguido,

T..., …,

condenado,

- pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, perfazendo o montante de 180,00 € (cento e oitenta euros);

-  a pagar ao “Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, E.P.E.”, o montante de 112,07 €, a título de danos patrimoniais, acrescido dos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a notificação do pedido e até integral pagamento.

***

Não se conformando, o arguido interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 204 a 223, com as seguintes conclusões: (transcrição)


I. O recorrente impugna a douta sentença recorrida sobre matéria de facto, atento que o Tribunal a quo não valorizou corretamente a prova produzida, ocorrendo um erro notório de apreciação da prova (art. 410º n.º 2, alínea c), do C. de Processo Penal), apreciando-a incorretamente, admitindo este artigo o alargamento dos fundamentos do recurso às hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
II. Como decorre do corpo do nº 2 do art. 410º do C. de Processo Penal, estes vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que qualquer dos vícios tem de resultar da análise da decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo.
III. Desde logo, diz o Recorrente que o Tribunal não poderia dar como provado os pontos 6, 7, 8 e 9 dos factos provados que constam do capítulo II, referente à fundamentação.
IV. E são estes itens que o arguido pretende que deixem de constituir a matéria de facto provada e passem a constar na matéria de facto não provada.
V. Em primeiro lugar, há desde logo duas versões dos factos, uma a que é apresentada pela arguido, que nega que alguma vez tenha agredido o queixoso e a outra, a do queixoso, que afirma que o arguido lhe deu um soco contrariando o que afirmou na queixa-crime onde referiu que o arguido lhe deferiu vários murros.
VI. Os depoimentos das testemunhas de acusação foram suficientemente esclarecedores e cruciais para a descoberta da verdade material de forma a percebermos que as testemunhas não se afiguram credíveis atento os depoimentos prestados em sede de declarações na PSP, que contam outra versão dos factos.
VII. O Tribunal a quo, decidindo pela forma em que o fez, violou os artigos 128.° e 355.° do Código de Processo Penal, para ponderação da prova testemunhal.
VIII. A sentença é nula por falta de indicação e exame crítico das provas atento que no ponto C) da sentença, intitulado "Convicção do Tribunal", o Tribunal a quo limita-se a afirmar que, no que aos factos respeita, assentou após análise crítica de toda a prova produzida em audiência, usando todas as presunções legais em processo penal admissíveis, limitando se a proferir uma menção genérica aos depoimentos dos autos sem enunciar em que termos valorou cada um deles como meio de prova e em que medida os mesmos contribuíram para o seu convencimento.
IX. Inexiste uma apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas bem como dos documentos sendo certo que os documentos constantes dos autos constam de uma fotografia apresentada pelo queixoso e alegadamente tirada pela sua irmã, sem qualquer prova que a mesma tenha sido tirada em resultado de uma qualquer conduta do arguido.
X. Os documentos constantes dos autos não fazem prova uma vez que não é possível apurar a origem do alegado ferimento provocado pelo arguido.
XI. Conforme estipula o artº 379 al. a) CPP, é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na al, b) do nº 3 do art.374º do CPP.
XII. Por sua vez, dispõe o art.º 374º, nº 2 que, "ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que terão servido para formar a convicção do tribunal, omitindo qualquer referência à apreciação crítica das mesmas.
XIII. A falta de exame crítico das provas, imposto pelo artº 374°, n.º 2, do CPP, e a consequente insuficiência da fundamentação determina, nos termos do art. 379.°, n. nº1 a), do mesmo código a nulidade da sentença.
XIV. A mera menção dos documentos juntos ao processo ( foto e relatório medico) não satisfaz a exigência de indicação das provas em que se fundou, circunstância que necessariamente conduzirá à nulidade da decisão em razão do disposto nos artºs 374.°, nº 2 e 379°, n.º 1 al. a) do CPP, pelo que se impõe ordenar o suprimento da nulidade verificada, com a consequente revogação da decisão e determinação de prolação de nova sentença da qual conste a indicação especificada da prova documental fundamentadora da convicção e o exame crítico das provas, circunstancia que sempre conduzirá à nulidade da sentença em razão do disposto nos art.º 374.°/2 e 379/1 al. a) do Código de Processo Penal.
XV. O depoimento da A..., única testemunha que assistiu à troca de palavras entre o ofendido e o arguido e á forma como os factos entre ambos ocorreram, não só não foi considerado, como ainda é referido na sentença que a testemunha não se pronunciou quanto à agressão, o que não corresponde à verdade como se pode verificar pela audição do seu depoimento, no qual afirma que não existiu qualquer agressão.
XVI. A douta sentença ora posta em crise é contraditória e não fundamenta a razão pela qual deixou de se pronunciar sobre as declarações da testemunha Ana Bugalho bem como não esclareceu donde retirou a credibilidade das testemunhas mãe e irmã do queixoso, uma que nada viu e outra que apesar da discussão apenas assomou a janela no momento do murro.
XVII. Ora tal contradição entre a matéria dada como provada e a prova que foi produzida enferma de nulidade insanável a douta sentença recorrida.
XVIII. O arguido não se conforma com a sentença uma vez que a prova produzida em audiência não poderia dar lugar aos factos provados, nomeadamente, que o arguido sabia e queria incorrer no crime pelo qual foi condenado.
XIX. Pretendendo desta forma, o arguido ver apreciados os pontos que indica da matéria de facto provada, que entende incorretamente julgados, para efeitos da sua reapreciação.
XX. Se é certo que no âmbito do direito penal vigora o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º do C.P.P.), o mesmo não pode confundir-se com a apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, sendo, em concreto, reconduzível a critérios objetivos.
XXI. O aludido princípio determina que o juiz se resolve, não por critérios formais mas através de um juízo objetivo - material, atípico e concreto.
XXII. Desta forma, a prova livre não se confunde com prova arbitrária, obedecendo, antes, a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio. O princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal, constitui, no fundo, um dever de perseguir a chamada verdade material e, no exercício desse dever, o tribunal não pode esquecer o princípio de a dúvida ser decidida a favor do réu - princípio do ín dubio pro reo.
XXIII. O Principio da Livre Apreciação da Prova, plasmado no art. 127º do C. de Processo Penal. Este princípio indica que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (salvo as exceções ressalvadas na lei que, no caso, não se colocam).
XXIV. Os limites que estão subjacentes no citado art. 127º do C. de Processo Penal e que, aliados à institucionalização das regras de motivação e controlo em sede de apreciação da prova que obrigam a uma correcta fundamentação fáctica das decisões (cf. artigo 374 n.º 2 do mesmo Código).
XXV. A censura da forma de formação da convicção do Tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação da convicção, como o fez na valoração da prova.
XXVI. Não consta da douta sentença recorrida a fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto atento que não faz referência às declarações integrais da testemunha Ana Paula e dos fundamentados dos motivos da credibilidade dos depoimentos e dos documentos juntos aos autos atento que só uma tal fundamentação satisfaz a exigência resultante dos arts. 127º e 374°, n° 2, ambos do C. de Processo Penal.
XXVII. A testemunha A... corroborou a versão do arguido afirmando que o arguido não agrediu o ofendido, pelo que o Tribunal a quo, decidindo pela forma em que o fez, violou os artigos 128.° e 355.° do Código de Processo Penal, para ponderação da prova testemunhal.
XXVIII. Bem como violou, ainda, o princípio da valoração da prova e o princípio in dúbio pro reo
XXIX. Assim, da prova produzida em sede de julgamento, nenhuma dúvida subsiste acerca da inocência do arguido na prática dos factos pelos quais vem acusado.

Nestes termos e demais de direito deve o presente recurso obter provimento, e em consequência absolver o Recorrente como é de
Justiça! (fim de transcrição)

***

A Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso nos termos constantes de fls. 230 a 236, concluindo nos seguintes termos: (transcrição)

1.        O recorrente alega a existência de erro na apreciação da prova por entender que não poderia dar-se como provado os pontos 6, 7, 8 e 9 e assenta a sua convicção no facto de se tratar de uma situação em que arguido e ofendido apresentam versões contraditórias do que se passou.

2.           Mais alega que as testemunhas mãe e irmã do queixoso mentiram porque relataram uma versão diferente da que constava do inquérito, o que o próprio também fez.

3.           Porém, no nosso ordenamento jurídico presidem ao processo penal princípios como o da imediação e do da oralidade, entre outros e, como tal, as declarações e os depoimentos só podem ser valorados pelo julgador se e na medida do que for dito em sede de audiência de julgamento.

4.           Assim, não é sequer possível afirmar que existiram contradições entre o que as testemunhas e o ofendido afirmaram em audiência e o que “declararam” e foi reduzido a escrito nos autos, em sede de inquérito.

5.           Querendo, o ora recorrente poderia ter-se socorrido do mecanismo previsto no artigo 356.º, do Código de Processo Penal, em concreto na al. b), do n.º 3, o que não fez.

6.            Por outro lado, o depoimento das testemunhas tem de ser visto e analisado pelo julgador como um todo, tendo este a seu cargo a tarefa de escrutinar o que é dito em sede de julgamento, a forma como são prestadas as declarações e a credibilidade que lhe merecem as mesmas, até pela forma e a postura das próprias testemunhas.

7.            Em nosso entender, não existiu nenhuma contradição de depoimentos e as testemunhas prestaram declarações de forma isenta e credível.

8.           Os factos provados estão conformes à prova produzida em sede de audiência de julgamento.

9.           Da leitura e análise da fundamentação percebe-se, com facilidade, o caminho que o Tribunal percorreu e que o levou à condenação deste arguido, as provas em que se baseou, inexistindo qualquer reparo a fazer.

10.         É o recorrente que, ao decompor as várias provas analisadas pelo Tribunal, referindo-se a cada uma delas de forma individual, afirma que isso não chega para se alcançar a condenação.

11.          É, porém, manifesto que não foi esse o caminho que levou à sua condenação e isso decorre da fundamentação da sentença.

12.         As exigências legais contidas no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal estão cumpridas, não se verificando a alegada nulidade.

13.         Não se vislumbra de que modo o Mm.º Juiz “a quo” violou o princípio da livre apreciação da prova este princípio.

14.         Tanto mais que o recorrente invoca tal violação mas fundamenta-a com os mesmos argumento que utilizou para invocar o erro na apreciação da prova.

Nestes termos, deverá manter-se integralmente a Douta Sentença proferida, negando-se provimento ao recurso.

V. Exas., contudo, farão conforme for de JUSTIÇA. (fim de transcrição)

Neste tribunal, o Exmo. Procurador - Geral Adjunto limitou-se a apor o visto a fls. 245.

Não foi cumprido, por desnecessidade, o disposto no artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal.

***

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

II          Fundamentação

           1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer[2].

Da leitura dessas conclusões o recorrente coloca a este Tribunal as seguintes questões:

Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e erro de julgamento no que respeita aos pontos 6, 7, 8 e 9 dos factos provados que deviam ter sido dados como não provados;

Verificação do vício de erro notório na apreciação da prova da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP;

A sentença é contraditória entre a matéria dada como provada e a prova que foi produzida;

Nulidade da sentença por falta de indicação do exame crítico das provas nos termos dos artigos 379º al. a) e nº 2 e na al. b) do nº 3 do artigo 374, ambos do Código de Processo Penal;

Violação do princípio in dúbio pro reo, da presunção de inocência e violação do princípio de livre apreciação da prova do artigo 127º do CPP.

Para uma melhor compreensão das questões colocadas e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, em primeiro lugar, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e qual a fundamentação efectuada sobre essa factualidade assente.

2. O Tribunal a quo deu como provados, os seguintes factos: (transcrição)

1.         L... e A... foram casados até 2005, sendo pais de dois menores, o V…, nascido a 16 de Junho de 1999, e a C…, nascida a 9 de Dezembro de 2002;

2.           A A…, depois do divórcio, passou a residir na Covilhã, juntamente, com os filhos de ambos, tendo-se casado, posteriormente, com o arguido, T...;

3.           Após insistência de L... que pretendia ver os filhos, com quem já não estava há algum tempo, no dia 24 de Dezembro de 2013, pelas 16,00 horas, a A..., acompanhada do arguido e dos dois menores, deslocou-se à residência de L..., sita na Rua x;

4.           O L... recebeu-os no quintal e quando encaminhava os filhos para o interior da sua residência, o arguido referiu que pretendia conversar, tendo aquele pedido que aguardasse um instante para vestir uma roupa mais quente;

5.           Quando L... regressou ao quintal, o arguido, reportando-se ao alegado incumprimento do regime de visitas, fixado no acordo do exercício das responsabilidades parentais, deu início a uma discussão, referindo que não admitia que constrangesse A... com o tribunal;

6.            No decurso da discussão e porque L... referiu que tal era uma situação que apenas dizia respeito a si, à A..., aos filhos de ambos e ao tribunal, o arguido, exaltado, desferiu-lhe um murro na zona do sobrolho do lado esquerdo, fazendo com que caísse ao solo;

7.           Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o L... sofreu uma pequena escoriação supraciliar esquerda, que lhe determinou um dia de doença;

8.            O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde de L... e de lhe produzir dores;

9.           O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;

10.          Do C. R. C. do arguido nada consta;

11.          O “Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, E. P. E.” prestou assistência ao ofendido, tendo o tratamento importado em 112,70 €;

Mais se apurou que o arguido:

12.          É casado;

13.         É estudante de engenharia informática, beneficiando duma bolsa de estudo mensal que importa em 385,00 €

14.          Vive com a mulher que é, igualmente, estudante e recebe uma bolsa mensal de cerca de 415,00 €

15.          Tem 2 filhos da mulher que estão a cargo do casal;

16.         Vive em casa arrendada e paga uma renda mensal de 468,00 €;

17.          Tem o 12º ano e a frequência do 3º ano de gestão. (fim de transcrição)

3. Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na decisão recorrida: (transcrição)

A convicção do tribunal, no que respeita aos factos dados como provados, assentou, após análise crítica de toda a prova produzida em audiência, usando todas as presunções legais em processo penal admissíveis, essencialmente:

Nesta audiência de julgamento ouviram-se o arguido, o ofendido, bem como as testemunhas, mãe e irmã do ofendido que se encontravam no interior da residência quando ocorreu a agressão.

Foi, ainda, ouvida a mulher do arguido e ex-mulher do ofendido que se encontrava no local quando ocorreu a entrega dos filhos e a agressão.

O arguido fez um depoimento circunstanciado, mas negando qualquer agressão, tendo, contudo, dito que foi falar com o queixoso porque não ´só não gostou da exigência daquele, no que às visitas das crianças respeita, pois entende que não tem legitimidade para reclamar, uma vez que não contribui com a pensão de alimentos que foi estipulada, como, por outro lado, o arguido enviou à ex-mulher, actual do arguido, mensagens de correio electrónico impróprias, aliciando a mulher de forma que o arguido considera imprópria por terem as mesmas natureza sexual.

Descreveu, então, como se passaram as coisas, mais dizendo que, mesmo que tivesse desferido um soco naquele, o ferimento não podia apresentar o que estava na fotografia. Houve, ainda, discordância quanto á hora a que ocorreram os factos.

O queixoso depôs e, no essencial, descreveu o que consta da acusação, referindo que levou um soco, inesperadamente, uma vez que se dispôs a falar com o arguido, pois este tinha-o solicitado e ficou surpreso com tal conduta. Referiu que, após receber as crianças e a bagagem, uma vez que estas vinham passar o Natal com ele e a família, voltou a sair e foi surpreendido pelo soco do arguido que o projectou para o chão, sendo certo que ficou a sangrar, como se encontra demonstrado na fotografia de fls. 38 e cujo exame clínico se encontra a fls. 16 e 20.

Ouviu-se a mulher do arguido e ex-mulher do queixoso que não se pronunciou sobre a agressão, procurando descrever o circunstancialismo do ex-marido estar com um cigarro na mão, referindo tal como o marido a hora que não é coincidente com a da acusação, sendo certo que, analisados os documentos do hospital e da polícia, afigura-se-nos que a hora que estará certa é a ada acusação, uma vez que se foi queixar e depois, por indicação da polícia terá ido ao hospital. O seu depoimento versou, também, o problema dos incumprimentos da relação parental por parte do ex-marido.

Ouviram-se, ainda, a irmã e a mãe, sendo que a primeira disse ao tribunal que ao ouvir a discussão que ocorreu em voz alta, encontrando-se no andar de cima da casa, assomou à janela e viu o queixoso desferir um soco no irmão que não reagiu, dizendo que a sua chegada á janela coincidiu com o soco, referindo que eram cerca das 16,00 horas. A mãe, por sua vez, referiu encontrar-se no interior da residência, com os netos que tinham acabado de chegar, tendo sido sua preocupação que percebessem o que se estava a passar no exterior da residência, dizendo, porém, que viu o filho a cair e a sangrar. Instada disse que tais factos – agressão e queda – terão durado cerca de 3 minutos, dizendo, também, que a hora da ocorrência foi cerca das 16,00 horas

As testemunhas de defesa não presenciaram os factos, tendo-se pronunciado, exclusivamente, sobre a personalidade calma e não violenta do arguido, não tendo ideia que este tivesse qualquer comportamento como o que lhe é imputado nos autos.

A conclusão que o tribunal tirou de todos os depoimentos é que os factos ocorreram como se deram como provados. Em primeiro lugar, porque os ferimentos, embora não muito graves, não se compaginavam com a versão do arguido que só não negou os ferimentos porque não o podia fazer. Em segundo lugar, o próprio arguido disse ao tribunal que já vinha com a intenção de pedir satisfações ao queixoso, não só pelos incumprimentos, como pela forma como este se dirigia à sua mulher, enviando-lhe mensagens que o arguido considerou imprópria e desrespeitadoras do casal. Diga-se que já vinha preparado para o conflito. Dúvidas não restaram ao tribunal sobre a ocorrência dos factos provados.

As lesões que esta apresentava e que se deram como provadas, resultou da análise do exame de fls. 16 e 20. Bem como a fotografia com o semblante do ofendido ensanguentado, sendo que o arguido, neste caso, referiu que este “só” tinha uma pequena amostra de sangue e não a da fotografia, sendo que não deu uma explicação cabal e convencedora para a sua versão.

               No que respeita à situação económica e social, nas declarações do arguido.

               No que respeita aos antecedentes criminais, no C. R. C. de fls. 93. (fim de transcrição)

4. Vejamos se assiste razão ao recorrente.

4.1 Vejamos cada uma das questões colocadas pelo recorrente, iniciando a análise das mesmas por aquelas que se prendem com a impugnação do julgamento sobre a matéria de facto e os vícios referidos.

Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e erro de julgamento no que respeita aos pontos 6, 7,8 e 9 dos factos provados que deviam ter sido dados como não provados;

Verificação do vício de erro notório na apreciação da prova da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP;

A sentença é contraditória entre a matéria dada como provada e a prova que foi produzida;

Nas suas alegações e conclusões supra referidas, o recorrente pretende a impugnação do julgamento da matéria de facto (Conclusões III, IV, XV e XIX) de modo a demonstrar eventuais erros de julgamento e a modificar a matéria de facto, nos termos do artigo 431º e ainda, tanto conseguimos percepcionar, os vícios de erro notório na apreciação da prova (Conclusões I e II) e contradição insanável da fundamentação (Conclusões XVI e XVII) previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Convirá referir que estamos em presença de duas realidades distintas.

A este propósito e atenta a sua clareza, permitimo-nos transcrever o sumário do acórdão do STJ proferido no Proc. nº 4375 em que foi relator o Conselheiro Raul Borges: «A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma»[3].

Este entendimento é hoje pacífico na doutrina e jurisprudência no que respeita à impugnação da matéria de facto em sede de recurso para o Tribunal da Relação.

O recorrente para impugnar a matéria de facto em sede de erro de julgamento, deveria ter especificado os concretos pontos de facto que considere deficientemente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do artigo 412, nºs 1 e 2, als. a) e b) do Código de Processo Penal e, em função da gravação da audiência, as especificações no caso da al. b) do preceito, fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, nos termos do nº 4 do mesmo preceito.

Não podemos olvidar que o erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:

- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;

- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;

- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;

- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;

- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.

Ora, o que o recorrente faz não é especificar nenhuma destas situações. Limita-se, ao longo da sua motivação, alegar genericamente que a prova produzida impunha decisão diversa dando como não provados os pontos 6, 7, 8 e 9 dos factos dados como provados (tal como faz nas conclusões II e III), invocando para tanto o depoimento da testemunha A... (conclusão XV), sem tirar nenhuma conclusão de facto e sem especificar os pontos concretos que considera incorrectamente julgados e indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Verdadeiramente o recorrente entende que existe erro de julgamento porque o Tribunal a quo valorou de forma diferente, do por si defendido, os depoimentos prestado em audiência, o que não consubstancia um erro de julgamento mas, antes, uma diferente valoração da prova como veremos adiante.

Não cumpre assim a obrigação de impugnação especificada que impende sobre o mesmo e resulta do artigo 412º, nº 3 e 4º do CPP.

Assim, não tendo o recorrente dado cumprimento ao referido ónus de impugnação especificada, está este Tribunal de recurso impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo (artigo 431.º do CPP), a não ser no âmbito dos vícios a que alude o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

Resta-nos assim apreciar os vícios constantes do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal os quais são, diga-se, de conhecimento oficioso.[4]

4.2 O recorrente atentas as suas conclusões de recurso e o que ficou dito, aponta para a verificação dos vícios previstos nas alíneas c) (erro notório na apreciação da prova) e b) (contradição insanável) do nº 2 do artigo 410º, do Código de Processo Penal.

Vejamos pois, antes de mais, o que entender sobre cada um dos vícios e se os mesmos se encontram presentes na decisão colocada em crise.

Desde já convirá referir, como faz o recorrente e como se salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado e resulta do próprio texto legal, os vícios previstos no nº2 do artigo 410º do CPP têm que, forçosamente, resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. 

Vejamos então cada um deles, iniciando a análise pela contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Este vício ocorre, “(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal”.[5]

Ou, como referem Simas Santos e Leal Henriques, “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”[6]  

Estamos ainda em presença de contradição insanável nas situações em que existe um vício “(…) ao nível das premissas que determina uma formação defeituosa da conclusão: se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível.”[7]  

A contradição insanável ocorre no seio da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão. A fundamentação, para efeitos deste preceito e do próprio conceito, é não só aquela que se reporta ao facto, mas, também a que se reporta à decisão e a esta na sua relação com a fundamentação de facto.

Sendo estes os pressupostos da verificação do vício invocado, não logramos descortinar onde o recorrente encontrou a contradição no texto da decisão recorrida.

O que o recorrente verdadeiramente pretende na invocação deste vício é, mais uma vez, misturar o eventual erro de julgamento da matéria de facto, inexistente, com este vício como se pode constatar das conclusões XVI, XVII e XVIII e, em última análise, colocar em causa a valoração da prova que o Tribunal a quo efectuou. 

A divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou não se confunde com qualquer vício do artigo 410º nº 2 do CPP.[8] 

Inexiste pois o alegado vício de contradição insanável.

Vejamos, finalmente, o erro notório na apreciação da prova.

Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, é necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.[9]   

Neste mesmo sentido, escreve-se no sumário de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, “O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”.[10]  

Para se verificar este vício tem pois de existir uma “ (…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiencia comum”.[11]   

Este entendimento da jurisprudência é também seguido pela doutrina, como se alcança da transcrição do seguinte texto de Paulo Saragoça da Matta no qual se refere que, ao tribunal de recurso cabe apenas “ (…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”.[12]   

Tendo em conta todos estes ensinamentos e lendo a douta decisão recorrida não logramos descortinar onde a mesma é absurda, ilógica ou atentatória das regras da experiência comum.

O que o recorrente pretende é, como já ficou referido, colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção. Ora, como já se disse, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova nem qualquer outro do artigo 410º nº 2 do CPP.   

Da leitura do texto da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se percebe que a mesma é escorreita, doutamente fundamentada e os juízos que são feitos são apreendidos pelo leitor comum, isto é, são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.

Por tudo isto não se verifica nenhum dos vícios alegados pelo recorrente improcedendo estas conclusões.

4.3 Nulidade da sentença por falta de indicação do exame crítico das provas nos termos dos artigos 379º al. a) e nº 2 e na al. b) do nº 3 do artigo 374, ambos do Código de Processo Penal.

O recorrente alega ainda que a decisão padece de falta de fundamentação, por não constar da mesma ao exame crítico da prova, tal como exige o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal e, nessa medida, a mesma é nula nos termos do artigo 379º, al. a) do mesmo código.

Vejamos esta conclusão do recorrente adiantando, desde já, que não lhe assiste razão.

O texto constitucional no seu artigo 205º nº 1 obriga a que as decisões dos tribunais “…que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Na densificação deste princípio constitucional o legislador ordinário, no âmbito do processo penal, estabeleceu no artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal que na fundamentação devem “…ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. Densificando ainda mais o princípio, no que à sentença respeita, o legislador consagrou, no 374º nº2 do mesmo código, que a sentença deve conter “ uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

O legislador, em obediência ao referido princípio, cominou com a nulidade a ausência de fundamentação (artigo 379º, nº 1 al. a) do CPP).

Resulta pois que a sentença, tal como os despachos que conheçam de mérito, isto é, que não sejam de mero expediente, só cumprem o dever de fundamentação, quando os sujeitos processuais seus destinatários são esclarecidos sobre a base jurídica e fáctica das decisões sobre eles tomadas.

Porém e como vem sendo entendido pela Jurisprudência, a lei não vai ao ponto de exigir que, numa fastidiosa explanação, transformando o processo oral em escrito, se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, todo o raciocínio lógico seguido. O que a lei diz é que não se pode abdicar de uma enunciação, ainda que sucinta mas suficiente, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão[13] que o Estado de Direito Democrático exige.

Tendo em conta estes princípios, aplicáveis às sentenças e por arrastamento aos demais despachos que conheçam de mérito, facilmente se intui não padecer a decisão em crise de falta de fundamentação.

O douto Tribunal a quo ao longo da motivação da matéria de facto, para além de fazer uma breve descrição dos vários depoimentos, explica, de forma racional e lógica, os motivos pelos quais valora uns em detrimento de outros, com especial enfoque para o do ofendido e do arguido. O tribunal faz ainda uma descrição sumária e da razão de ciência dos depoimentos da irmã e mãe do arguido explicando, sem qualquer dúvida o percurso lógico racional que expendeu na análise que fez de tais depoimentos. Elenca ainda a prova documental que valorou e enuncia os critérios legais para tal valoração.

Não era exigível ao Tribunal a quo fazer mais do que aquilo que resulta da motivação, sendo a mesma racional, lógica e assertiva cumprindo cabalmente o que resulta da lei.

Como tem sido jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, “a decisão sobre a matéria de facto fica suficientemente motivada com a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, sem necessidade de se exprimir o teor das declarações e dos depoimentos, bem como a razão crítica do tribunal para os aceitar ou para os preferir em detrimento de eventuais provas divergentes.”[14]

O que o recorrente não concorda é com a valoração da prova que o julgador efectuou mas, essa discordância, ainda que legítima não é, só por si e pelas razões aduzidas, fundamento de recurso.

Como referimos supra, o que se pretende com a exigência de fundamentação é persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão, o que, no caso dos autos, manifestamente aconteceu, inexistindo, por isso qualquer ilegalidade e muito menos qualquer violação dos artigos 32º ou 205º da Constituição da República Portuguesa.

Improcede assim também esta conclusão do recorrente.

4.4 Violação do princípio in dúbio pro reo, da presunção de inocência e violação do princípio de livre apreciação da prova do artigo 127º do Código de Processo Penal.

O recorrente alega a violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção de inocência.

O princípio condensado na fórmula latina in dúbio, impõe que, em caso de dúvida na valoração da prova, a decisão seja pro reo, isto é, decidida a favor do réu. Este princípio decorre, desde logo, do princípio da presunção de inocência estabelecido no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

Como se vê dos pressupostos e da natureza do princípio, o mesmo, para ter aplicação, pressupõe que o Tribunal tenha ficado com dúvidas sobre determinado facto.

Não tendo o Tribunal a quo ficado com dúvidas, como não ficou, em relação aos factos provados, não faz qualquer sentido lançar mão do princípio in dúbio pro reo.

O que o recorrente pretende, verdadeiramente, como já ficou referido supra, é que a convicção do Tribunal recorrido seja substituída por uma outra diferente, seja a sua própria, seja a deste Tribunal de recurso, que leve a não sejam dados como provados factos que resultaram provados dos autos pelas razões constantes da sentença em crise como demostrámos.

Improcede pois, igualmente, a alegação do recorrente no que respeita à pretensa violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção de inocência em que o mesmo se corporiza constitucionalmente.

Vejamos finalmente a alegada violação do princípio da livre apreciação da prova expressamente consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual impõe, salvo quando a lei dispuser diferentemente, que a prova seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Este princípio, fora do contexto dos vícios ou erros de julgamento legalmente previstos, afasta todas as situações de valoração diferente de prova como fundamento para se concluir pela errada apreciação da mesma.

Na verdade não podemos esquecer que no processo de formação da convicção do juiz “…desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”.[15] A este propósito, escreveu-se no sumário do acórdão da Relação de Coimbra de 6/12/200 «O Tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) só verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1ª instância».[16]

Como dizem A. Varela, Miguel Bezerra e S. Nora, “(…) existem no julgamento da matéria de facto operações de carácter racional e psicológico, em que se baseia a convicção do julgador, que são, pela sua própria natureza, insindicáveis pelo tribunal de recurso.

E o dito princípio da livre apreciação da prova, que, por isso mesmo, não pode ser, pelo menos na totalidade, posto em crise, pela possibilidade de sindicância do julgamento da matéria de facto, através da gravação dos depoimentos, implica que as provas sejam valoradas livremente pelo julgador (quer sejam testemunhais, periciais, depoimentos de parte, etc.), sem que exista qualquer hierarquização entre elas”.[17]

No mesmo sentido vai a opinião de Germano Marques da Silva o qual refere, sobre tal componente, “ (…) implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação”.[18] Acrescenta este autor que “este princípio (...) significa que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo (pelas alegações, respostas e meios de prova utilizados (…)”[19][20]
Como se refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1165/96 de 19 de Novembro de 1996, “ a regra da livre apreciação da prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo”. [21]

Como refere Claus Roxin, “ (…) la mera certeza subjectiva del juez no es suficiente allí donde el resultado objetivo de la recepción de la prueba no admite una conclusión racional y convincente sobre la autoría del acusado. (…) Por ello, es exigible que el processo de formación de la sentencia también pueda ser controlado posteriormente por otros jueces y que no se base en meras suposiciones”.[22]

Em resumo, como se pode constar da doutrina e jurisprudência citadas, a livre convicção tem que ser objectiva e motivada, de modo a permitir um controlo pelos destinatários da mesma, pela sociedade e pelos tribunais de recurso, mas, verificada tal motivação, a mesma só nos casos excepcionais legalmente previstos ou situações de arbitrariedade ou juízos puramente subjectivos e imotiváveis, é possível de ser sindicada por um tribunal de recurso. Esta sindicação deverá ser efectuada nas situações de prova legal não considerada, situações de arbitrariedade, juízos subjectivos, imotivados e nas situações em que, segundo as regras de experiencia de um homem médio, da prova produzida não seja possível extrair a prova do facto dado por assente.

Ora, olhando para o texto da douta decisão, em nenhum momento ou passagem se pode concluir estarmos em presença de alguma destas situações.

Assim, sem mais considerandos, por desnecessários, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, que se confirma, improcedendo o presente recurso.

III         Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s - artigo 513.º, n.º 1, do CPP.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por vinte e três páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmo. Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 04 de Fevereiro de 2016

Antero Luís

João Abrunhosa

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[1]   Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.
[2]    Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995
[3] In www.dgsi.pt

[4]   Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP.
[5]   Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1999, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III, p. 184.
[6]   In Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol, pág.379.
[7]   Acórdão do STJ de 28/10/1998 no Proc. Nº JSTJ00035662.
[8]   Veja-se, neste sentido, acs. do STJ de 17/03/2004 Proc. 03P2612 e 13/07/2005 no Proc. 05P2122, em que foi relator o Conselheiro Henriques Gaspar.
[9]   Cfr.  Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, pág. 200.
[10]  Proc. 308/08, em que foi relator o Conselheiro Simas Santos.
[11]  Ac. STJ 19/07/2006 Proc. 1932/06, ambos in www.dgsi.pt.
[12] In  “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[13]   No que respeita à sentença, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2007 [Cons. Armindo Monteiro], processo 3193/06 – 3.ª Secção, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.
[14] Por todos, acórdão de 17 de Fevereiro de 1994, processo n.º 43 261).

[15] Veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e sgs.
[16]  Proc. 733/2000. (www.dgsi.pt).
[17]  Manual do Processo Civil, 2ª ed., pág. 471.
[18]  Registo da Prova em Processo Penal – Estudos de Homenagem a Cunha Rodrigues, pág. 817.
[19]  In “Curso de Processo Penal”, vol. I, 1996, pág. 78.
[20]  No mesmo sentido A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1968, pág. 48.
[21] In B.M.J., n.º 461, 1996, pág. 93.
[22] In Drecho Procesal Penal Editores del Puerto, Buenos Aires 2000, pág. 103 e 104.