Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3451/16.5T8LSB.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: ACIDENTE
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– Resultando a morte do segurado - quando exercia a sua actividade de soldador dentro de um tubo de Argon de 80 cm de diâmetro que então se encontrava a soldar - de «síndrome de asfixia induzida por hipoxia em ambiente confinado, cujas consequências foram agravadas por doença arterial coronária aterosclerótica», o óbito ocorreu em consequência de um acontecimento fortuito, súbito e anormal, independente da vontade da pessoa segura, não resultando de uma causa natural, mas sim da carência de oxigénio no local.

II– A hipoxia em ambiente confinado (factor externo) produziu um trauma no organismo do R… R… com a asfixia e consequente morte, tudo isto configurando um acidente em face da definição que do mesmo consta nas Condições Gerais da Apólice do contrato de seguro celebrado com a R..

(Sumário elaborado pela relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:

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I– A… P… d.. M… intentou acção declarativa com processo comum contra «C… A… S… – C… d.. S… d.. R… R…, S…A…».
Alegou a A., em resumo:
A A. e o seu falecido marido contraíram um empréstimo de 80.000,00 € para aquisição de habitação, tendo o marido da A. contratado com a R. um seguro de acidentes pessoais, assegurando uma indemnização no valor de 80.000,00 € em caso de morte ou invalidez permanente daquele. O segurado nomeou como beneficiários em caso de morte  a mutuante «C… d.. C… A… M…  B… M…», em relação ao capital em dívida e os herdeiros legais no valor do remanescente.

Em 22 de Junho de 2014 o segurado faleceu, sendo encontrado no seu posto de trabalho, dentro de um tubo de Argon, sendo vítima de asfixia.

A A. accionou a apólice mas a R. recusou o pagamento da indemnização.
A A. veio a liquidar a totalidade da dívida para com a «C… d.. C… A… M…  B… M…».
Suportou danos morais – angústia, dissabor, revolta.
Pediu a A. que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 80.000,00 em razão do seguro contratado, a pagar-lhe 5.000,00 € a título de indemnização por danos morais e, ainda, a pagar os honorários da mandatária da A. no valor de 2.500,00 € e nas custas do processo.

A R. contestou.

Suscitou a ilegitimidade da A. visto esta estar desacompanhada dos restantes herdeiros do segurado.
Sustentou que as circunstâncias da morte do segurado não constituem acidente atento o conceito de “acidente” definido nas Condições Gerais da Apólice, não se tratando de acontecimento fortuito, súbito e anormal e, ainda menos, atribuível a traumatismo, pelo que não é devido o pagamento do capital seguro.
De qualquer modo, o valor daquele capital sempre haveria de ser dividido pelos vários beneficiários.
Defendeu não serem devidas quaisquer quantias a título de danos morais e de honorários de advogado.
Conclui pela procedência da excepção e, de qualquer modo, pela improcedência da acção.
Foi requerida a intervenção principal provocada de J… A… G… R… e de M… C… S… D…, os quais foram chamados.
O processo prosseguiu.

A final foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos: «…julgo a presente ação intentada por A… P… D.. M… contra C… A… S… – COMPANHIA D.. S… D.. R… R…, S…A..., parcialmente procedente, por parcialmente provada, em consequência do que:
a)- condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros);
b)- absolvo a ré de tudo o mais que contra si vem peticionado pela autora».

Apelou a R., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
I.– O Tribunal a quo não decidiu corretamente ao condenar a Ré (Recorrente) a pagar à Autora (Recorrida), a quantia de €.80.000,00, ao abrigo de um contrato de seguro de Acidentes Pessoais celebrado entre a Recorrente e o falecido marido da Recorrida, pois as circunstâncias em que ocorreu a morte do marido da Recorrida não integram o conceito de “Acidente” estipulado no referido contrato de seguro de acidentes pessoais.
II.– Deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto provada aditando-se aos factos provados (como facto provado 12-A) que “A morte de R… R… não foi provocada por traumatismo”, conforme resulta expressamente relatório de autópsia junto aos autos pela própria Recorrente com a sua P.I. (e cuja tradução foi junta a fls.__ com o requerimento n.º 24728470) e dos depoimentos de ambos os médicos ouvidos em sede de Audiência de Julgamento, Dr. A… M… C… G… (cujo depoimento se encontra registado e disponível no sistema Habilus Media Studio e em ficheiro informático com a designação 20170220135354_17807566_28771021) e Dr. A… d.. S… G… (cujo depoimento se encontra registado e disponível no sistema Habilus Media Studio e em ficheiro informático com a designação 20170220152215_17807566_28771021).
III.– Deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto provada aditando-se também aos factos provados (como facto provado 11-A) que “No momento da sua morte, R… R… exercia sozinho a atividade mencionada no número anterior, não obstante ser do conhecimento de todos os trabalhadores que a mesma deveria ser exercida, pelo menos, por duas pessoas, por razões de segurança”, conforme resulta do depoimento do referido Dr. A… M… C… G… e do depoimento de H… M…, colega de trabalho do falecido R… R… (cujo depoimento se encontra registado e disponível no sistema Habilus Media Studio e em ficheiro informático com a designação 201702201554003_17807566_28771021), colega de trabalho do falecido.
IV.– Tendo ficado acordado no contrato de seguro que um “ACIDENTE” é um acontecimento fortuito, súbito e anormal, independente da vontade da Pessoa Segura, e que não é atribuível a um traumatismo (facto provado n.º 6), não é possível concluir que as circunstâncias da morte do marido da Recorrida constituem um acidente.
V.– Considerando que o referido R… R… faleceu enquanto trabalhava sozinho dentro de um tubo mal oxigenado, bem sabendo da obrigatoriedade de não o fazer sozinho, por causa, precisamente, dos riscos que isso representava para a sua vida, não é possível concluir que a sua morte ocorreu no âmbito de um acontecimento fortuito, súbito e anormal e independente da sua vontade.
VI.– Considerando que o referido R… R… faleceu por asfixia induzida por hipoxia (falta de oxigénio nos tecidos), para o que contribuiu uma doença coronária de que sofria, também não é possível concluir que a sua morte é atribuível a um traumatismo.
VII.– Mesmo considerando o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, e a chamada teoria da impressão do destinatário, ainda assim, a conclusão seria no sentido de que a causa da morte de R… R… não constituiria um traumatismo, pois qualquer pessoa entenderia que um “traumatismo” é algo externo que acontece ao corpo de um individuo e não um processo gradual do corpo através do qual se reduz a quantidade de oxigénio disponível aos tecidos do corpo humano.
VIII.– Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, designadamente, o disposto nos artigos 227.º, 236.º, n.º 1, e 405.º, do Código Civil.

Contra alegou a A. nos termos de fls. 179 e seguintes.
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II–1- O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1.– No dia 30 de outubro de 2008, entre o B… S… T…, S….A…., o B… S…, S….A…, declarou vender a R… A… R… R… e mulher, A… P… d.. M…, que declararam comprar-lhes, pelo preço de € 91.000,00, a fração autónoma designada pela letra “T”, correspondente ao 1º andar, entrada nascente, lado esquerdo posterior, habitação tipo T3 (...), do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Av. 5 de janeiro, nºs 24-26, C…, freguesia de S… P…, concelho da F… da F…;
2.– Para financiamento da aquisição daquela fração, a C… d.. C… A… M… d.. B… M…, CRL2, concedeu a R… A… R… R… e mulher, A… P… d.. M…, um empréstimo no montante de € 80.000,00, pelo prazo de 20 anos, a contar daquela data, ao abrigo do regime Geral do Crédito à Habitação;

3.– A cláusula 9ª do documento complementar àquela escritura, e que dela faz parte integrante, tem a seguinte redação:
«1.– Os mutuários obrigam-se a contratar e a manter apólice de seguro multirriscos, e de seguro de vida, eficazes e aprovados pela C… A…, incluindo cláusulas a indicar a C… A… como única beneficiária (...):
(...)
b)- Seguro de vida de que a C… A… seja única beneficiária, para em caso de morte ou invalidez permanente lhe assegurar o pagamento de todas as quantias decorrentes do empréstimo que forem devidas na data do evento»;

4.– No cumprimento dessa cláusula contratual, entre R… A… R… R… e a ré foi celebrado um contrato de seguro designado «CA A… P… P… F… – C… H…», titulado pela apólice nº 00796764;
5.– Consta das condições particulares daquela apólice, além do mais, o seguinte:
«TOMADOR DO SEGURO
R… A… R… R…
DURAÇÃO DO CONTRATO E FORMA DE PAGAMENTO
Início 30/10/2008 1 Ano e seguintes – Venc. Anual
(...)
PESSOAS SEGURAS Pessoa Segura Data de Nascimento
(...) R… R… 19/06/1973
ACTIVIDADES E ÂMBITO DE COBERTURA
Actividade Soldadores
Âmbito de cobertura 24 Horas
COBERTURAS E CAPITAIS GARANTIDOS
Cobertura Base Capitais
Morte ou invalidez permanente 80 000,00EUR
(...)
BENEFICIÁRIOS
Em caso de Invalidez Permanente Total da Pessoa Segura, a beneficiária é a CCAM B… M… em relação ao capital em dívida.
Em caso de morte da pessoa segura, o beneficiário é a CCAM B… M… em relação ao capital em dívida e os Herdeiros Legais no valor do remanescente»;

6.– A al. f) da cláusula 1ª das Condições Gerais daquela apólice tem a seguinte redação:
«Para efeitos do presente contrato entende-se por:
(...)
f)- Acidente, o acontecimento fortuito, súbito e anormal, independente da vontade do Tomador do Seguro, da Pessoa Segura e / ou do Beneficiário, que produza na Pessoa Segura lesões corporais, invalidez permanente, incapacidade temporária ou morte, clínica e objectivamente constatadas. Para efeitos do presente contrato, não se consideram acidentes:
i.- As afecções alérgicas e as doenças em geral, isto é, toda a alteração de saúde cuja origem não seja atribuída a um traumatismo. Estão todavia cobertas as afecções alérgicas e as doenças resultantes de um acidente garantido;
ii. As afecções e invalidez não controláveis por um exame médico ou relacionadas com uma afecção nervosa ou mental que não apresentem sintomas específicos que tornem o diagnóstico inequívoco e indiscutível»;

7.– O nº 1 da cláusula 3ª das Condições Gerais daquela apólice tem a seguinte redação:
«O presente contrato de seguro garante o pagamento de indemnizações devidas em consequência de acidente sofrido pela pessoa segura, ocorrido durante a vigência do contrato e no âmbito da atividade contratada constante das Condições Particulares (...)»;
8.– A al. a) do nº 2 da mesma cláusula tem a seguinte redação:
«Em caso de morte da Pessoa Segura, ocorrida imediatamente ou no decurso de dois anos após a ocorrência do acidente que lhe deu causa, o segurador garante aos Beneficiários expressamente designados no contrato ou, na falta dessa designação, aos herdeiros legais da Pessoa Segura, o pagamento do capital seguro constante das Condições Particulares»;
9.– R… R… nasceu no dia 19 de junho de 1973 e faleceu no dia 22 de julho de 2104, pelas 18 horas e 40 minutos, no estado de casado com a autora segundo o regime da comunhão de adquiridos;
10.– À data do seu decesso, R… R… exercia a profissão de soldador;
11.– A morte de R… R… ocorreu dentro de um tubo de Argon com 80 cms de diâmetro, que então se encontrava a soldar, no seu local de trabalho, no Terminal de Gás Natural, R… d.. L.. C…, em L…-P…, F…;
12.– (…) e resultou de «síndrome de asfixia induzida por hipoxia em ambiente confinado, cujas consequências foram agravadas por doença arterial coronária aterosclerótica»;
13.– R… R… deixou omo seus herdeiros legitimários, além da
autora, os seus pais, J… A… G… R… e M… C… R… d.. S… D…;
14.– No dia 23 de abril de 2015 a ré enviou à autora, através da
sua ilustre advogada, a carta cuja cópia se encontra a fls. 18, da qual consta, além do mais, o seguinte:
«Acusamos recepção de correspondência electrónica, em 20-04-2015, cujo conteúdo mereceu a nossa melhor atenção.
Pela presente somos a informar que, de acordo com o estipulado nas Condições Gerais da Apólice subscrita, só é considerado Acidente a alteração de saúde/morte cuja origem seja atribuída a um traumatismo (cláusula 1ª.). Reunida toda a documentação, remetida a esta seguradora concluiu-se que a mesma (incluindo a autópsia) permitiu excluir uma causa traumática para a morte, sendo antes resultante de uma causa natural: Face ao exposto, lamentamos informar V. Exª. Mas somos forçados a declinar a responsabilidade pelo sinistro e vamos dar sem efeito toda a documentação recebida»;
15.– No dia 29 de junho de 2015, no cartório de M… D… N…, sito na F… d.. F…, entre a autora, e os pais do falecido R… R…, foi realizada a escritura pública de partilhas cuja cópia se encontra a fls. 65vº a 67, da qual consta, além do mais, o seguinte:
«(...) a A…, o J…. e a M… C… são os únicos interessados na partilha dos bens deixados por óbito de seu marido e filho, respectivamente, R… A… R… R…, falecido em 22 de julho de dois mil e catorze, sem testamento nem qualquer outra disposição de última vontade (...)
(...) os bens a partilhar são os seguintes:
- ATIVO -
- VERBA ÚNICA -
- FRAÇÃO “I” – primeiro andar direito, entrada nascente, lado esquerdo posterior, habitação tipo t-3 (...); faz parte do prédio:
Localização: - Av. 5 de Janeiro nºs 24/26 – C…/G…. freguesia de S… p…, concelho d.. F… d.. F…;
(...)
-Elementos registrais:
-Descrição número: Duzentos e sessenta e oito/S… P…, da Conservatória dos R… P…, C… e A… d.. F… d.. F….
- Inscrições: - Ap. 11 de 2008/11/04 de aquisição a favor do “de cujos”, casado com A… P… d.. M…;; Ap. 12 de 200/11/04 hipoteca voluntaria a favor da C… d.. C… A… M… d.. B… M… (...).
- PASSIVO -
- VERBA ÚNICA -
- Dívida à indicada C… A…, correlacionada com a hipoteca supra referida (Ap. 12), atualmente no montante de sessenta e cinco mil cento e cinquenta e quatro euros e nove cêntimos.
(...)
- Assim, procedem à partilha pela seguinte forma:
- Adjudicam o imóvel a partilhar à interessada viúva – A… – no mencionado valor de cento e seis mil seiscentos e vinte e três euros e dez cêntimos, ficando, no entanto, a seu cargo e da sua inteira responsabilidade o pagamento da totalidade do aludido passivo (...)»;
16.– A autora pagou à CCAMBM o montante a esta devido no âmbito do mútuo hipotecário referido em 2.;
17.– (...) pelo que no dia 1 de julho de 2015, a C….. emitiu o documento cuja cópia se encontra a fls. 24vº, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«A C… D.. C… A… M… D.. B… M…
(...) declara autorizar o cancelamento da hipoteca que a seu favor se acha registada na C… d.. R… P… d.. F… d.. F…, pela Ap. 12 de 2008/11/04 que incide sob o prédio urbano, fração autónoma I, sito na Av. 5 de Janeiro nº 24-26, lugar de G…, freguesia de S.. P…, concelho da F… d.. F…, inscrito na matriz urbana sob o artigo nº 1787, descrito nessa Conservatória sob número 268/19910325 – I, freguesia de S… P…».
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II–2- O Tribunal de 1ª instância não considerou provados os seguintes factos:
1.– Em consequência de a ré ter declinado a responsabilidade pelo sinistro, nos termos descritos na carta datada 23 de abril de 2015, transcrita em 2.1.1.14, a autora ficou angustiada;
2.– (...) e revoltada;
3.– (...) e frustrada.
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III– São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Assim, face ao teor das conclusões de recurso apresentadas, as questões que se nos colocam são as seguintes: se deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto provada nos termos propostos pela apelante; se o falecido R… G… faleceu em consequência de um acidente, atento o conceito que do mesmo resulta das Condições Gerais da Apólice do contrato de seguro celebrado com a R..
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IV–1- No artigo 19 da sua contestação alegara a R. que do relatório de autópsia constava que «A autópsia permite excluir uma causa traumática para a morte».
Pretende agora a mesma R. – apelante - que se considere provado, face ao referido relatório da autópsia e aos depoimentos dos médicos Dr. A… M… C… G… e A… d.. S… G… que «A morte de R… R… não foi provocada por traumatismo».
Haverá que ter em conta o relatório da autópsia do segurado, cuja tradução se encontra a fls. 135-137.

Da “Conclusão” do relatório em referência consta:
«A autópsia permite excluir uma causa de morte traumática.
A morte ocorreu em consequência de um síndrome de asfixia induzido por hipoxia num local confinado, cujas consequências foram agravadas por uma doença coronária ateromatosa».
No início do seu depoimento o Dr. A… M… C… G… referiu que não conhecera o falecido segurado e que teve acesso ao relatório da autópsia; foi a partir do teor desse relatório que baseou o seu depoimento. Esclareceu, quanto à frase «A autópsia permite excluir uma causa de morte traumática», que a pessoa não poder respirar constitui, também, um traumatismo para os pulmões. Na perspectiva da testemunha quereria dizer-se ali que não houve um exercício de violência física exterior contra o falecido; admitiu, embora, que o sentido habitual de trauma tem a ver com uma contusão.
Também o Dr. A… d.. S… G… quando prestou depoimento se fundou no que constava no dito relatório de autópsia. Mencionou não haver, em face do relatório, qualquer sinal de evento traumático no corpo – um traumatismo é sempre físico. Acrescentou que poderia haver um traumatismo provocado por inalação de um produto tóxico, mas no caso não há sinal de traumatismo interno ou externo.

Retira-se destes depoimentos que a conclusão de a morte ter, ou não, uma causa traumática, depende da extensão (mais ampla ou mais estrita) do conceito de trauma que seja adoptado.

Quem executou a autópsia ao referir a exclusão de uma “causa de morte traumática” terá querido dizer que não foi devida a uma contusão. Isso mesmo resulta, a nosso ver, do seguinte parágrafo constante da “Discussão” (fls. 137): «A autópsia permitiu excluir a intervenção directa de terceiros na morte, em virtude de ausência de lesões traumáticas: ausência de sinais de luta, de defesa ou de violência e ausência de lesão traumática que explique a morte».

Encontrando-se concretamente apurada qual foi a causa da morte (conforme resulta dos factos provados a morte resultou de «síndrome de asfixia induzida por hipoxia em ambiente confinado, cujas consequências foram agravadas por doença arterial coronária aterosclerótica») é desnecessário e inconveniente quando se executa a fixação dos factos provados procedermos a uma conclusão/classificação ambígua e discutível afirmando que «A morte de R… R… não foi provocada por traumatismo».
Pelo que não se defere à pretendida alteração.
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IV–2- Defende a apelante, na sequência, que se altere a decisão sobre a matéria de facto provada aditando-se aos factos provados que «No momento da sua morte, R… R… exercia sozinho a atividade mencionada no número anterior, não obstante ser do conhecimento de todos os trabalhadores que a mesma deveria ser exercida, pelo menos, por duas pessoas, por razões de segurança».
Tal facto, de que a apelante agora se quer valer, não foi invocado nos articulados, como ela desde logo adianta.
Nos termos do art. 5 do CPC às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, sendo, embora, ainda considerados pelo Juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da discussão da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, bem como os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

Tal como no art. 264 do anterior CPC verifica-se a tripartição entre os factos essenciais, os factos complementares e os factos instrumentais.
No domínio do CPC anterior, na lição de Miguel Teixeira de Sousa ([1]), os factos essenciais eram aqueles que integravam a causa de pedir ou que eram fundamento de uma excepção e cuja falta determinava a inviabilidade da acção ou da excepção; os factos instrumentais, probatórios ou acessórios corresponderiam àqueles que indiciavam os factos essenciais e que podiam ser utilizados para prova complementar destes; os factos complementares ou concretizadores aqueles cuja falta não constituía motivo de inviabilidade da acção ou da excepção, mas que participavam de uma causa de pedir ou de uma excepção complexa e que, por isso, eram indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção.
Os factos instrumentais não integram a causa de pedir (ou a excepção) sendo factos indiciários ou presuntivos dos factos integrantes da mesma.
Relativamente aos factos que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja alegado explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([2]) que se trata sempre de casos em que a causa de pedir ou excepção está individualizada mediante alegação fáctica suficiente para o efeito, mas não completa, por não terem sido alegados todos os factos necessários à integração da previsão normativa.
Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro ([3]) dizem-nos que são complementares ou concretizadores os factos pertencentes à relação jurídica material (já caracterizada pela descrição de outros factos essenciais) integrando a causa de pedir deficientemente narrada na petição inicial ou na reconvenção.
No caso que nos ocupa não estamos perante um facto instrumental. Por outro lado, não nos parece que o facto a que nos reportamos («No momento da sua morte, R… R… exercia sozinho a atividade mencionada no número anterior, não obstante ser do conhecimento de todos os trabalhadores que a mesma deveria ser exercida, pelo menos, por duas pessoas, por razões de segurança») se perspective como facto complementar ou concretizador, tendo em conta a causa de pedir complexa desenhada pela A. na p.i.; nem se apresentará como facto complementar ou concretizador de excepção peremptória invocada oportunamente pela R. (na sua contestação), como circunstância que impeça a qualificação da ocorrência invocada pela A. como acidente, excluindo-o como tal.
Acresce que as passagens dos depoimentos das testemunhas mencionadas pela apelante não nos parecem suficientes para considerar demonstrado o facto em causa.

A testemunha Dr. A… M… G… d.. S… limitou-se a emitir a opinião, dentro dos seus conhecimentos sobre a matéria, de que atendendo ao risco que o exercício da actividade do falecido implicava, no espaço físico em que estava a ser desenvolvida, não devia trabalhar isoladamente.

A testemunha H… M…, soldador tal como o falecido R… R… e seu colega de trabalho disse que ele tinha desaparecido e que vieram a encontrá-lo dentro do tubo em que estivera a trabalhar e que o tubista (pessoa que trabalhava com ele) dias depois foi alvo de uma tentativa de dispensa.

Assim, mantém-se nos seus precisos termos a matéria de facto julgada provada, sem qualquer aditamento à mesma.
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IV–3- Não oferece dúvida que entre R… R… e a R. foi celebrado um contrato de seguro designado «CA Acidentes Pessoais Proteção Financeira – Crédito Hipotecário», titulado pela apólice nº 00796764, nele figurando como pessoa segura o referido R… R…, com a actividade de soldador e o âmbito de cobertura 24 horas.

Sabemos que o R… R… faleceu no dia 22 de Julho de 2014, pelas 18 horas e 40 minutos, exercendo a profissão de soldador, e que a sua morte ocorreu dentro de um tubo de Argon com 80 cms de diâmetro, que então se encontrava a soldar, no seu local de trabalho, no Terminal de G.. N…, R… d.. L.. C…, em L…-P…, F…; a morte resultou de «síndrome de asfixia induzida por hipoxia em ambiente confinado, cujas consequências foram agravadas por doença arterial coronária aterosclerótica».
A R. declinou a responsabilidade pelo sinistro com o fundamento aludido na carta referida no ponto 14) dos factos provados, ou seja, porque considerou excluída uma causa traumática para a morte de R… R…, sendo essa morte resultante de uma causa natural.
Estamos perante um seguro de acidentes pessoais, celebrado em 2008 (o seu início foi em 30-10-2008). Ao tempo da sua celebração ainda não vigorava a «Lei do Contrato de Seguro» aprovada pelo dl 72/2008, de 16-4, a qual entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009.
Como resulta do art. 2 do dl 72/2008 a nova lei também se aplica às situações jurídicas constituídas em momento anterior à data da sua entrada em vigor que perdurem nessa data, «todavia, neste caso, a lei nova não se aplica à formação do contrato, mas tão só ao seu conteúdo, ou seja, a questões relacionadas com a execução do vínculo» ([4]).
Tratando-se de um seguro de acidentes pessoais dizia-nos José Vasques ([5]) que o conceito de acidente parece dever construir-se a partir dos seus elementos integradores, isto é, a lesão corporal há-de consubstanciar-se na invalidez (parcial ou total) ou na morte, e resultar de um evento involuntário, externo, violento e súbito. Acrescentando este autor que o carácter involuntário não pretende excluir os actos voluntários, mas apenas os intencionais. A exterioridade do evento relativamente ao corpo afasta os danos sofridos sem intervenção de forças exteriores (como exemplo: a doença). A violência não consistirá necessariamente em lesão traumática, devendo entender-se que são violentas, designadamente, as descargas eléctricas, as mordeduras ou picadas de animais e as insolações. O carácter súbito afasta as lesões resultantes da reiteração de factos, pelo que também por este critério ficaria afastada a doença, embora devam considerar-se incluídos os transtornos orgânicos e as doenças que sejam consequentes a factos repentinos.

Sucede que no concreto contrato de seguro celebrado entre o falecido R… R… e a R. o conceito de “acidente”, para efeitos do dito contrato fora considerado nas Condições Gerais da Apólice.

Estipulava o nº 1 da cláusula 3ª das Condições Gerais da Apólice:
«O presente contrato de seguro garante o pagamento de indemnizações devidas em consequência de acidente sofrido pela pessoa segura, ocorrido durante a vigência do contrato e no âmbito da atividade contratada constante das Condições Particulares (...)»;
Constando da alínea f) da cláusula 1ª das Condições Gerais da Apólice:
«Para efeitos do presente contrato entende-se por:
(...)
f)-Acidente, o acontecimento fortuito, súbito e anormal, independente da vontade do Tomador do Seguro, da Pessoa Segura e / ou do Beneficiário, que produza na Pessoa Segura lesões corporais, invalidez permanente, incapacidade temporária ou morte, clínica e objectivamente constatadas. Para efeitos do presente contrato, não se consideram acidentes:
i.- As afecções alérgicas e as doenças em geral, isto é, toda a alteração de saúde cuja origem não seja atribuída a um traumatismo. Estão todavia cobertas as afecções alérgicas e as doenças resultantes de um acidente garantido;
ii.- As afecções e invalidez não controláveis por um exame médico ou relacionadas com uma afecção nervosa ou mental que não apresentem sintomas específicos que tornem o diagnóstico inequívoco e indiscutível».

A R. considerou excluída uma causa traumática para a morte de R… R…, sendo essa morte resultante de uma causa natural.

Continuando a sustentar, nas conclusões da sua alegação de recurso, que tendo ficado acordado no contrato de seguro que um “acidente” é um acontecimento fortuito, súbito e anormal, independente da vontade da Pessoa Segura, e que não é atribuível a um traumatismo, não é possível concluir que as circunstâncias da morte do marido da A. constituem um acidente.

Vejamos.

É certo que de acordo com o clausulado supra referido um “acidente” corresponderia:
-a um acontecimento fortuito, súbito e anormal;
-independente da vontade da pessoa segura;
-que produza nesta lesões corporais, invalidez permanente, incapacidade temporária ou morte.
-não o sendo as afecções alérgicas e as doenças em geral, isto é, “toda a alteração de saúde cuja origem não seja atribuída a um traumatismo”.
O falecido R… R… estava a trabalhar dentro de um tubo de Argon com 80 cm de diâmetro e a morte resultou de «síndrome de asfixia», ou seja, de síndrome causada pela insuficiência de oxigenação do organismo a qual, como no caso, pode conduzir à morte. A asfixia pode ser causada por baixo conteúdo de oxigénio no ar ambiente e foi isso que sucedeu, tendo em conta que foi induzida por hipoxia, por outras palavras, por baixo teor de oxigénio, em ambiente confinado - o tubo de Argon com 80 cm de diâmetro em que o falecido procedia à sua actividade.
Trata-se, indiscutivelmente de um acontecimento fortuito, súbito e anormal. Fortuito porque aconteceu por acaso, sem qualquer previsão; súbito porque não traduz uma reiteração de factos; anormal porque não é comum, fugindo ao padrão do que era habitual.
Tratou-se, também, de um acontecimento independente da vontade da pessoa segura, o falecido R… R… – um evento involuntário, não intencional.
Por outro lado, a ocorrência – hipoxia, baixo teor de oxigénio em ambiente confinado, o dito tubo de Argon com 80 cm de diâmetro – produziu na pessoa segura um síndrome de asfixia em consequência do qual ocorreu a morte.

É certo que as consequências da hipoxia em local confinado foram agravadas por uma doença coronária ateromatosa de que a pessoa segura sofria – todavia, essa doença coronária agravou, mas não determinou. Ou seja, o óbito do R… G… dentro do turbo de Argon não teve lugar por ele sofrer de doença coronária, mas devido ao baixo teor de oxigénio ali existente, circunstância que provocou a asfixia que levou à morte. Logo, ao contrário do pretendido pela apelante, a morte não resultou de uma causa naturalresultou da carência de oxigénio no local.Não fora isso – não tivesse ele estado naquele espaço confinado com baixo teor de oxigénio - o R… G… continuaria a viver, pese embora a sua doença.
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IV–4- Com vimos, face ao conceito de acidente plasmado nas Condições Gerais da Apólice, a tal não corresponderão as «afecções alérgicas e as doenças em geral, isto é, toda a alteração de saúde cuja origem não seja atribuída a um traumatismo».

Como interpretar este ponto (ponto i) da cláusula contratual em questão?
Determina o art. 236 do CC que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; porém, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que a declaração vale. Acolherá assim o Código Civil o tipo de sentido negocial decisivo para a interpretação nos termos da doutrina objectivista da impressão do destinatário: a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição do real declaratário, lhe atribuiria – considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente, mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável ([6]). Todavia, este pendor objectivista cede quando o declaratário conhece a vontade real do declarante. Tratando-se de negócios formais (como era o caso) terá de se articular com o disposto no art. 238 do CC – a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.

De qualquer modo, atento o disposto no art. 236, não se provando o sentido da vontade real do declarante ou não se provando o seu conhecimento efectivo pelo declaratário (como sucede no caso dos autos) aplica-se o critério normativo objectivo do nº 1 do art. 236: «em princípio, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima, vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente e de boa fé» ([7]).

Perspectivando um declaratário normal do mesmo tipo do falecido R… G… – pessoa que ao tempo da celebração do contrato tinha cerca de 35 anos, desenvolvendo a actividade de soldador e que se encontrava a celebrar um contrato de seguro de acidentes pessoais na sequência de financiamento para aquisição de habitação – que sentido retiraria ele deste ponto do clausulado, ou seja, de que não conformariam um “acidente” as afecções alérgicas e as doenças em geral, isto é, “toda a alteração de saúde cuja origem não seja atribuída a um traumatismo”?

Como referido na sentença recorrida: «Não é crível que um declaratário típico, colocado na situação e com os mesmos conhecimentos do declaratário a que se reportam os presentes autos, ou seja, R… R…, soldador de profissão, interpretasse o normativo contido no ponto i) da al. f) da cláusula primeira das condições gerais da apólice no sentido de que, na hipótese de vir a falecer, no seu local de trabalho, dentro de um tubo de Argon com 80 cms de diâmetro, enquanto o soldava, sendo causa da morte, asfixia induzida por hipoxia em ambiente confinado, isso, para a seguradora, não constituiria um acidente, logo, não se responsabilizaria pelo sinistro, não procedendo ao pagamento do capital seguro aos respetivos beneficiários».

Saliente-se que na cláusula em referência é feita uma dicotomia afecções alérgicas, doenças em geral/acidente, incluindo naquelas “toda a alteração de saúde cuja origem não seja atribuída a um traumatismo”.

Ora, a asfixia induzida por hipoxia em ambiente confinado não corresponde, de todo, a uma doença (ou a uma reacção alérgica).
Correspondendo o traumatismo à lesão resultante da acção de um factor externo sobre o organismo, parece, aliás, ser esse o caso dos autos – a hipoxia em ambiente confinado (factor externo) produziu um trauma no organismo do R… R… com a asfixia e consequente morte.

Estamos, pois, em face de um acidente, consoante previsto no contrato de seguro celebrado entre o falecido R… G… e a R..
Concluímos, deste modo, que improcedem as conclusões da alegação de recurso da apelante.
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V– Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
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Lisboa, 1 de Março de 2018



Maria José Mouro
Teresa Albuquerque                                                                      
Vaz Gomes




[1]Em «Estudos Sobre o Novo Processo Civil», Lex, pag. 70.
[2]No «Código de Processo Civil Anotado», vol. I, Coimbra Editora, 2014,pags. 17-18.
[3]Em «Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil», Almedina, 2013, pag. 38.
[4]Ver Pedro Romano Martinez, «Lei do Contrato de Seguro Anotada», Almedina, 3ª edição, pag. 23.
[5]Em «Contrato de Seguro», Coimbra Editora, 1999, pag. 61.
[6]Mota Pinto, «Teoria Geral do Direito Civil», Coimbra Editora, 1976, pags. 419-420.
[7]Ver «Comentário ao Código de Processo Civil – Parte Geral», coordenação de Carvalho Fernandes e Brandão Proença, Universidade Católica Portuguesa, pags. 537-541.