Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
855/16.7T8AMD.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: - Não se realiza audiência prévia quando o processo tiver de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, já debatida nos articulados, nestes se incluindo o articulado ou requerimento apresentado pelo autor, na sequência de convite do tribunal, ao abrigo do princípio do contraditório e da adequação formal, para se pronunciar sobre a matéria da exceção (artigos 3.º e 547.º do CPC).
II - A petição inicial, em especial o pedido, deve ser interpretada, à luz do princípio da prevalência do fundo sobre a forma, procurando-se identificar a pretensão materialmente formulada.
III - Percebendo-se que o autor, arrendatário, pretende, apenas e só, ver reconhecido o seu direito de preferência na compra e venda da fração arrendada, conforme peticionado e fundado na causa de pedir descrita, não se pode considerar inepta a petição inicial apenas porque o pedido não se mostra corretamente formulado, nele se incluindo o de anulação da referida venda e cancelamento do registo de aquisição a favor dos réus compradores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

AR... (Autora) interpõe recurso de apelação do despacho saneador, proferido na ação declarativa com processo comum que intentou contra MF... e mulher, MT... (1.ºs Réus), LV... e mulher, MR... (2.ºs Réus), despacho que julgou procedente a exceção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, absolvendo os Réus da instância.
Na petição inicial, a Autora alegou, em síntese, os seguintes factos:
- a Autora é arrendatária (habitacional) do fração autónoma designada pela letra “M” correspondente ao 3.º andar frente para habitação do prédio sito na Rua E..., n.º ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º 00... da freguesia da Venteira, por lhe ter sido subarrendada pela 1.ª Ré MT..., tendo posteriormente esta Ré e o Réu seu marido adquirido a propriedade dessa fração;
- em 08-07-2015, o 1.º Réu enviou à Autora uma carta a comunicar a intenção de proceder à venda da fração pelo preço de 42.000 €, interpelando-a para exercer o direito de preferência no prazo de 8 dias, ao que a Autora respondeu que não dispunha daquele montante mas que estava interessada na compra, tendo os senhorios ficado de a contactar mais tarde para contratarem com ela;
- em 01-12-2015, a Autora recebeu uma carta registada dos 2.ºs Réus, MR... e LV..., em que lhe comunicavam que tinham adquirido a fração, apresentando-se como os novos senhorios;
- surpreendida, a Autora requereu apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, tendo a patrona nomeada obtido cópia da documentação pela qual a Autora veio a tomar conhecimento que o negócio de compra e venda celebrado entre os Réus envolveu duas frações (a “M” e a “N”), pelo valor total de 57.500 €, sendo que o valor patrimonial da fração que está arrendada à Autora é de 31.720 €, desconhecendo qual possa ser o preço da venda desta.
A Autora expôs as suas razões de direito, invocando os artigos 1091.º e 1410.º do CC, concluindo ser titular do direito de preferência, que diz ter sido violado, razão pela qual intentou a presente “ação de preferência para anulação do contrato de compra e venda e para cancelamento das inscrições feitas a favor dos compradores”.
Comprometeu-se a depositar nos 15 dias seguintes à propositura da ação o valor pelo qual foi efetuada a venda, atendendo ao valor indicado pela Autoridade Tributária (cuja notificação requereu para vir indicar o preço da venda e o montante do IMT pago).
Terminou formulando pedido nos seguintes termos:
“a) Seja julgada procedente por provada a presente acção, reconhecendo-se o direito de preferência da A., declarando-se nulo o contrato de compra e venda acima junto sob o doc. 9 e, por consequência seja decretado o cancelamento do registo predial já efectuado a favor dos Réus compradores, MR... e LV...;
b) A citação dos Réus para que havendo interesse contestarem a presente acção, dentro do prazo legal e sob pena dos efeitos da confissão e/ou da revelia;
c) A condenação dos Réus MT... e MF... a venderem á A. pelo mesmo preço a pelas mesmas condições a fração autónoma designada pela letra M;
d) Caso se verifique no decurso dos autos que os Réus litigam de má-fé, devem os mesmos ser condenados como litigantes de má-fé em multa e numa indemnização fixada em montante nunca inferior a € 20.000,00 (dois mil euros), nos termos do estipulado nos arts. 542.º e 543.º do CPC;
e) Notificação à AT para que em 10 dias junte aos presentes autos comprovativo do valor da venda da fração M em apreço e comprovativo do pagamento do respetivo IMT.”

Apenas os 2.ºs Réus apresentaram Contestação, cujo teor se dá por reproduzido, defendendo-se por exceção e por impugnação, arguindo designadamente a ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido e dedução de pedidos incompatíveis, bem como a caducidade e a insuficiência do depósito do preço devido efetuado pela Autora, pugnando pela improcedência da ação. Mais deduziram pedido reconvencional, indicando para a reconvenção o valor de 3.720,10 €, quantia que reclamam para a eventualidade de procedência da ação.

A Autora replicou.

Em 24-10-2017 foi proferido despacho, onde se refere “tendo sido invocado nos autos a ineptidão da petição inicial e as exceções perentórias de caducidade e de insuficiência de depósito, consideramos que o agendamento de audiência com o exclusivo propósito de oferecer contraditório e conhecer destas matérias se apresenta como propiciador de atos inúteis, que podem ser melhor resolvidos dando a possibilidade da autora se pronunciar, por escrito, quanto ao teor das exceções.
Deste modo, de forma a garantir o contraditório prévio e ao abrigo do princípio da economia processual e da adequação formal, constante do artigo 547.º do CPC, determino a notificação da Autora para, no prazo de 10 dias, se pronunciar expressamente sobre a ineptidão da petição inicial (por ininteligibilidade /contradição entre pedidos e entre pedido e causa de pedir) e sobre as exceções invocadas. Uma vez que a procedência da exceção de ineptidão da petição pode determinar a imediata absolvição da instância, convido a autora a pronunciar-se sobre a possibilidade de conhecimento imediato desta questão”.

Na sua alegação de recurso, a Autora termina, formulando as seguintes conclusões:

1 – A douta Sentença recorrida vai no sentido de por «Ineptidão da Petição Inicial, por ininteligibilidade do pedido e por contradição do pedido com a causa de pedir» ser nulo todo o processo.

2 – Refere a douta Sentença que a nulidade nela apontada é «uma nulidade, que é de conhecimento oficioso nos termos do art. 196 do CPC, devendo sê-lo no despacho saneador (artigo 200.º do CPC)».

3 – E concluiu a douta Sentença que «Pelos fundamentos de facto e de direito acima expostos, o Tribunal julga a petição inicial deduzida pelos autores inepta, pelo que declara a nulidade de todo o processo.»

4 – Quanto à oportunidade da arguição desta nulidade:
De acordo com o disposto no art. 198.º, n.º 1, do NCPC, «As nulidades a que se referem o art. 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º, só podem ser arguidas até à contestação ou neste articulado.»

5 – Na Contestação, os Réus (compradores) invocaram a ininteligibilidade do pedido e a dedução de pedidos incompatíveis entre si e a consequente ineptidão da Petição Inicial, com a nulidade de todo o processo e a absolvição dos RR. da instância.

6 – Todavia, adotaram a seguinte fundamentação:
«1. Bem sabe a A., e não podendo ignorá-lo, que os os 1ºs. RR. e os 2ºs. RR. celebraram entre si, escritura pública de compra e venda de dois imóveis (as fracções autónomas “M” e “N”) por um valor global de 57.500€ (cinquenta e sete mil e quinhentos euros),
2. Juntando a A. para efeitos probatórios do alegado, certidão da referida escritura (ide doc. 9 da PI)
3. Requerendo no seu pedido final, lhe seja reconhecido o seu direito de preferência, declarado nulo o contrato de compra e venda, aliás reflectido no doc. 9 da PI, ou seja, na aludida escritura pública de compra e venda em consequência seja, decretado o cancelamento do registo predial efectuado a favor de LV...e MR....
4. Não dando a A. cumprimento ao previsto no Artigo 417º nº 1, 2 e 3 do C.C.,
5. Com efeito, se alega ser titular de direito de preferência sobre o bem alienado “M”, o que não se concede, é de todo irrazoável que haja a A. accionado com vista à declaração de nulidade de toda a escritura pública,
6. Bem sabendo que nenhum direito lhe assistirá à fracção “N”.
7. Cumprindo que a A. exercesse o seu alegado direito, circunscrito em relação á fração “M”,
8. E caso assim o entendessem, pudessem os 2ºs RR., caso se reconheça serem judicialmente obrigados à preferência, e sem conceder, exigir da A. que a preferência abrangesse todas as fracções autónomas (“M” e “N”), caso as mesmas não fossem separáveis, sem prejuízo apreciável.
9. Por sua vez, é incompatível o pedido final efetuado pela A. no sentido da declaração de nulidade da escritura pública de compra e venda com o pedido que figura no Artigo 20º (numeração da A.) da PI, de “anulação do contrato de compra e venda junto sob o doc 9”, …”passando ela, A., a figurar como compradora”.
10. Sendo ininteligível o pedido deduzido pela A., que ainda cumula, na sua peça processual, pedidos substancialmente incompatíveis entre si,
11. Como sendo o de declaração de nulidade e o de anulação do contrato de compra e venda subjudice.
12. Pelo que, e salvo melhor entendimento, deverá a petição inicial ser julgada como inepta nos termos previstos nas alíneas a) e c) do Artigo 186º do NCPC, e em consequência ser declarado nulo todo o processado e absolvidos os RR. da instância, em conformidade com os n.ºs 1 e 2 als. b) e c) do Artigo 186º e al. b) do Artigo 577º ambos do NCPC.»

7 – O tribunal a quo concluiu pela verificação deste tipo de nulidade (a mais gravosa de todas) mas, baseando-se uma fundamentação totalmente diversa, tal como resulta da douta Sentença recorrida, nomeadamente a pags. 3 e 4 da mesma, para as quais se chama particular atenção.

8 – Assim, muito embora o art. 200.º, n.º 2 do NCPC se refira expressamente: « As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final.»

9 – No entanto, a fundamentação tecida na Contestação dos dois Réus, é completamente diferente da acolhida pela douta Sentença do Tribunal a quo,
Pelo que, por decorrência do art. 196.º NCPC se encontra sanada e arredada qualquer nulidade, tanto as invocadas pelos Réus que contestaram como as referidas na douta Sentença recorrida!

10 – Acresce ainda que, os dois Réus compradores contestaram a petição inicial, sendo que, os dois Réus vendedores não a contestaram nem o poderão já fazer, por já há muito tempo ter terminado o prazo que a Lei lhes confere para o efeito.

11 – Refere a douta Sentença que por «contradição entre o pedido e a causa de pedir configurar uma situação de ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186.º do Código de Processo Civil. Não existe nexo lógico entre a realidade que é alegada e o pedido formulado.»

12 – Não refere contudo, que são completamente diferentes os motivos pelos quais os Réus compradores fundamentaram na Contestação a questão da alegada Ineptidão da P.I., aliás, sobre a alegada fundamentação da ineptidão da P.I. vertida na Contestação não se pronunciou a douta Sentença e também não referiu a mesma se nessa fundamentação existe ou não nexo entre o que é alegado e a conclusão aí retirada pelos Réus no sentido de ineptidão da P.I.!

13 – O que se percebe pela Contestação é que os Réus responderam ao que foi dito na P.I., tendo-a interpretado de forma a que em nada ficaram prejudicados na sua defesa, pelo que, invocaram as nulidades que entenderam, sendo que, as que não invocaram se sanaram (…), tendo até sido bastante diversa a fundamentação da douta Sentença quanto à ineptidão da P.I., razão pela qual, se entende que não poderá ter a alegada ineptidão qualquer acolhimento!!

14 – mais ainda, os Réus também impugnaram os factos alegado na P.I. pela Autora (de notar que há apenas uma única A. e não várias/os Aa. como várias vezes se encontra mencionada na douta Sentença!)

15 – Concluí a douta Sentença recorrida que « Nos termos do artigo 186.' do CPC, é nulo todo o processo quando for inepta a causa de pedir. É inepta a causa de pedir quando, por exemplo, o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.»
Ora, ressalvado o maior e mais devido respeito, a petição inicial é que pode ser inepta (o que também com o maior respeito, não se concebe) e não a «causa de pedir«!

16 – Outro aspecto:
Em momento imediatamente anterior à douta Sentença recorrida, mais concretamente em 24/10/2017, o Mm. Juiz a quo convidou a A. para se pronunciar quanto à ineptidão da Petição Inicial, tendo esta respondido através de Requerimento que juntou aos autos, datado de 09/11/2017-

17 – Será tal procedimento do Tribunal a quo aceitável?
Ora vejamos várias jurisprudência toda no mesmo sentido:
(…) [seguem-se referências jurisprudenciais]

18 – Assim sendo, a acção deveria ter prosseguido sendo julgada no final em Audiência de Julgamento a pretensão apresentada pela A.

19 – Se o Tribunal a quo considerou as contradições entre a causa de pedir/pedido insupríveis (por demasiado graves) então, não deveria ter convidado a A. a aperfeiçoar a P.I.!!
Se o fez foi porque considerou que a P.I. era susceptível de suprimento de «insuficiências ou imprecisões» - art. 590.º, n.º 1 NCPC.
Quando as excepções dilatórias sejam insupríveis o caminho é o indeferimento da P.I. e delas deve conhecer o Despacho Saneador (art. 595.º, n.º 1 – a) NCPC.
Se a P.I. está ao ponto de ser inepta tal é insuprível e não deve ser sujeito a convite de aperfeiçoamento das insuficiências ou imprecisões!
Esse convite só se justifica e impõe fora dos casos de ineptidão da Petição Inicial (…)

20 – É que a ineptidão da P.I. é um vício tão grave que, afecta todo o processo que não é passível de suprimento, salvo no caso do art. 186.º, n.º 3 do Novo CPC, nos casos em que «…se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial».
Ainda mais, fazendo jus ao princípio da «Adequação formal» plasmada no art. 547º do NCPC, citado no Despacho de 24/10/2017, o mandamento é adata [sic] o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim visado.
Pelo que, matar um processo por questões como as alegadas na douta sentença, sendo que, os Réus compreenderam completamente o alegado na P.I. e fizeram valer totalmente a sua defesa nos termos em que o quiseram fazer, é desvirtuar profundamente o próprio Direito e os direitos e os direitos e garantias da A..

21 – A questão da (im)procedência do pedido deveria ser decidido na final, tanto é que, apesar das alegadas contradições entre o pedido e a causa de pedir que os Réus contestaram por terem interpretado «convenientemente» a P.I e em nada se encontram ou foram prejudicados por qualquer desconformidade entre pedidos e/ou entre estes e a causa de pedir.

22 – Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Sentença recorrida, substituindo-se a decisão de ineptidão inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, por outra decisão no sentido de ordenar o legal prosseguimento dos autos até final.

Apenas a 2.ª Ré apresentou alegação de resposta, concluindo da seguinte forma:
1) A A. interpôs recurso de apelação com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo, alegando que o Tribunal a quo havia julgado a petição inicial como inepta e consequentemente, nulo todo o processo alicerçado em fundamentação, diversa da alegada pelos RR.,
2) Sendo que no seu entender, e atentas as diversas fundamentações da sentença e da contestação dos RR., que por decorrência do Artigo 196º do NCPC, se encontrará sanada e arredada qualquer nulidade, incluindo a alegada pelos RR, e a da sentença de que se recorre,
3) Sendo que o despacho saneador não se terá pronunciado sobre a fundamentação da exceção de ineptidão da PI alegada pelos RR,
4) E que não poderia o Tribunal a quo ter empreendido qualquer diligência no sentido da sua sanação como quando convidou a A., proferindo alegadamente um despacho convite ao aperfeiçoamento da P.I., a pronunciar-se sobre a exceção de ineptidão de petição inicial alegada pelos RR. assim como para suprimento de insuficiências ou imprecisões (Artigo 590º n.º 1 do C.P.C.),
5) Uma vez que no entendimento da Recorrente, caso o Tribunal a quo houvesse considerado graves as contradições entre a causa de pedir e o pedido, e insupríveis, não a deveria ter convidado a aperfeiçoar a P.I., convite este que apenas se justificava e impunha fora dos casos de ineptidão da P.I.,
6) Sendo que a improcedência do pedido, na sua óptica, haveria de ser decidida no final, requerendo fosse concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra que ordene o legal prosseguimento dos autos até final.
7) A Recorrida discorda da argumentação expedida pela Recorrente, pois havia alegado na sua contestação que seria ininteligível o pedido deduzido pela A., que cumulou, na sua peça processual, pedidos substancialmente incompatíveis entre si, como sendo o de declaração de nulidade e o de anulação do contrato de compra e venda subjudice, requerendo fosse a petição inicial julgada como inepta nos termos previstos nas alíneas a) e c) do Artigo 186º do NCPC, e em consequência fosse declarado nulo todo o processado e absolvidos os RR. da instância, em conformidade com os n.ºs 1 e 2 als. b) e c) do Artigo 186º e al. b) do Artigo 577°, ambos do NCPC.
8) Entende a Recorrente que o Tribunal a quo não está vinculado ao alegado pelas partes, podendo ter decidido de forma diversa ao excepcionado pelos RR., podendo conhecer oficiosamente das exceções dilatórias, vide Artigo 578º do C.P.C., como sendo a de nulidade de todo o processo por ineptidão de petição inicial decorrente da contradição entre a causa de pedir e o pedido (vide n.ºs 1 e 2 als. b) e c) do Artigo 186º e al. b) do Artigo 577º, todos do C.P.C.
9) Entende a Recorrida que o despacho judicial proferido a 24.10.2017 ( refª. 109194374) não poderá ser considerado um despacho convite ao aperfeiçoamento da petição inicial mas tão somente um despacho para o exercício do contraditório que foi notificado à A. para que a mesma se pronunciasse sobre as exceções deduzidas pelos RR., tanto a dilatória como as peremptórias.
10) Pelo que terá de improceder em toda a linha o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus exatos termos.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Questões a decidir:
1.ª) Da oportunidade do conhecimento, no despacho saneador, da exceção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial;
2.ª) Da ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir (decisão recorrida) ou por outra das razões apontadas (ininteligibilidade do pedido ou contradição entre o pedido e causa de pedir).
***
II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
A factualidade do iter processual relevante é a que resulta do relatório.
A fundamentação da decisão recorrida é, na parte que importa, a seguinte:
“A precedência da ação de preferência tem como consequência a substituição do adquirente pelo preferente na escritura pública de compra e venda, em regra, nas condições estabelecidas entre as partes iniciais.
Ou seja, a procedência da ação de preferência não tem como consequência a destruição do negócio, uma vez que o negócio de compra e venda se mantém, ocorrendo apenas a substituição dos intervenientes, como se a aquisição tivesse sido feita pelos preferentes. Por outro lado, da precedência da ação de preferência não nasce uma obrigação dos obrigados à preferência / incumpridores a celebrar um novo negócio de compra e venda. O contrato de compra e venda mantém-se e os vendedores são confrontados com a substituição dos compradores por efeito da sentença judicial, sem que tenha sido em conta a sua oposição a contratar com os preferentes. O contraente é imposto pela lei e pela sentença que reconhece a preferência.
Contudo, assentando a sua pretensão no exercício do direito de preferência, os autores terminam pedindo a declaração de nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre os réus (o que mais tarde retificam para a declaração de anulação).
Apesar da diferença de regimes, a nulidade e a anulação têm como consequência a destruição retroativa dos efeitos pretendidos pelas partes. O ato nulo não produz ab initio efeitos e o ato anulável produz efeitos enquanto não for destruído, mas, nos dois casos, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente - artigo 289.º do Código Civil.
O pedido dos autores de destruição do negócio de compra e venda celebrado entre os réus (pela nulidade ou anulação) é contrário ao exercício do direito de preferência real, que consiste, como vimos, na substituição dos intervenientes processuais, o que pressupõe a validade do negócio jurídico de compra e venda.
A conclusão que os autores extraem da ação é contrária às suas premissas. Há uma negação recíproca, uma conclusão que pressupõe exatamente a premissa oposta àquela de que se partiu.
Em suma, a contradição que existe está entre a alegação de que exercem um direito de preferência, a serem colocados na posição processual de compradores e o podido de destruição desse mesmo negócio de compra e venda.
Esta contradição entre o pedido e a causa de pedir configurar uma situação de ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186.º do Código de Processo Civil. Não existe nexo lógico entre a realidade que é alegada e o pedido formulado.
Nos termos do artigo 186.º do CPC, é nulo todo o processo quando for inepta a causa de pedir. É inepta a causa de pedir quando, por exemplo, o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.”

Antes de avançarmos para a análise da petição inicial, importa fazer algumas considerações, começando por lembrar que na interpretação das peças processuais apresentadas pelas partes são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do CC, os princípios da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos artigos 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado.
De salientar ainda que, conforme é jurisprudência pacífica, essa interpretação deve ser norteada, além do mais, pelo “princípio da prevalência do fundo sobre a forma”, de maneira a que incorreções ou excessos formais não obstem a que possa ser considerada a materialidade do que é efetivamente pretendido pelas partes no processo.
Veja-se, a este respeito o Acórdão do STA de 08-01-2014, no processo n.º 032/13, cujo sumário citamos:“(…) os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (cfr. art. 20.º da CRP), motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão.” – www.dgsi.pt

Nos termos do art. 186.º, n.ºs 1 e 2, do CPC da petição, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, sendo inepta a petição quando “falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
Como é consabido e decorre designadamente do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 3 e 4, do CPC, o pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende obter e a causa de pedir corresponde ao conjunto de factos jurídicos/factos essenciais ou factos substantivamente relevantes em que se fundamenta tal pretensão.
O autor deve, pois, concretizar facticamente, em termos inteligíveis, a sua pretensão, não sendo suficiente o apelo a conclusões jurídicas, conceitos legais ou a invocação do direito sem indicação da sua origem.
Mas, conforme previsto no n.º 3 do referido art. 186.º, “(S)e o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.”
A nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial constitui uma exceção dilatória nominada conducente à absolvição dos réus da instância - cf. artigos 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. b), todos do CPC.
De referir ainda não ser legalmente admissível o convite ao aperfeiçoamento de petição inicial inepta, conforme resulta da lei e é jurisprudência pacífica. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 18-10-2016, cujo sumário, pelo seu interesse, se passa a citar: “Não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590º, nºs 2, al.b), 3 e 4 do nCPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186º do mesmo diploma, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.” – disponível em www.dgsi.pt

Destas considerações resulta desde logo não assistir razão à Autora quando afirma que o Tribunal recorrido não podia ter conhecido da exceção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.
Reconhecemos que existem alguns lapsos na decisão recorrida, evidenciados na alegação de recurso (mormente, as referências a “causa de pedir inepta” ou “exceção de ineptidão da petição inicial”), mas lapsos todos cometemos, sendo certo que a ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo, o que constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso no despacho saneador. Assim, pretender que dela não podia o Tribunal a quo ter conhecido é incompreensível.
Como incompreensível é a referência ao convite por parte do Tribunal recorrido ao aperfeiçoamento da petição inicial. É verdade que sendo inepta a petição inicial (o que adiante se apreciará se é o caso), não seria admissível o convite ao seu aperfeiçoamento (conforme acórdãos citados na alegação de recurso). Porém, não consta dos autos nenhum despacho de aperfeiçoamento, tão só um despacho em que se convida a Autora a pronunciar-se sobre as exceções deduzidas na Contestação.
De salientar que não obstante as considerações tecidas nesse despacho sobre a inutilidade da audiência prévia, a verdade é que o Tribunal não dispensou a audiência prévia, porventura por ter entendido (embora não o tenha afirmado expressamente) que seria um caso de não realização de audiência prévia ao abrigo do artigo 592.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Ora, atento o convite dirigido à Autora, nesse despacho, para exercício do contraditório, com invocação da adequação formal, não se pode considerar inoportuna a prolação de despacho saneador, na medida em que neste se julgou procedente uma exceção dilatória, já debatida assim nos articulados.
Resta saber se bem.

Analisemos, então, a petição inicial em apreço, a fim de decidir se a mesma é inepta.
Começando pela ininteligibilidade do pedido, lembramos que já Alberto dos Reis, no Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, obra que, nesta parte, mantém plena atualidade, explicava em que consistia o pedido ininteligível, dizendo que se tratava de formulação “obscura”: “o autor formula o pedido; mas formula-o em temos tais, que não chega a perceber-se qual é o seu pensamento, qual é o efeito jurídico que se propõe obter (…) O pedido deve ser formulado com toda a precisão, para que a petição possa considerar-se modelar, sob este aspecto; mas se, não obstante a falta de precisão completa ou apesar de haver alguma imprecisão, puder ainda assim saber-se qual é o pedido, o tribunal não deverá julgar inepta a petição. Petição inepta é uma coisa, petição incorrecta é outra. O melhor, nem toda a incorrecção, nem toda a imperfeição do requerimento inicial conduz à ineptidão. O autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter? A petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta”.
Assim, sucede, desde já adiantamos, com a petição inicial em apreço.
Com efeito, a procedência de ação de preferência (na venda do imóvel arrendado) tem como consequência a substituição do adquirente pelo preferente no contrato de compra e venda e não a anulação deste negócio. Mesmo o cancelamento do registo de aquisição não faz qualquer sentido. A este respeito veja-se a deliberação do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e Notariado, no P.º R. P. 170/2008 SJC-CT, relatada por Maria Madalena Rodrigues Teixeira, disponível em www.irn.mj.pt. Logo na nota de rodapé, se faz o devido enquadramento jurídico:
“Como tem sido assinalado por diversa doutrina e jurisprudência, da decisão judicial de procedência obtida em acção de preferência promana um efeito jurídico novo, que consiste na substituição do adquirente pelo preferente na titularidade do direito que o primeiro adquiriu sobre a coisa sujeita à prelação (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, pág. 383), e é justamente este efeito que pode assumir relevância tabular, concretamente quando se traduza na alteração da estrutura subjectiva de um direito sujeito a registo (art.s 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do CRP) em regra, nas condições estabelecidas entre as partes iniciais.
A declaração judicial de que o autor é o titular do direito não tem por efeito a constituição de um novo direito ou sequer a aquisição de um direito pré-existente, antes visa significar a substituição do adquirente pelo preferente no negócio jurídico realizado, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente. O efeito do exercício da preferência não é a aquisição de um ius in re, mas sim a aquisição da qualidade de parte ou sujeito de determinado contrato, por via do qual se adquire a posição real sobre a coisa alienada (Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, págs. 221/222).
Assim é também no plano tabular, posto que o registo da acção convertido em definitivo não tem os mesmos efeitos de um registo de aquisição, apenas visa publicitar que naquele contrato o sujeito activo foi substituído pelo preferente, pelo que, a partir daí, se o adquirente já tiver obtido a inscrição da alienação no registo, o trato sucessivo há-de desenvolver-se tendo por base a titularidade do direito a favor do preferente ou, na falta de inscrição anterior, o registo de aquisição que vier a ser feito com base no aludido contrato há-de ter como sujeito activo o preferente, e já não aquele que no contrato figure como adquirente.”
Daí ter sido deliberado que: “A decisão judicial transitada em julgado que, reconhecendo o direito de preferência, declare o autor como titular do direito, em substituição do comprador (preferido), e determine o cancelamento do registo a favor do réu (preferido) só está, enquanto tal, sujeita a registo com referência à parte dispositiva de que resulte o efeito jurídico novo - a modificação subjectiva do direito -, porquanto só esta se enquadra na hipótese legal contida no artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Registo Predial”.

No caso dos autos, não há dúvida que a Autora/Recorrente intentou uma ação de preferência e pretende ver reconhecido o direito de preferência que se arroga. Está, contudo, a Autora equivocada quanto ao efeito jurídico da ação de preferência. Mas daí não resulta que o pedido seja ininteligível, pois trata-se de erro jurídico, que pode ser corrigido, até porque o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cf. artigo 5.º, n.º 3, do CPC.
Na verdade, esta situação é muito parecida com a que foi apreciada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/2001, de 23-01-2001: “Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do art.º 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo art.º 664.º do Código de Processo Civil” - D.R. I-A, n.º 34, de 09-02-2001.
Aliás, da leitura da Contestação resulta, sem margem para dúvida, que estes Réus/Recorridos, únicos que contestaram, compreenderam perfeitamente a pretensão da Autora/Recorrente deduzida na petição inicial.

Servem estas considerações para afastar também a ineptidão fundada na suposta contradição entre pedido e causa de pedir (que a decisão recorrida considerou existir) ou decorrente de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.
É que a Autora não pretendeu efetivamente a anulação do contrato de compra e venda, tanto assim que não invocou nenhum vício da vontade ou de forma de que possa resultar a nulidade ou anulabilidade do contrato.
A Autora limitou-se a pedir, incorretamente, como já vimos, a anulação ou a anulabilidade quando o que pretendia era tão só o efeito jurídico decorrente da procedência da ação de preferência que intentou.
Interpretar de forma diferente a petição inicial é inaceitável.
Percebendo-se que a Autora, arrendatária, pretende, apenas e só, ver reconhecido o seu direito de preferência na compra e venda da fração arrendada, conforme peticionado e fundado na causa de pedir descrita, não se pode considerar inepta a petição inicial apenas porque o pedido não se mostra corretamente formulado, nele se incluindo o de anulação da referida venda e cancelamento do registo de aquisição a favor dos Réus compradores
Assim, procedem nesta medida as conclusões da alegação de recurso.

Deste modo, a decisão recorrida deve ser revogada, com o prosseguimento dos autos, devendo o Tribunal recorrido pronunciar-se, além do mais, a respeito da convocação da audiência prévia.
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Embora vencida, a Ré/Recorrida não será condenada no pagamento das custas processuais que seriam da sua responsabilidade, uma vez que litiga com apoio judiciário (artigos 527.º e 529.º do CPC).
Quanto ao 2.º Réu, a sua condenação não se justifica, já que a decisão recorrida considerou inepta a petição inicial com fundamentação distinta da que foi defendida na Contestação e a decisão correta deveria ter sido a de improcedência da exceção dilatória, a qual não implicaria qualquer condenação em custas.

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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e, em substituição, julgar improcedente a exceção de nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial, assim devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação.

Não se condena a Ré/Recorrida no pagamento das custas do recurso, atento o apoio judiciário de que beneficia.

D.N.

Lisboa, 25-10-2018

Laurinda Gemas

Gabriela Cunha Rodrigues

Arlindo Crua