Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1779/04.6TMLSB-A.L1-2
Relator: NELSON BORGES CARNEIRO
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
DECISÃO
PRESSUPOSTOS
DEVER DE COABITAÇÃO DOS CÔNJUGES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. - Motivo ponderoso para um dos cônjuges não adoptar a residência da família será o de a vida em comum se lhe ter tornado intolerável, em face dos maus tratos ou das injúrias de que era vítima.
2. - A saída de casa de morada da família poderá ter a ver com a violação do dever de coabitação que impende sobre os cônjuges, e não com a escolha, por parte de um deles, da casa de morada de família, pois esta pressupõe um acordo de ambos.
3. - Tendo saído da casa de morada da família por não ser exigível que nesta continuasse a viver, pois ser vítima de maus tratos e injúrias, carece da habitação, pois deixou de aí habitar por motivos alheios à sua vontade.
4.- Não sendo a fracção autónoma um bem próprio ou comum dos ex-cônjugues, para ponderação da atribuição da casa de morada de família, o tribunal recorrido não tinha que ter em atenção os factores estatuídos no art. 1793º CCivil, por ser inaplicável ao caso tal normativo legal.
5.- Pese embora a ?necessidade? da casa não vir referida no art. 84º, n.º 2, do RAU, é a ela que se reportam tanto a ?situação patrimonial? dos cônjuges como o ?interesse dos filhos?.
6.- Para a atribuição da casa de morada de família o tribunal deve ter em atenção a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa que possa ser ou tenha sido efectivamente imputada aos cônjuges na sentença de divórcio (e não apenas a culpa imputável ou imputada ao arrendatário, única a que se refere a letra do preceito legal), o facto de o arrendamento ser anterior ou posterior ao casamento e, finalmente, quaisquer razões atendíveis.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª Secção (Cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:
1.RELATÓRIO
      C... intentou a presente acção para atribuição da casa de morada de família contra J...., pedindo que lhe seja atribuída definitivamente a casa de morada de família, sita na Rua ...., em Lisboa.
      Foi proferida sentença que atribuiu à Requerente, C... a casa de morada de família sita na R....., em Lisboa,
      Inconformado, veio o Requerido apelar da sentença, tendo extraído das alegações que apresentou as seguintes
CONCLUSÕES:
      1.) A sentença de que se recorre debruça-se sobre um caso atípico de pedido de atribuição da casa de morada de família, pois que recorrente e recorrida, à data e durante a acção de divórcio, tinham duas casas de habitação arrendadas, sendo que uma delas é, desde 1992, o atelier de pintura do ora recorrente, sendo que o sistema legal construído para a atribuição da casa de morada de família visa a atribuição a um dos cônjuges da casa de morada de família, em detrimento do outro, mas está construído num pressuposto de carência e falta de habitação e não de excesso ou abundância.
      2.) Havendo duas fracções arrendadas por recorrente e recorrida quis o tribunal a quo determinar qual delas é a casa de morada de família, donde se extrai que o tribunal admite, à partida, que apenas pode haver uma casa de morada de família, mesmo que o casal tenha acesso a várias habitações.
      3.) Na decorrência das conclusões anteriores, o tribunal a quo teve necessidade de determinar qual delas é a casa de morada de família, tendo concluído erradamente no entender do aqui recorrente que a casa de morada de família era a casa da sita na Rua ..., em Lisboa.
      4.) Para o recorrente a casa sita na Rua ...., em Lisboa não é a casa de morada de família, por esta não se integrar nas definições dadas para aquele conceito jurídico pela doutrina e jurisprudência mais avalizada. Na verdade, desde 2001, que a recorrida habita e vive na casa da Póvoa de Sto. Adrião e desde 2004, que o faz com os seus filhos. Ora, se assim é, a casa da Póvoa de Sto. Adrião é a casa de morada de família uma vez que o núcleo mais significativo da família habita, pelo menos desde há 4 anos, a casa da Póvoa de Sto. Adrião. Assim sendo, o pedido da recorrente está ferido, por querer fazer da casa de Lisboa o centro, o núcleo familiar, a sede da família. Mas, como se sabe o conceito de casa de morada de família é dinâmico, logo o tribunal a quo julgou mal ao considerar a casa de Lisboa, a casa de morada de família. Pois há mais de 4 anos que isso não sucede.
      5.) A casa de Lisboa foi arrendada para um fim específico – atelier de pintura. É isso o que está factualmente provado e é isso que decorre das alegações feitas sempre pela família junto de todos quanto consigo conviviam. De facto, o recorrente vive no seu atelier, onde tem os seus utensílios, os seus quadros, os seus cavaletes, etc. E um atelier, não é certamente um espaço com função de "casa", nem tão pouco uma casa de morada de família. Em concreto no caso sub judice, falta-lhe o ser casa e o ter lá família.
      6.) A recorrida não tem qualquer necessidade habitacional, pelo que não pode pedir a atribuição da casa de morada de família, uma vez que esse é o critério essencial para fazer um tal pedido, residindo até na casa que o recorrente considera a casa de morada de família. Do ponto de vista da construção sistemática do Direito, o pedido da recorrida é débil, uma vez que a mesma não careceu nunca de habitação e é esse o facto fundamental e essencial, que não logrou provar, constitutivo do seu putativo direito. De facto, a recorrida não carece de habitação, nunca careceu pois habita a casa que sempre foi arrendada pelo casal, desde 1979.
      7.) Depois de definida pelo tribunal a quo qual a casa de morada de família, decisão fundamental com a qual o ora recorrente não concorda, pergunta o tribunal a quo se pode a casa de morada de família ser atribuída a um qualquer dos ex-cônjuges? Neste contexto meramente teórico, a resposta só pode ser positiva, conforme decidiu o tribunal a quo., não merecendo aí qualquer reparo ou censura.
      8.) O tribunal a quo na decisão de atribuição da fracção sita na ..., em Lisboa, em benefício da recorrida violou maxime o disposto no art. 1793º CC, pois que ainda que podendo o tribunal adoptar a solução mais conveniente, em resultado da ponderação de todos os elementos que decorrem da matéria de facto provada, nos termos do art. 1410° do CPC. Os critérios de conveniência em que afinal se concretiza o factor da equidade que domina nos processos de jurisdição voluntária têm correspondência com a norma de direito substantivo que regula a atribuição do direito à casa de morada de família. Assim, determinando o art. 1793° do CC que "pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal” (sublinhado nosso), pelo que "...o tribunal deve ponderar todas as circunstâncias envolventes, não tendo que ficar circunscrito à ponderação das necessidades e das correspectivas possibilidades de cada um dos cônjuges."
      9.) A decisão do tribunal a quo não cumpriu os critérios legais mínimos obrigatórios, ponderando apenas as possibilidades (económicas) das partes. Não basta, para a decisão em causa, salvo o devido respeito que é muito, fazer uns meros considerandos que reproduzem a matéria de facto dada com provada sem relevar depois o critério que utiliza para decidir no sentido de atribuir a casa de Lisboa à recorrida, acrescentando constatações de facto, nomeadamente quanto aos rendimentos de recorrente e recorrida, sem apreciar os outros critérios.
      10.) Não é a valoração realizada pelo tribunal a quo a exigida pela lei (cfr. art. 1413º e 1410° CPC e art. 1793° CPC), porquanto não é o critério da possibilidade económica o critério fundamental para a atribuição da casa de morada de família. Na opinião do recorrente, não basta, num caso atípico como o dos autos ficar circunscrito à ponderação das possibilidades económicas de cada um dos cônjuges e, mesmo assim, de forma que o recorrente não considera correcta.
      11.) A justificação da decisão de que se recorre assenta em factos contrários aos que ficaram demonstrados em audiência de julgamento, pois que as possibilidades económicas de recorrente e recorrida têm que ser vistas globalmente, com auxílio, v.g. das despesas dos ex-cônjuges, e não apenas com base nos seus rendimentos brutos. O tribunal a quo não fez essa ponderação.
      12.) A decisão do tribunal num processo com o presente deve satisfazer a necessidade elementar da habitação, tutelando o mais débil e, portanto, aquele que maior dificuldade terá em garantir, com os seus meios, a sua habitação, cujas carências podem ser a ponto de precisar de alimentos, que compreendam a habitação, mas a recorrente tem esses meios, tanto mais que, no processo principal, o tribunal decidiu pela inexistência de carências justificativas de alimentos do recorrente para com a recorrida, pois que a recorrida não tem qualquer necessidade de habitação, sendo a premência da necessidade o factor principal a atender em casos como o dos autos. No caso sub judice, o tribunal a quo, na sentença recorrida, não referiu se havia ou não premência da necessidade de habitação da recorrida, nem a recorrida logrou fazer prova disso.

      13.) Para além, do referido critério fundamental e decisivo, que o aresto de que se recorre não faz referência e, portanto, não pondera, aquando da concreta decisão de que se recorre, há outros elementos indiciários que devem ser tidos em conta.
      14.) A decisão dos presentes autos terá que ter também em conta, ponderando, os elementos indiciários seguintes: - Situação patrimonial dos ex-cônjuges; - Circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa; - O interesse dos filhos menores; e, - Outras razões atendíveis.
      15.) A situação patrimonial dos ex-cônjuges revela uma economia quase idêntica, fazendo apelo aos proveitos e gastos de ambos comprovados judicialmente. Pelo que, contrariamente ao que decidiu o tribunal a quo, o recorrente não tem maiores possibilidades que a recorrida.
      16.) No que concerne às circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, verifica-se que este elemento indiciário é afirmado no singular, relevando o que ficou dito anteriormente, pois que o caso típico é o da existência de apenas uma casa. Mas quanto ao caso aqui em questão: - Ambas as fracções têm a mesma tipologia, pelo que não há diferenças de tipologia de relevo a ter em conta, sendo certo que a fracção de Lisboa é muito assimétrica. Em questão de arrumação, na casa da Póvoa de Sto. Adrião existem 3 roupeiros, enquanto na de Lisboa apenas existem 2 roupeiros. Em termos de transporte a casa da Póvoa está servida de autocarros e metro, quanto à casa de Lisboa, a mesma localiza-se num bairro típico de Lisboa, sendo o estacionamento difícil, pelo que aqui também não há diferenças significativas, sendo de relevo verificar que na casa da Póvoa de Sto. Adrião já viveu todo o agregado familiar, composto por 4 pessoas. Na verdade, a casa onde habita a recorrida não é indigna, nem há razões gravosas que determinem a decretação da atribuição da casa de Lisboa à recorrida, tanto mais que o próprio tribunal a quo admite e justifica-se dizendo que o próprio recorrente pode muito bem ir habitar tal casa, pelo que só se pode concluir que a referida casa da Póvoa de Sto. Adrião tem condições habitacionais dignas. Veja-se o facto de as partes sempre a quererem ter mantido arrendada.
      17.) Quanto ao interesse dos filhos, neste caso o mesmo é relativo, pois os filhos do casal já não são menores. Prevendo-se a muito curto prazo a sua total autonomização.
      18.) Há ainda outras razões atendíveis que o julgador de 1.ª instância deveria ter valorado. Na verdade, o recorrente investiu dinheiro na casa de Lisboa para aí instalar o seu atelier de pintura, o que deve ser valorado, uma vez que não é qualquer casa que serve de atelier, sendo também certo que ao longo dos anos o recorrente sempre buscou incessantemente um atelier condigno, pelo que foi sempre mudando até em 1992, portanto, há mais de 15 anos ter encontrado o local que reputa ideal para tanto. Se o recorrente daí for despejado, não poderá ter um local idêntico àquele, assim como ficarão em perigo de destruição todos os objectos, artefactos, quadros, etc., relacionados com a sua actividade, pois não terá sítio condigno e apropriado para os deixar. Impressiona também que a recorrida tenha esperado 2 anos de curso dos autos principais e só depois tenha vindo pedir a alegada casa de morada de família, "lembrando-se" só nessa altura, e quando ainda vivia sem os filhos, que tinha necessidades de habitação. O empenhamento do recorrente em manter o seu atelier e em beneficiá-lo também deve ser tido em conta, tal e qual conta, por vezes, o empenhamento no que concerne à aquisição do direito de propriedade sobre a casa de morada de família mediante o pagamento das prestações do empréstimo bancário (cfr. Ac. TRLisboa, de 19-02-2008, in www.dgsi.pt), uma vez que não se pode deixar sem protecção os interesses de quem contribuiu para manter e conservar o arrendado, no caso dos autos. Ainda deve ser ponderado, a dificuldade do recorrente em conseguir arranjar um outro atelier, pois que, se uma casa para habitar, sem qualquer necessidade de ter características que possam albergar um atelier, se consegue encontrar em qualquer lado, já reconstituir este atelier noutro local qualquer é muito difícil.

      19.) Ponderando todos estes factores, contrariamente à ponderação sumária que é feita na douta decisão de que se recorre, e focando-se o tribunal na necessidade absoluta ou relativa da casa de Lisboa como local que possa ser destinado à habitação da recorrida, de modo algum a balança pende para o lado da recorrida, pois que em nada se justifica a mudança. É que a efectivar-se essa mudança e obrigando-se o recorrente a abandonar o seu atelier, local onde também vive, causa-se com isso um mal muito maior que o benefício almejado pela recorrida.
      20.) A douta sentença do tribunal a quo subsumiu errónea e insuficientemente o direito aos factos provados, violando maxime o art. 1793° do CC, uma vez que não ponderou elementos essenciais levando a que a decisão de que se recorre apresente insuficiências de ajuizamento, contradições da fundamentação apontada com a matéria de facto assente, e, por isso se revele injusta, devendo ser alterada por outra que absolva o recorrente do pedido.

      A Requerente contra-alegou, pugnando pela improcedência da Apelação do Requerido.
      Colhidos os vistos, cumpre decidir.

    OBJECTO DO RECURSO:[1]

      Emerge das conclusões de recurso apresentadas por J..., ora Apelante, que o seu objecto está circunscrito à seguinte questão:
        1.) Destino da casa de morada da família.
                  
2.FUNDAMENTAÇÃO

    A.) FACTOS PROVADOS NA 1ª INSTÂNCIA (da audiência de discussão e julgamento):
              
      1.) Requerente e requerido casaram um com o outro em 14.03.76, sem convenção antenupcial - (doc. de fls. 6 e 7 dos autos de divórcio litigioso).
      2.) B.... nasceu no dia 24.10.80 e é filho da requerente e do requerido - (doc. de fls. 9 dos autos de divórcio litigioso).
      3.) D.... nasceu no dia 08.06.85 e é filho da requerente e do requerido - (doc. de fls. 11 dos autos de divórcio litigioso).
      4.) No ano de 1979, requerente e requerido tomaram de arrendamento uma fracção, destinada a habitação, sita na Rua ...., Póvoa de Santo Adrião, Odivelas.
      5.) Requerente, requerido e os seus dois filhos viveram nesta casa desde 1979 até 1992.
      6.) Por contrato de arrendamento celebrado em 1 de Maio de 1992, requerente e requerido tomaram de arrendamento uma fracção, destinada a habitação, sita na Rua ...., em Lisboa - (doc. de fls. 151 a 153 dos autos de divórcio litigioso).
      7.) Desde então, requerente e requerido bem como os dois filhos do casal deixaram de habitar a casa da Póvoa de Santo Adrião e passaram a habitar permanentemente a casa sita em Lisboa, aí tomando as suas refeições e dormindo, recebendo amigos e correspondência, fazendo da mesma o centro da sua vida social.
      8.) Tal ocorreu até Maio de 2001, data em que a requerente deixou de viver na referida casa.
      9.) Fê-lo porque desde há vários meses o requerido a apelidava de "estúpida", "vaca", "puta", ao mesmo tempo que lhe dizia "desaparece da minha vida", "hei-de dar-te cabo da cabeça", "vai-te embora e deixa-me ser feliz".
      10.) Expressões e frases que proferia inclusivamente diante dos dois filhos do casal, o que provocava na requerente um sentimento de vergonha e humilhação.
      11.) Em data não apurada, o requerido deu uma bofetada à requerente, fazendo-a bater com a cabeça na parede.
      12.) Esta agressão foi presenciada pelo filho mais velho do casal.
      13.) Quando saiu da casa de Lisboa, a requerente foi viver para a casa que o casal arrendou na Póvoa de Santo Adrião, cujo contrato de arrendamento continua em vigor.
      14.) Os filhos continuaram a viver com o pai em Lisboa e, no ano de 2004, passaram a viver com a mãe.
      15.) A casa da Póvoa de Santo Adrião corresponde a uma fracção habitacional construída clandestinamente, à qual as Câmaras Municipais de Loures e Odivelas recusaram a concessão de licença de utilização - (doc. de fls. 225 a 229).
      16.) Tal casa apresenta infiltrações na sala e no quarto que dá para a rua principal e humidades no quarto que dá para a varanda.
      17.) A aludida fracção, cuja planta consta de fls. 229, compõe-se de três assoalhadas, nela habitando a requerente e os dois filhos do casal.
      18.) Em virtude da exiguidade da fracção, o filho mais velho dorme no quarto da mãe.
      19.) Existem três roupeiros na casa onde se encontra a requerente.
      20.) Em termos de sistema de transportes públicos, a casa da Póvoa de Santo Adrião está servida de autocarros e metro.
      21.) A casa sita na Rua .... situa-se na freguesia da Penha de França.
      22.) Esta casa, cuja planta consta de fls. 235, é composta por uma sala de estar, uma varanda fechada contígua a esta sala e dois quartos no piso superior, por uma zona de cave e por um terraço.
      23.) Existem dois roupeiros na casa de Lisboa.
      24.) Esta casa data de 1936, localiza-se num bairro típico de Lisboa onde o estacionamento é difícil e tem quartos e divisões assimétricas.
      25.) A renda mensal da casa da Póvoa de Santo Adrião ascende a montante não apurado.
      26.) A renda mensal da casa de Lisboa ascende a montante não apurado.
      27.) A requerente trabalha em Lisboa, no K....., sito na X.... - (doc. de fls. 12).
      28.) O filho mais velho do casal, B...., é estudante de doutoramento e desde Julho de 2007 que recebe uma bolsa no valor de € 975,00 mensais líquidos, bolsa essa que terá a duração máxima de três ou quatro anos.
      29.) O B.... ora se desloca de metro, ora se desloca de carro, despendendo mensalmente montante não apurado em deslocações.
      30.) O filho mais novo do casal é estudante do IEFCL - (doc. de fls. 14), deslocando-se de metro para a faculdade.

      31.) O requerido sempre contribuiu para o sustento dos filhos.
      32.) A requerente aufere mensalmente um ordenado líquido de cerca de € 800,00 na qualidade de tap.
      33.) O requerido é professor, auferindo mensalmente cerca de € 2000,00 líquidos mensais - (doc. de fls. 80 a 85).
      34.) O requerido aufere rendimentos variáveis e não apurados com a sua actividade de pintor.
      35.) O requerido continua a residir na casa sita na R. ......
      36.) Depois de ter tido o seu atelier de pintura na Rua T, em seguida o requerido passou-o para a Rua V e, em 1992, passou a ter o seu atelier na casa da R. .....
      37.) O requerido escolheu a casa sita na R. .... para produzir as suas obras plásticas.
      38.) O requerido investiu dinheiro nesta casa para aí instalar o seu atelier de pintura.
      39.) Correu termos no Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e da Comarca de Loures sob o n° .... uma acção de despejo referente à casa da Póvoa de Santo Adrião, em que a requerente e o requerido eram Réus - (doc. de fls. 42 a 58).
      40.) Na referida acção em sede de contestação requerente e requerido alegaram o seguinte:
        "Os RR. residem no locado em crise há mais de 18 anos (...) onde (...) têm instalada e organizada a sua economia familiar; Têm todas as relações de convivência familiar e social; onde os RR. têm o centro da sua vida doméstica (...) Com carácter e o alcance de residência permanente (...);"
         "(...) "Embora o R. marido tivesse arrendado uma casa em Lisboa para seu atelier de pintura e, só para esse fim, bem sabiam e sabem as AA. que ainda têm grau de parentesco com aquele, que nunca da mesma foi feita habitação."
         (...) "Sempre os RR. tiveram e têm a sua vida económica familiar, o centro da sua vida doméstica, onde pernoitam, onde comem algumas refeições, onde recebem por vezes amigos, na casa dos autos, arrendada às AA.
         Não noutra, transformada em estúdio de trabalho do R. e que de habitação só tem o nome".
         "Os RR. confeccionam refeições, dormem recebem amigos e toda a correspondência relativa à sua vida económica/familiar (...)."
         "Os RR. provam inequivocamente que a sua residência permanente se localiza na Rua .... em Póvoa de Santo Adrião e não na Rua ...., em Lisboa." - (doc. de fls. 42 a 58).
      41.) Requerente e requerido fizeram estas alegações na acção de despejo para não ficarem sem a casa da Póvoa de Santo Adrião.

    B.) O DIREITO:
    
      Importa conhecer o objecto do recurso, circunscrito pelas respectivas conclusões.           

    Conclusões 1ª a 6ª (A casa sita na Rua ..., em Lisboa não é a casa de morada de família, pois foi arrendada para um fim especifico – atelier de pintura).
 
      O tribunal recorrido decidiu que «desde 1 de Maio de 1992, a casa de morada da família foi a sita na Rua ..., em Lisboa», discordando o Apelante, de tal entendimento.
      Vejamos a questão.
      Os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família – art. 1673º, do Código Civil (doravante, CCivil).
      A residência da família é o lugar do cumprimento do dever de coabitação, falando linguagem do direito das obrigações; escolhida a residência da família, ambos os cônjuges têm obrigação de viver aí, salvo motivos ponderosos em contrário.[2]
      O conceito de coabitação em Direito Matrimonial, mas também em linguagem vulgar, significa comunhão de leito, de mesa e de habitação.[3]
      O dever de coabitação compreende a obrigação que os cônjuges têm de viver em comum, em comunhão de mesa, vivendo sob o mesmo tecto, dormindo no mesmo leito, abarcando ainda o “jus in corpore”, o “debitum conjugale”. Abrange em suma a normal convivência sobre o mesmo tecto.
      Ora, ficou provado que por contrato de arrendamento celebrado em 1 de Maio de 1992, requerente e requerido tomaram de arrendamento uma fracção, destinada a habitação, sita na Rua ...., em Lisboa, e desde então, bem como os dois filhos do casal, deixaram de habitar a casa da Póvoa de Santo Adrião e passaram a habitar permanentemente a casa sita em Lisboa, aí tomando as suas refeições e dormindo, recebendo amigos e correspondência, fazendo da mesma o centro da sua vida social – factos provados nºs 6 e 7.
      Assim, perante tais factos, temos que concluir, como concluiu o tribunal recorrido, que «a casa de morada da família foi desde 1 de Maio de 1992, a sita na Rua ..., em Lisboa», pois foi nesta, que Apelante e Apelada escolheram coabitar.
      Deixando de habitar a fracção autónoma sita na Rua ..., Póvoa de Santo Adrião, Odivelas, embora se mantenha em vigor o respectivo contrato de arrendamento, a mesma deixou de se considerar como “casa de morada da família”, por terem os cônjuges escolhida uma outra para sede da sua vida familiar.
      E, nem se pode entender, como entende o Apelante, que seja esta a casa de morada de família (a sita em Odivelas), por aí estar a Apelada a habitar e viver desde 2001, e desde 2004, com os filhos.
      Isto porque a Apelada deixou de viver na casa sita na Rua ... (casa de morada de família), por o Apelante a apelidar de "estúpida", "vaca", "puta", ao mesmo tempo que lhe dizia "desaparece da minha vida", "hei-de dar-te cabo da cabeça", "vai-te embora e deixa-me ser feliz".
      Motivo ponderoso para um dos cônjuges não adoptar a residência da família será ainda o de a vida em comum se lhe ter tornado intolerável ou inexigível, em face dos maus tratos ou das injúrias do outro.[4]
      Assim, a saída da Apelada da casa de morada da família foi provocada pela atitude do Apelante, face aos maus tratos e injúrias de que era vítima por parte deste, o que tornou intolerável a vida em comum, e não por um qualquer outro motivo não justificado.
      Tal atitude (a saída de casa de morada da família) poderá ter a ver com a violação do dever de coabitação que impende sobre os cônjuges, e não com a escolha, por parte desta, da casa de morada de família, pois esta pressupõe um acordo de ambos, o que no caso não ocorreu.
      Acresce dizer, que tendo a residência da família de ser escolhida de comum entre os cônjuges (expresso ou tácito), a partir do momento em que o Apelante não acompanha a Apelada para a residência sita em Odivelas, e não havendo qualquer motivo ponderoso para não o fazer, a mesma não pode ser considerada como casa de morada da família.
      Como pode pois o Apelante dizer, não habitando a casa, nem invocando um motivo ponderoso para não o fazer, que a fracção autónoma sita em Odivelas, era desde 2001, a casa de morada de família, quando aí só vivia a Apelada, e numa primeira fase (durante três anos), sem os filhos.
      É que não havendo comunhão de leito, de mesa e de habitação na fracção autónoma sita na Rua ..., Odivelas, pois nesta só habitava a Apelada, esta nunca poderia ser considerada como a residência da família.
      Só caso o Apelante também habitasse esta casa, ou invocasse um motivo para o não fazer, ou que tivesse sido escolhido de comum acordo para coabitarem, é que a fracção autónoma sita em Odivelas, poderia, eventualmente, ser considerada como residência da família.
      Pelo facto de a Apelante, desde 2001, habitar a fracção autónoma sita em Odivelas, não se pode concluir, sem mais, que esta seja a casa de morada de família, pois não foi este o local escolhido de comum acordo pelos cônjuges para viverem em conjunto, nem onde tinham centrado a sua vida doméstica.
      Tendo a Apelada saído da casa de morada da família por não ser exigível que nesta continuasse a viver, pois era vítima de maus tratos e injúrias por parte do Apelante, carece esta da habitação, pois deixou de aí habitar por motivos alheios à sua vontade.
      Entende ainda o Apelante que está provado que a fracção sita na Rua ..., em Lisboa foi arrendada para um fim específico - atelier de pintura.
      Ora, o que está provado é que a fracção foi arrendada para habitação – facto provado n.º 6 - e não para qualquer outro fim, v.g., para o exercício de profissão liberal.
      Não estando estipulado no contrato de arrendamento que este tenha por fim o exercício de profissão liberal, a fracção autónoma só poderia ser utilizada pelos arrendatários para habitação (art. 3º, n.º 2, do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10).
      Temos pois que a fracção autónoma sita na Rua ..., em Lisboa, não foi arrendada para um fim específico - atelier de pintura, mas sim para habitação.
      Nestes termos, sendo a casa de morada da família a sita na Rua ..., em Lisboa, improcedem, consequentemente, as conclusões 1ª a 6ª.   

    Conclusões 8ª a 10ª (O tribunal a quo na decisão de atribuição da fracção sita na Rua ...., violou o disposto no art. 1793º do CCivil, por ter ponderado apenas as possibilidades económicas das partes, sem apreciar outros critérios).

      Entende o Apelante que o Tribunal na atribuição da casa de morada de família deve, nos termos do art. 1793º, n.º 1, do CCivil, ponderar todas as circunstâncias envolventes, não tendo que ficar circunscrito apenas à ponderação das necessidades e das correspectivas possibilidades de cada um dos cônjuges.
      Vejamos a questão.
      Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal – art. 1793º, n.º 1, do CCivil.
      Quando a casa de morada de família é um bem comum do casal, pertence aos dois cônjuges em compropriedade ou pertence exclusivamente a um deles, o art. 1793º CCiv permite ao tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, comum ou própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.[5]
      A hipótese de os cônjuges viverem em casa tomada de arrendamento está prevista no art. 84º RAU, segundo o qual, “obtido o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, podem os cônjuges acordar em que a posição de arrendatário fique pertencendo a qualquer deles” (nº 1), e “na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir” (n.º 2).[6]
      Ora, como decidiu o tribunal “a quo”, a casa de morada de família é arrendada e encontra-se sujeita ao RAU, pelo que a resposta à segunda das questões suscitadas terá de ser positiva, isto é, pode ser atribuída a qualquer dos ex-cônjuges.
      Assim, o Tribunal na ponderação para atribuição da casa de morada de família deveria atender, como o fez, aos factores estatuídos no art. 84º, do RAU, e não, como pretende o Apelante, aos do art. 1793º, do CCivil, pese embora, «a enumeração desses coeficientes ou factores não ser taxativa em qualquer das disposições em causa»[7].
      O art. 1793º diz que o juiz deve considerar “nomeadamente” os dois factores que refere; e, segundo o art. 84º, n.º 2, do RAU, o tribunal deve ter em conta na sua decisão, além das cinco que menciona, “quaisquer outras razões atendíveis”.[8]
      Mas, sempre se dirá que o tribunal recorrido na atribuição da casa de morada de família, teve em atenção outros factores, que não apenas a ponderação económica de cada um dos cônjuges, nomeadamente, que o requerido (Apelante) vive sozinho, enquanto a requerente (Apelada) vive com os filhos, o requerido terá mais facilidade em arrendar ou adquirir outra casa ou então, sempre poderá passar a habitar a casa que o casal arrendou na Póvoa de Santo Adrião, cujo contrato de arrendamento continua em vigor, casa essa que, em virtude da sua exiguidade, sempre acomoda melhor uma pessoa do que três pessoas.
      Assim, é manifesto que não sendo a fracção autónoma um bem próprio ou comum dos ex-cônjugues, para ponderação da atribuição da casa de morada de família, o tribunal recorrido não tinha que ter em atenção os factores estatuídos no art. 1793º CCivil, por ser inaplicável ao caso tal normativo legal, improcedendo, consequentemente, as conclusões 8ª a 10ª.   

    Conclusão 11ª (As possibilidades económicas de recorrente e recorrida têm que ser vistas globalmente, com as respectivas despesas, e não apenas com base nos seus rendimentos brutos).

      Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio, o facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento e quaisquer outras razões atendíveis – art. 84º, n.º 2, do RAU.
      Trata-se, quanto à “situação patrimonial” dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro,…, assim como os respectivos encargos.[9]
      Na situação patrimonial dos cônjuges ter-se-ão de considerar os meios de cada um, traduzidos nos rendimentos, salários ao seu alcance e correspondentes encargos, designadamente com os filhos.[10]
      A decisão recorrida teve em atenção no que respeita à situação patrimonial dos cônjuges que «a requerente aufere mensalmente um ordenado líquido de cerca de € 800,00 na qualidade de tap, que o requerido é professor, auferindo mensalmente cerca de € 2000,00 líquidos mensais, e rendimentos variáveis e não apurados com a sua actividade de pintor», e não em quaisquer outros factos, por não provados.
      Ora, não estando provados quaisquer despesas ou encargos por parte do Apelante e Apelada, o tribunal para avaliar das respectivas situações patrimoniais só se poderia socorrer dos rendimentos provenientes do trabalho e que ficaram provados, e não de quaisquer outros factos, por não provados.
      Assim sendo, a decisão recorrida não assenta em factos contrários aos que ficaram demonstrados em audiência de discussão e julgamento, pois nada ficou provado quanto aos encargos das partes.
      Para aquilatar das possibilidades económicas, o tribunal recorrido não podia fazer qualquer ponderação entre os rendimentos e as despesas do Apelante e Apelada, por não se terem provado quaisquer factos relativos a estas.
      Concluindo, é manifesto que a decisão recorrida ao não ponderar as despesas dos recorrentes para averiguar das respectivas possibilidades económicas das partes, por estas não terem ficado provadas, não assenta em factos contrários aos que ficaram provados, razão pela qual, improcede, consequentemente, a conclusão 11ª.   

    Conclusões 12ª e 13ª (O tribunal a quo, na sentença recorrida, não referiu se havia ou não premência da necessidade de habitação da recorrida, nem esta logrou fazer prova disso).
    
      A necessidade da casa (ou a “premência”, como vem dizer a jurisprudência; melhor se diria: a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender. É certo que a “necessidade” da casa não vem expressamente referida no enunciado do art. 84º, n.º 2, RAU, mas é a ela que naturalmente se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges como o “interesse dos filhos”.[11]
      Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam e merecem expressa referência no art. 84º, n.º 2, RAU.[12]  
      Em primeiro lugar, o tribunal recorrido teve em atenção o critério da premência da necessidade na sua decisão, pois refere-se ao mesmo nos seguintes termos: O critério geral que deve, por isso, fixar-se para a atribuição do direito ao arrendamento é o da necessidade da casa: o direito ao arrendamento da casa de morada da família dever ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. (…) Decerto que a necessidade da casa não vem expressamente enunciada na lei – mas é a ela naturalmente que se reportam tanto a situação patrimonial dos cônjuges como o interesse dos filhos, quando os haja.
      Em segundo lugar, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido analisou como factor principal a atender a premência da necessidade da habitação, tendo tido em atenção, nomeadamente, a situação patrimonial e o interesse dos filhos (ser de concluir, por recurso aos critérios supra-referidos, que a requerente é o ex-cônjuge que mais precisa da casa de morada de família e que, por isso, esta lhe deve ser atribuída).
      Acresce ainda dizer que a Apelada provou a premência da necessidade da habitação, pois de outro modo, o tribunal recorrido não lhe teria atribuído, como atribuiu, a casa de morada de família.
      Nestes termos, é manifesto que a decisão recorrida elegeu como critério para atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada da família ao cônjuge que mais precise dela (premência da necessidade), improcedendo, consequentemente, as conclusões 12ª e 13ª.   

    Conclusões 14ª a 20ª (A decisão terá que ter também em conta, ponderando, os elementos indiciários seguintes: - Situação patrimonial dos ex-cônjuges; - Circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa; - O interesse dos filhos menores; e, - Outras razões atendíveis).

      Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio, o facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento e quaisquer outras razões atendíveis – art. 84º, n.º 2, do RAU.
      Face a tal normativo legal, o tribunal para decidir, tem de ter em atenção a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa que possa ser ou tenha sido efectivamente imputada aos cônjuges na sentença de divórcio (e não apenas a culpa imputável ou imputada ao arrendatário, única a que se refere a letra do preceito legal), o facto de o arrendamento ser anterior ou posterior ao casamento e, finalmente, quaisquer razões atendíveis.
      Estes factores ou índices de referência, com carácter exemplificativo, embora os tenhamos deixados enumeradas segundo a ordem da enunciação legal, não estão ordenados segundo qualquer hierarquia de valores, não podendo contudo deixar de prevalecer a capacidade económica de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos menores.[13]
      A necessidade da casa (ou a “premência”, como vem dizer a jurisprudência; melhor se diria: a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender. É certo que a “necessidade” da casa não vem expressamente referida no enunciado do art. 84º, n.º 2, RAU, mas é a ela que naturalmente se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges como o “interesse dos filhos”.[14]
      Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam e merecem expressa referência no art. 84º, n.º 2, RAU.[15]  
        a.) Situação patrimonial dos cônjuges:
      Trata-se, quanto à “situação patrimonial” dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro,…, assim como os respectivos encargos; no que se refere ao “interesse dos filhos”, há que saber qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores,…, se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem ficaram confiados.[16]
      Está provado que a requerente (Apelada) aufere um ordenado líquido mensal de € 800,00, e o requerido (Apelante) aufere um ordenado mensal de € 2000,00 líquidos mensais, a que acrescem rendimentos variáveis e não apurados com a sua actividade de pintor – factos provados nºs 32 a 34.
      Ora, perante tais factos, não se tendo provando quaisquer encargos de nenhum dos ex-cônjuges, é manifesto que a situação patrimonial do Apelante é superior à da Apelada, como concluiu, com o que concordamos, com o tribunal recorrido.
      Assim, tendo o Apelante rendimentos fixos «superiores cerca de duas vezes e meia aos da Apelada», a que ainda acrescem rendimentos variáveis, não se pode entender, como pretende o Recorrente, que a situação patrimonial dos ex-cônjuges revela uma economia quase idêntica.
      Perante a diferença da situação patrimonial dos ex-cônjuges, a premência da necessidade da casa de morada de família é maior por parte da Apelada, como entendeu o tribunal recorrido, do que do Apelante, pois este sempre terá mais facilidades em adquirir ou arrendar uma outra habitação.
        b.) Circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa:
      Este factor não é muito relevante, só sendo de recorrer a ele quando as necessidades dos cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou aproximadas.[17]
      Em relação à existência de uma outra casa arrendada por parte dos ex-cônjuges, se o Apelante entende que não existem diferenças significativas em relação aquela que foi a casa de morada de família, poderá ir habitá-la (a casa da Póvoa está servida de autocarros e metro, enquanto na de Lisboa o estacionamento é difícil), pois nada o impede de o fazer.
      Só que como entendeu o tribunal recorrido, com o que se concorda, «sempre o (Apelante) poderá passar a habitar a casa que o casal arrendou na Póvoa de Santo Adrião, cujo contrato de arrendamento contínua em vigor, casa essa que, em virtude da sua exiguidade, sempre acomoda melhor uma pessoa do que três pessoas».
      Acresce dizer, que pese embora ambas as casas terem a mesma tipologia, em virtude da exiguidade da fracção (da Póvoa), o filho mais velho dorme no quarto da mãe – facto provado n.º 18 -, o que não se provando que pudesse acontecer o mesmo na fracção autónoma sita em Lisboa, será mais um factor a ter em atenção para transferir o direito ao arrendamento para a Apelada.
        c.) Interesse dos filhos:
      Neste aspecto tem de se considerar a qual dos cônjuges foram os filhos confiados, se é do interesse deles viverem na casa que até aí era a morada da família e onde passarão a habitar se não voltarem lá a residir.[18]     
      Quanto ao interesse dos filhos, apesar de não serem menores, mas como pelo menos um deles ainda está na dependência económica dos progenitores, e a residirem ambos com a Apelada, será um elemento a considerar pelo tribunal na avaliação da premência da necessidade da casa por parte desta.
        d.) Quaisquer outras razões atendíveis:
      Haverá que considerar ainda as demais “razões atendíveis”: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.[19]
      Em relação ao atelier de pintura, ficou provado que o Apelante escolheu a casa sita na R. ... para produzir as suas obras plásticas, e investiu dinheiro nesta casa para aí o instalar – factos provados nºs 37 e 38.
      Porém, não se provou que o Apelante não possa ter um local idêntico àquele, assim como ficarão em perigo de destruição todos os objectos, artefactos, quadros, relacionados com a sua actividade, pois não terá sítio condigno e apropriado para os deixar.
      Mais não se provou que o Apelante tenha dificuldade em conseguir arranjar outro atelier, ou seja muito difícil em o reconstruir noutro local.
      Assim, não fazendo prova de qualquer destes factos, não se pode entender que haja por parte do Apelante uma razão atendível e justificativa da necessidade da habitação da casa de morada da família, só por aí ter instalado o seu atelier de pintura.
      Quando possa concluir-se, em face destes elementos, que a necessidade ou a premência da necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, julgamos que o tribunal deve atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada da família àquele que mais precise dela.[20]
      Por todos estes factores, temos de concluir, como concluiu o tribunal recorrido, que a premência da necessidade da habitação por parte da Apelada é consideravelmente superior ao do Apelante (“a requerente é o ex-cônjuge que mais precisa da casa de morada de família e que, por isso, esta lhe deve ser atribuída”), razão pela qual, deverá para esta ser transferido o direito de arrendamento da casa de morada da família sita em sita na Rua ..., em Lisboa.
      Concluindo, ao decidir atribuir à Apelada o direito ao arrendamento da casa de morada da família, observando para tal os factores expressos no art. 84º, n.º 2, RAU, o tribunal recorrido não violou qualquer preceito legal, maxime o art. 1793º, do CCivil, razão pela qual, improcedem as conclusões 14ª a 20ª.   
      Destarte, improcedendo as conclusões da Apelação, confirma-se a decisão recorrida ao atribuir à Apelada a casa de morada da família.
3.DISPOSITIVO    
    DECISÃO:

      Pelo exposto, Acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso de Apelação e, consequentemente, em confirmar-se a decisão recorrida.        
    REGIME DE CUSTAS:
      Custas pelo Apelante, porquanto a elas deu causa por ter ficado vencido - art. 446.º do CPCivil.                         
Lisboa,2009-06-18
(NELSON PAULO MARTINS DE BORGES CARNEIRO) – Relator
(ONDINA DE OLIVEIRA CARMO ALVES)
(ANA PAULA LOPES MARTINS BOULAROT)
[21]

[1] As conclusões das alegações do recorrente fixam o objecto e o âmbito do recurso – n.º 3, do art. 684.º, do CPCivil.
  Todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
  Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

[2] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 393.

[3] DIOGO LEITE DE CAMPOS, Lições de Direito da Família e das Sucessões, 2ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, p. 253.

[4] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 393.

[5] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 720.

[6] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 723.

[7] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 721.

[8] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 721.

[9] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 727.

[10] JORGE ARAGÃO SEIA, Regime do Arrendamento Urbano, 5ª Edição, Almedina, p. 495.
[11] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 726.

[12] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 726.

[13] JORGE ARAGÃO SEIA, Regime do Arrendamento Urbano, 5ª Edição, Almedina, pp. 491/493.

[14] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 726.

[15] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 726.

[16] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, pp. 726/7.

[17] JORGE ARAGÃO SEIA, Regime do Arrendamento Urbano, 5ª Edição, Almedina, p. 494.

[18] JORGE ARAGÃO SEIA, Regime do Arrendamento Urbano, 5ª Edição, Almedina, p. 494.

[19] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 727.

[20] PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução – Direito Matrimonial, Vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora, pp. 727.

[21] Foram utilizados meios informáticos na elaboração e execução da presente peça processual – n.º 5 do art. 138.º do CPCivil.