Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7516/2004-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
AVALISTA
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: O facto de um incêndio provocar a destruição das instalações de uma empresa e levar à cessação da sua actividade comercial, não integra, por si só, impossibilidade absoluta de cumprimento da obrigação do pagamento das suas dívidas.
Nas relações entre os co-avalistas de uma letra ou livrança, na falta de alegação e prova de qualquer facto de que possa resultar diferença entre eles quanto à parcela de responsabilidade, tem de entender-se que todos comparticipam em partes iguais na dívida.
O co-avalista de letra ou livrança que procedeu ao seu pagamento tem direito de regresso contra a sociedade avalizada pelo montante pago e contra os outros co-avalistas na medida da quota de responsabilidade destes nos avales.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.
No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, A e B intentaram a presente Acção Ordinária contra C e D, pedindo a condenação da Ré a pagar ao 1° A. a quantia de Esc. 64.200.000$00, sendo o R. condenado, solidariamente, com a Ré pela quantia de Esc. 16.105.000$00, acrescidas dos respectivos juros de mora, desde a citação até integral pagamento; a condenação da Ré a pagar ao 2° A. a quantia de Esc. 12.006.000$00, sendo o 2° R. condenado, solidariamente, com a Ré pela quantia de Esc. 3.001.500$00, acrescidos dos respectivos juros de mora, desde a data da citação até integral pagamento.
(…)
Prosseguiram os autos os seus trâmites, sendo proferido despacho saneador, tendo sido declarado não existir a ineptidão da P. I., e foi elaborada a especificação e a base instrutória e, por fim procedeu-se a audiência de discussão e julgamento sendo depois proferida sentença, julgando a acção procedente e provada, condenando a Ré a pagar aos AA. as quantias pedidas.
Inconformados com a decisão, vieram os RR. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações.
Os apelados contra-alegaram, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde foram colhidos os legais vistos, pelo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.
As questões a resolver são as de saber:
a) (…)
b) Se relativamente à Apelante C se verificou a extinção da obrigação, por impossibilidade de cumprimento decorrente de causa que lhe não é imputável;
c) Se aos Apelados não assistia direito de regresso, mormente contra o Apelante D;
d) (…)
II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
(…)
III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
a) (…).
b) Quanto à alegada extinção da obrigação, por impossibilidade de cumprimento.
Um dos meios da extinção das obrigações, com a consequente exoneração do obrigado, é a impossibilidade superveniente da prestação, por facto não imputável ao devedor. Com efeito, dispõe o artigo 790°, n.º 1, do C. Civil que "a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor".
A prestação torna-se impossível, quando por qualquer razão ou circunstância, o comportamento exigível ao devedor em face do conteúdo da obrigação se tornou inviável. Acontece que a impossibilidade que exonera o devedor carece de ser superveniente, objectiva e definitiva, ou seja, uma impossibilidade absoluta, pois que só esta libera o devedor e não a mera impossibilidade relativa, que se identifique com a “difficultas prestandi” ou “económica”. Como salienta Antunes Varela, “para que a obrigação se extinga, é necessário, segundo a letra e o espírito da lei, que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja por determinação da lei, seja por força da natureza (caso fortuito ou de força maior) ou por acção do homem. Não basta que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor, como pode suceder com frequência nos períodos de mais acentuada inflação monetária ou de súbita valorização de certos produtos”[1].
A impossibilidade superveniente, objectiva e definitiva da prestação, por causa que não seja imputável ao devedor, libera-o, pois, do cumprimento da obrigação. No entanto, é necessário ter presente que o art. 794° do CC adverte que «se, por virtude do facto que tornou impossível a prestação, o devedor adquirir algum direito sobre certa coisa, ou contra terceiro, em substituição do objecto da prestação, pode o credor exigir a prestação dessa coisa, ou substituir-se ao devedor na titularidade do direito que este tiver adquirido contra terceiro». Neste caso verifica-se uma situação de inadimplemento não culposo em que o devedor não fica exonerado da obrigação para com o credor.
Ora, no caso vertente coloca-se a questão de saber se relativamente à Apelante C se verificou a extinção da obrigação, por impossibilidade de cumprimento decorrente de causa que lhe não é imputável, como invocam os Apelantes. Na verdade, alegam estes que a Apelante C, por virtude do incêndio ocorrido em 1988, que destruiu todo o seu edifício e recheio onde esta sociedade exercia a sua conhecida actividade comercial privou a Apelante da única fonte, geradora de meios financeiros necessários para liquidação das suas obrigações pecuniárias. Assim, quando, em 2000, os Apelados instauraram a presente acção, não ignoravam, nem podiam ignorar, que a Apelante C estava impossibilitada, por facto que não lhe é imputável de cumprir, o que, ao abrigo do art. 790º o código Civil, extingue a obrigação que os Apelados, neste processo, exigem.
Sucede que o factualismo descrito, relativo ao incêndio e à cessação da actividade comercial, por si só, não integra uma impossibilidade absoluta de cumprimento da obrigação, pois que, apesar de tudo, sempre a Apelante poderia dispor de meios económicos para liquidar o crédito dos Apelados.
E é preciso não esquecer que aos Apelantes é que competia a alegação e prova dos factos integradores da impossibilidade de cumprimento, enquanto factos impeditivos do direito invocado na acção pelos Apelados (art. 342º/2 do CC).
Acresce que, em todo o caso, resultou também provado que a sociedade Apelante vendeu, no dia 30 de Novembro de 1995, o prédio de sua pertença, sito em Lisboa,  pelo preço de Esc. 1.218.750.000$00.
É certo que os Apelantes alegam que o produto da venda do prédio foi utilizado na liquidação aos seus credores, designadamente ao Fisco e ao próprio BANIF, mas se assim foi, então, por facto que é imputável à sociedade Apelante, terá ficado no esquecimento a liquidação do crédito dos Apelados.
Do que se conclui que relativamente à Apelante se não verificou a extinção da obrigação, por impossibilidade de cumprimento decorrente de causa que lhe não é imputável.

c) Da alegada inexistência de direito de regresso dos Apelados contra o Apelante D.
Como decorre dos art.s 30º e 77º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças o pagamento de uma livrança pode ser, no todo ou só em parte, garantido por aval. E do art. 32° resulta que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, mantendo-se a sua obrigação mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
O fim específico do aval é o de garantir o cumprimento pontual do direito de crédito cambiário, por ele se prestando uma garantia à obrigação cartular do avalizado. Com efeito, como diz o Professor Ferrer Correia, "o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário"[2].
O aval constitui, deste modo, uma obrigação de garantia, dada a favor de alguém obrigado na letra ou livrança, obrigação que pode ser exigida independentemente de excussão prévia dos bens da pessoa por quem se vinculou, dado que, por força do disposto no art. 44º, os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas são todos solidariamente responsáveis para com o portador, e este tem o direito de accioná-las individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que eles se obrigaram.
Sendo uma garantia pessoal apresenta algumas características da fiança de direito comum, verificando-se designadamente que, como o fiador, o avalista também fica sub-rogado nos direitos da pessoa que garante. Na verdade, estabelece o art. 32°, § 3, que “se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude em virtude da letra".
Sub-rogação é, conforme ensinamento da doutrina, “a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar de devedor, ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento”[3]. Assim, se o avalista pagar a livrança pelo signatário garantido, ao mesmo tempo que adquire o direito que tinha contra o avalizado, o portador ou a pessoa a quem pagou, fica investido nos próprios direitos cambiários que o garantido tinha, dada a sua posição na letra ou na livrança[4].
Mas o caso dos autos tem a ver, também, com o denominado aval colectivo, ou seja, com o aval dado por mais do que uma pessoa em que todos os avalistas respondem solidariamente e como obrigados autónomos. Estão em causa as relações de dois co-avalistas não só com o avalizado, como também com um terceiro co-avalista, tratando-se de saber dos direitos que assistem aos avalistas que pagaram a livrança contra o avalizado e o co-avalista não pagador.
Já vimos que em relação ao avalizado o avalista que paga a letra fica investido no próprio direito cambiário garantido. Por isso, nos termos do art. 49º da LULL, a pessoa que pagou a letra  pode reclamar dos seus garantes a soma integral que pagou, acrescida dos juros e despesas.
No tocante aos co-avalistas tem-se entendido que o co-avalista que pagou a livrança não tem contra eles direito a uma acção cambiária, pois que, de contrário, teríamos uma situação que conduziria àquilo a que Gonçalves Dias designa por "sistema de «alcatruzes», ou moto contínuo. De facto, se o avalista que paga pudesse demandar cambiariamente os outros, também estes podiam demandar aquele, repetindo-se esta ofensiva e contra-ofensiva, sem nunca mais terminar"[5].
Não havendo entre os co-avalistas relações cambiárias, mas somente de direito comum, tem de recorrer-se às normas reguladoras do instituto da fiança, como mais afim, em especial ao estatuído no art. 650º do CC, sendo que o n.º 1, deste preceito, remete a situação para as regras das obrigações solidárias. E face a estas, é de presumir a comparticipação em partes iguais da dívida, (cfr. arts. 516°, 524° e 525°, n.º 1, do CC). Assim, nas relações entre os co-avalistas, à falta de alegação e prova de qualquer facto de que possa resultar diferença entre eles quanto à sua parcela de responsabilidade, tem de entender-se que todos comparticipam em partes iguais na dívida. Como se defendeu no Acórdão do STJ de 24.10.2002, "para regular os direitos entre os co-avalistas há que recorrer ao direito comum e, neste, à fiança, onde se presume a comparticipação em partes iguais na dívida"[6].
Do que se conclui que no caso vertente os co-avalistas da livranças, a cujo pagamento procederam, possuem direito de regresso contra a sociedade avalizada pelo montante pago e contra o co-avalista na medida da sua quota de responsabilidade nos avales das livranças.
Assim, atendendo a que os Apelados procederam ao pagamento das livranças, nos montantes acima descritos, tinha a 1.ª Apelante de ser condenada ao pagamento daqueles montantes, acrescidos dos respectivos juros de mora desde a data de citação até efectivo e integral pagamento.
E atendendo a que o 2.º Apelante  também avalizou as livranças subscritas pela 1.ª Apelante, para o caso de esta não proceder ao pagamento integral das quantias em dívida, tinha de ser condenado solidariamente com aquela ao pagamento da sua quota-parte de responsabilidade.
Só assim não seria se tivesse provado ter feito o pagamento da sua responsabilidade enquanto co-avalista das livranças. E se é verdade que alega ter efectuado tal pagamento, o certo é que não logrou provar que tenha, na realidade, feito qualquer pagamento na qualidade de avalista da Apelante “C”, bem como não logrou provar que pagou ao B.N.U., como co-avalista com os Apelados. E, recorda-se que o ónus probatório do alegado pagamento lhe competia.
Ao contrário, os Apelados, provaram que procederam ao pagamento dos montantes devidos pela falta de pagamento atempado das livranças, nas execuções a que estas deram origem, pois que a tanto estavam obrigados na sua qualidade de co-avalistas, o que agora lhes confere direito de regresso contra os Apelantes nos termos acima descritos e que ficaram delineados na sentença recorrida.

d) (…)
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.

IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento à apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes.

Lisboa, 11 de  Novembro de 2004. 
FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
FERNANDA ISABEL PEREIRA
MARIA MANUELA GOMES
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[1] In “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7.ª ed. Pg.68
[2] in “Letra de Câmbio", pág. 196.
[3] Antunes varela In ob. cit. “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7.ª ed. Pg. 335/336.
[4] Vd. A. Pereira Delgado, in Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 4.ª ed. Pg. 174.
[5] In Letra e Livrança, 7ª, pg. 560.
[6] Col. Jur., Acs. STJ, 2002, T. III, pg. 120.