Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
180/16.3PJOER.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: GRAU DE PUREZA CANNABIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I A cannabis apresenta-se sob uma forma natural e a presença do tetrahidrocanabinol, ou seja, do componente responsável pelos efeitos psicotrópicos do produto e que determina a potência do estupefaciente, difere significativamente consoante diversos factores próprios da planta, como sejam a zona de cultivo ou a selecção das partes a utilizar, mas nunca apresenta um estado "puro";

II Compreende-se por isso que a tabela relativamente à cannabis não indique apenas limites quantitativos para a dose média individual diária e afirme que esses mesmos limites dependem de concentrações médias de A9THC;.

III Dos elementos constantes do mapa ou tabela anexa à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março decorre em primeiro lugar que a quantidade indicada para a cannabis-resina (0,5 grama) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC” e não a um estado de pureza absoluta da substância ou uma concentração de 100% .

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:
   
1. Nestes autos de processo especial abreviado nº 180/16.3PJOER do Juízo Local Criminal de Oeiras Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, o arguido I.R.M., sofreu condenação pelo cometimento em autoria material de um crime de detenção para o consumo, previsto e punível pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, que lhe é anexa, na pena de oitenta e cinco dias de multa, à razão diária de seis euros.

Inconformado, o arguido interpôs recurso desta decisão e da motivação extraiu as seguintes “conclusões” (transcrição):
“1-O recorrente considera como incorrectamente julgados os factos constantes nos pontos 1, 3, 4, 5, 6 e 21 da matéria de facto dada como provada na Sentença recorrida.
2-O recorrente considera os factos supra referidos incorrectamente julgados, impugnando-os, impondo-se decisão diversa através da seguinte prova:
-Relatório de exame de toxicologia, fls. 36 dos autos;
-Declarações do arguido em sede de audiência de julgamento;
-Depoimentos dos agentes RV e PA.
-não se sugere renovação da prova
3- Especificando:
4- Decorre da douta sentença ora em crise que o arguido no dia 4 de Dezembro de 2016, entre as 12:15 e as 12:40, na Rua ……………….., na área do município de Oeiras, trazia consigo resina de canábis com o peso de 5,493 gramas, com o grau de pureza de 11,4 % THC.
5-Mais referindo que tal substância seria correspondente a 12 doses diárias individuais, atento o consumo médio individual.
6-Mais se deu como provado que o arguido conhecia as características e natureza estupefaciente do produto que detinha, bem como pretendia ter em sua posse canábis e nas quantidades supra indicadas.
7-Que agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.
8-Mais entendeu o Tribunal a quo dar como provado que o arguido não tem rotinas actuais estruturadas, mantém um quotidiano de ociosidade, com diminuta supervisão da família, desenvolvendo pontualmente alguns trabalhos indiferenciados, dependendo da oferta existente.
9-Considerando os factos provados e a ausência de factos não provados, entende o recorrente, que não foram tomadas em consideração as suas declarações, nomeadamente, no que respeita à sua actividade laborai e supervisão da família.
10- Das declarações do arguido I.R.M.
(CD gravação áudio de 27-04-2017 15:28:49 a 15:41:35, minutos 10:34 até 11:02)
Juiz: O senhor estava a dizer então que é ajudante de cabeleireiro, mas aonde?
Arg: No cabeleireiro do meu irmão lá ao pé de casa.
Juiz: Trabalha quantos dias para (... não termina questão)
Arg: Só folgo um, só folgo um dia por semana.
Juiz: Deixe-me adivinhar só folga à terça-feira.
Quanto é que ganha por dia?
Arg: Dez ou quinze euros.
11-De acordo com as declarações do arguido, está actualmente empregado no cabeleireiro do seu irmão, o que põe de parte o referido quotidiano de ociosidade, facto do qual não existiu prova em contrário, pois nem mesmo o relatório social elaborado continha informação sobre a sua actual actividade laborai, fazendo menção a entrevista com o arguido (não existindo referência à data da referida entrevista e o arguido na verdade não se recorda de ter prestado qualquer informação recente junto dos serviços de reinserção social).
12-Estando a desempenhar funções no estabelecimento do seu irmão, durante o horário de trabalho está acompanhado por este, o que necessariamente obriga a que exista maior supervisão sobre o arguido, facto igualmente desconsiderado no âmbito da fundamentação da Sentença.
13-Inexistindo prova em contrário, entende o ora recorrente que as suas declarações no que a esta questão se referem deveriam ter sido valoradas positivamente e serem parte integrante da Fundamentação, mais concretamente dos factos provados.
14-Por outro lado, o recorrente entende que a douta sentença recorrida padece do vício a que se reporta a al. c) do n° 2 do art° 410° do Cod. Proc. Penal.
15-Uma vez que da análise do libelo acusatório verifica-se ser impossível condenar o arguido pelo crime de consumo quando o produto apreendido ao arguido apenas e tão somente continha 11,4% de THC.
16-A sentença recorrida ignorou o grau de pureza da substância submetida a exame pericial no LPC, uma vez que a percentagem do princípio activo encontrado na substância examinada é de 11,4%, o que corresponde a menos de 1/5 do peso total da substância.
17-A substância ilícita apreendida ao recorrente corresponde a 0,626 gramas de princípio activo (5,493/L x 11,4% = 0,626) e a (0,626 x 0,5 = 1,252), ou seja, a menos de duas doses médias individuais diárias.
18-O princípio activo da canabis, que é o responsável pela maioria dos seus efeitos psicotrópicos é o tetrahidrocabinol (THC) existente no produto, a que se faz referência nas tabelas anexas, enquanto “droga pura”.
19-Só perante a percentagem do princípio activo constante da substância apreendida, o produto “puro”, seja canábis, seja qualquer outra substância, mormente heroína ou cocaína é que podemos avaliar se a quantidade detida é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
20-O produto "puro" apreendido ao arguido corresponde a 0,626 gramas de princípio activo.
21-Se o tribunal a quo tivesse atendido ao grau de pureza da substância submetida a exame, teria chegado à conclusão de que o produto “puro” apreendido ao arguido corresponde a 0,626 gramas de canábis o que corresponde a menos de 1,000 grama.
22-Ou seja, dos 5,493/L do produto apreendido, apenas 0,626 gramas do produto se refere ao THC, o princípio activo cuja posse é proibida.
23-Os adicionantes ou misturas para aumentar a quantidade do produto não são proibidas ou punidas por lei.
24-Nos termos do artigo 71° do Decreto-Lei n° 15/93 a dose média individual diária é calculada com base na quantidade de produto activo presente no produto estupefaciente que esteja em causa (cfr. alínea c)).
25-A Portaria n° 94/96 de 26 de Março, para que remete o corpo do citado artigo 71°, indica no seu mapa a quantidade máxima de princípio activo para cada dose média individual diária. No caso de canabis-resina essa quantidade máxima é de 0,5.
26-Tendo em conta o provado, que o arguido detinha 5,493 gramas de canabis-resina com 11,4% de princípio activo, corresponde essa quantidade a (5,493 x 11,4%) 0,626 gramas de princípio activo e a (0,626: 0,5=1,252) menos de duas doses médias individuais diárias!
27-Entende ainda o recorrente que se impunha apurar o consumo médio individual do arguido, para que se pudesse concluir se excedia ou não a quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
28-Porém, não foi apurado o consumo médio individual do arguido.
29-De todo o modo, ainda que assim não se entenda, ou seja, que o conceito de quantidade necessária superior para o consumo médio individual durante o período de 10 dias encontrado segundo vários critérios a ponderar em cada caso concreto, como seja o modo de consumo do arguido, deve sempre ser tomado em conta o grau de pureza da substância submetida a exame.
30-O princípio activo é a substância de estrutura química responsável por produzir uma alteração no organismo que pode ser de origem vegetal ou animal, no caso dos autos essa substância de estrutura química corresponde a 0,626 gramas, pelo que é imperioso concluir que tal quantidade não é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
31-Inexiste pois fundamento legal para a condenação do arguido.
32-A este respeito, não poderemos deixar de citar o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no processo n.° 209/16.5PBCTB.C1 datado de 29/03/2017 - disponível em http://www.dqsi.pt
(...)
Apreciando:
O recorrente alega que o haxixe (resina) que detinha, tendo em conta a percentagem de princípio activo nele contida, não era suficiente para ultrapassar o consumo médio individual de 10 dias, pelo que a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 40°, n° 2 do Decreto-Lei n° 15/93, o artigo 2ºda Lei n° 30/2000 e o artigo 9° da Portaria 94/96.
Tendo sido considerado provado na decisão recorrida que o produto estupefaciente detido excedia o necessário para o consumo médio individual durante 10 dias e que correspondia a 18 doses, escusou-se o recorrente a qualificar qual o vício que vislumbrava na decisão recorrida; se erro de julgamento (artigo 412°, n°s 3 e 4 do CPP) se erro notório na apreciação da prova (cfr. artigo 410°, n° 2, alínea c) do CPP) o que, como veremos, não impede este Tribunal de recurso de extrair as necessárias consequências do eventual vício.
Antes de qualquer outra abordagem devem ser esclarecidos os conceitos de base, cuja incompreensão parece estar na origem de vícios de raciocínio da decisão recorrida (e antes da acusação manifestamente infundada).
Assim, comete o crime previsto no artigo 40°, n° 2 do Decreto-Lei n° 15/93 de 22.1 quem, nomeadamente, detiver para seu consumo canabis que exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, cometendo a contraordenação prevista no artigo 2o da Lei n° 30/2000 de 29 de Novembro, se a quantidade detida for inferior.
Importa, por consequência, precisar como se determina a quantidade de estupefaciente necessário para o consumo médio individual durante 10 dias.
Nos termos do artigo 71° do Decreto-Lei n° 15/93 a dose média individual diária é calculada com base na quantidade de produto activo presente no produto estupefaciente que esteja em causa (cfr. alínea c)).
A Portaria n° 94/96 de 26 de Março, para que remete o corpo do citado artigo 71°, indica no seu mapa a quantidade máxima de princípio activo para cada dose média individual diária. No caso de canabis-resina essa quantidade máxima é de 0,5.
Sendo assim, e tendo em conta o provado que o arguido detinha 4,620 gramas de canabis-resina com 19,1% de princípio activo, corresponde essa quantidade a (4,620 x 19,1%) 0,882 gramas de princípio activo e a (0,882: 0,5=1,764) menos de duas doses médias individuais diárias!
A afirmação factual produzida na sentença recorrida no sentido de que a quantidade apreendida daria para 18 doses e excedia o necessário para o consumo durante dez dias padece de um manifesto erro, sendo igualmente errada a afirmação implícita da validade do juízo técnico-científico do exame efectuado nessa matéria.
É o que resulta do disposto no artigo 71°, n° 3 do Decreto-Lei n° 15/93 de 22 de Janeiro quando preceitua que os limites referidos na Portaria 94/96 são apreciados nos termos do artigo 163° do Código de Processo Penal, ou seja, nos termos da prova pericial (cfr. o Ac. do Tribunal Constitucional n° 534/98). O juízo científico em que se funda a conclusão pericial não pode ser posto em causa pelo juiz a não ser pelo confronto com outra prova divergente igualmente com base científica. Com efeito, é atribuído valor de prova pericial ao consignado na Portaria porque os limites que fixa assentam em dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usualmente consumidas, admitindo-se que esses limites possam ter alguma variação consoante o consumidor e, por isso, se admitindo contraprova (mas necessariamente com base científica) de que em relação a determinado consumidor a dose diária média individual possa ser superior.
Ou seja, tendo o Tribunal a quo seguido o erro contido no exame ao produto estupefaciente sobre o número de doses médias diárias individuais para que daria o produto estupefaciente detido, violou regra de prova vinculada a que o exame realizado também estava adstrito. Mesmo considerando o peso total do produto e não o peso do seu princípio activo, sempre o resultado apresentado no exame estaria errado porque 4,620 gramas a dividir por 0,5 gramas daria o resultado 9,24 e não de 18; ainda inferior a 10 doses. Estranho e absurdo seria que o Tribunal a quo estivesse vinculado a um manifesto erro de cálculo que o exame ao produto estupefaciente contém e que os erros de cálculo contidos num exame, a pretexto de terem natureza técnico-cintífica, não pudessem ser rectificados! (...)
Fim de citação
33-Configurada que fica a questão nestes termos e prescindindo-se de maiores desenvolvimentos, parece-nos ter-se necessariamente de concluir pela absolvição do arguido, sem embargo de flagrante erro notório na apreciação da prova.”
*

O Ministério Público, por intermédio do Procurador-Adjunto formulou   resposta, com as seguintes “conclusões” (transcrição):
“1. O recorrente foi condenado, como autor material, de um crime de detenção para consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, que lhe é anexa, na pena de 85 dias de multa à razão diária de € 6, o que perfaz a quantia global de € 510 (quinhentos e dez euros);
2.- Não existe qualquer vício dos arts. 379º e/ou 410º nem qualquer outro preceito do C. de Processo Penal;
3.- Os factos e a prova foram devidamente apreciados, com uma análise exaustiva de todos os depoimentos, perícias, documentos e relatórios juntos ao processo;
4.- O recorrente não pode vir invocar o alegado desconhecimento do relatório solicitado no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 824/16.7 PBOER, cuja audiência decorreu quase em simultâneo com a dos presentes autos;
5.- Como bem fez constar a Equipa Lisboa 1 da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, no decorrer das suas diligências, o recorrente pouco ou nada faz, encontrando-se desempregado;
6.- Em nenhum momento do referido relatório, o qual para além do próprio arguido ter sido entrevistado, também o foram os seus dois irmãos, é referido o facto daquele trabalhar para um irmão como ajudante de cabeleireiro;
7.- Até quanto às suas condições sócio-económicas o arguido mentiu em julgamento;
8.- O Ministério Público entende ainda que os factos constantes dos Pontos 1 a 4 foram devidamente dados como provados, por estarem em consonância com o teor do resultado do exame pericial realizado ao estupefaciente apreendido ao arguido;
9.- Com vista ao apuramento do grau de pureza do estupefaciente encontrado na posse do arguido e à determinação do número médio de doses individuais diárias previstas na tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26 de Março, foi elaborado o aludido exame;
10.- A determinação da dose média individual com referência ao princípio activo do estupefaciente mostra-se relevante, porquanto da mesma depende muitas vezes a prática de um crime de tráfico ou então de consumo de estupefacientes e de uma contra-ordenação;
11.- Do resultado do exame em causa consta que o grau de pureza do estupefaciente apreendido ao arguido – canábis (resina) é de 11,4% e que o mesmo corresponde a 12 (doze) doses, calculadas de acordo com o estabelecido na Portaria nº 94/96 de 26 de Março, excedendo assim a quantidade diária necessária para o consumo individual pelo período de dez dias;
12.- Segundo o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2008, DR 150, Série I, de 5/8, do STJ, "Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28º da Lei nº 30/2000, de 29-11, o artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias";
13.- Por sua vez, o art. 2º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, qualifica como contra-ordenação a conduta de quem adquire ou detém para consumo próprio aquelas substâncias em quantidade inferior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.
14.- Para que o arguido seja punido pelo crime de consumo de estupefacientes, previsto no nº 2 do art. 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, é imperativo que o mesmo detenha estupefaciente em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
15.- Ora, a canábis que o arguido tinha na sua posse era equiRV a 12 doses médias individuais diárias, pelo que se mostra assim preenchido um dos elementos objectivos do tipo legal em apreço;
16.- Em suma, andou bem o Tribunal a quo ao formar a sua convicção na condenação do arguido.
Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido I.R.M., mantendo-se, desse modo, a decisão recorrida.”

No momento processual a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto subscreveu os argumentos expostos pelo magistrado junto do tribunal de primeira instância, concluindo pela improcedência do recurso.

Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação (artigos 403º e 412º nº 1 do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As questões a resolver consistem fundamentalmente em saber se deve ser alterada a decisão da matéria de facto por erro de valoração da prova do tribunal recorrido quanto à situação profissional do arguido e quanto à detenção de substancia estupefaciente em quantidade superior à correspondente a dez doses diárias de consumo médio individual.

3. A sentença recorrida considerou como provada a seguinte factualidade (transcrição) :
“1.- No dia 04 de Dezembro de 2016, entre as 12:15 e as 12:40, na Rua ……….., na área do município de Oeiras, o arguido I.R.M. trazia consigo resina de canábis com o peso de 5,493 gramas, com o grau de pureza de 11,4%  THC.
2.- O arguido é consumidor de canábis e destinava o referido produto ao seu próprio consumo.
3.- Tal substância seria correspondente a 12 doses diárias individuais, atento o consumo médio individual.
4.- O arguido conhecia as características e natureza estupefaciente do produto que detinha, bem como os seus efeitos, a proibição legal de o deter e o facto de não ter qualquer autorização que o possibilitasse a detê-lo.
5.- Não obstante, o arguido quis ter em sua posse canábis e nas quantidades supra indicadas.
6.- O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser a sua descrita conduta proibida e punida pela lei penal.
7.- Mais novo de uma fratria de quatro irmãos, o arguido I.R.M. integra o agregado materno composto pela mãe e por uma irmã, encontrando-se os outros dois irmãos autonomizados em agregados constituídos na mesma localidade de Paço de Arcos.
8.- O clima relacional no contexto intrafamiliar é marcado pela proximidade afetiva, entreajuda e apoio mútuos entre todos os elementos.
9.- A situação financeira do agregado, relativamente estável, permite assegurar a subsistência de todos os elementos e depende dos rendimentos auferidos pela mãe e pela irmã do arguido, que desenvolvem funções nas áreas da limpeza e restauração.
10.- Os pais do arguido estão separados há vários anos, estando o progenitor emigrado na Alemanha há quase três décadas, em novo agregado constituído, visitando a família com relativa regularidade.
11.- A figura materna assumiu a responsabilidade da supervisão e acompanhamento dos descendentes no decurso dos seus processos de desenvolvimento social.
12.- O arguido tem como habilitações literárias o 5º ano de escolaridade, tendo frequentado, ainda, na adolescência um curso de formação profissional no ramo de pintura automóvel que não viria a concluir.
13.- As dificuldades ao nível da aprendizagem e o desinteresse demonstrado aliado ao absentismo comprometerem a sua continuidade no referido curso de formação.
14.- Com cerca de dezassete anos, I.R.M. terá tido o primeiro surto psicótico na sequência do uso de substâncias psicoativas em contexto recreativo, o que motivou o seu primeiro internamento em instituição psiquiátrica.
15.- É seguido desde essa data na Equipa Comunitária de Saúde Mental de Oeiras do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO), sendo-lhe administrado mensalmente neuroléptico injetável.
16.- Estando desempregado, o arguido tem tido experiências de trabalho irregular nos setores de construção civil e de jardinagem e numa empresa de tratamento de resíduos sólidos (Tratolixo).
17.- Nesta última, foi celebrado um contrato de trabalho.
18.- I.R.M. verbaliza intenção de emigrar para a Alemanha para se juntar à figura paterna, de modo a desenvolver uma atividade profissional
19.- A família desencoraja, no entanto, esta solução, atentos os comportamentos do arguido.
20.- O arguido mantém o consumo de haxixe, em situações de convívio social, não reconhecendo a problemática de abuso, nem a necessidade de sujeição a qualquer tratamento especializado.
21.- Sem rotinas atuais estruturadas, I.R.M. mantém um quotidiano de ociosidade, com diminuta supervisão da família, desenvolvendo pontualmente alguns trabalhos indiferenciados, dependendo da oferta existente.
22.- O arguido foi condenado, no processo nº 306/05.2PBOER, do 2º Juízo Criminal de Oeiras, por sentença de 27/07/2006, transitada em 11/09/2006, pela prática, em 27/02/2005, de um crime roubo, na pena de prisão suspensa de 2 anos, com regime de prova e com a obrigação de entregar à ofendida, no prazo de 3 meses, € 750,00. Esta pena foi declarada extinta em 12/11/2008.
23.- O arguido foi condenado em 20/03/2007, por sentença transitada na mesma data, proferida no processo sumaríssimo nº 325/05.9JDLSB, do 2º Juízo Criminal de Oeiras, na pena de 40 dias de multa, pela prática, em 22/04/2005, de um crime de detenção de arma proibida.
24.- O arguido foi condenado em 10/12/2007, por sentença transitada em 22/01/2008, no processo nº 517/04.8PGOER, do 3º Juízo Criminal de Oeiras, na pena de 150 dias de multa, pela prática, em 8/10/2004, de um crime de ofensa à integridade física simples.
25.- O arguido foi condenado no processo nº 146/08.7PGOER, do 2º Juízo Criminal de Oeiras, por sentença de 3/03/2009, transitada em 23/03/2009, na pena de multa de 120 dias, pela prática, em 29/06/2009, de um crime de condução sem habilitação legal.
26.- Foi condenado em 6/01/2010, por sentença transitada em 26/01/2010, no processo nº 1/07.8PGOER, do 3º Juízo Criminal de Oeiras, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, com imposição de regime de prova, pela prática, em 1/01/2007, de um crime de resistência e coação sobre funcionário e por um crime de ofensa à integridade física qualificada. Esta pena foi declarada extinta em 15/10/2012.
27.- O arguido foi condenado, em 12/07/2013, por sentença transitada em 27/09/2013, no processo nº 27/12.0PJOER, do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Oeiras, na pena de 60 dias de multa, pela prática, em 6/05/2015, de um crime de consumo de estupefacientes. Esta pena, que foi substituída por trabalho a favor da comunidade, foi declarada extinta em 11/09/2014.
28.- O arguido foi condenado em 1/07/2015, por sentença transitada em 17/12/2015, no processo nº 2/15.2PJOER, do Juiz 3, do Juízo Local Criminal de Oeiras, na pena de 3 anos, suspensa por 3 anos, pela prática, em 13/1/2015, de um crime de resistência e coação sobre funcionário e de tráfico de estupefacientes.”

O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos (transcrição):
“A convicção do Tribunal, quanto aos factos descritos na acusação e que ora foram considerados assentes, resulta do confronto crítico das declarações do arguido, com os depoimentos de RV e PA, com o auto de notícia por detenção, de fls. 3, auto de apreensão de fls. 9 e com o relatório de exame de toxicologia, fls. 36.
Analisou-se, ainda, para efeitos de apuramento das condições económicas e sociais do arguido, o relatório social entretanto junto aos autos e elaborado no nosso processo comum singular nº 824/16.7PBOER.
O arguido tem declarações pouco espontâneas, mas acaba por admitir comportamentos aditivantes e que tinha, no seu bolso, produto estupefaciente que designa do “seu consumo”.
Assim, reconhece que foi abordado, quando estava sozinho, por agentes da PSP, que saíram de uma viatura descaraterizada, sem que se apercebesse da aproximação destes.
O arguido explica que estes agentes deram ordem para parar, o que foi por si acatado.
Foi, nesse momento, revistado, tendo-lhe sido encontrada, em seu poder, uma quantidade de haxixe, afirma, menor do que a imputada na acusação.
Quanto ao remanescente, um dos agentes andou inclinado, junto a uma viatura que estava a dois ou três metros de si, tendo-lhe dito que o produto estupefaciente estava no chão.
O arguido desconhece qual o peso concreto do haxixe que assume que transportava consigo, sendo que o adquiriu por 15 euros a pessoa que desconhece.
O arguido, através das suas declarações, demonstra pleno conhecimento da natureza do produto que trazia consigo, das suas caraterísticas estupefacientes e proibidas, mais revelando plena consciência dos limites dos elementos objetivos do tipo criminal em apreço, em relação ao qual se pretende, com a sua versão, desvincular.
A sua versão não convence e é desmentida pelos depoimentos das duas testemunhas, ambas agentes da PSP, que obtêm conhecimento dos factos através do exercício das suas funções.
RV explica que circulava, com o seu colega, na zona de Paço de Arcos, em missão de patrulhamento, por terem sido reportados roubos nas imediações.
Ao chegar perto do estabelecimento comercial de café, designado de “Arca de Mel”, referenciado, pela sua polícia, como um sítio onde se juntam vários indivíduos que se dedicam ao consumo, apercebeu-se que o arguido parecia controlar a matrícula do veículo, descrevendo um movimento suspeito.
Em determinado momento, o arguido tira a mão direita do bolso do casaco e atira para o chão alguma coisa com cor castanha.
A testemunha, que era transportada no lugar do pendura, não pôde deixar de percecionar, assim, todo este movimento.
Quando abordaram o suspeito, o seu colega, que conduzia a viatura, fica a guardar o ora arguido, entretanto abordado, enquanto o depoente foi analisar o local para onde aquela havia projetado o objeto.
A testemunha não teve dificuldade em confirmar que, junto aos veículos ali estacionados, estavam espalhadas 4 ou 5 tiras do produto que foi apreendido conforme auto de apreensão de fls. 9.
O agente explica que, por força deste movimento, quando o arguido é revistado, não tinha, e ao contrário do que reclama, qualquer produto estupefaciente consigo.
O produto que estava, assim, distribuído no chão não tinha qualquer invólucro, o que justifica que o agente tenha percecionado que o que foi tirado de dentro do bolso tinha a cor castanha.
De acordo com a sua experiência profissional, o produto estupefaciente apreendido teria o valor de € 10,00 a € 15,00 o que, repare-se, coincide com o valor apontado pelo arguido para a aquisição da droga que confessa ter consigo, para o seu consumo.
O agente observa, ainda, que o produto que foi apreendido, estava distribuído em pedaços com fatiamento simétrico, idêntico.
E repare-se que o relatório de exame de toxicologia de fls 36, que comprova a natureza, peso e concentração da substância ativa do produto estupefaciente apreendido pela PSP, confirma que os vários pedaços analisados pertencem ao mesmo lote, já que têm a mesma concentração. Evidência de que pertenciam, todos, ao arguido.
PA, agente da PSP, conhece o arguido, igualmente, desta situação.
Este confirma que conduzia a viatura da PSP, descaraterizada, nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas no auto e ora narradas pelo seu colega.
E corrobora a versão deste, de forma igualmente espontânea.
O agente explica que reconheceu o arguido como uma pessoa que já estaria referenciada pela sua polícia como relacionada a situações de detenção de estupefaciente, o que fez com que reforçassem a atenção.
A testemunha, ainda que estivesse a conduzir, verbaliza que não teve qualquer dúvida quanto ao movimento que descreve e que foi executado pelo arguido.
Estando de frente para o arguido, viu, assim, o gesto deste de levar a mão ao casaco e de projetar o seu conteúdo para o chão.
O depoente explica que foi isso que foi determinante para que abordassem o arguido.       
A testemunha tem a memória do arguido ter sido revistado pelo seu colega, não se recordando, concretamente, do que é que aquele teria junto ao corpo. De todo o modo, guarda a ideia de que o produto estupefaciente que foi apreendido estaria todo espalhado pelo chão.
Desta prova assim analisada, dúvidas inexistem de que os factos ocorreram tal como assente.
As condições económicas e sociais do arguido resultam do confronto das declarações deste com o teor do relatório social analisado em audiência.
Os antecedentes criminais estão comprovados com base no certificado de Registo Criminal de fls. 53 e ss.”

4. Uma primeira forma de colocar em crise a decisão da matéria de facto em primeira instância consiste na alegação de um dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova.
Neste caso, também de conhecimento oficioso, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: trata-se de analisar apenas a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras normais de experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos, mesmo que constem do processo, nomeadamente ao conteúdo da prova oralmente produzida e gravada em audiência de julgamento.
O arguido recorrente invoca a verificação de erro notório na apreciação da prova do artigo 410.º n.º 2 alínea c) do Código do Processo Penal,  mas não concretiza qualquer raciocínio de onde se possa concluir, com base apenas na leitura do texto da sentença à luz de regras normais de vivencia comum, que se verifica um desacerto ostensivo ou grosseiro na apreciação da prova e analisa sempre o problema como se tratasse de erro de julgamento, decorrente de uma errada apreciação e valoração das declarações das suas próprias declarações[1].
Sem necessidade de outros considerandos, improcede o recurso do arguido no plano dos vícios decisórios do artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, devendo as questões suscitadas serem seguidamente apreciadas sob a perspectiva da verificação de erro de julgamento em matéria de facto.

5. Efectivamente, num plano distinto, este já de “verdadeiro recurso da decisão em matéria de facto”, a análise não se limita ao texto da sentença e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.
Como persistentemente se sublinha, o recurso vem concebido pela lei como remédio jurídico, que se destina a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente.
Deve ainda assinalar-se uma vez mais que os fundamentos pelos quais o juiz do tribunal de primeira instância confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem sempre de um juízo de valoração efectuado com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, confere ao julgador em primeira instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
Com efeito, na apreciação das declarações do arguido atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo,  os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação.
Por isso se afirma que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada, para os efeitos do artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal, não pode deixar de ter um significado mais exigente do que simplesmente admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. Numa concreta situação em que a apreciação crítica da prova consente ou não colide com mais do que uma conclusão, se a decisão do julgador devidamente fundamentada for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência comum e o direito probatório, deve ser mantida como está, porque foi proferida com recurso à imediação e em obediência ao princípio que impõe que o tribunal julgue de acordo com a sua livre convicção.

6.  Os excertos das declarações que o recorrente transcreve na motivação do recurso são as concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar, sem prejuízo de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (art.º 412.º n.ºs 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal).
Segundo as declarações que o recorrente transcreve, o arguido afirmou na audiência que “ajuda” no cabeleireiro do irmão e que ganha dez ou quinze euros por dia.
No entanto, o tribunal julgou provado, no ponto 21 que sem rotinas atuais estruturadas, I.R.M. mantém um quotidiano de ociosidade, com diminuta supervisão da família, desenvolvendo pontualmente alguns trabalhos indiferenciados, dependendo da oferta existente e pode ler-se na motivação da convicção que as condições económicas e sociais do arguido resultam do confronto das declarações deste com o teor do relatório social analisado em audiência.
Verifica-se sem esforço que a redacção desse ponto dos factos provados corresponde exactamente ao teor de um dos parágrafos do relatório social elaborado por técnico da DGRSP datado de 24-05-2017, junto de fls. 77 a 81 e analisado pela ilustre mandatária do arguido na sessão da audiência de julgamento de 24-05-2017, como consta na acta respectiva a fls. 82. O relatório mantem actualidade e nele não consta a menor referencia à actividade laboral no cabeleireiro.
Ou seja, o tribunal optou por atribuir credibilidade ao teor de um relatório elaborado com base na recolha de declarações não só do próprio arguido mas dos irmãos e subscrito por técnico adstrito a deveres de imparcialidade e isenção.
Em conclusão, no processo de formação da convicção do tribunal recorrido não existe qualquer erro de racionalidade ou infracção de regras de experiencia comum nem se vislumbra elemento de prova que nos imponha uma decisão diferente, pelo que improcede o recurso neste âmbito.

7. O arguido recorre sustentando que não se verifica o preenchimento do tipo de crime de detenção para o consumo porquanto a quantidade de resina de cannabis que deteve não excedia a correspondente ao consumo médio durante dez dias, atendendo aos valores fixados na tabela a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de Março, porque na sua perspectiva o cálculo de peso para a dose média (0,5 g) deve ser feito incidindo apenas no princípio activo ou seja na concentração de tetrahidrocannabinol. A favor desta interpretação invoca o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29/03/2007, no proc. 209/16.5PBCTB.C1, in www.dgsi.pt.
Como é sabido, o tipo de crime de consumo de estupefaciente foi definido no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro nos seguintes termos: “Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV” [n.º 1], diferenciando-se a correspondente reacção penal, para uma moldura mais grave, se a respectiva quantidade desses produtos “exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias” [n.º 2].
Posteriormente, a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro estabeleceu  no artigo 2º n.º 1 que  “O consumo, a aquisição e a e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação e o n.º 2  que “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
Por outro lado, o artigo 28.º da mesma Lei n.º 30/2000 revogou expressamente o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, excepto quanto ao cultivo.
O disposto no n.º2 do artigo 2.º, conjugado com a norma revogatória constante do artigo 28.º do mesmo diploma legal, veio suscitar a questão de saber como punir aquele que detém, para seu consumo, uma quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.
Para solucionar o diferendo, o Supremo Tribunal de Justiça, através do seu Acórdão n.º8/2008, (publicado no DR I.ª Série, n.º 150, de 25 de Agosto], fixou a seguinte jurisprudência:
Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só ‘quanto ao cultivo’ como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que instituiu o ainda vigente regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, estabeleceu, no seu artigo 71.º, n.º 1, al. c) que “Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria: (…) c) Os limites quantitativos máximo do princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente».
A Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, que de acordo com o seu preâmbulo, teve o propósito de viabilizar a realização da perícia médico-legal e do exame médico referidos nos artigos 52.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93, determinou no seu artigo 9.º que “Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”.
Como tem sido sublinhado, a cannabis apresenta-se sob uma forma natural e a presença do tetrahidrocannabinol, ou seja, do componente responsável pelos efeitos psicotrópicos do produto e que determina a potência do estupefaciente, difere significativamente consoante diversos factores próprios da planta, como sejam a zona de cultivo ou a selecção das partes a utilizar.
Assim, segundo o Relatório Anual da Situação do País em Matéria de Drogas e de Toxicodependência do SICAD referente ao ano de 2015, a percentagem média do THC encontrado nas amostras de haxixe foi de 18% em 2014 e de 14% em 2015 e da cannabis herbácea foi de 7,8 % em 2014 e de 8,3 % em 2015 (acessível em http://www.sicad.pt/PT/Publicacoes/Paginas/detalhe.aspx?itemId=114&lista=SICAD_PUBLICACOES&bkUrl=BK/Publicacoes/ .
Compreende-se por isso que a tabela relativamente à cannabis não indique apenas limites quantitativos para a dose média individual diária e afirme que esses mesmos limites dependem de concentrações médias de THC.
Dos elementos constantes do mapa ou tabela anexa à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março decorre em primeiro lugar que se determina uma quantidade de “substância” ou seja de cannabis e não um peso do princípio activo e, em segundo, que a quantidade indicada para a cannabis-resina (0,5 grama) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC” e não a um estado de pureza absoluta da substância ou uma concentração de 100% (neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-11-2012, Jorge Gonçalves, proc.5929/09.8TDLSB.L1-5 e de 26-09-2017, Artur Vargues, proc. 36/13.!GBALQ, L1.5 e do Tribunal da Relação do Porto de 02-10-2013, Vaz Pato, proc. 02465/11.6TAMTS.P1).
Os valores em causa deverão ser adaptados tendo em conta o concreto grau de pureza inferior ou superior ao previsto na mencionada tabela. Uma concentração média superior de Tetraidrocanabinol justifica que proporcionalmente se reduza a quantidade de cannabis necessária à imputação da conduta como crime, do mesmo modo que uma concentração inferior daquele princípio activo justificará o inverso.
Não existindo nos autos algum outro elemento de prova sobre o consumo individual diário, deve ser tido em conta o que resulta do exame do LPC, com o valor acrescido de prova pericial. 
No caso vertente, considerando os valores fixados na tabela a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de Março, a resina de cannabis que o arguido detinha, com o  peso líquido de 5,493 gramas e um grau de pureza ou concentração de THC de 11,4% corresponde ao consumo médio individual durante 12 dias.
Nestes termos, a conduta do arguido subsume-se na previsão do artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 e tem de se negar provimento ao recurso.

8. Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação do arguido nas custas pela actividade processual a que deu causa, compreendendo a taxa de justiça e os encargos (artigos 513º n.ºs 1 e 3 e 514º, ambos do Código de Processo Penal). De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar a taxa de justiça em quatro UC.

9. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso do arguido I.R.M..
Condena-se o arguido nas custas do recurso, com quatro UC de taxa de justiça.



Lisboa, 25 de Outubro de 2017.



Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.


João Lee Ferreira    
Nuno Coelho


[1]Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2011, Rel. Cons. Pires da Graça, proc. nº 7266/08.6TBRG.G1.S1, “A apreciação da prova é um juízo valorativo, de raciocínio objectivo, de ponderação do que é revelado por cada prova produzida, e em conjugação com as demais, e eventual erro que daqui derive é um erro de julgamento na credibilidade de determinada prova, cuja impugnação é feita através do recurso em matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. O erro notório na apreciação da prova, é um conceito jurídico processual, técnico legal, que ao subsumir-se ao disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação (…).