Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
48/13.5PFPDL.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1- O âmbito punitivo do tipo de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º/CP, abarca todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a dignidade humana, quer no âmbito dos maus-tratos físicos, quer no dos maus-tratos psíquicos, abrangendo comportamentos tipificados como crimes, se individualmente considerados, que se encontram numa relação de consumpção aparente com o referido crime de violência doméstica.
2- No caso, a acusação foi deduzida por uma série de actos delituosos, subsumíveis ao tipo de violência doméstica, mas apenas se provam factos que, ainda que parcialmente coincidentes com os acusados, foram entendidos como susceptíveis de integrar, apenas, o tipo de crime de injúrias.
3- Estando, necessariamente, em causa, um menos relativamente ao mais constante da acusação, entendemos que a situação não se subsume à previsão das normas dos artºs 358º ou 359º, do CPP.
4- A autonomização dos factos relativamente ao crime maior, no âmbito do qual foram acusados, não tem a virtualidade de desprovir de legitimidade para o exercício da acção penal o Ministério Público, órgão que, quando do exercício dessa mesma acção, a tinha e a usou de acordo com a lei.
5- A exigência de dedução de queixa-crime e de constituição de assistente, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efectivação da punição pelos crimes de que foi vitima
6- Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular.
7- Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito, quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação, seria impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão.
8-Manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:


                    
I – Relatório:


Em processo comum, com intervenção do Tribunal singular, o arguido PR, nascido a 10/12/1967, na freguesia de S. Pedro, Ponta Delgada, divorciado, guarda prisional, filho de XXX e de XXX, residente na rua XXX, foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º/1 - alínea a), e nsº 4 e 5, do Código Penal, que lhe era imputado, e foi condenado, como autor material, na forma consumada e em concurso real de infracções, pela prática de três crimes de injúrias, ps. e ps. pelo artigo 181º, do CP, nas penas parcelares de, respectivamente, sessenta dias de multa pelos factos ocorridos no dia 05/08/2013, setenta dias de multa pelos factos ocorridos em Março de 2014 e cem dias de multa pelos factos ocorridos em Abril de 2014. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de cento e setenta e cinco dias de multa, à taxa diária de oito euros.

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O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«1. Salvo o devido respeito, o arguido não se conforma com a douta sentença que o condenou pela prática de três crimes de injúrias, p.p. pelo artigo 181º. do Código Penal.

2. E isto porque, o arguido foi acusado pelo Ministério Público pela prática de um crime de violência doméstica p.p. pelo artigo 152º. nº.1 alínea a) e nº.4 e nº.5 do Código Penal.

3. acabando, conforme se verifica da sentença recorrida, por ser absolvido daquele crime, mas condenado pela prática de três crime de injúrias, p.p. pelo artigo 181º. do Código Penal.

4. Ora, nos crimes particulares - como é o crime de injúrias - para que o Ministério Público possa exercer a acção penal é necessário que o titular do direito de acusação particular se queixe, se constitua como assistente e deduza acusação particular, de acordo com o artigo 50.º n.º 1 do Código de Processo Penal.

5. Ora, não tendo a assistente deduzido acusação particular contra o arguido, pela prática do crime de injúrias p.p. pelo artigo 181º. do Código Penal – sendo esta quem detinha em exclusividade legitimidade para o fazer, atenta a natureza particular do crime em causa - o Tribunal “a quo” deveria abster-se de condenar o arguido pela prática do referido crime de injúrias e declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido.

6. Pelo exposto, ao decidir como decidiu, violou a douta sentença os artigos 181.º e 188.º, todos do Código Penal, assim como os artigos 50.º n.º 1, e 410.º, n.º 2, alínea b), todos do Código do Processo Penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser a sentença revogada e substituída por douto Acórdão que absolva o arguido da prática dos crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal».

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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos termos que se transcrevem:

«1. A sentença impugnada não merece qualquer censura, pois que não enferma de omissões, nulidades ou vícios.

2. Os factos pelos quais o arguido foi condenado constavam da acusação deduzida pelo Ministério Publico, acusação esta que foi acompanhada pela assistente.

3. Assim, apesar de a assistente não ter deduzido acusação particular autónoma, ao acompanhar a acusação pública, fez sua também aquela acusação, pelo que nada obsta a que se aprecie a responsabilidade penal do arguido pela prática daquele ilícito.

4. Por todo o exposto, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos».

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Contra-alegou a assistente TL, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:

«i. O arguido PR foi absolvido da prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1 al. A) e n.º 4 e 5 do C. P., pelo qual vinha acusado.
ii. Não obstante, foi aquele condenado, como autor material, na forma consumada, e em concurso real de infracções, por três crimes de injúrias, p. e p. pelo art.º 181º do C.P, na pena única de 175 dias de multa, à taxa diária de 8 €, perfazendo o valor global de 1.400,00€.
iii. O arguido discorda da decisão do Tribunal a quo, requerendo a sua absolvição, fundamentando-a, no essencial, no facto de “ nos crimes particulares – como é o crime de injúrias- para que o Ministério Público possa exercer a acção penal é necessário que o titular do direito de acusação se queixe, se constitua como assistente e deduza acusação particular, de acordo com o artigo 50º n.º 1 do Código Processo Penal”.
iv. Segundo o arguido, “ não tendo a assistente deduzido acusação particular contra o arguido, pela prática do crime de injúrias […] sendo que é este quem detinha em exclusividade legitimidade para o fazer, atenta a natureza particular do crime em causa- o Tribunal a quo deveria abster-se de condenar o arguido pela Prática do referido crime de injúrias e declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido.”
v. Não podemos deixar de discordar da sua posição, corroborando com a douta sentença.
vi. O arguido descreve os pressupostos processuais subjacentes à prossecução da acção penal nos crimes de natureza particular, dizendo que não tendo sido deduzida acusação particular pela assistente, o procedimento criminal deveria ter sido extinto.
vii. O arguido vinha acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º n.º 1, al. a) e n.º 4 e 5 do CP, que sendo um crime de natureza pública, o MP tem legitimidade para promovê-lo, de acordo com o art.º 48º do CPP.
viii. Atendendo à complexidade deste tipo de crime, por ser um crime específico e impróprio, de perigo abstracto, na medida em que engloba vários tipos de crimes, podendo criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais (ofensas à integridade física, injúrias, difamação, coacção, sequestro simples, devassa da vida privada e gravações e fotografias ilícitas), muitas vezes deparamo-nos com situações de “fronteira”, acabando o julgador por decidir que o tipo penal aplicável não é o da violência doméstica, mas qualquer um dos outros mencionados de per si, como foi o caso em apreço.
ix. A assistente apresentou queixa contra o ex-marido, apresentando factos que o digno Ministério Público, após a realização das necessárias diligências em sede de inquérito, determinou que eram susceptíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, acusando-o. Encontra-se preenchido o primeiro pressuposto.
x. Foi dito expressamente pela mesma que acompanhava a douta acusação deduzida pelo Ministério Público, para todos os efeitos legais, nos termos do disposto no art.º 284º n.º 2, al. a) do CPP, subscrevendo a prova indicada e indicando, ainda, duas novas testemunhas.
xi. De facto, a assistente não formalizou a acusação particular porque, à data, aquela não era obrigatória, pois a acusação deduzida pelo Ministério Público referia-se à prática de um crime de natureza pública, que, por si só, dispensa apresentação de queixa e constituição de assistente.
xii. Não lhe é imputável o facto de não ter deduzido acusação particular quando é certo que, face ao crime pelo qual foi acusado não era necessário que o fizesse.
xiii. Tal como defendeu o MP no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30-09-2014 (www.dgsi.pt), considerar a interpretação segundo a qual o MP “carece de legitimidade para a prossecução da acção penal” perante um alteração substancial dos factos, porque passa a tratar-se de um crime de natureza particular, “ é uma solução meramente formalista (e, portante, contrária à lei), que parte do pressuposto completamente erróneo – de que é imputável à vítima o facto de não se ter constituído assistente nem deduzido acusação particular, ainda que, face ao crime por cuja autoria o arguido foi acusado, não era necessário que o fizesse. E sempre redundaria numa decisão surpresa que não salvaguardaria a posição da vítima, que não pode adivinhar que os factos objectivos recebam uma determinada qualificação jurídica em sede de acusação e outra em sede de acusação e que nunca foi notificada para os efeitos mencionados.”
xiv. A Relação do Porto, em dois Acórdãos, sustentou, no Acórdão de 11/4/2012 (www.dgsi.pt), “que a aquiescência do arguido à continuação do julgamento pelos factos novos, em caso de alteração substancial dos descritos na acusação, comunicada em audiência de julgamento, legitima o tribunal a conhecer de meritis quando ao crime enunciado, ainda que este seja de natureza particular, e não tenha havido acusação particular.”
xv. O mesmo Tribunal, no Acórdão de 30/1/2013, invocado sabiamente na douta sentença, considerou que “não podemos dizer que estamos perante uma alteração substancial de factos, que tenha por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso. Os factos imputados ao arguido, que poderão integrar a prática de um crime de injúrias, estavam contidos (como um “minus”) nos factos por que o arguido vinha acusado, integradores da prática de um crime de violência doméstica. […] Poderá dizer-se que a assistente vê cerceado o seu direito de acusação particular pelos crimes de injúria de que terá sido vítima. Nunca deduziu acusação particular desses crimes que foram considerados, pelo Ministério Público, integradores de um crime público. Ou seja, nunca poderia ter deduzido acusação particular. Mas podia ter acompanhado a acusação pública (nos termos do artigo 284º do CPP) e poderia considerar-se que este acompanhamento continha implicitamente a acusação prática de crimes de injúrias.”
xvi. Encontram-se, assim, reunidos todos os pressupostos processuais do crime particular, nos autos referenciados, inclusive a acusação particular, por convolação, até porque os factos que seriam mencionados na acusação particular, formalizada pela assistente, caso tal se observasse, encontram-se descritos ipsis verbis na acusação pública que a mesma acompanhou.

Nestes termos e nos demais do Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá o recurso apresentado pelo arguido ser julgado improcedente e em consequência deverá ser mantida a douta sentença recorrida».

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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, porquanto entende que «o facto alegado - falta de acusação da assistente - não se verifica.

7. Com efeito, como resulta de fls. 182, a ofendida veio aos autos requerer a sua constituição como assistente e declarar, para todos os efeitos legais, que acompanha a acusação do Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 284°, n.° 2, al. a), do CPP.

8. Facto este que - sublinhe-se - não pode deixar de ser do pleno conhecimento do recorrente, que durante todo o processo se confrontou com a ofendida, na sua qualidade de assistente, representada por advogado constituído nos actos processuais em que interveio, em particular na audiência de julgamento.

Termos em que, por manifesta falta de fundamento, se emite parecer no sentido da improcedência do recurso».

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II- Questões a decidir:

Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
A questão colocada pelo recorrente é a da inexistência de acusação particular, que considera condição de procedibilidade do procedimento criminal pelos crimes de injúrias, pelos quais foi condenado.  

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III- Fundamentação de facto:

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:

1-TL e o arguido casaram em 1/09/1990, tendo-se separado em Junho de 2011 e divorciado em 31/07/2012.

2-No âmbito do inquérito n.º 1226/11.7PBPDL, pela prática de um crime de violência doméstica, na pessoa da sua ex-cônjuge TL, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2 do Código Penal, e de um crime de ameaça agravada, p. p. pelo artigo 155º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pessoa de FP, foi aplicada ao arguido a suspensão provisória do processo sob a injunção de prestar 80 horas de serviço de interesse público, com vigilância da equipa da Direcção-Geral de Reinserção Social, o que cumpriu.

3-Entre o dia 31/07/2012 e até 30/05/2014, o arguido permaneceu algumas vezes junto da residência de TL, situada na rua xxx, designadamente quando seu filho G ficava sozinho em casa.

4-No dia 05/08/2013, pelas 12h00, na rua XXX, junto ao n.º 17, o arguido e a assistente desentenderam-se por motivos relativos ao filho de ambos, iniciando uma discussão de contornos não concretamente apurados, mas na qual o arguido disse à assistente “quero que tu te fodas, és uma puta, quero que tu te lixes”.

5-Até ao dia 30/05/2014, o arguido telefonou várias vezes a TL bem como a contactou pessoalmente, acabando os mesmos por discutir em termos não concretamente apurados.

6-No final de Março de 2014, no posto de abastecimento situado no Caminho XXX, o arguido parou o carro junto a TL e após terem iniciado uma discussão disse-lhe, em voz alta, «és uma puta, uma cabra, queres fornicar com o teu amante».

7-Em Abril de 2014, quando TL se encontrava no cabeleireiro Salão XXX, o arguido apareceu junto à porta e após terem iniciado uma discussão, disse-lhe, repetidamente, «és uma puta, uma cabra, queres fornicar com o teu amante».

8-O arguido agiu de forma voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar a honra de TL, resultado este que representou, quis e conseguiu.

9-O arguido sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal, que podia e devia ter observado.

10-O arguido é guarda prisional desde 1994, auferindo mensalmente cerca de 1.500€.

11-Paga mensalmente de pensão de alimentos a seu filho G a quantia de 125€.

12-Vive em união de facto com MA desde Setembro de 2012.

13-Reside com a companheira e uma filha menor de idade desta em casa arrendada, pela qual paga mensalmente 490€.

14-É considerado pessoa pacata e respeitadora pelos seus amigos.

15-Não tem antecedentes criminais.

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Há ainda que considerar que, nos autos, a ofendida deduziu queixa-crime, constituiu-se assistente e, notificada que foi da acusação deduzida pelo MP, declarou expressamente que a acompanhava e apresentou prova.

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Factos não provados:

Não se provaram outros factos da acusação com interesse para a decisão da causa, designadamente, que:

1-No dia 31/07/2012, quando o ex-casal saía da Conservatória de Registo Civil de Ponta Delgada após assinarem o expediente concernente ao divórcio, o arguido tivesse dito a TL «se te vir com alguém mato-te».

2-A partir desta ocasião e até 30/05/2014 o arguido tenha movido perseguições de carro a TL.

3-Entre 31/07/2012 e até 30/05/2014, o arguido disse, repetidamente, a TL: «puta, andas com homens, eu mato-te, pego fogo à casa, parto-te o carro».

4-No dia 05/08/2013, pelas 12h00, na rua XXX, junto ao n.º XXX, o arguido, fazendo uso de um bastão, tenha partido o vidro dianteiro da viatura utilizada por TL.

5-Desde 22/03/2014 até ao dia 30/05/2014, o arguido telefonou várias vezes a TL bem como a contactou pessoalmente dizendo-lhe «vou pegar fogo à casa contigo lá dentro, vou-te bater, não vou dar mais pensão de alimentos, vou-te matar e vais para o cemitério da Fajã de Cima, quando te encontrar com algum homem ele morre também».

6-O arguido agiu de forma voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar a liberdade de decisão e de formação da vontade de TL, resultado este que representou, quis e conseguiu.
7-O arguido bem sabia que as expressões por si proferidas aquando das perseguições e vigias a TL eram aptas a causar-lhe medo e receio da prática, por si, de actos contra a sua vida e integridade física, anulando a sua liberdade e dignidade enquanto pessoa.

8-O arguido não interiorizou o fim da relação com a sua ex-esposa persistindo nos maus tratos por a mesma ter encetado uma relação afectiva com outro individuo.

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IV- Fundamentação probatória:

O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:

«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do Tribunal.

O arguido prestou declarações, admitiu poder ter proferido algumas das expressões que lhe são imputadas na acusação, designadamente chamando a assistente de puta, cabra e dizendo que queria fornicar com o amante, o que sucedeu quando discutiam. Reconheceu que tal pudesse ter ocorrido em Abril, no cabeleiro XXX, e na bomba de gasolina no Caminho XXX.
Admitiu igualmente que por vezes parava o veículo ao pé da casa onde residia a assistente, ali permanecendo algum tempo. Esclareceu, contudo, que essas permanências junto de casa – que não foram muitas – ocorriam quando seu filho G, ainda menor de idade, lhe dizia que a assistente tinha saído à noite. Como receava pela segurança do filho acabava por ficar nas imediações. Admitiu igualmente ter discutido acaloradamente com a assistente em Agosto de 2013, por causa de seu filho menor, G. No mais negou veementemente os factos que lhe são imputados na acusação, foi peremptório em como os desentendimentos com a assistente se prendem com os encargos bancários que ambos assumiram na constância do casamento e a regularização dos mesmos e com situações relativas aos filhos de ambos. Aceitou pacificamente a vontade da assistente se divorciar, saindo de imediato de casa, e acabando por refazer a sua vida com a sua actual companheira. Por vezes os problemas entre si e a assistente surgiam por causa do filho G, que tinha um comportamento rebelde, faltando às aulas e chegando a embriagar-se, assumindo a assistente uma atitude de permissividade e de aceitação que não era partilhado por si.

O relacionamento entre ambos correu sem incidentes de maior desde o divórcio até Março de 2014, altura em que começaram a surgir os problemas por causa das faltas de pagamento às financeiras e por questões ligadas aos filhos, e não porque não tivesse aceitado o divórcio.

Versão diversa dos factos apresenta a assistente TL, descrevendo os mesmos em consonância com a acusação. Esclareceu que o seu casamento nunca foi feliz, designadamente por causa dos relacionamentos extramatrimoniais que o arguido foi mantendo, e que levaram a que em 1996 tivesse mesmo saído de casa.

Acabou por perdoar e reataram o casamento, mas sentiu-se sempre diminuída por o arguido ter outros relacionamentos. Em 2011, após ter havido um desentendimento grave por causa do filho G, achou que era altura de por termos ao casamento, o que comunicou ao arguido, acabando este por sair de casa. Estiveram 1 ano para formalizar o divórcio, pois o arguido estava sempre a levantar problemas quanto aos termos da partilha. Em 2012 divorciaram-se, logo no dia do divórcio, quando saíram da conservatória o arguido disse-lhe que se a visse com algum homem que a matava. Em Agosto de 2013 voltou a haver um incidente grave por causa da deslocação do filho G para Santa Maria; nessa ocasião, para além de lhe ter chamado nomes e de a ter ameaçado, partiu o vidro do carro com o bastão de serviço. A partir de Março de 2014 as perseguições passaram a ser constantes bem como o dirigir-lhe as expressões constantes da acusação. Esclareceu que é pessoa nervosa, que após o nascimento do filho G teve uma depressão pós-parto, estando a ser acompanhada pela psicóloga da APAV desde 2013. Referiu ter sido desde sempre vítima de violência psicológica e que se sente permanentemente ameaçada pelo arguido. Contudo, a sua postura em audiência de julgamento – quer aquando da prestação das declarações, quer depois, enquanto assistia a todas as sessões de julgamento – permitem antever alguém bem menos afectado do que aquilo que quis fazer crer; ficando o sentimento, criado mais por sinais não verbais do que por aquilo que efectivamente disse (ou não disse), que a coloração dada aos factos pela assistente era bem mais carregada do que aquela que tinha na realidade.

M S e G P, filhos do arguido e assistente Depondo, depuseram seguindo o diapasão da assistente. Tudo no pai – o arguido – era (é) negativo, tendo ambos deixado de falar com o mesmo em Abril de 2014; viam-no sempre a rondar a casa, parando ao pé de casa, no supermercado XXX ou no XXX, foi sempre agressivo verbalmente para com a mãe. MS referiu que nunca se deu bem com o pai, nem quando era criança. Quando confrontado com o aparente bom relacionamento que o arguido tinha descrito, com pagamento de viagens, oferta de computador, encontros quando ia a Lisboa, justificou que só o fazia para se aproveitar economicamente do pai. Também G referiu que só manteve o relacionamento com o pai até Abril de 2014, altura em que atingiu a maioridade. As afirmações de ambos os filhos do arguido são surpreendentes pela veemência com que são feitas; mais emocionais as de MS do que as de G, mas em ambos os casos desprovidas de afecto para com o arguido e de notório apego para com a assistente. Terão os seus motivos para tal assumir de posição, mas do que descreveram, mesmo que estivéssemos perante um pai bastante menos permissivo do que a mãe (e o arguido era efectivamente menos permissivo e aceitava menos facilmente o comportamento rebelde dos filhos, designadamente de G; e não terá financiado o curso de pós-graduação que MS pretendia frequentar), fica por perceber, em termos objectivos, donde surge tamanho desapego e afastamento do pai, que tentou manter um contacto próximo com os filhos, do que é sintomático o orgulho que manifestou ao falar do seu filho MS e do êxito académico do mesmo e a revolta que manifestava por achar que a assistente estava a virar os filhos contra si.

E afigura-se-nos que a cisão afectiva sentida por MS e G acabou por condicionar os respectivos depoimentos, desde logo nas afirmações que fizeram que viam sempre o pai a rondar a casa e a perseguir a mãe, e assim era, na generalidade das vezes, não porque vissem efectivamente o pai, mas porque, afinal, o trabalhar de um qualquer Renault era certamente o pai a passar de carro; uma qualquer ida ao parque da cidade por parte do arguido já era uma ida para vigiar a casa e o que faziam. Enfim, o modo como depuseram, a animosidade notória que mantinham para com o arguido, parecia tornar qualquer acto/gesto do arguido, por inócuo que fosse, em algo negativo e com intuitos persecutórios.

Ainda assim, MS reconheceu que as coisas entre os pais andaram mais ou menos calmas até Março de 2014 e que as discussões eram sempre em relação à casa e ao carro. Tal como acabou por reconhecer ter abordado a companheira do pai, em Abril de 2014, quando cá esteve nas férias da Páscoa. Já G, acabou por admitir que pelo menos uma das vezes em que o arguido esteve parado em frente da casa, à noite, a sua mãe tinha saído e tinha ficado sozinho em casa (o que aceitou de bom grado, pois gostava de ficar em casa, não sentindo qualquer receio). Admitiu igualmente que o pai acusava a mãe de o estar a virar contra si, do que não gostava e nessas alturas se referia à mesma como sendo uma cabra.

Ouvidos os intervenientes directos nos factos e aqueles que mais sabiam sobre a vivência do arguido e da assistente como casal, ficamos com duas versões dos factos bastante diversas. E desde já diremos que nenhuma das duas versões nos mereceu inteira credibilidade, estando a verdade certamente algures pelo meio.

“Sabendo-se que a violência de são vítimas as mulheres ocorre sobretudo no seio do agregado familiar, escapando em larga medida ao conhecimento público, tem vindo a receber progressivamente aceitação geral a ideia de que estando em causa crimes cuja prática é menos visível ou rodeado até de certo secretismo os depoimentos dos ofendidos devem merecer especial relevo probatório.

O que não quer significar, porém, que se deva ter como certo que o acusado mente e a(o) ofendida(o) conta sempre a verdade, mas sim que o tribunal deve estar particularmente atento às declarações e à atitude de um e de outro, pois são eles, especialmente a(o) ofendida(o) quem forma as bases em que vai assentar a convicção do julgador.” (acórdão da Relação de Lisboa, de 23.11.2010, disponível na base de dados da DGSI, in www.DGSI.pt\jtrl).
           
Com efeito, as declarações da assistente, tal como as de MS e G, afiguraram-se-nos tendenciosas, pautadas não só pela personalidade nervosa da assistente, como pela animosidade e ressentimento que mantém para com o arguido; ressentimento profundo, perceptível pela sua postura, discurso exaltado, e a que não é alheio o facto do arguido ter mantido relacionamentos extraconjugais ao longo do tempo em que permaneceram casados – que levaram a assistente a ver em tudo que o arguido fazia um pendor negativo e de perseguição, mas que parece ser mais uma convicção subjectiva da assistente do que alicerçada na realidade objectiva. Mas a que também certamente não é alheio o facto de ter assumido mais encargos do que aqueles que resultaram para o arguido com o divórcio, mercê o acordo de partilha que fizeram (assumindo o encargo com a casa, uma vez que ficou a residir na mesma, e com um veículo).

Assim sendo, perante a divergência nas declarações prestadas por arguido e ofendida/assistente, e não conseguindo o Tribunal ultrapassar as reservas que as declarações de ambos nos mereceram, entendeu o Tribunal poder dar como provada apenas a factualidade que é corroborada pela demais prova produzida.

E aqui temos que considerar o depoimento das demais testemunhas, a saber:

- AAA, irmão da assistente, que referiu estar de relações cortadas com o arguido. Esclareceu que sempre teve o casamento da irmã com o arguido como sendo um casamento normal, com os seus altos e baixos, mas normal. Só deixou de assim ser quando a irmã lhe comunicou que o arguido tinha saído de casa devido a um relacionamento extraconjugal. A zanga com o arguido ocorreu não por causa do divórcio, mas sim devido a um incidente ocorrido entre os dois, em 2011, à porta de casa de sua irmã, em que o arguido chegou a ameaça-lo com uma arma e depois dessa situação chegou a enviar-lhe cerca de 30 mensagens com ameaças. A generalidade das coisas que sabe foi por sua irmã lhas ter contado e não por ter presenciado as mesmas; para além de algumas discussões, habituais entre casais, apenas uma das vezes presenciou o arguido a chamar nomes à assistente, não consegue precisar a data, mas foi próximo da rotunda do XXX, quando estava no estacionamento, o arguido passou de carro e chamou a assistente de puta, vaca e capada.

- BBB, vizinha dos arguidos desde 2005, que nada esclareceu quanto aos factos da acusação, referindo que se o casal se dava mal nunca se apercebeu; já viu o arguido na XXX e no parque urbano, mas encarou a presença com naturalidade, não dando relevância á mesma. O que sabe foi o que a assistente lhe contou, tendo-lhe dito que andava cheia de medo. Por vezes vê a assistente em baixo, mas nervosa só recorda uma vez, não se tendo apercebido que a assistente tivesse alterado o seu comportamento desde a separação.

- CCC, primo da assistente, mas que não tinha qualquer relacionamento próximo com o casal, descreveu de modo circunstanciado a situação que presenciou na bomba de gasolina do Caminho XXX. Esclareceu que apercebeu-se que havia uma discussão entre os dois, o arguido estava no exterior do veículo e a assistente dentro, ouviu o arguido chamar puta à assistente e dizer algo como que tinha amantes. Não sabe qual o motivo da discussão, nem quem a começou. Apercebeu-se que a assistente também respondia, pois via os lábios a mexer, mas o som era abafado por a assistente estar dentro do carro. Ainda estiveram a discutir alguns minutos, foi ficando por ali porque pensou que o arguido pudesse bater na assistente, o que não sucedeu. Nada mais sabia, nada mais presenciou.

- DDD, sobrinha da assistente, aquando da sua identificação só a muito custo admitiu conhecer o arguido por ter sido seu tio, casado com sua tia. Ao contrário de seu pai, AAA, e de CCC, que depuseram com objectividade, de modo sereno e coerente, sem que fosse perceptível algum intuito persecutório para com o arguido, DDD depôs de modo manifestamente tendencioso, tendo um discurso pautado por chavões e generalidades, levando a crer, num primeiro momento, que acompanhava de perto a situação de sua tia, a quem descreveu como muito nervosa, ansiosa, sempre com medo de sair de casa com amigos, com medo que aconteça algo ao carro, à casa ou a ela. Mas quando convidada a concretizar factos, acabou por referir que apenas tinha assistido a uma situação, que não consegue precisar quando ocorreu, mas já foi depois da separação, em que após ter ido com a tia prestar declarações à PSP, o arguido apareceu e começou a discutir, chamando-lhe puta, que não prestava, que o carro era dele e que se quisesse matá-lo que passasse com o carro por cima. Esclareceu que foram à polícia para a tia apresentar queixa por o arguido “ter roubado o livrete do carro”.
 
- EEE, amiga do arguido e da assistente há muitos anos, que de modo claro, objectivo e circunstanciado, descreveu a situação ocorrida entre o arguido e a assistente no seu salão de cabeleireiro, o estado em que o arguido ali chegou; quais as palavras e expressões proferidas e como a assistente reagiu.

- FFF e GGG, que, no essencial, abonaram a personalidade do arguido, com quem mantém contacto por ser o companheiro da mãe de HHH, descrevendo o mesmo como pessoa pacata, pacífica, que mantém um bom relacionamento com todos os membros da família da sua actual companheira;
- III, companheira do arguido, com quem vive em união de facto desde Setembro de 2012, apesar do vínculo amoroso que mantém para com o arguido, depôs de modo objectivo e circunstanciado, não sendo notório qualquer sentimento persecutório para com a assistente ou de protecção para com o arguido. Descreveu a vivência de companheirismo e entreajuda que mantêm como casal. Mais descreveu com riqueza de pormenores uma situação em que foram seguidos, de carro, pela assistente e pelo filho mais novo; e ainda uma outra situação em que o filho mais velho do arguido (que reconheceu por ter visto fotografias) a seguiu pelas ruas de XXX, acabando por abordá-la dizendo-lhe que tinha avisos para lhe dar e que não iam descansar enquanto o arguido não perdesse a farda. Na altura ligou o telemóvel para o arguido ouvir o que o filho estava a dizer, para depois não ficar a ideia que era ela que estava a inventar. Deu conta da existência de telefonemas da assistente para o arguido, tendo havido uma altura antes do verão de 2013, em que durante duas semanas os telefonemas eram diários e acabavam sempre em discussão, o que levou a que tivesse proibido o arguido de falar com a assistente ao telefone lá em casa. O principal motivo das discussões tinha a ver com as dívidas da casa e do carro, o que deixava o arguido nervoso e incomodado. Quanto ao relacionamento com os filhos, por vezes discutia com o filho mais novo e desde sexta-feira santa de 2014 os filhos cortaram relações com o arguido.

- JJJ, irmão do arguido, que esclareceu que nunca se apercebeu que o casamento do arguido corresse mal; havia brigas, mas como em todos os casais, e se havia algum ascendente no casal, seria da assistente que por vezes puxava da sua licenciatura e do facto de ser professora. Mesmo após a separação manteve um bom relacionamento com a assistente, mas esta quando soube que tinham recebido a companheira do arguido nas bodas de ouro dos pais, zangou-se e cortou relações.

E como já fomos consignando, houve depoimentos que nos mereceram algumas reservas. A que acrescentamos que não obstante a quantidade da prova testemunhal produzida, a mesma acabou por não ser particularmente esclarecedora quanto ao que efectivamente sucedeu em cada uma das situações em que arguido e assistente se encontraram, designadamente se a generalidade dos factos descritos na acusação ocorreram com os contornos ali descritos. Concretizando.

Da ponderação das declarações do arguido e da assistente com o depoimento das testemunhas dúvidas não ficou o Tribunal quanto ao mau relacionamento existente não só entre o arguido e a assistente, como também entre o arguido e os filhos MS e G, os quais demonstraram manifesta animosidade para com o arguido e assumiram um depoimento que se nos afigurou tendencioso. O que o Tribunal já não ficou convencido é que o motivo de tanta incompreensão e mau relacionamento fosse a não aceitação, por parte do arguido, do fim do casamento com a assistente e o posterior envolvimento desta com outra pessoa (envolvimento amoroso esse que, aparentemente, apenas existe na acusação, atenta a negação que a assistente faz do mesmo). Tal como não ficou a convicção no Tribunal que o arguido perseguisse a assistente – por esse ou por outro motivo. Encontraram-se algumas vezes, sim, sem dúvida, mas a cidade é pequena e é inevitável encontrarmos quem aqui reside; e que em algumas dessas vezes discutiram, também é certo; que o arguido movesse perseguições de carro à arguida, lhe telefonasse proferindo as expressões indicadas no ponto 8 da acusação, partisse vidros do carro ou pretendesse molestar a liberdade de decisão e de formação de vontade da assistente, é que já não ficamos convencidos que assim fosse.

Vejamos.

O arguido refez a sua vida quase logo após a separação, tendo iniciado uma relação amorosa com a sua actual companheira em Julho de 2011, passando a viver em união de facto com a mesma em Setembro de 2012.

Foi a assistente quem quis por cobro ao casamento, decisão que o arguido acatou, tendo saído de casa. O divórcio só foi formalizado cerca de 1 ano depois, porque estavam a decorrer as negociações entre ambos para a partilha do património comum.

E este pereceu-nos ser efectivamente o busílis da questão, a partilha dos bens, que não podem (ou não querem) fazer, porque nenhum dos dois dispõe de dinheiro suficiente para ficar com a casa que era a residência comum do casal antes da separação e onde a assistente ficou a residir, assumindo o encargo de pagar a competente prestação bancária. Mas para além da casa, ainda há (ou havia) veículos também adquiridos com recurso a crédito e que incumbia continuar a suportar. Essa é a justificação dada pelo arguido para o escalar do mau relacionamento entre ambos desde Março de 2014 – e que encontra suporte desde logo no depoimento de MS, filho de arguido e assistente, e que apesar da sua manifesta animosidade para com o arguido, reconheceu que esse era o motivo das discussões. E encontra igualmente suporte nas cartas de instituições bancárias de fls. 248-255 e 257-264. É certo que as quantias ali indicadas como estando em dívida são manifestamente diminutas, mas apresentam alguma cadência e regularidade.

Que houve discussões de parte a parte, é facto sobejamente provado face à prova produzida; que o arguido, nessas discussões por vezes apelidou a assistente de puta, cabra e que fornicava com amantes, dúvidas também não teve o Tribunal em que assim foi, não só atentas as declarações do arguido e da assistente, como face ao depoimento isento e credível de AAA, CCC e EEE.

Que houve uma altercação acalorada entre arguido e assistente em 05 de Agosto de 2013 também é pacífico, tal como é pacífico que o motivo da discussão foi o filho de ambos. Ou seja, face à prova produzida dúvidas não tem o Tribunal em que o relacionamento entre arguido e assistente que é pouco pacífico desde Março de 2014.

Mas tal como supra já se referiu, e aqui se reafirma, o que o Tribunal já não ficou cabalmente convencido é que desde 2012 o arguido andasse a perseguir a assistente e que o motivo dessas perseguições e mau relacionamento fosse a não aceitação da separação. Tal como também ficamos com muitas dúvidas que o arguido tenha partido o vidro do veículo ou que telefonasse para ameaçar a assistente nos termos descritos na acusação. Se partiu o vido, como alega a assistente, não deixa de ser estranho que estando a polícia no local não tenha procedido à detenção do arguido; ou que não tenham sido ali encontrados vidros; tal como também não deixa de ser curioso que aparentemente a assistente nem tenha mostrado aos agentes o veículo – afinal, se as palavras proferidas pelo arguido apenas podiam ser reproduzidas, um vidro partido era fácil de exibir. Aliás, ficamos por perceber onde estava o veículo, na rua e depois foi colocado na garagem, e quando é que tal sucedeu, se sucedeu.

Mas também as situações descritas em termos manifestamente genéricos nos pontos 4 e 5 da acusação, se tivessem ocorrido com o aparente caracter de regularidade que ali se imputa, certamente que teriam sido presenciadas por outras pessoas – afinal as perseguições de carro, se tivessem ocorrido, teriam que ser na via pública. E nenhuma outra prova foi produzida para além das declarações da assistente.

Aliás, mantendo o arguido um emprego regular, e trabalhando por turnos, fica por perceber como podia andar a perseguir persistentemente a assistente. É certo que FP e DDD descrevem duas situações em que o arguido teria insultado a assistente, mas as expressões referidas e as situações descritas são diversas das constantes na acusação (o que nos leva a questionar porque motivo só agora, em sede de audiência de julgamento, surgem tais factos, designadamente a situação descrita por DDD arrolada como testemunha já após dedução da acusação pública) – ficando-se por saber, no caso de FP, quando ocorreram os factos. Enfim, desconhecendo-se a data em que aquelas situações teriam ocorrido (aquando da pendência dos autos referidos em 2)? Depois de Maio de 2014?), foram aquelas situações desconsideradas.

Em suma, perante a reserva que a generalidade da prova produzida nos mereceu e que supra expusemos, o clima de guerrilha vivido entre arguido e assistente – de parte a parte – em que parece acima de tudo faltar bom senso na forma como estão a solucionar a questão das partilhas – criam uma dúvida que consideramos insanável – não se antevendo que outra prova possa ser produzida para a afastar – e que tem de ser valorada em benefício do arguido, em respeito pelo princípio basilar do nosso processo, motivo pela qual foram os restantes factos da acusação dados como não provados.

O elemento subjectivo do tipo foi dado como provado com base na análise da factualidade objectiva dada como provada analisada à luz das regras da experiência comum que nos dizem que a generalidade das pessoas sabe que expressões como puta e cabra são entendidas pela generalidade das pessoas como atentatórias da honra, e que quem as profere dirigindo-se a outrem assume conduta proibida e punida por lei, o que o arguido não desconhecia.

O que já não retiramos da factualidade provada é que o arguido tenha actuado com a intenção que lhe é imputada na acusação. As palavras injuriosas foram proferidas num contexto de discussão e de crispação entre ambos, num crescendo de hostilidade e de alguma falta de bom senso de parte a parte, mas não nos parece, face ao seu teor e ao contexto em que foram proferidas, que possam só por si justificar a tal intenção de molestar a liberdade de decisão e de formação de vontade, de causar medo e receio, anulando a liberdade e dignidade da assistente enquanto pessoa. Pelo que nessa parte foi igualmente dada como não provada a acusação.

A existência dos autos 1226/11.7PBPDL e desfecho dos mesmos, decorre do teor da certidão extraída de tais autos e junta a fls. 105-116. E quanto a este facto inserido na acusação, sempre se dirá que o mesmo pode ser indiciador de problemas entre a assistente e o arguido, mas não mais do que isso – aliás, sabe-se quais os crimes indiciados e pelos quais o arguido foi sujeito a 1º interrogatório, mas já não o que resultou indiciado para fundamentar o despacho de suspensão – e dai nada se extrai, como não podia deixar de ser, em termos de culpabilidade do arguido relativamente aos factos objecto destes autos.

Os aspectos pessoais do arguido foram considerados provados com base nas declarações do mesmo, na medida em que se nos afiguraram credíveis, bem como no relatório da DGRSP junto a fls. 235-238, bem como no depoimento das testemunhas III, FFF, GGG e JJJ.

A ausência de antecedentes criminais decorre do teor do CRC junto a fls. 233.».

***

V- Fundamentos de direito:

Entende o recorrente que, porque não foi deduzida acusação particular pela prática dos crimes de injúrias, pelos quais foi condenado e uma vez que, tratando-se de crimes particulares, essa acusação constitui pressuposto processual que condiciona a legitimidade do Ministério Público para acusar, se impunha a declaração de extinção do procedimento criminal.

Fundamenta, referindo que nos crimes particulares – como é o crime de injúrias - para que o Ministério Público possa exercer a acção penal é necessário que o titular do direito de acusação se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular, tudo nos termos do artº 50º/CPP.

Invoca como normais violadas os artºs 181º e 188º, do CP, e os artºs 50º/1 e 410º/ 2 –b), do CPP.

Defendem, por sua vez, o MP e a assistente, que o facto de não ter sido deduzida acusação particular não obvia à condenação, na medida em que os crimes de injúrias são um menos relativamente ao crime acusado, sendo que a ofendida apresentou queixa, constituiu-se assistente e acompanhou a acusação pública deduzida, não sendo da sua responsabilidade a falta de formulação de uma acusação particular, já que o crime acusado tem a natureza de público.

A questão colocada nesta sede foi apreciada na sentença recorrida que referiu que «O crime de injúria reveste-se de natureza particular, dependendo, nessa medida, de acusação particular nos termos do artigo 188º, nº 1, do Código Penal.

É certo que a assistente não deduziu acusação particular imputando ao arguido a prática de tal ilícito, o que nos levaria a concluir que não tendo a assistente deduzido a competente acusação, não podia o arguido ser punido pela prática de tal ilícito atenta a falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir criminalmente contra o arguido.

Contudo, resulta da análise dos autos que, apesar de não ter deduzido acusação autónoma, a assistente acompanhou a acusação pública nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 284º, do Código de Processo Penal, ou seja, fez sua aquela acusação, e não há dúvida em como os factos provados estão contidos naquela acusação, pelo que podemos considerar que aquele acompanhamento contém implicitamente a acusação pela prática do crime de injúria (neste sentido acórdão da Relação do Porto supra citado). E se assim é nada obsta a que se aprecie a responsabilidade penal do arguido pela prática daquele ilícito».

***

Nos autos, o arguido foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º/1, al. a) e n.º 4 e 5, do CP. O procedimento criminal por tal crime, sendo de natureza pública, é da inteira competência do MP, que o promoveu e deduziu a competente acusação (artº 48º/CPP). Por sua vez, a ofendida deduziu queixa-crime, constituiu-se assistente e, notificada que foi da acusação deduzida pelo MP declarou, expressamente, que a acompanhava - factos relevantes para a apreciação da questão, como infra se demonstrará.

O crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, do CP, na sua vertente de ofensas dirigidas ao cônjuge (que é aquilo que nos interessa, se bem que na vertente do ex-cônjuge), é um crime que visa prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, tendo em conta a gravidade individual e social destes comportamentos e a consciencialização da sua inadequação, gravidade e perniciosidade. Entendeu-se, e bem, que não é por ocorrerem no seio e no recato da família que se podem eximir à tutela do direito penal, pois que os danos pessoais e sociais que causam são tão ou mais gravosos do que aqueles que provém da prática de actos semelhantes fora desse circunstancialismo.

A ratio do tipo está na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana enquanto membro de um determinado agregado familiar.

O âmbito punitivo do tipo abarca, pois, todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade, quer no âmbito dos maus tratos físicos, quer no dos maus tratos psíquicos, abrangendo situações como as ameaças, as humilhações, as injúrias e as provocações, as pequenas privações de liberdade e de movimentos e as ofensas corporais e de âmbito sexual.

O bem jurídico protegido é plural e complexo, visando essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrangendo também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. Esse bem jurídico, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos - desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge - comportamentos esses muitas vezes tipificados como crimes, se individualmente considerados, que, na conformidade, se encontram numa relação de consumpção aparente com o crime de violência doméstica.

Na verdade, a tutela do direito penal refere-se, normalmente, a actos isolados, dando origem a que cada acto configure um crime autónomo (artº 30º/1, do CP). Mas, situações há em que, por necessidade de acorrer a circunstâncias distintas, se configuraram construções doutrinárias que visam punir num mesmo crime variados actos de execução de um ou de distintos tipos consagrados. A nossa legislação acolheu algumas destas construções e de entre elas, o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados (artº 19º/ 3, do CPP) também designado, doutrinariamente, por crime prolongado, de trato sucessivo ou exaurido.

Quando os crimes envolvem uma repetitividade no tempo que se transforma em “actividade” do agente, em que a contagem dos actos se torna impossível ou inútil pela gravidade que distingue o conjunto da soma dos actos, doutrina e jurisprudência falam em crime prolongado, de trato sucessivo ou exaurido. No caso engloba-se num único crime toda uma diversidade de condutas (que isoladamente consideradas também constituiriam crime); crime esse em que a repetição dos actos constitutivos, que se radicam numa unidade resolutiva (que não é uma unidade de resolução), reflecte e determina a agravação da culpa do agente.

Ou seja, a uma pluralidade de acções, compreendidas dentro de um determinado limite temporal e correspondendo, cada uma delas, a uma nova resolução criminosa, ainda que em tudo semelhante à anterior, faz-se corresponder um único crime. Exemplo típico desta situação é a figura do crime de violência doméstica. Faz-se corresponder a um único tipo todo um conjunto de actuações delituosas, se individualmente consideradas, tendo em conta que em causa está o exercício da mesma “actividade”, a que o agente se determinou.

No caso dos autos temos que, não obstante a acusação ter sido deduzida por toda uma série de actos delituosos, ofensivos da dignidade humana da assistente, enquanto ex-mulher do arguido e com ele já convivente num determinado agregado familiar, apenas se provaram factos que, ainda que parcialmente coincidentes com os acusados, foram entendidos como susceptíveis de integrar, apenas, o tipo de crime de injúrias. Quer isto dizer que se provaram factos que isoladamente constituem crimes mas que tinham sido integrados na acusação numa conduta mais ampla, entendida como de violência doméstica.

Esta é mais uma situação de fronteira em que o julgador acabou por decidir que o tipo penal aplicável não era o da violência doméstica mas um outro, englobado nesse mesmo tipo, que com ele se encontra numa relação de concurso aparente.

Estando, necessariamente, em causa, um menos relativamente ao mais constante da acusação, entendemos que não há situação que se subsuma à previsão das normas dos artºs 358º ou 359º, do CPP, que implicam, sempre, uma alteração dos factos descritos na acusação ou uma alteração da qualificação jurídica que não seja a imputação de um crime simples ou menos agravado, nas situações em que o agente vinha acusado por um crime mais grave, agravado ou qualificado. No casos os factos naturalísticos provados em julgamento são precisamente os mesmos que foram descritos na acusação. Arredamos, pois, a aplicabilidade ao caso de qualquer das diferentes teses jurisprudenciais que buscam a solução para a situação na aplicação das referidas normas.

A questão fica em saber se, sem a aplicação do referido instituto da alteração dos factos, há, ou não, fundamento legal que suporte a condenação pelo crime menor contido na acusação, cuja factualidade se provou. Entendemos que, neste caso - em que houve dedução de queixa-crime, constituição de assistente e acompanhamento da acusação pública - há.

Os institutos da queixa e acusação particular, que se aplicam, por regra, a casos de pequena criminalidade ou mesmo a bagatelas penais, visam, como se sabe, uma função de tutela dos interesses da vítima que se traduz em colocar na sua inteira disponibilidade a decisão sobre a existência do procedimento criminal, de modo a fazer com que este corresponda, efectivamente, ao interesse e à vontade do titular do interesse respectivo, a quem se entende que compete, em última análise, a decisão sobre qual a melhor forma de tutela dos seus interesses e evitar que os procedimentos criminais já iniciados perturbem a esfera da intimidade da vítima e das relações pessoais entre ela e o agressor.

Estando sempre em causa, como está, a protecção do interesse e da vontade da vítima, mal se acolhe a ideia de que, pelo facto de ela não ter proferido, a seu punho, a acusação, se venha a determinar a inutilidade de todo um procedimento criminal e, em última análise, a não punição do agente, quando se comprova que, ainda que por actos distintos, essa vontade de persecução penal foi suficientemente manifestada, se demonstra actual e os factos criminosos foram, efectivamente, cometidos.

No caso, a manifestação da vontade actual, por parte da ofendida, de persecução da tutela penal dos direitos violados está suficientemente expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência. Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito (artº 285º/CPP), quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação seria, quanto a nós, impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão.

Na verdade, por força da acusação deduzida, o arguido sabia que o julgamento haveria de tomar em conta os factos injuriosos e em coisa nenhuma viu beliscado os seus direitos de defesa; a ofendida viu defendidos os interesses penais pelos quais demonstrou pretender a condenação do arguido e o sistema penal funcionou de forma eficaz no âmbito de um único procedimento criminal, repondo a paz pública.

Nem cremos que a falta de acusação particular seja motivo legal para a inutilização, retroactiva, da acusação que foi proferida por quem, à data, detinha exclusiva legitimidade para o efeito – ou seja, sem dependência de qualquer actividade da ofendida. O MP acusou por factos relativamente aos quais tinha legitimidade e os pressupostos processuais relativos a tal acusação estabilizaram-se, nesse preciso momento.

A autonomização dos factos relativamente ao crime maior, no âmbito do qual foram acusados, não tem a virtualidade de desprovir de legitimidade para o exercício da acção penal o órgão que, quando do exercício dessa mesma acção, a tinha e a usou de acordo com a lei. Com a agravante de que a questão da protecção da tutela dos interesses de recato da vítima (fundamento do instituto da queixa e/ou acusação particular) na fase processual do julgamento se mostra absolutamente ultrapassada porque o procedimento criminal existiu e culminou com um julgamento, no decurso do qual a factualidade constitutiva do crime particular foi publicitada, discutida e apurada.

Quer a queixa quer a acusação são condições positivas do procedimento criminal cujo significado se reconduz à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efectivação da punição pelos crimes de que foi vitima. Manifestando-se essa vontade, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluía a possibilidade de dedução de uma acusação particular.

Concluímos, na conformidade, pela legalidade da prática tomada pelo Tribunal recorrido.

No caso, ademais, não se vislumbra o invocado vício de sentença, de contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, porquanto a questão dos vícios é relativa à matéria de facto, que foi expressamente aceite no recurso sub judice. Nem esse, nem qualquer outro vício.

Resta, portanto, a declaração de improcedência do recurso, e a manutenção da sentença recorrida.

***

VI- Decisão:

Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 3 ucs.


Lisboa, 17/06/2015

Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
                                                               
(Maria da Graça M. P. dos Santos Silva)
(Ana Paula Grandvaux Barbosa)



[1]Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2]Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.