Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2980/15.2T9CSC-A.L1-5
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: FALSAS DECLARAÇÕES
FRAUDE FISCAL
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: No crime de falsas declarações do art.º 348º A do CPenal, se a falsidade de depoimento se repercute directamente na esfera jurídica da pessoa que o agente visou prejudicar, causou ou procurou causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, então, a esta deve ser reconhecida legitimidade para intervir como assistente no respectivo processo penal, enquanto titular dos interesses que a lei penal tem - também - especialmente por fim proteger.

Se a menção inserida na declaração modelo para IRS disser respeito ao estado civil do declarante e se, dessa mera menção ali declarada, não resultar qualquer imediato prejuízo para a administração fiscal, na medida em que não se mostra demonstrado nos autos, nem alegado pela própria assistente, que daí resultasse qualquer arrecadação de menos imposto, mas o resultado daquela desconformidade na declaração apenas determinar rejeição pelos serviços tributários da sua própria declaração fiscal de IRS, por incompatibilidade com a apresentada pelos denunciados, conclui-se que o prejuízo que adveio para a assistente será apenas um dano colateral e não directamente resultante da inserção/declaração errada do estado civil dos declarantes.

Por outro lado, na medida em que estamos a falar de crime contra a autoridade pública claramente a assistente não é titular do interesse, directa, imediata ou predominantemente tutelado pela norma incriminadora em causa pelo que a sua admissão como assistente, claramente, não poderia abranger esta concreta matéria/crime e, consequentemente, ver-se investida com legitimidade nos termos do art.º 287º n.º 1 al. b) CPP para requerer a instrução quanto a estes factos e ilícito.

A criminalidade fiscal visa combater a fuga ao pagamento de obrigações tributárias e, por isso, o bem jurídico tutelado pelo crime de fraude fiscal, reveste natureza complexa, visando a preservação da transparência e verdade fiscal e o dever de cidadania de pagar impostos e, por essa via, o património do Estado.

À semelhança do que se passa com o crime de burla tributária, também quanto ao de fraude fiscal, tem que concluir-se não ter a denunciante qualquer interesse autónomo do principal que determine a admissão como assistente em processo penal, nos termos do art.º 68º, n.º 1, al. a) do C.P.Penal e, por essa via, ver-se investida com legitimidade nos termos do art.º 287º n.º 1 al. b) CPP para requerer a instrução quanto a este concreto ilícito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.–Relatório:


No processo n.º 2980/15.2T9CSC que, para a requerida fase de instrução, corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Cascais, Comarca de Lisboa Oeste, a assistente F. B. veio interpor recurso da decisão do Mmo. J.I.C. proferida a 31.10.2017, constante de fls. 277 e seguintes dos autos que indeferiu o requerimento de abertura de instrução por si requerida considerando esta legalmente inadmissível, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
“I A assistente apresentou, contra F.A. (F.A.) e M.P.  (M.P.), queixa-crime. O Ministério Público arquivou o inquérito, tendo a assistente reagido a tal decisão, por entender existirem nulidades a conhecer e verificados os pressupostos para, submetidos a julgamento, virem a ser aplicadas aos denunciados [arguidos a constituir] penas.
II O despacho recorrido - que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente - padece, nos termos no art. 308.°, n.º 319 e 379.°, n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal (CPP), de nulidade por não conhecer das nulidades invocadas no requerimento de abertura de instrução, a saber: falta de promoção do processo no que se refere aos crimes de falsas declarações (contra F.A.  e M.P.), burla tributária (contra F.A.), fraude na obtenção de subsídio (contra F.A.), fraude fiscal e burla (estes contra F.A.  e M.P.), em violação do art. 48.° do Código Penal (CP) - nulidade insanável -, e insuficiência de actos de inquérito no que se refere à denunciada fraude fiscal, em violação do disposto no art. 262.°, n.º 1 do CPP, nos termos do disposto nos arts. 119.°, n.º 1, al. b) e 120.°, n.º 2, al. d), do CPP. Nulidades que se impõe sejam declaradas, com as devidas consequências.
III Mas, na análise dos factos imputados aos denunciados, também mal andou o Tribunal a quo, ao considerar que o requerimento de abertura de instrução não contém a narração dos fatos relevantes para a imputação dos crimes de falsas declarações, fraude fiscal, burla fiscal e fraude na obtenção de subsídio, designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação do agente, tal requerimento omite por completo os elementos fatuais subjetivos, pressupostos da responsabilidade criminal. Não devia ter sido a instrução declarada inadmissível por falta de objeto - tendo assim o despacho recorrido violado o disposto no art. 287.°, n.ºs 2 e 3 do CPP.
IV No que respeita ao crime de falsas declarações, confrontando os factos vertidos nos pontos 1, 2, 5 e 8 da queixa apresentada pela denunciante com o teor dos documentos 1, 4, 8 e 9 (juntos à queixa), com as declarações remetidas aos autos pela Autoridade Tributária de fls. 119 e com o documento, assento de nascimento de F.A. , de fls. 187 e 188 dos autos (os últimos trazidos ao processo no âmbito dos actos de inquérito promovidos pelo MP), constata-se que F.A.  e M.P.  falsamente declararam o respectivo estado civil.
V A assistente ao alegar que «Ao, em 31.05.2014, em 23.07.2014 e em 31.05.2015, declararem-se "unidos de facto" nas declarações de IRS dos anos 2013 e 2014, apresentadas via plataforma online, F.A.  e M.P. , mentem declarando / atestando falsamente à Autoridade Tributária estado a que a lei atribui efeitos jurídicos.», precisa a data (quando), a declaração (o quê), o local (onde) e a forma (como), factualidade a que os denunciados mentiram, atestando - pois se é mentira -falsamente, à Autoridade Tributária (a quem) estado (estado civil, objecto das falsas declarações) a que a lei atribui efeitos jurídicos - elemento objectivo do crime de falsas declarações (art. 348.°-A do CP).
VI A assistente ao alegar que «bem sabiam os denunciados, não podendo, nomeadamente em resultado da sua formação/actividade profissional, invocar desconhecimento, que o estado civil é um elemento manifestamente decisório, com efeitos jurídicos indiscutíveis na determinação da matéria colectável em sede de IRS e, consequentemente, na liquidação deste imposto, conforme arts. 13.° e ss. do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS)» e ao alegar que os denunciados «agiram livre e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei», factualiza o dolo (definido no art. 14.° do CP20) -, elemento subjectivo do crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.°-A do CP: "bem sabiam" (concretizando-se que não poderiam desconhecer, nomeadamente por serem técnicos oficiais de contas) o que estavam a fazer quando se declararam unidos de facto à Autoridade Tributária, conheciam os efeitos, designadamente na determinação da matéria colectável. Fizeram-no de forma livre (foram os denunciados que quiseram a acção, fizeram-no de forma "independente", "à vontade", "em liberdade" com conhecimento e consciência da ilicitude, estando afastada qualquer causa de exclusão da culpa) e voluntária (voluntariamente e deliberadamente são sinónimos). Sabiam os denunciados que a sua conduta era e é punida por lei.
VII Encontram-se, no que ao crime de falsas declarações, p. e p. no art. 348.°-A do CP, respeita, alegados e demonstrados todos os elementos (objectivo e subjectivo) integradores do respectivo tipo legal de crime, designadamente sob o prisma volitivo e intelectual, e que, a provarem-se em julgamento, determinarão a inexorável condenação dos [a constituir] arguidos, necessariamente - como bem caracterizado - co-autores materiais. O Tribunal a quo violou assim o disposto no art. 14.° do CP e no art. 287.°, n.ºs 2 e 3 do CPP.
VIII No que respeita ao crime de burla tributária contra a Segurança Social p. e p. art. 87.° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e ao crime de fraude na obtenção de subsídio p. e p. no art. 36.° do D.L n.º 28/84, de 20 de Janeiro, respectivamente, a assistente ao alegar que F.A. , por meio de falsas declarações, no pedido de reconhecimento do direito e atribuição do respectivo subsídio de parentalidade, meio idóneo para o efeito, levou a Segurança Social a determinar o reconhecimento e a concessão (e pagamento) daquele (atribuição patrimonial da qual resultou enriquecimento de F.A. e empobrecimento, na mesma medida, da Segurança Social) factualizou o elemento objectivo dos crimes em causa. Fê-lo também ao alegar que F.A. requereu e obteve - para os períodos de 20.12.2013 a 26.12.2013, de 27.12.2013 a 02.01.2014, de 03.01.2014 a 03.01.2014, de 06.01.2014 a 10.01.2014, de 13.01.2014 a 16.01.2014 e de 18.04.2014 a 17.05.2014 - subsídio de protecção social na parentalidade, pelo período total de 50 (cinquenta) dias, sem ter deixado de trabalhar no período de tempo obrigatório e facultativo (50 dias) de gozo de licença parental e tendo, ao que tudo indica, recebido, para esse mesmo período, vencimento e o subsídio (na ordem dos € 15.000,00).
IX Quanto ao elemento subjectivo, o dolo, está concretizado quando a assistente alega que «bem sabia F.A. , não podendo, nomeadamente em resultado da sua formação/actividade profissional, invocar desconhecimento, que não podia beneficiar de um subsídio de parentalidade sem gozar a respectiva licença e auferir ao mesmo tempo e pelo mesmo período vencimentos laborais», quando alega a vontade de obter o benefício, o conhecimento/consciência de que, no caso concreto, era ilegítimo, sem que o pudesse ignorar e ainda na afirmação de que F.A.  agiu de forma livre (independente) e voluntária (com vontade), deliberadamente, conscientemente, e consciente da ilicitude da sua conduta, bem sabendo o que fazia e que a sua conduta era e é punida por lei.
X Encontram-se, no que ao crime de burla tributária p. e p. nos arts. 87.° do RGIT e ao crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. no art. 36.°, n.º 1 als. a) e b) do DL n.º 24/84, de 20 de Janeiro, respeita, alegados e demonstrados todos os elementos (objectivo e subjectivo) integradores dos respectivos tipos legais de crime, designadamente sob o prisma volitivo e intelectual, e que, a provarem-se em julgamento, determinarão a inexorável condenação do [a constituir] arguido, necessariamente - como bem caracterizado - autor material. O Tribunal a quo violou assim o disposto no art. 14.° do CP e no art. 287.°, n.ºs 2 e 3 do CPP.
XI No que respeita ao crime de fraude fiscal, p. e p. no art. 103.° do RGIT, cometidos por F.A.  e M.P. , ao alegar que:
- F.A.  e M.P. , aquando da apresentação da declaração de IRS referente a 2013, se declaram unidos de facto quando estavam divorciados um do outro e quando, já em 2013, F.A.  vivia em condições análogas à dos cônjuges com a assistente, com a qual casou em 2014;
- F.A.  e M.P. , aquando da apresentação da declaração de IRS referente a 2013, falsamente declarando-se unidos de facto, não declaram as pensões recebidas pelos filhos;
- F.A.  e M.P. , em 2013, efectuaram as partilhas por divórcio, omitindo (alterando factos e valores), na declaração de IRS referente a este ano, mais-valias daí decorrentes;
- F.A. e M.P. e fectuaram declaração de substituição da declaração de IRS referente a 2013, mantendo os mesmos factos falsos;
- no requerimento de fls. 101 e 102, F.A.  e M.P. , afirmam que já tinham promovido a correcção da declaração referente ao período de 2013, ao passo que o Chefe do Serviço de Finanças de Oeiras 2 – MCP (em depoimento prestado 29.03.2016, momento posterior ao da apresentação do aludido requerimento) - diz que com respeito à declaração de 2013 (a mesma citada no dito requerimento) ainda está pendente e embora tenha sido pedida a junção da declaração de 2013, à Administração Tributária, esta só juntou a de 2014;
- os denunciados declaram que, no mês de Julho do ano 2013 e pelo valor de € 122.375,00, F.A.  alienou uma quota correspondente a 50% do prédio urbano inscrito sob o artigo 2... da freguesia 1.....0, que adquirira no mesmo mês, do mesmo ano e pelo mesmo valor, isto é, no mês de Julho de 2013, por € 122.375,00;
- os denunciados declaram que, no mês de Julho do ano 2013 e pelo valor de € 57.460,00, M.P.  alienou uma quota correspondente a 50% do prédio urbano inscrito sob o artigo 3... da freguesia 8...4, que adquirira no mesmo mês, do mesmo ano e pelo mesmo valor, isto é, no mês de Julho de 2013, por €57.460,00;
- os denunciados registaram a seu favor o prédio inscrito na matriz sob o artigo 2..., em 1998, e, em 2003, o prédio inscrito na matriz sob o artigo 3...; [do que resulta a falsidade, nomeadamente, da data da aquisição destes prédios, declarada em sede de mais valias, referidas imediatamente acima, por ambos os denunciados]
- F.A.  deveria, com referência ao ano 2013, ter declarado a venda, no mês de Julho do ano 2013 e pelo valor de € 122.375,00, de uma quota correspondente a 50% do prédio urbano inscrito sob o artigo 2... da freguesia 1.....0, que adquirira, em Junho de 1998, pelo valor de € 49.879,78;
- importava considerar, por F.A. , uma mais-valia de € 51.046,92, tributável em 50% (art. 43.°, n.°2doCIRS);
- o montante do benefício obtido terá excedido o valor de € 15.000,00; factualiza o elemento objectivo do crime de fraude fiscal.
XII Quanto ao elemento subjectivo, o dolo, está concretizado na alegação do conhecimento/consciência - nomeadamente, porque técnicos oficiais de contas -, na alegação de que o fizeram deliberadamente, na alegação de que «bem sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei», [na alegação] que dessa forma visaram obter vantagens patrimoniais superiores a € 15.000,00, que agiram representando um facto que preenche um tipo de crime, e que actuaram com intenção de o realizar, isto é, a assistente ao alegar que na prática de tal ilícito, os denunciados agiram com conhecimento de causa e com intenção de obtenção de benefícios a que não tinham direito, preterindo o cumprimento de obrigações, mormente declarativas, a que estavam adstritos ou falseando o seu cumprimento, por meio de alteração de factos, sabendo que a sua conduta era e é punida por lei, preenche [também quanto ao crime de fraude fiscal respeita] o elemento subjectivo.
XIII Encontram-se, no que ao crime de fraude fiscal, p. e p. no art. 103.° do RGIT, respeita, alegados e demonstrados todos os elementos (objectivo e subjectivo) integradores do respectivo tipo legal [de crime], designadamente sob o prisma volitivo e intelectual, e que, a provarem-se em julgamento, determinarão a inexorável condenação dos [a constituir] arguidos, necessariamente - como bem caracterizado - co-autores materiais. O Tribunal a quo violou assim o disposto no art. 14.° do CP e no art. 287.°, n.ºs 2 e 3 do CPP.
XIV O requerimento de abertura de instrução contém a narração dos factos, no tocante aos elementos factuais objectivos e subjectivos, relevantes para a imputação, em co-autoria material, dos crimes de falsas declarações e fraude fiscal aos denunciados, F.A. e M.P., e dos crimes de burla fiscal e fraude na obtenção de subsídio, em autoria material, a F.A. , pelo que não podia ter sido declarado inadmissível, por falta de objecto, como decidido no despacho recorrido.”

O M.º P.º veio responder ao recurso, formulando como conclusões:
“1- Ao contrário do que pretende a Assistente, ora recorrente, o requerimento de abertura de instrução que apresentou não procede à narração (acusatória) completa, ainda que sintética, dos factos imputados, em especial omitindo os elementos factuais subjectivos integradores dos crimes que pretende ver imputados ao arguidos;
2- Ora, o requerimento de abertura de instrução deve ter a estrutura formal de uma acusação, como desde logo da estrutura acusatória do processo, devido à qual a actividade do tribunal se encontra delimitada pelo objecto fixado na acusação, em consonância com as garantias de defesa do arguido (artigo 32.° n.° l e n.°5 da CRP), salvaguardando de um arbitrário alargamento do objecto do processo e permitindo ao arguido a preparação da defesa no respeito pelo princípio do contraditório;
3- Em concreto, é forçoso concluir que não foram cumpridas as exigências previstas pelo disposto no artigo 287° n°2 ex vi artigo 283° n°3 ais. b) e c), ambos do CPP;
4- Acresce que, ao contrário do que propugna a Recorrente, o requerimento de abertura de instrução não é passível de qualquer convite ao aperfeiçoamento, pelas razões de preterição de prazo e de constitucionalidade antes invocadas e melhor descritas no acórdão do STJ (fixação de jurisprudência) n.°7/2005 e no acórdão do Tribunal Constitucional n° 389/2005.
5- Impondo-se, em consequência, a rejeição do requerimento de abertura de instrução por ser legalmente inadmissível, nos termos do disposto no artigo 287.° n.°3 do CPP;
6- Pelo que não merece qualquer reparo, devendo ser confirmado, o douto despacho recorrido que rejeitou a abertura da instrução;
7- Em consequência sendo o recurso julgado improcedente.”

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto elaborou parecer em que propugna pela procedência apenas parcial do recurso e por relação a um dos crimes imputados no requerimento de abertura e instrução.

Dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, não foi oferecida resposta ao parecer pelo assistente/recorrente.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É do seguinte teor o despacho recorrido:
“Notificada do despacho de arquivamento proferido nos presentes autos pelo Digno Magistrado do Ministério Público a fls. 218-224, veio F. B. apresentar requerimento para abertura de instrução, no qual expõe, além do mais e enquanto assistente as razões de discordância relativamente a tal despacho de arquivamento.
Cumpre apreciar o requerimento apresentado.
O exercício da ação penal compete ao Ministério Público (art. 48° do CPP), que, findo o inquérito determinará o arquivamento, se tiverem sido recolhidas provas de não se ter verificado o crime, de o arguido o não ter praticado ou for legalmente inadmissível o procedimento e, ainda, se não houver indícios bastantes da sua verificação ou de quem foram os agentes (art. 277°, n°s 1 e 2 do CPP); se, pelo contrário, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, deduzirá acusação contra este (art. 283°, n° 1, do CPP).

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286°, n° 1 do CPP), podendo ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público tiver deduzido acusação; e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art. 287°, n° 1, als. a) e b) do CPP).

O requerimento para abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e de outros se espera provar (art. 287°, n° 3).

Assim sendo, o requerimento de instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: a investigação autónoma mas autónoma dentro do tema fatual que lhe é proposto através do referido requerimento, como se deu nota no Acórdão da Relação de Lisboa de 27/01/2004, proferido no processo n° 840/03, disponível in www.dgsi.pt).

O processo penal tem estrutura acusatória, sendo o seu objeto fixado pela acusação, que assim delimita a atividade cognitória e decisória do Tribunal; esta vinculação temática do Tribunal tem a ver fundamentalmente com as garantias de defesa, protegendo o arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objeto do processo e possibilitando-lhe a preparação da defesa no respeito pelo princípio do contraditório.

Deduzida acusação, o arguido fica a saber qual o objeto do processo, quais os factos que lhe são imputados.

Requerida a instrução pelo assistente relativamente a factos de que o Ministério Público se tenha abstido de acusar, o respetivo requerimento tem de enunciar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, "que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e a elaboração da decisão instrutória" (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 9.a edição, pág. 541).

A atividade cognitória do juiz de instrução está limitada, pois, pelo objeto da investigação (no caso de não ter havido acusação, pelos factos que o assistente pretende provar), o que implica a absoluta necessidade da respetiva enunciação no requerimento de instrução, até para possibilitar a sua realização.

Na realidade, como sublinha o Dr. Souto de Moura (in "Jornadas de Direito Processual Penal", p. 120) "se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber quais são os factos que o assistente gostaria de ver acusados (...).

Aliás, um requerimento de instrução sem fatos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objeto (cfr. Ac. do TRE, de 17/04/2012, proferido no processo n° 138/10.6PAETZJB1, disponível in www.dgsi.pt que aqui acompanhamos de perto e que vai em sentido análogo à jurisprudência dominante).

No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Germano Marques da Silva (in "Do Processo Penal Preliminar", p. 264): "O juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação do Ministério Público (...)".

O requerimento para abertura de instrução formulada pelo assistente constituiu, substancialmente, uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo Ministério Público) que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Deve, pois, dar cumprimento ao disposto no art. 283.°, n.° 3 do CPP.

Que assim é resulta do disposto nos arts. 303° e 309° do CPP, onde se prevê a alteração não substancial e substancial dos factos constantes do requerimento para abertura de instrução, cominando-se com nulidade a decisão instrutória "na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos ... no requerimento para abertura de instrução".

No caso vertente, a assistente refere os pontos pelos quais discorda das conclusões e decisão do Ministério Público, referindo factos e simultaneamente o direito, sendo que a descrição feita por aquela não narra factualmente os acontecimentos (remete para os factos que verteu na sua queixa crime oportunamente apresentada) nem os elementos subjetivos dos ilícitos por um lado, de falsas declarações e fraude fiscal e por outro, de burla fiscal e fraude na obtenção de subsídio que pretende ver imputados os primeiros ilícitos a ambos os arguidos e os últimos ilícitos mencionados também ao arguido F.A.  que, por isso, não são passíveis nem de serem comprovados em sede de produção de prova nem de serem rebatidos pelos próprios arguidos.

Salienta-se que quanto aos crimes que a assistente imputa a respectiva prática a ambos os arguidos, a mesma não esclarece se estes praticaram os factos dos autos em autoria material ou em co-autoria.

Com efeito, da acusação deve conter a narração dos fatos relevantes para a imputação do crime, abrangendo todos os elementos fatuais (objetivos e subjetivos) que constituam pressupostos da responsabilidade criminal e a determinação da espécie e da medida da sanção, sob pena de nulidade e de ser manifestamente infundada.

Neste sentido, vejam-se, entre outros, os seguintes arestos sumariados em www.dgsi.pt:
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30.09.2009, proferido no proc. n° 910/08TAVIS.CI
"1. São os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do caráter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência grosseira.
2. Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o fato criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).";
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6.12.2010, proferido no proc. n° 1211/09.4TAAVV.G1
" I) O dolo constitui matéria de fato e, por isso, têm de ser devidamente alegados os fatos donde tal se possa concluir. II) Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo. III) Admitir um requerimento de instrução completamente omisso quanto ao elemento subjetivo do crime imputado ao arguido e prosseguir com a instrução estando o juiz limitado nos seus poderes cognitivos por esse requerimento, seria praticar ato inútil, o que é proibido por lei - art. 137,°do C. P. Civil, ex vi do art. 4º do CPP). "

No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Germano da Silva, segundo o qual " (...) Na instrução, o juiz está limitado pelos fatos da acusação e, como entendemos, também pela sua qualificação jurídica" (vd. "Curso de Processo Penal", vol. III, p. 161).

No caso em apreço, o requerimento de abertura de instrução não contém a narração dos fatos relevantes para a imputação dos crimes de falsas declarações, fraude fiscal, burla fiscal e fraude na obtenção de subsídio, designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação do agente, tal requerimento omite por completo os elementos fatuais subjetivos, pressupostos da responsabilidade criminal.

Em face do exposto, resulta que os arguidos não poderiam ser pronunciados com base no requerimento para abertura de instrução tal como está formulado pela assistente.

Conclui-se, pois, de todo o exposto, que a presente instrução é inadmissível por falta de objeto, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no art. 287°, n.º 3 do CPP, rejeito o requerimento de abertura de instrução.”
 
Se bem que o essencial da argumentação tecida no despacho recorrido como fundamento da rejeição do requerimento de abertura de instrução assente na omissão, pela requerente assistente, de narração dos fatos relevantes para a imputação dos crimes de falsas declarações, fraude fiscal, burla fiscal e fraude na obtenção de subsídio, designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à actuação do agente, omissão essa que é apontada como completa quanto aos elementos factuais subjectivos, importa apreciar questão prévia processualmente relevante, suscitada no parecer do Exmo. PGA que pode obstar à necessidade de apreciação daquela omissão e que se traduz na legitimidade da assistente, para e por relação a este estatuto, no tocante aos crimes de falsas declarações do art.º 348º A do CPenal e de burla tributária contra a Segurança Social do art.º 87º do RGIT que pretendia, por via de decisão final da instrução, ver imputada na decisão instrutória aos denunciados.

Nos termos do disposto no art.º 68.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, podem constituir-se assistentes, no processo penal, os ofendidos, ou seja, os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

Durante largo tempo, prevaleceu na jurisprudência o entendimento de que o art.º 68.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal consagra o conceito restrito de ofendido: este seria, apenas, o titular do interesse, directa, imediata ou predominantemente tutelado pela norma incriminadora em causa. Aqueles que sejam considerados titulares de direitos ou interesses (só) reflexa ou indirectamente protegidos por determinada infracção criminal não teriam legitimidade para intervir como assistentes.

Era com base neste entendimento que se negava aos particulares o direito de intervirem como assistentes em processos que tivessem por objecto crimes de falsificação de documentos, de falsidade de depoimento ou declaração, de denúncia caluniosa, de insolvência dolosa, etc. [cfr., entre outros, o acórdão do STJ de 12.06.1998 (CJ/Acs. STJ, VI, T. II, 214), da Relação do Porto, de 26.04.2000 (CJ XXV, T. II, 242) e acórdão da Relação de Coimbra, de 03.05.2000 (BMJ 497.º, 449), acórdão da Relação do Porto, de 28.03.2001 (CJ XXVI, T. II, 218) e acórdão da mesma Relação do Porto, de 24.10.2001, publicado, com uma anotação de Isabel São Marcos, na Revista do Ministério Público, n.º 91, 171 e segs.].

No entanto, uma outra corrente defendia que, encarando-se o bem jurídico-penal como um valor corporizado ou encabeçado no seu concreto portador, em quase todos os crimes é possível ver “uma dupla referência do bem jurídico à comunidade e ao portador individual, de sorte que, tratando-se de crimes em que o interesse jurídico protegido possui uma estrutura plural ou complexa (…) não haverá, de facto, razão bastante para recusar aos particulares em que o valor tutelado pelo tipo (ainda e também) se objectiva a qualidade de titular do bem jurídico, logo de ofendido para efeitos da sua constituição como assistente”.

Esta foi a solução acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2003, em que se faz notar que só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se poderá afirmar se é admissível a constituição como assistente, pois a “análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente”.

Em aplicação de tal princípio, tem sido reconhecida, pelo Supremo Tribunal de Justiça, legitimidade aos particulares, prejudicados por certos ilícitos, para se constituírem assistentes, apesar da natureza eminentemente pública do bem jurídico protegido, como foi já o caso dos crimes de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal (cfr. o aludido Acórdão n.º 1/2003, de 16/01/2003), de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal (cfr. Acórdão n.º 8/2006 do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, DR série I-A de 28/11/2006: «… o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador»), de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391.º do Código de Processo Civil e 348.º, n.º 2, do Código Penal (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2010, D.R. n.º 242, Série I de 2010-12-16: « …o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente») ou ainda do crime de denegação de justiça (cfr. ac. do STJ de 26/10/1995, in CJ, ano IV (STJ), 3, 214), sendo ainda reconhecida essa mesma legitimidade (apesar de algumas decisões discordantes), nos crimes de prevaricação - independentemente do disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 68.º, do CPP, nestes dois últimos casos -, violação de segredo de justiça, violação de segredo fiscal, contrafacção, manipulação de mercado, etc. (cfr. autor e obra citados).

No caso, considera a assistente requerente da instrução que os factos denunciados [F.A.  e M.P. , em 31.05.2014, em 23.07.2014 e em 31.05.2015, declararem-se "unidos de facto" nas declarações de IRS dos anos 2013 e 2014, apresentadas via plataforma online, mentem declarando/atestando falsamente à Autoridade Tributária estado a que a lei atribui efeitos jurídicos.» «bem sabiam os denunciados, não podendo, nomeadamente em resultado da sua formação/actividade profissional, invocar desconhecimento, que o estado civil é um elemento manifestamente decisório, com efeitos jurídicos indiscutíveis na determinação da matéria colectável em sede de IRS e, consequentemente, na liquidação deste imposto, conforme arts. 13.° e ss. do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS)», «agiram livre e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei»], eram, em abstracto, subsumíveis à previsão incriminadora do art.º 348ºA do Código Penal.

Como resulta da própria argumentação da recorrente, a falsidade declarada e que está no cerne da imputação do ilícito, evidenciava-se materialmente na declaração modelo dirigida ao Fisco para efeitos de IRS e incidiu sobre o estado civil desses declarantes.

O citado artigo 348ºA CP insere-se no capítulo dos crimes contra a autoridade pública.

Por isso, não pode haver dúvidas de que com essa incriminação se tutela um valor supra individual – precisamente a autonomia intencional do Estado na realização da justiça.

Mas, como é geralmente reconhecido, não está excluído que em qualquer dos tipos incriminadores agrupados sob aquela designação (“crimes contra a realização da justiça”) se possa encontrar tutela para interesses ou bens jurídicos de cariz individual.

Assim foi entendido no acórdão do STJ, de 12.07.2005 (CJ/Acs. STJ, XIII, T. II, 238) em que se pondera que, sendo a falsidade de depoimento um crime contra a realização da justiça, “o prejuízo de terceiro condiciona a moldura penal abstracta e a possibilidade de dispensa de pena, através da retractação”, pelo que, “se num caso concreto, o agente com a falsidade de depoimento causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente”

Se a falsidade de depoimento se repercute directamente na esfera jurídica da pessoa que o agente visou prejudicar, causou ou procurou causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, então, a esta deve ser reconhecida legitimidade para intervir como assistente no respectivo processo penal, enquanto titular dos interesses que a lei penal tem - também - especialmente por fim proteger.

No caso de que nos ocupamos, a menção inserida na declaração modelo para IRS dizia respeito ao estado civil dos ali declarantes, mais especificamente do declarante F.A. . Ora, dessa mera menção ali declarada pelo referido FP não resulta dos autos que adviesse qualquer imediato prejuízo, em primeiro lugar, para a administração fiscal na medida em que não se mostra demonstrado nos autos, nem alegado pela própria assistente, que daí resultasse qualquer arrecadação de menos imposto. A única alegação que a assistente faz em resultado daquela desconformidade na declaração reside na rejeição pelos serviços tributários da sua própria declaração fiscal de IRS por incompatibilidade com a apresentada pelos denunciados.

Extraímos daqui que o prejuízo que adveio para a assistente será apenas um dano colateral e não directamente resultante da inserção/declaração errada do estado civil dos declarantes.

Por outro lado, na medida em que estamos a falar de crime contra a autoridade pública claramente a assistente não é titular do interesse, directa, imediata ou predominantemente tutelado pela norma incriminadora em causa pelo que a sua admissão como assistente, claramente, não poderia abranger esta concreta matéria/crime e, consequentemente, ver-se investida com legitimidade nos termos do art.º 287º n.º 1 al. b) CPP para requerer a instrução quanto a estes factos e ilícito.
 
Outro dos crimes que a assistente pretendia ver imputados aos denunciados na decisão instrutória a proferir a final seria o de burla tributária contra a Segurança Social p. e p. art. 87.° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e de crime de fraude na obtenção de subsídio p. e p. no art. 36.° do D.L n.º 28/84, de 20 de Janeiro considerando a recorrente, que F.A. , por meio de falsas declarações, no pedido de reconhecimento do direito e atribuição do respectivo subsídio parental, meio idóneo para o efeito, levou a Segurança Social a determinar o reconhecimento e a concessão (e pagamento) daquele (atribuição patrimonial da qual resultou enriquecimento de F.A.  e empobrecimento, na mesma medida, da Segurança Social) e também  que F.A.  requereu e obteve - para os períodos de 20.12.2013 a 26.12.2013, de 27.12.2013 a 02.01.2014, de 03.01.2014 a 03.01.2014, de 06.01.2014 a 10.01.2014, de 13.01.2014 a 16.01.2014 e de 18.04.2014 a 17.05.2014 - subsídio de protecção social na parentalidade, pelo período total de 50 (cinquenta) dias, sem ter deixado de trabalhar no período de tempo obrigatório e facultativo (50 dias) de gozo de licença parental e tendo, ao que tudo indica, recebido, para esse mesmo período, vencimento e o subsídio (na ordem dos € 15.000,00).

Quanto ao concreto crime de burla tributária imputado, o mesmo está estruturado como um crime de resultado, aparecendo como um verdadeiro tipo de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada (e não livre), mas, simultaneamente, estabelece elementos integradores mais formais. São elementos constitutivos deste crime de burla tributária os seguintes:
- Uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;     
- Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.   

Como escrevem Jorge Lopes de Sousa e M. Simas Santos, in Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2.ª Edição, pág. 547, aproxima-se este tipo legal do crime de burla previsto no art. 217 do Código Penal, no entanto, não refere expressamente o erro ou engano provocado, elementos que, não obstante, estão presentes na referência aos meios fraudulentos, os susceptíveis de provocar astuciosamente o tal erro ou engano.   De acordo com a configuração do tipo, exige-se o uso de um meio fraudulento “activo” ou seja uma conduta astuciosa comissiva que directamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente.

Ora, a consulta dos autos, mormente o que consta do documento de fls. 24 e seguintes (cópia de pedido de concessão de subsidio de parentalidade) apenas permite concluir, por relação ao alegado pela assistente, que efectivamente existiu um pedido de atribuição de subsídio por parte do denunciado com a pretensão então formulada do respectivo gozo em períodos diversos, mas já não a respectiva concessão e que o montante correspondentemente recebido tenha atingido o montante alegado de €15.000,00. Este montante revela-se muito difícil de ter sido atingido face ao disposto no art.º 27.º do DL 91/2009 de 9 de abril – “O montante diário dos subsídios previstos no presente capítulo é calculado pela aplicação de uma percentagem ao valor da remuneração de referência do beneficiário.” – e o tempo alegado de duração – 50 dias – isto depois do confronto com a declaração para IRS relativa aos anos de 2013 e 2014 constantes dos autos na parte relativa à remuneração anual ali declarada pelo denunciado.

Ainda quanto a este aspecto específico dos crimes em questão, inexiste qualquer prova nos autos, para além da referência feita pela própria assistente, de que o denunciado efectivamente desempenhou normalmente a sua actividade profissional durante os períodos temporais para e em que o subsídio parental foi requerido e lhe terá sido atribuído.

Perguntamos ainda: no momento da apresentação do requerimento de atribuição daquele subsídio parental, constante de fls. 24 dos autos, houve prestação por parte do denunciado de alguma informação falsa ou a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante? Nada disso se mostra indiciado nos autos.

Persistirá apenas a questão, assente unicamente na declaração da assistente, de que o beneficiário denunciado terá trabalhado efectivamente naqueles períodos, o que manifestamente é muito pouco como indiciador de eventual fraude, na medida em que esse facto teria forçosamente de ter ocorrido após a atribuição do próprio subsídio. Casos e configurasse que essa intenção já estivesse presente no desígnio do denunciado em momento anterior ou contemporâneo ao pedido do subsidio - o que não se mostra sequer alegado e muito menos provado – então a questão, a nível da imputação jurídica, seria sempre reconduzível ao crime de burla tributária na medida em que o requerente do subsídio fazia uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações.

Independentemente disso, voltando à questão da legitimidade de a recorrente intervir como assistente nos autos é por demais evidente que não poderia tal estatuto abranger o crime de burla tributária, na medida em que nas infracções tributárias o único interesse protegido é única e evidentemente o património público, sendo mesmo um dos mais fundamentais “...interesses do Estado na correcta e mais larga recolha de impostos ou de receitas da Segurança Social...”, tem que concluir-se não ter a denunciante, ora recorrente, qualquer interesse autónomo do principal que determinasse a admissão como assistente em processo penal, nos termos do artº 68º, n.º 1, al. a) do C.P.Penal e, por essa via, ver-se investida com legitimidade nos termos do art.º 287º n.º 1 al. b) CPP para requerer a instrução quanto a este concreto ilícito.

Pretende ainda a recorrente que o requerimento de abertura de instrução conterá todas as referências factuais, objectivas e subjectivas, tendentes à imputação aos denunciados de um crime de fraude fiscal, p. e p. no art. 103.° do RGIT, assente no seguinte:
- F.A.  e M.P. , aquando da apresentação da declaração de IRS referente a 2013, se declaram unidos de facto quando estavam divorciados um do outro e quando, já em 2013, F.A.  vivia em condições análogas à dos cônjuges com a assistente, com a qual casou em 2014;
- F.A.  e M.P. , aquando da apresentação da declaração de IRS referente a 2013, falsamente declarando-se unidos de facto, não declaram as pensões recebidas pelos filhos;
- F.A.  e M.P. , em 2013, efectuaram as partilhas por divórcio, omitindo (alterando factos e valores), na declaração de IRS referente a este ano, mais-valias daí decorrentes;
- F.A. e M.P. efectuaram declaração de substituição da declaração de IRS referente a 2013, mantendo os mesmos factos falsos;
- no requerimento de fls. 101 e 102, F.A.  e M.P. , afirmam que já tinham promovido a correcção da declaração referente ao período de 2013, ao passo que o Chefe do Serviço de Finanças de Oeiras 2 - MCP(em depoimento prestado 29.03.2016, momento posterior ao da apresentação do aludido requerimento) - diz que com respeito à declaração de 2013 (a mesma citada no dito requerimento) ainda está pendente e embora tenha sido pedida a junção da declaração de 2013, à Administração Tributária, esta só juntou a de 2014;
- os denunciados declaram que, no mês de Julho do ano 2013 e pelo valor de € 122.375,00, F.A.  alienou uma quota correspondente a 50% do prédio urbano inscrito sob o artigo 2... da freguesia 1...0, que adquirira no mesmo mês, do mesmo ano e pelo mesmo valor, isto é, no mês de Julho de 2013, por € 122.375,00;
- os denunciados declaram que, no mês de Julho do ano 2013 e pelo valor de € 57.460,00, M.P.  alienou uma quota correspondente a 50% do prédio urbano inscrito sob o artigo 3... da freguesia 8...4, que adquirira no mesmo mês, do mesmo ano e pelo mesmo valor, isto é, no mês de Julho de 2013, por €57.460,00;
- os denunciados registaram a seu favor o prédio inscrito na matriz sob o artigo 2..., em 1998, e, em 2003, o prédio inscrito na matriz sob o artigo 3...; [do que resulta a falsidade, nomeadamente, da data da aquisição destes prédios, declarada em sede de mais valias, referidas imediatamente acima, por ambos os denunciados]
- F.A.  deveria, com referência ao ano 2013, ter declarado a venda, no mês de Julho do ano 2013 e pelo valor de € 122.375,00, de uma quota correspondente a 50% do prédio urbano inscrito sob o artigo 2... da freguesia 1.....0, que adquirira, em Junho de 1998, pelo valor de € 49.879,78;
- importava considerar, por F.A. , uma mais-valia de € 51.046,92, tributável em 50% (art. 43.°, n.° 2 do CIRS);
- o montante do benefício obtido terá excedido o valor de € 15.000,00; factualiza o elemento objectivo do crime de fraude fiscal.
Toda a criminalidade fiscal visa combater a fuga ao pagamento de obrigações tributárias e, por isso, o bem jurídico tutelado pelo crime de fraude fiscal, reveste natureza complexa, visando a preservação da transparência e verdade fiscal e o dever de cidadania de pagar impostos e, por essa via, o património do Estado.

À semelhança do que mencionámos acerca do crime de burla tributária, também quanto ao de fraude fiscal, a que nos vimos referindo, tem que concluir-se não ter a denunciante, ora recorrente, qualquer interesse autónomo do principal que determinasse a admissão como assistente em processo penal, nos termos do art.º 68º, n.º 1, al. a) do C.P.Penal e, por essa via, ver-se investida com legitimidade nos termos do art.º 287º n.º 1 al. b) CPP para requerer a instrução quanto a este concreto ilícito.
 
Por força do que vimos defendendo e embora por fundamentos diferentes existe razão para a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por força de falta de legitimidade da assistente para requerer a instrução pelos indicados crimes públicos pois, apesar de a recorrente os poder denunciar, não tem legitimidade para intervir nos autos como assistente, sendo que o despacho que genericamente o admitiu como tal, não faz caso julgado formal quanto à legitimidade.

Assim, tendo sido arquivado pelo M.º P:º o inquérito quanto a estes crimes, e não podendo a denunciante constituir-se assistente, também não pode requerer a abertura de instrução por esses crimes (art.º 287º, n.º 1-b) do CPP), pelo que o recurso não merece provimento, sendo de confirmar o despacho recorrido.

III.
Face ao exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal em julgar não procedente o recurso da assistente F. B. e, embora com fundamentos diferentes, manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da assistente com taxa de justiça em 3 UC.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.


Lisboa,  13 de Novembro de 2018.


João Carrola
Luís Gominho