Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16026/19.8T8LSB.L1-2
Relator: GABRIELA CUNHA RODRIGUES
Descritores: RECUSA DA PETIÇÃO INICIAL
APOIO JUDICIÁRIO
RECLAMAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A declaração do Autor constante da parte final da petição inicial, no sentido de ter intentado a ação ao abrigo do artigo 279.º, n.º 2, do CPC (no caso, um dia antes do fim do prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da decisão que absolveu o Réu da instância), não é fundamento da citação urgente do Réu, nos termos do artigo 561.º do referido diploma.
II - Porém, integra o conceito de «outra razão de urgência» previsto no artigo 552.º, n.º 5, do CPC, numa interpretação à luz do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sendo caso de admitir, neste caso, a mera junção do pedido de concessão do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
1. LM… interpôs recurso da decisão que indeferiu a reclamação da recusa da petição inicial pela secretaria.
2. O Autor LM… intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, no dia 1.8.2019, contra o Instituto dos Registos e do Notariado I.P., formulando o pedido de que seja declarada a nulidade do registo da aquisição a favor do Autor do veículo com a matrícula …-…-OB, através da Ap. 39.
Para além de invocar os factos que fundamentam a sua pretensão, arguiu que:
- Em 23.3.2015, intentou ação declarativa de condenação contra o ora Réu e contra o Banco Santander Consumer Portugal, S.A., peticionando a declaração de nulidade do registo da aquisição a favor do Autor do veículo com a matrícula …-…-OB, por ter sido efectuado com base em documentos falsos, bem como a condenação dos Réu no pagamento de uma indemnização - processo …/…T8LSB, Juízo Local Cível de Lisboa no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa,- Juiz …;
- Por sentença de 22.3.2017, o tribunal julgou procedente a exceção da incompetência em razão da matéria, por serem competentes os Tribunais Administrativos, absolvendo os Réus da instância;
- O Tribunal da Relação de Lisboa manteve a decisão recorrida quanto ao Réu Instituto dos Registos e do Notariado I.P. e revogou-a quanto ao Réu Banco Santander Consumer Portugal S.A., declarando a competência dos Juízos Cíveis em razão da matéria;
- A ação prosseguiu contra o Banco Santander Consumer Portugal S.A., intentando o Autor nova ação contra ora Réu, Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., que correu os seus termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, sob o número de processo …/…BELSB, na qual peticionou novamente a declaração de nulidade do registo de aquisição a seu favor, do veículo de matrícula …-…-OB, por ter sido efectuado com base em documentos falsos;
- Em 30.5.2019, por sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, foi julgada procedente a exceção da incompetência em razão da matéria, tendo o Réu sido absolvido da instância, com base no entendimento de que a competência para as impugnações judiciais de atos de registo pertence à jurisdição comum e não à jurisdição administrativa;
- Na sequência de tal decisão, o Autor intentou a presente ação contra o Réu Instituto dos Registos e do Notariado I.P., ao abrigo do artigo 279.º, n.º 1, do CPC, requerendo, nos termos do disposto no n.º 3 do mesmo artigo e à semelhança do que já havia requerido aquando da propositura da ação administrativa, que sejam aproveitadas todas as provas produzidas nos supra indicados processos, inclusive a anotação da invocação da falsidade dos documentos com base nos quais se procedeu ao registo de aquisição a favor do Autor (AP. 3969, de 27.07.2011), através da AP. 5733, requerida pelo Autor aos 4.3.2015 junto da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa.
Consta da parte final da petição inicial, que o Autor requereu junto dos serviços da Segurança Social, proteção jurídica na modalidade de total dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, encontrando-se a aguardar decisão, razão pela qual não autoliquida taxa de justiça.
Aí se lê ainda que protesta juntar a decisão de proteção jurídica assim que esta lhe for comunicada pelo Instituto da Segurança Social, referente ao pedido de proteção jurídica, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo - artigo 29.º, n.º 5, alínea a), da Lei do Apoio Judiciário.
O Autor termina referindo que «A presente peça tem necessariamente que ser apresentada sem a situação do pagamento da taxa de justiça estar devidamente clarificada, uma vez que termina no próximo dia 2.8.2019 o prazo previsto no artigo 279.º, n.º 2 do CPC e as actuais condições económicas do Autor não lhe permitem adiantar o pagamento.» (negrito e sublinhado nossos)
3. Com a petição inicial, o Autor apresentou o comprovativo do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos processuais, não procedendo, pois, ao pagamento da taxa de justiça.
4. Nessa sequência, a Secretaria recusou a entrega da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 558.º, alínea f), do CPC.
5. Dessa recusa da Secretaria, o Autor deduziu reclamação, ao abrigo do preceituado no artigo 559.º do CPC, na qual descreveu as ações por si intentadas anteriormente, e argumentou que a petição inicial teve necessariamente de ser apresentada sem a junção do comprovativo da concessão do apoio judiciário porque terminava no dia seguinte, a 2.8.2019, o prazo de 30 dias previsto no n.º 2 do artigo 279.º do CPC para que a nova ação fosse intentada, ou o Réu fosse citado, com possibilidade de aproveitamento da prova produzida nos processos anteriores.
Mais arguiu que, àquela data (1.8.2019), ainda não havia sido proferida qualquer decisão pelos competentes serviços da segurança social quanto ao pedido de proteção jurídica apresentado pelo Autor, pelo que outra alternativa não lhe restou senão a de proceder apenas à junção do documento comprovativo do pedido de apoio judiciário, até porque as suas condições económicas não lhe permitiram adiantar o pagamento;
Objetou ainda que não requereu na sua petição a citação urgente do Réu uma vez que inexistia qualquer justificação para tal, ao abrigo do artigo 561.º do CPC.
6. No dia 18.10.2019, foi proferida a seguinte decisão:
«O autor no final da petição inicial alude à junção de um “requerimento de protecção jurídica”.
Nos termos do artigo 552.º, n. º 3 do Código de Processo Civil na petição inicial deve o autor juntar o documento comprovativo do prévio pagamento de taxa de justiça devida ou da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo.
Por sua vez, nos termos do artigo 558.º, alínea f) do citado código do artigo 17º, nº 1 da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto, a secretaria deve recusar o recebimento da petição inicial quando não tenha sido comprovado o prévio pagamento de taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário.
O autor veio reclamar da recusa da petição inicial pela Secretaria.
Ora, como o próprio autor reconhece na reclamação, cumpre assinalar que o autor na petição inicial não requereu a citação da ré nos termos do disposto no citado nº 5 do artigo 552º.
Assim, tem de se concluir pelo acerto da Secretaria na recusa da petição em causa nos termos exarados, no caso, do disposto no artigo 17.º da Portaria nº 280/2013 de 26 de Agosto, e artigo 558º, alínea f) do CPC.
Decisão
Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, indefere-se a reclamação apresentada e, em consequência, confirma-se o acto de recusa da Secretaria.
Notifique
7. Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs recurso de apelação, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«a) O presente recurso submetido à apreciação de V. Exas., vem interposto do despacho de fls..., que concluiu pelo acerto da Secretaria na recusa da petição inicial apresentada pelo Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 17.º da Portaria nº 280/2013 de 26 de Agosto, e artigo 558º, alínea f) do CPC. Decidindo, consequentemente, indeferir a reclamação apresentada pelo Recorrente e confirmar o acto de recusa da Secretaria.
b) Aos 23.03.2015, o ora Recorrente havia intentado acção declarativa de condenação em processo comum contra o ora Réu e contra o Banco Santander Consumer Portugal, S.A., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa — Juiz …, sob o nº …/…T8LSB, na qual o ora Réu contestou, excepcionando a incompetência do tribunal em razão da matéria e propugnando pela competência dos tribunais administrativos para conhecer e decidir a causa.
c) Por sentença datada de 22.03.2017, decidiu o tribunal julgar procedente, por provada, a arguida excepção dilatória de incompetência, em razão da matéria, para conhecer e decidir a lide por, para o efeito, serem competentes os Tribunais Administrativos, absolvendo, consequentemente, os Réus Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. e Banco Santander Consumer Portugal, S. A. da instância (documento nº 19, junto com a p.i).
d) Não se conformando com tal decisão, o ora Recorrente apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu julgar a apelação parcialmente procedente decidindo, manter a decisão recorrida quanto ao réu Instituto dos Registo e do Notariado IP e revogar a decisão recorrida relativamente ao réu Banco Santander Consumer Portugal S.A., declarando-se incompetente em razão da matéria para processar e julgar os autos.
e) Nestes termos, a acção prosseguiu contra o Banco Santander Consumer Portugal S.A., intentando o ora Recorrente nova acção contra ora Réu, Instituto dos Registos e do Notariado, I.P, que correu os seus termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, sob o número de processo …/…BELSB, na qual o Recorrente peticionou a declaração de nulidade do registo de aquisição a seu favor, do veículo de matrícula …-…-0B, através da Ap. 3960, de 27.07.2011, por ter sido efectuado com base em documentos falsos, convertendo-se em definitiva a anotação 5733, de 04.03.2015.
f) Acontece que, uma vez mais, na sua contestação, ora Réu suscitou, entre o mais, a excepção de incompetência absoluta dos tribunais administrativos, em razão da matéria, arguindo que a impugnação e declaração de nulidade ou anulação de actos de registos das conservatórias é da competência dos tribunais comuns.
g) Tal excepção viria a ser julgada procedente aos 30.05.2019, por sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que julgou absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer daquela acção administrativa, tendo, em consequência, absolvido o Réu da instância (cfr. documento nº 20, junto com a pi).
h) Na sequência de tal decisão, veio o ora Recorrente, a 01.08.2019, apresentar a petição inicial que deu origem ao presente processo, contra o Réu Instituto dos Registo e do Notariado I.P., o que fez nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 279º nº 1 do Código do Processo Civil.
i) Tendo requerido, nos termos do disposto no nº 3 do mesmo artigo e à semelhança do que já havia sido requerido aquando da propositura da acção administrativa, que fossem aproveitadas todas as provas produzidas nos supra indicados processos, inclusive a anotação da invocação da falsidade dos documentos com base nos quais se procedeu ao registo de aquisição a favor do Recorrente (AP. 3969, de 27.07.2011), através da AP. 5733, requerida pelo Autor aos 04.03.2015 junto da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa (cfr. documento nº 2, junto com a pi).
j) Tal peça processual teve necessariamente de ser apresentada apenas com a junção do comprovativo do pedido de apoio judiciário requerido pelo Recorrente, uma vez que terminava no dia seguinte, a 02.08.2019, o prazo de 30 dias previsto no nº 2 do supra citado artigo 279º CPC, para que a nova acção fosse intentada, ou o Réu fosse citado, com possibilidade de aproveitamento da prova produzida nos processos anteriores. E àquela data (01.08.2019), ainda não havia sido proferida qualquer decisão pelos competentes serviços da segurança social quanto ao pedido de protecção jurídica apresentado pelo Recorrente.
k) Acontece que, por ter procedido à junção do documento comprovativo do pedido de apoio judiciário requerido (e não do documento comprovativo da concessão de tal apoio) sem, simultaneamente, ter requerido a citação urgente do Réu, foi o Recorrente notificado aos 05/08/2019 da decisão de recusa da peça processual pela Secretaria, por força do disposto no artº 17.º da Portaria nº 280/2013 de 26 de agosto e alínea f) do 558.º do CPC.
I) Decisão essa da qual o Recorrente reclamou aos 10/09/2019, peticionando a aceitação da petição inicial apresentada.
m) Tendo o Exmo. Senhor Dr. Juiz a quo concluído pelo acerto da Secretaria na recusa da petição nos termos do disposto no artigo 17.º da Portaria nº 280/2013 de 26 de Agosto, e artigo 558º, alínea f) do CPC, decidindo assim indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar o acto de recusa da Secretaria.
n) Ora, salvo o devido respeito, o mui douto despacho recorrido fez uma incorreta aplicação do direito. Devendo, por isso mesmo, ser o presente recurso julgado totalmente procedente, por provado, e revogado o mui douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro, que faça uma correta aplicação do direito.
o) Erradamente o tribunal a quo considerou que não tendo o Recorrente requerido a citação urgente do Réu nos termos do disposto nos artigos 552º nº 5 e 561º do CPC, a não junção do comprovativo de concessão de apoio judiciário determina a recusa da petição inicial ao abrigo da alínea f) do artigo 558º do CPC.
p) Ora, não pode concordar-se com tal entendimento do tribunal recorrido.
q) Conforme supra melhor se explicitou, a presente acção foi intentada na sequência de uma anterior decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, proferida no âmbito da acção administrativa sobre o mesmo objecto, anteriormente intentada pelo Recorrente. Decisão essa que absolveu o Réu da instãncia, com base no entendimento de que a competência para as impugnações judiciais de actos de registo pertence à jurisdição comum e não à jurisdição administrativa.
r) Foi, portanto, no seguimento de tal decisão e ao abrigo do disposto no artigo 279º nº 1 CPC, que o ora Recorrente a 01.08.2019 apresentou a petição inicial que deu origem ao presente processo, contra o Réu Instituto dos Registo e do Notariado.
s) Fê-lo na referida data, sem aguardar a comunicação da decisão final quanto ao pedido de apoio judiciário, uma vez que terminava no dia seguinte, a 02.08.2019, o prazo de 30 dias previsto no nº 2 do supra citado artigo 279º CPC, para que a nova acção fosse intentada, ou o Réu fosse citado, com possibilidade de manutenção dos efeitos civis e aproveitamento da prova produzida nos processos anteriores (artigo 279º nº 2 e 3). O que foi requerido pelo Recorrente na sua petição inicial.
t) Sendo que o Recorrente apenas não requereu simultaneamente a citação urgente do Réu, dado que nos termos do referido artigo 279º CPC bastaria que a acção fosse intentada naquele prazo de 30 dias para que a toda prova produzida nos processos supra indicados fosse aproveitada.
u) Não se verificando, portanto, qualquer fundamento para que fosse requerida a citação urgente do Réu nos termos do disposto no artigo 561º do CPC.
v) Diga-se, em boa verdade, que o artigo 279º do CPC ao possibilitar que a prova produzida no primeiro processo seja aproveitada bastando que a nova acção seja intentada no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância, é susceptível de originar a situação que se verifica nos presentes autos.
w) Por um lado, não se justifica a urgência da citação do Réu nos termos do disposto no artigo 561º CPC, dado que o artigo 279º nº 2 CPC assim não o exige. Por outro lado, ao apresentar a sua petição inicial dentro daquele prazo, juntando apenas o documento comprovativo do pedido de apoio judiciário, sem requerer a citação urgente do Réu, o Autor corre o risco de ver a sua petição ser recusada por não preencher os requisitos da excepção ao artigo 558º al. f), prevista no artigo 552º nº 5. - ou seja, porque não foi requerida a citação urgente do Réu.
x) Resultando, assim, numa verdadeira limitação à igualdade no acesso ao direito de todos os cidadãos.
y) Seguindo-se a interpretação dada pelo despacho recorrido ao artigo 552º nº 5 CPC, no sentido de que a mera apresentação do documento comprovativo do pedido de apoio judiciário obriga à citação do Réu para que a petição inicial não seja recusada nos termos da alínea f) do artigo 558º, o prazo previsto no artigo 279º do CPC nunca poderá ser aproveitado por todos aqueles que tendo requerido apoio judiciário, não tenham obtido qualquer resposta dos Serviços da Segurança Social dentro daquele prazo de 30 dias. - como é caso do ora Recorrente.
z) Salvo o devido respeito, é óbvio que tal interpretação é inconstitucional e configura uma verdadeira violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual "a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos".
aa) Acresce que, mantendo-se o despacho recorrido, o Recorrente terá de intentar uma nova acção, sem ter a possibilidade de aproveitamento do prazo do já tão citado artigo 279º do CPC.
bb) O que obrigará à prática de actos inúteis e à repetição da produção de toda a prova já anteriormente produzida, em violação dos princípios da celeridade e da economia processual, previstos nos artigos 6º e 130º do CPC.»
Conclui que deve, assim, ser revogado o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro, que faça uma correta interpretação e aplicação do direito in casu, decidindo pela aceitação da petição inicial apresentada pelo Recorrente.
8. Não foi apresentada alegação de resposta.
9. O recurso foi admitido por despacho proferido no dia 4.11.2019, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II - Âmbito do recurso de apelação
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), a solução a alcançar pressupõe a análise da seguinte questão:
- Saber se, à luz do disposto no artigo 552.º, n.ºs 3 a 5, do CPC, existe ou não fundamento para o não pagamento prévio da taxa de justiça ou para a não exibição do documento comprovativo da concessão do pedido de apoio judiciário por banda do Autor, não tendo requerido a citação urgente do Réu.
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III - Fundamentação
Fundamentação de facto
Com relevância para a decisão a proferir, importa ter em consideração o iter processual e factual referido no relatório.
Enquadramento jurídico
O Tribunal recorrido ajuizou, como o próprio Autor reconhece na reclamação, que este não requereu a citação urgente do Réu nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 552.º do CPC, pelo que concluiu pelo acerto da recusa da petição pela Secretaria, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 17.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.8, e 558.º, alínea f), do citado diploma.
Diversamente, o Apelante entende que não é condição necessária da admissão da petição inicial o requerimento cumulativo da citação urgente do Réu prevista nos artigos 552.º, n.º 5, e 561.º do CPC.
A questão a apreciar prende-se, no essencial, com a interpretação de normas adjetivas previstas no CPC à luz do quadro global e estruturante da tutela jurisdicional efetiva e da problemática do acesso ao direito.
O acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva encontra-se consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, consubstanciando um direito fundamental, inerente ao Estado de Direito.
O citado normativo reconhece vários direitos conexos mas distintos, como o direito de acesso aos Tribunais, tal como a garantia de que o direito à justiça não pode ser coartado pela insuficiência de meios económicos.
Impõe-se, pois, uma especial cautela, inerente à natureza constitucionalmente protegida do direito em causa, na leitura interpretativa dos preceitos aplicáveis - cf. acórdão do TRP de 13.10.2015, p. 493/15.1T8FLG.P1, in www.dgsi.pt.
O Autor apresentou uma petição inicial em que formula a pretensão de que seja declarada a nulidade do registo da aquisição a favor do Autor do veículo com a matrícula …-…-OB e juntou igualmente requerimento onde demonstra aguardar a decisão relativa ao apoio judiciário que atempadamente requereu.
Porém, não pediu a citação urgente do Réu.
Poderia ou deveria tê-lo feito?
A citação urgente tem de se fundar em motivo justificado, conforme imposição expressa do artigo 561.º, n.º 1, do CPC.
No caso, esse motivo não existia, pelo que não se vê como impor tal requisito (requerimento de citação urgente) à parte apresentante.
Com efeito, a propositura da ação no prazo de 30 dias, nos termos do artigo 279.º, n.º 2, do CPC, esgota-se em si mesma, não dependendo da sua cognoscibilidade por outrem.
O requerimento de urgência para a citação do Réu in casu não teria, pois, qualquer arrimo substancial que o justificasse.
Ainda assim, será que a ação em apreço se enquadra na situação prevista no n.º 5 do artigo 552.º do CPC?
Para melhor compreensão do objeto do recurso é necessário recuarmos um pouco, na medida em que a presente ação constitui a «resposta» a um despacho proferido na ação que o Autor intentou contra o Réu, que correu termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, sob o n.º …/…BELSB, e em que peticionou a declaração de nulidade do registo de aquisição a seu favor de um veículo automóvel, por ter sido efetuado com base em documentos falsos.
Por sentença de 30.5.2019, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer daquela ação administrativa, tendo, em consequência, absolvido o Réu da instância.
Mas já em 23.3.2015 o Autor intentara ação declarativa de condenação contra o ora Réu e contra o Banco Santander Consumer Portugal, S.A., com idêntico petitório - processo n.º …/…T8LSB que correu termos no Juízo Local Cível de Lisboa no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa,- Juiz ….
Por sentença de 22.3.2017, o Tribunal julgou procedente a exceção da incompetência em razão da matéria, por serem competentes os Tribunais Administrativos, absolvendo os Réus da instância, sendo que, em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa manteve a decisão recorrida quanto ao Réu Instituto dos Registos e do Notariado IP e revogou-a quanto ao Réu Banco Santander Consumer Portugal S.A., declarando os Juízos Cíveis competentes em razão da matéria.
Nos termos do artigo 279.º, n.º 1, do CPC, «A absolvição da instância não obsta a que se proponha outra ação sobre o mesmo objeto
Por sua vez, o n.º 2 do citado preceito prescreve que, «Sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e à caducidade dos direitos, os efeitos civis derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se, quando seja possível, se a nova ação for intentada ou o réu for citado para ela dentro de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância
No final da petição inicial, o Autor informou que requereu junto dos serviços da Segurança Social proteção jurídica na modalidade de total dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, encontrando-se a aguardar decisão.
Protestou juntar a decisão de proteção jurídica assim que esta lhe fosse comunicada pelo Instituto da Segurança Social.
Com a petição inicial, o Autor juntou o documento comprovativo da formulação do pedido de apoio judiciário.
Cumpre indagar da suficiência de tal documento.
Preceitua o artigo 552.º, n.ºs 3 e 4, do CPC que, com a petição inicial, o demandante deve juntar o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça inicial ou da concessão do benefício de apoio judiciário. Mas, «sendo requerida a citação nos termos do artigo 561.º» – citação urgente – (…) «ou ocorrendo outra razão de urgência, deve o autor apresentar documento comprovativo do pedido de apoio judiciário requerido, mas ainda não concedido» (n.º 5 do referido artigo 552.º). O artigo 24.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 29.7, na redação dada pela Lei n.º 47/2007 de 28.8, preceitua no mesmo sentido. (negrito e sublinhado nossos).
Mas que urgência é esta a que se reporta o n.º 5 do artigo 552.º do CPC?
Na redação do artigo 467.º, n.º 4, do CPC de 1961, dada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10.8, falava-se «nos casos em que o procedimento tenha carácter urgente».
Na redação posterior do n.º 5 do artigo 467.º do CPC de 1961, passou a incluir-se a expressão «ou ocorrendo outra razão de urgência» (redação dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8.3).
Os preâmbulos de ambos os diplomas não esclarecem a ratio da alteração, mas afigura‑se-nos, na esteira do acórdão do TRP de 25.9.2009 (p. 381/08.8TTVLG.P1, in www.dgsi.pt), que o sentido continua a ser o mesmo: o ato a praticar, porque urgente, não se compadece com a espera da decisão do requerido benefício do apoio judiciário.
Ora, como vimos, o Autor declarou na petição inicial que intentava a ação ao abrigo do artigo 279.º do CPC, e fê-lo no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da decisão que absolveu o Réu da instância.
Logo, a invocação pelo Autor do disposto no n.º 2 do artigo 279.º do CPC integra a situação de urgência a que alude o n.º 5 do artigo 552.º do mesmo diploma legal.
Daqui emerge uma interpretação deste preceito mais harmónica e coerente com a Constituição da República Portuguesa, na tutela que impõe um acesso efetivo ao sistema judiciário.
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Em face do exposto, a apelação deve proceder na sua totalidade, revogando-se a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, a qual deve ser substituída por outra que determine a admissão da petição inicial.
Não existindo parte vencida, uma vez que o Réu nem foi citado, não se condena nenhuma das partes no pagamento das custas do recurso - artigos 527.º, n.º 1, 529.º e 607.º, n.º 6, do CPC.
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IV - Decisão
Nestes termos, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência,
a) Revogar a decisão recorrida;
b) Substituí-la por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
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Lisboa, 20 de fevereiro de 2020
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua
António Moreira