Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1031/20.0PBOER-A.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: HOMICÍDIO TENTADO
INDÍCIOS FORTES
INTENÇÃO DE MATAR
PERIGO PARA A VIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - A intenção de matar não resulta necessariamente do facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida.
- Este desiderato extrai-se das lesões provocadas, a localização das mesmas, o número de lesões, o instrumento utilizado e bem assim todo o circunstancialismo onde se insere/desenrolou a agressão, conjugados com as regras de experiência e/ou as leis científicas.
- Tendo em conta que o arguido, para além dos dois disparos que provocaram as lesões observadas, ainda realizou (indiciariamente, como é óbvio), mais quatro disparos com a mesma arma de fogo, municiada com munição de calibre .32 Smith & Wesson, na direcção da vítima IV , o que, claramente, atento a sucessão de disparos, uma das zonas atingidas e o calibre da arma, revela a sua intenção de lhe tirar a vida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Instrução Criminal de Cascais – Juiz 2, Processo de Inquérito com o nº 1031/20.0PBOER, foi proferido despacho, aos 07/06/2021, que aplicou ao arguido BB a medida de coacção de prisão preventiva, por indiciarem fortemente os autos a prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 22º, nºs 1 e 2 e 23º, nº 1, do Código Penal; um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, “da Lei das Armas” e um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, verificando-se os perigos concretos de fuga, perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e continuação da actividade criminosa.
2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o arguido, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):
1. A indiciação criminosa levada a cabo pelo M.º Juiz “ a quo” não é condizente com a prova indiciária carreada para os autos, onde se não verifica Perícia Médica que saliente a intenção de matar.
2. Pelo contrário, como se alcança do Exame Pericial de fls ..a vítima não correu perigo de vida, em momento algum, note-se
3. De acordo com o disposto no artº 163.º do CPP não poderia a M.º Juiz a quo” afastar-se ou contrariar o parecer da prova pericial, sem que justificasse/fundamentasse a sua divergência, dada a exigência contida no art.º 163.º n.º 2 do CPP.
3. Não o tendo feito, mostra.se precipitada, com o devido respeito, a indiciação de homicídio tentado feita ao recorrente.
4. E por isso o crime indiciado deveria ter sido o p e p pelo art.º 143.º do Código Penal ou eventualmente o previsto no art.º 145.º n.º 1 alínea a) do mesmo diploma legal.
5. E não o de homicídio na forma tentada, uma vez que os próprios peritos assumem em que a vítima não correu perigo de vida, mais, não se compagina que o relatado pelo próprio ofendido, que, pela descrição, dada a proximidade do disparo, fosse de facto real a intenção de matar, não teria sido atingido no membro inferior, aliás, durante todo o inquérito foi sempre tido como sendo um crime de ofensa á integridade física, tendo a dado momento, sem razão aparente, ou sem qualquer justificação, a Policia Judiciária, já em momento muito posterior, ter decidido interpretar a alegada conduta criminosa como um crime de homicídio na forma tentada.
6. E sempre sem conceder, mesmo admitindo “hic et nunc ” os perigos doutamente elencados no recorrido despacho da M.a JIC e que justificaram a referência ao art.º 204.º do CPP, ainda assim a medida coactiva de prisão preventiva mostra-se desproporcionada e desajustada.
7. Como decorre do conteúdo desta Motivação e das extensas passagens - que com a devida vénia se transcreveram - do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa tirado em 19 de Junho de 2019, mesmo em crime de violência doméstica agravada (a que corresponde pena até 5 anos de prisão) é possível aplicação de medida de coacção não detentiva, como a Obrigação de Permanência na Habitação ou (a que alude o art.º 201.º do CPP) por isso menos drástica do que a prisão - e assim por imposição constitucional (art.º 28.° n.º 2 da CRP) e legal (art.º 193.º n.º 2 do CPP).
8. Assim, o douto despacho recorrido terá violado, por mero erro interpretativo, quer o disposto no art.º 127.º do CPP - no tocante à indiciação operada de crime de homicídio tentado - quer o disposto no art.º 193.º n.º 2 do CPP quer o disposto no art.º 28.º n.º 2 da Constituição da República, quer ainda e subsidiariamente os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, "maxime”, por tal razão o disposto no art.º 201 º do CPP.
9. Mesmo tendo em conta a alegada situação e actuação concreta que se pretende imputar ao recorrente bem como o circunstancialismo que os autos denotam, a proposta medida detentiva de Obrigação de Residência fíxa (prevista no art.º 201.º do CPP), mostra-se a mais adequada e proporcional ao caso dos autos, pelas razões “supra” expendidas”, e parece-nos que seria esta a intenção da decisão proferida quando se ordenam a elaboração dos relatórios para eventual aplicação desta medida menos gravosa.
3. Respondeu à motivação de recurso a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, pugnando por lhe ser negado provimento.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.
Verificação dos pressupostos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
Adequação e proporcionalidade da medida de coacção aplicada.
2. O despacho recorrido apresenta o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):
Tendo em conta a globalidade dos elementos probatórios já carreados para os autos, concretamente os elencados na promoção do Mº. Pº. acima, bem como as declarações prestadas pelo arguido considero fortemente indiciados os seguintes factos:
1. No dia 18 de Outubro de 2020. durante o período da manhã, BB conduziu um veículo da marca PEUGEOUT, modelo 308, de cor preta, pela Rua António Macedo, no Bairro do Pombal, em Oeiras.
2. Ao chegar junto do de um café ali existente, mantendo-se no interior da viatura, no lugar do condutor, fazendo uso de uma anua de fogo que transportava, através do vidro, efectuou três disparos para o ar.
3. A seguir, abandonou aquele local.
4. Nessa ocasião e local encontravam-se diversas pessoas, incluindo crianças.
5. Pelas 19h00, BB regressou àquele local, conduzindo o mencionado veículo automóvel.
6. IV  , o qual havia presenciado os disparos para o ar, e que ali se encontrava, dirigiu-se a BB e pediu-lhe que não voltasse a repetir aquele comportamento.
7. BB pediu a IV que entrasse no seu veículo para que pudessem conversar mais tranquilamente.
8. IV assentiu e BB iniciou a marcha, conduzindo-o até junto do «Cemitério de Oeiras».
9. Ali chegados, saíram do referido veículo, iniciando-se entre ambos uma discussão.
10. A determinado momento, BB dirigiu-se para o seu veículo, tendo IV aproveitado para se retirar, apeado, daquele local.
11. Ao ver que IV estava a ausentar-se, o arguido BB retomou a discussão, tendo aquele, que se encontrava de costas voltadas para este, se virado de frente.
12. Nessa altura, BB apontou uma arma de fogo e disparou em direcção a IV , atingindo-o na região pélvica e na face anterior da coxa direita, com munições calibre. 32, marca S&W.
13. De seguida, BB efectuou, pelo menos, mais quatro disparos em direcção a IV , que, por razões que se desconhece, não atingiram IV .
14. Em consequência da conduta do arguido BB , IV foi transportado para o Hospital São Francisco Xavier, pelas 19h49, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica.
15. As balas disparadas por BB , que atingiram o corpo de IV , provocaram-lhe as lesões que se passam a descrever:
- Na zona do abdómen, orifício de entrada na região inguinal direita, com trajecto para a esquerda, e para trás, aproximadamente paralelo ao eixo do chão, sem orifício de saída (presença de projéctil documentado em TC localizado na região Rectosigmoideia).
- Na zona da perna, orifício de entrada no terço superior da face anterior da coxa direita, com trajecto para fora, para trás e ligeiramente para baixo (2cm), com orifício de saída no terço superior da face externa da coxa.
16. IV ficou com cicatrizes visíveis na zona do abdómen e na coxa direita, consolidação óssea da fractura da bacia à direita, que determinaram 33 (trinta e três) dias para a consolidação médico-legal, com 4 (quatro) dias de afectação da capacidade trabalho geral.
17. Ao proceder da forma descrita, realizando disparos de uma arma de fogo que apontou cm direcção da vítima, BB bem sabia e não podia ignorar que a sua conduta poderia ocasionar a morte de IV  , visando atingir órgãos vitais deste último, o que quis e visou alcançar, apenas não o tendo conseguido por razões alheios à sua vontade.
18. BB não é titular de habilitação legal para conduzir veículos a motor de qualquer natureza, na via pública, e, não obstante, sabendo que não podia conduzir o referido veículo na via pública sem para tal estar habilitado, quis actuar da forma descrita.
19. BB não é titular de licença de uso e porte de arma e, não obstante, quis actuar daquela forma, bem sabendo que não podia manusear e dispor daquela arma de fogo uma vez que não era titular de qualquer licença habilitante que o permitisse fazer.
20. BB actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, mas ainda assim não se coibiu de a praticar.
21. O arguido tem antecedentes criminais descritos no CRC de 113 a 116, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, tendo sido condenado nomeadamente pela prática de crimes de furto qualificado e de condução sem habilitação legal e por acórdão transitado em julgado em 15/12/2006, pela prática de um crime de roubo na pena de 17 anos de prisão efectiva, pena que foi declarada extinta em 16/03/2017.
Os factos indiciados resultam dos seguintes elementos probatórios:
a) Documental
- Auto de notícia de folhas 12 a 14 verso;
- Auto de apreensão, de fls. 17 verso;
- Auto de inspecção judiciária, de fls. 23 a 30;
- Certificado do registo criminal, de fls. 113 a 116 verso;
- Documentação clínica, de fls. 126 a 128 e 139 a 151;
- Resultado da pesquisa referente à titularidade de porte e uso de arma, de fls. 134 e 135;
- Auto de diligência, de fls. 159;
- Auto de busca e apreensão, de fls. 162-163; 166; 310-311 e 314-315;
b) Pericial
- Exame, de fls. 44 a 57
- Perícia médico-legal, de fls. 250 a 252vers0;
c) Testemunhal
- EM, identificado de folhas 79 a 81.
- IV  , identificado, de fls. 64 a 67.
A factualidade dada como indiciada é susceptível de integrar a prática por parte do arguido, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo:
a) Um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido, nos termos do disposto no artigo 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2 e 23.º, n.º 1, do Código Penal;
b) Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, da Lei das Armas;
c) Um crime de condução sem habilitação legal, previsto e previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Vejamos.
O arguido não quis prestar declarações quanto aos factos que lhe são imputados mas a verdade é que os mesmos resultam suficientemente indiciados quer pelos depoimentos prestados pelas testemunhas, quer pela ampla prova documental, como sejam: o auto de apreensão das capsulas deflagradas, das munições de calibre 32 e do projéctil deformado, todos recolhidos na via pública junto ao cemitério de Oeiras (fls. 17); auto de inspecção judiciária de onde constam, além do mais, as fotografias do local da prática dos factos e dos vestígios recolhidos bem como da localização dos mencionados vestígios (fls. 23 a 30); informação da PSP da secção de armas e explosivos, dando conta que o aqui arguido não é titular de qualquer licença de uso e porte de arma (fls. 134 a!35).
No tocante à prova testemunhal realça-se o depoimento prestado pela testemunha IV   a fls. 64-67, que procedeu ao relato dos factos nos termos em que estes vieram a ser acolhidos no requerimento de apresentação do arguido a primeiro interrogatório.
Com efeito, esta testemunha referiu designadamente que após abandonar o local percebeu que o arguido recomeçara as provocações, perseguindo-o e tendo descido o primeiro lance das escadas, voltou-se para ele e viu que ele empunhava um pistola tendo de imediato realizado um disparo que o atingiu. Logo a seguir disparou mais vezes, tendo sentido um único impacto na sua perna, traduzido em dor. Reagiu contra ele que se pós em fuga, tendo, no entanto, se virado para o depoente em diversas ocasiões e realizado mais disparos enquanto se dirigia para a sua viatura.
Salienta-se aqui o teor do relatório médico de fls. 139, elaborado na sequência de entrada do ofendido na urgência hospitalar de onde consta designadamente "confirma-se a presença de bala na parede/vertente posterior da transição rectosigmoide sem ar livre ou colecções justapostas pelo que me parece que não existe perfuração intestinal. Contudo dado o artefacto metálico condicionado pela bala não é possível ter a certeza da posição exacta da mesma. Porta de entrada na região inguinal direita. (...)".
Tal depoimento conjugado com a documentação clinica e prova pericial junta aos autos indiciam a nosso ver a prática pelo arguido, além de outros, de um crime de homicídio na forma tentada.
Na verdade a existência de perigo para a vida do ofendido resulta do já referido relatório médico de fls. 139 e bem assim do relatório pericial junto aos autos.
Quanto à intenção do arguido temos para tal que ir buscar elementos, dados objectivos reveladores da verdadeira vontade, o sentimento que determinou a actuação.
E quais são, em regra tais dados? São, desde logo, os instrumentos utilizados na pratica do crime e a forma como o foram e são também a parte do corpo atingida e a extensão qualitativa e quantitativa das lesões.
No caso vertente, o arguido muniu-se de uma arma de fogo e disparou em direcção a IV   que se encontrava virado de frente para ele, atingindo o mesmo na região pélvica e atingindo com outro tiro a face anterior da coxa direita e seguidamente efectuou mais três disparos em direcção a IV  ; sendo que tais tiros causaram-lhe as lesões que se encontram descritas nos artigos 15 e 16 do requerimento da apresentação do arguido a primeiro interrogatório.
A arma de fogo é manifestamente um instrumento capaz de provocar a morte.
Por outro lado o ofendido tendo sido atingido na zona abdominal, poderia ter sofrido graves lesões dos órgãos ai alojados, como sejam, estômago, o intestino, pâncreas, entre outros; além do que o arguido disparou mais quatro tiros em direcção ao IV   que não lograram atingir o mesmo.
Assim sendo, resulta evidente que quem actua do modo como o arguido actuou, pelo menos tem de admitir como possível que, da sua conduta, viesse a resultar, mais do que um ferimento grave, a morte do atingido, a qual não ocorreu por circunstâncias a que foi alheio, designadamente relacionadas com o pronto socorro que lhe foi prestado.
Os factos indiciados são muito graves dado que o ofendido poderia falecer na sequência dos diversos tiros disparados pelo arguido na sua direcção.
Os factos causam grande alarme social e perturbação da ordem pública, revelando o arguido enorme agressividade na prática dos factos.
Além do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas existe também um forte perigo de fuga porquanto o arguido não desconhece, até pelos seus anteriores contactos com o sistema de justiça criminal, que, muito provavelmente, em julgamento lhe será aplicada uma pena de prisão efectiva. Além de resultar dos autos de inquérito que o mesmo tem-se furtado a diligências realizadas, onde o arguido se identifica como sendo o seu irmão Ismael (fls. 159).
Finalmente, entendo verificado em concreto perigo de continuação da actividade criminosa, dado o arguido já ter sido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e em pena de prisão pela prática de um crime de roubo, mas o cumprimento de tal pena não o dissuadiu de praticar novo ilícitos criminais.
Pelos motivos expostos verifica-se existir fortes perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa, além do perigo de fuga, perigos esses que urge acautelar – artº. 204º als. a) e c) do CPP.
A única medida de coacção que se mostra adequada às necessidades cautelares que o caso concreto exige e proporcional à gravidade dos crimes tendo-se em consideração a medida abstracta que cabe aos mesmos e às sanções que previsivelmente, e fazendo um juízo de prognose, lhe virão a ser aplicadas em julgamento, é a de prisão preventiva, mostrando-se por consequência inadequadas todas as outras.
Sopesando todos estes factores entendemos ser proporcional e adequada às exigências cautelares que o caso requer a medida de coacção de prisão preventiva, que igualmente é necessária em face dos fortes perigos de fuga e de perturbação da ordem pública.
Pelo exposto, determina-se que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva (artº. 191º a 196º, 202º nº 1 als. a) e e) e 204º als a) e c), todos do CPP), sem prejuízo de ulterior aplicação de OPHVE caso se verifiquem os necessários requisitos.
Solicite à DGRSP que elabore relatório com vista a eventual aplicação da medida OPHVE.
Apreciemos.
Conforme se estabelece no artigo 202º, nº 1, do CPP, “Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: “a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos”; “e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida (…) ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos” - normas que o tribunal a quo convoca para alicerçar a sua decisão.
Ao crime de homicídio, na forma tentada corresponde moldura penal máxima superior a 5 anos de prisão.
Daí que seja admissível a medida de coacção de prisão preventiva.
Mas, o recorrente discorda do enquadramento jurídico-penal efectuado pelo tribunal recorrido, considerando que, constando do relatório da perícia médico-legal que “a vítima não correu perigo de vida, em momento algum”, o crime indiciado deveria ter sido o p. e p. pelo artigo 143º, do Código Penal ou eventualmente o previsto no artigo 145º, nº 1, alínea a), do mesmo.
Mas, não tem a razão pelo seu lado, como passamos a elucidar.
Antes de mais, o que consta do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal – nos autos a fls. 250/252 – é que “não houve perigo para a vida”, o que apenas significa que da observação efectuada à vítima e análise da documentação clínica resultou essa conclusão, tanto mais que no segmento “história do evento” se pode ler, singelamente, que “refere ter sofrido agressão com dois projéteis de arma de fogo (tipo revólver/pistola) com disparo a cerca de 3 metros de distância, infligida por um conhecido”.
E a intenção de matar não resulta necessariamente do facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida.
Este desiderato extrai-se das lesões provocadas, a localização das mesmas, o número de lesões, o instrumento utilizado e bem assim todo o circunstancialismo onde se insere/desenrolou a agressão, conjugados com as regras de experiência e/ou as leis científicas.
Pois bem.
A vítima declarou em sede de inquérito que foi perseguido pelo arguido e este efectuou um primeiro disparo com uma arma de fogo que o atingiu e de seguida “disparou mais vezes, tendo sentido um único impacte na sua perna direita traduzido em dor. Reagiu contra ele que se pôs em fuga, tendo no entanto, se virado para o depoente em diversas ocasiões e realizado mais disparos enquanto se dirigia para a viatura (…) não é capaz de enumerar quantos disparos foram realizados, tendo ficado com a ideia de que foram mais de seis tiros”.
Assim, importa ter em conta que o arguido para além dos dois disparos que provocaram as lesões observadas, ainda realizou (indiciariamente, como é óbvio), mais quatro disparos com a mesma arma de fogo, municiada com munição de calibre .32 Smith & Wesson, na direcção da vítima IV , o que, claramente, atento a sucessão de disparos, uma das zonas atingidas e o calibre da arma, revela a sua intenção de lhe tirar a vida.
Vejamos agora se estão preenchidos os requisitos gerais de aplicação desta medida, por se verificarem em concreto os perigos de fuga, perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e continuação da actividade criminosa.
Conforme se extrai do artigo 204º, do CPP, medida de coacção alguma prevista no Código de Processo Penal é susceptível de aplicação (com excepção do termo de identidade e residência) se, em concreto, não se verificar, alternativamente, fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito, designadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Relativamente ao perigo de fuga – enunciado na alínea a), do artigo 204º - é um requisito de aplicação de medida de coacção que tem como escopo acautelar a presença do arguido no decurso do processo e a execução da decisão final.
Este perigo tem de ser concreto, como vimos, ou seja, não abstractamente presumido e sim concretamente justificado. Quer dizer, a mera possibilidade de futura condenação em pena de prisão, ainda que em dose elevada, só por si não permite concluir pela existência de um concreto perigo de fuga.
O tribunal recorrido encontrou-o, como se extrai do despacho recorrido, porquanto o arguido não desconhece, até pelos seus anteriores contactos com o sistema de justiça prisional, que, muito provavelmente, em julgamento lhe será aplicada uma pena de prisão efectiva. Além de resultar dos autos de inquérito que o mesmo tem-se furtado a diligências realizadas, onde o arguido se identifica como sendo o seu irmão Ismael (fls. 159).
Ora, se é certo que a mera previsão da condenação em uma pena de prisão (ainda que musculada) não o pode configurar só por si, como se disse, menos vero não é que o arguido aos 24/02/2021, quando a Polícia Judiciária executava mandado de busca à sua residência, identificou-se com nome que não correspondia ao seu e abandonou o local por uma janela da habitação, ausentando-se para localização desconhecida, apenas sendo interceptado em Junho de 2021.
Assim sendo, mostra-se sustentado o entendimento da existência do perigo de que o arguido se furte à acção da justiça (perigo de fuga).
No que tange ao perigo de continuação da actividade criminosa – a que alude a alínea c), do referido artigo 204º - considerou-o verificado o tribunal recorrido dado já ter sido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e em pena de prisão pela prática de um crime de roubo, mas o cumprimento de tal pena não o dissuadiu de praticar novos ilíctos criminais.
Ponderando a factualidade que indiciariamente (e fortemente) apurada se encontra e os antecedentes criminais que o arguido averba (onde ressalta a condenação em pena de 17 anos e 3 meses de prisão, tendo beneficiado de liberdade condicional, convertida em definitiva por decisão de 16/03/2017) configura-se realmente o sério perigo de que, mantendo-se em liberdade, poderá voltar a delinquir, concretamente tirando a vida a IV .
Quanto ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, diz-nos o tribunal a quo que os factos causam grande alarme social e perturbação da ordem pública, revelando o arguido enorme agressividade na prática dos factos.
O “alarme social”, cumpre se diga, não figura entre os requisitos gerais de aplicação de medida de coacção enunciados no artigo 204º, do CPP, não coincidindo com o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas a que alude a sua alínea c), que é aquele que a Mmª Juíza da 1ª instância chama à colação.
Como refere Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, nº 9 Especial, pág. 131, “mesmo anteriormente à Lei nº 48/2007, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devia ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade. A nova redacção da al. c) do art. 204º veio afastar qualquer possível dúvida sobre este aspecto, apontando claramente no sentido que já antes era correcto.” Ou seja, exige-se que “haja perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido.
Pois bem, estamos perante uma actuação com forte energia criminosa e persistência no atingir do objectivo proposto, sendo que nem a circunstância de já ter cumprido significativa pena de prisão efectiva o demoveu de novamente enveredar pela conduta criminosa.
E, não se pode olvidar que a discussão que manteve com a vítima teve origem na circunstância de o arguido horas antes se ter dirigido, tripulando uma viatura automóvel, junto a um estabelecimento de cafetaria onde se encontravam vária pessoas, incluindo crianças e efectuado três disparos para o ar com uma arma de fogo, sendo que, ao regressar posteriormente ao local, IV lhe solicitou que não voltasse a repetir o comportamento.
Tudo visto, apresenta-se como previsível a repetição de comportamentos como os nestes autos em causa.
Destarte, presentes estão em concreto os mencionados perigos, carecendo de razão o recorrente e, por conseguinte, improcede o recurso nesta parte.
Adequação e proporcionalidade da medida de coacção aplicada
Sustenta o recorrente que se mostra suficiente e adequada para acautelar os perigos que o tribunal a quo considerou estarem verificados a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.
A natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva encontra-se expressamente consagrada no nº 2, do artigo 28º, da CRP, estabelecendo-se no nº 1, do artigo 191º, do CPP, o princípio da legalidade das medidas de coacção, segundo o qual “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.
Por seu lado, no artigo 193º, nº 1, do CPP afirmam-se os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade dessas medidas, em função das exigências cautelares e da gravidade do crime, bem como das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas no caso concreto, enquanto o nº 2 do mesmo preceito reafirma o carácter subsidiário da prisão preventiva, que só pode ser aplicada “quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”.
Ora, tendo em atenção os fortes indícios, a natureza e gravidade dos crimes de homicídio na forma tentada e detenção e utilização de arma de fogo proibida, o circunstancialismo em que foram praticados e os perigos mencionados, a aplicação de qualquer medida de coacção não detentiva apresenta-se como desadequada e insuficiente por a estes não obstar, não satisfazendo as significativas exigências cautelares que in casu se fazem sentir, sendo que manifesta-se previsível a condenação em pena de prisão efectiva.
Na verdade, a medida proposta, no caso sub judice não se mostra suficiente para afastar os perigos que estão presentes, pois não impede que abandone inopinadamente a residência onde esteja obrigado a permanecer e se furte à acção da justiça ou novamente aborde a vítima e lhe tire efectivamente a vida.
Verificada está, assim, a existência dos perigos, aliás intensos, em razão da natureza e das apuradas circunstâncias dos crimes mencionados, aliadas à personalidade violenta e persecutória do arguido que dos factos ressalta, com relevo bastante para justificar a medida de coacção de prisão preventiva que aplicada se mostra (única necessária, adequada e proporcional no caso em apreço), revelando-se manifestamente inadequadas e insuficientes as outras medidas de coacção, não ocorrendo, por isso, obliteração alguma das normas constantes dos artigos 191º, 193º, nºs 1 e 2, 201º, 202º, nº 1, alínea b) e 204º, do CPP e 28º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Face ao exposto, tem de se negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes de Turno desta Relação em negar provimento ao recurso pelo arguido BB interposto e confirmar a decisão recorrida.
Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
Comunique de imediato e via fax o teor deste acórdão à 1ª instância.

Lisboa, 21 de Setembro de 2021
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).

Artur Vargues
Jorge Gonçalves