Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3082/11.6TBCLD.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO CE
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – No âmbito do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 - Relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial – a regra geral é a de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.
II – Tal regra admite soluções alternativas para casos especiais, e é afastada quanto a tipificadas hipóteses excecionais, de competência exclusiva.
III - No caso de ação baseada em responsabilidade civil extracontratual, a pessoa responsável pode ser demandada noutro Estado-Membro, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.
IV – Tratando-se assim de uma opção livre do autor/requerente perante a alternativa regulamentar.
V – A regra do art.º 74º, n.º 2 do Código de Processo Civil, estabelecendo a competência territorial do forum comissi delicti – só funciona depois de definida a competência internacional dos tribunais portugueses, e supõe que esse lugar se situa em território nacional.”.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação

I – O Fundo de Garantia Automóvel intentou ação declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, contra “A”, pedindo a condenação do Réu a pagar ao A.:
a) € 6.451,02 relativos a indemnização;
b) Despesas de gestão, a liquidar em execução de sentença;
c) Juros de mora desde 28.10.2010 e até integral pagamento.
Alegando, para tanto e em suma, que no dia 30 de Agosto de 2007, pelas 01:00, ocorreu um acidente de viação na Avenida …, …, … – Espanha.
Nele sendo intervenientes o veículo espanhol de marca Opel, modelo Kadett e matrícula 0-0000-DF, conduzido pelo seu proprietário, “B”, e no qual seguia ainda como passageira do mesmo, “C”, e o veículo português de marca Citroen, modelo ZX e matrícula 00-00-BL, propriedade do ora Réu.
Sendo o condutor, não identificado, do BL, o único culpado pelo acidente.
Vindo a constatar-se que o BL não tinha seguro válido à data do sinistro.
Sendo por isso o acidente reclamado ao GPCV ao abrigo do Acordo Multilateral de Garantia, pelo qual o serviço gestor que tiver regularizado um sinistro tem direito a reclamar o reembolso ao membro do serviço emissor – neste caso e sendo o veículo português – o Gabinete Português de Carta Verde.
Tendo suportado os danos decorrentes do sinistro, o GPCV pediu o seu reembolso ao Fundo de Garantia Automóvel.

E face à inexistência de seguro relativamente ao veículo BL, à data de 30.08.2007, o FGA indemnizou o GPCV, pagando-lhe €6.451,02, em 07.10.2010 e 13.10.2010.
Sendo que satisfeita a indemnização, tem o FGA direito ao reembolso do que houver prestado a título de indemnizações e despesas.

Citado o Réu editalmente e, em sua representação o M.º P.º, contestou este, arguindo a incompetência internacional do Tribunal Português, na circunstância de o pedido se fundamentar em responsabilidade civil extracontratual, tendo o facto danoso ocorrido em território espanhol.
Deduzindo, no mais impugnação.
Rematando com a procedência da invocada exceção, absolvendo-se o R. da  instância, ou, a improceder aquela, com o julgamento da ação “de harmonia com a prova a produzir em audiência de julgamento.”.

Respondeu o A. sustentando a improcedência da arguida matéria de exceção.

Por despacho reproduzido a folhas 59 a 62, considerando-se o disposto no art.º 5º, n.º 3 do Regulamento (CE) n.º 44/2001, julgou-se “procedente a excepção de incompetência absoluta, e, em consequência, absolve(u)-se o Réu da instância.”.

Inconformado, recorreu o A., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1. Determina o 65º, nº 1 alínea a) do CPC a competência internacional dos tribunais portugueses no caso de o réu ter domicílio em território português.
2. Especificamente sobre a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar ação de acidente de viação ocorrido no estrangeiro, a jurisprudência aponta no mesmo sentido.
3. O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2005.07.06 declara a competência internacional do Tribunal português para decidir ação de acidente de viação ocorrido no estrangeiro, em que o causador reside em Portugal.
4. Os critérios da atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, em face de conexão de matriz substantiva ou adjectiva), estão enunciados no
5. A ratio do art. 65º do CPC é a de facilitar o acesso aos tribunais portugueses relativamente a litígios conexionados com vários sistemas jurídicos, entre eles o português.
6. Dizia Anselmo de Castro que a finalidade da lei era a de “impedir a denegação da competência dos nossos tribunais…”.
7. A presente ação tem origem no acidente de viação ocorrido a 30 de Agosto de 2007 em Espanha, pelo qual foi responsável o aqui Réu, residente na área de circunscrição do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha.
8. Nos termos do preceituado no artº 65º, 1, a) do CPC, é internacionalmente competente o Tribunal da residência do Réu.
9. O artº 5º, nº 3 do Regulamento 44/2001 (CE) permite ao Autor optar por interpor a ação no país da residência do responsável ou no país em que ocorreu o facto danoso.
10. O Autor pode escolher, de entre os Estados que têm conexão com a situação concreta e a relação material controvertida, aquele em que pretende demandar o responsável.
11. No caso vertente, Autor e Réu têm domicílio em Portugal.
12. Fará sentido onerar o Réu com os custos de uma ação judicial a correr noutro Estado Membro da U.E., mesmo que na vizinha Espanha, quando credor e devedor estão em Portugal?
13. Quando a legislação declara competente o Tribunal da residência do Réu?
14. Quando o Regulamento da U.E. permite ao Autor optar entre aquele Tribunal e o da ocorrência do facto danoso?
15. A decisão recorrida violou o artº 65º, nº 1 alínea a) do Código do Processo Civil.
16. Bem como o art. 202º, nº2 da Constituição da República Portuguesa.
17. Ainda, o artº 5º, nº 3 do Regulamento 44/2001 (CE).”.

Contra alegou o M.º P.º, pugnando pela manutenção do julgado.

II – Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que, como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal a de saber se o tribunal português detém competência internacional para a presente ação.
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 Com interesse, emerge da dinâmica processual o que se deixou referido supra, em sede de relatório.
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Vejamos:
1. Como é sabido, o Código de Processo Civil define, no art.º 65º, os fatores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses.
E, no art.º 65º-A, os casos em que essa competência internacional é exclusiva dos mesmos tribunais.
Sendo sempre, porém, com a expressa ressalva, e no que agora aqui interessa “do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários”.
A qual, de resto, nem seria necessária, face ao que se dispõe no art.º 8º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, e presente ainda o princípio do primado do direito do União.

No primeiro, estabelecendo-se que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pela União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”.
O segundo, com a inarredável limitação, de nunca os princípios da Constituição material lhe serem subordinados, posto o que, como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros,[1] “estes continuarão a ocupar o primeiro grau da hierarquia normativa”.

Pois bem.

De acordo com o art.º 2.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 – Relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial – “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.”.

É a consagração de uma regra geral em matéria de competência internacional no seio da U.E..

Já nos vários n.ºs do art.º 5º do mesmo Regulamento se definem “Competências Especiais”.
E assim, designadamente, que:
“Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
(…)
3. Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;”, (o realce a negrito é nosso).

Trata-se de uma das concretizações do Considerando n.º 12 do Regulamento, nos termos do qual “O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça.”, (idem…)

Não se assimilando o foro alternativo, na economia do Regulamento, às competências exclusivas enunciadas no art.º 22º do mesmo…
…Que se encontra em correspondência com o considerando n.º 11, em cujos termos “As regras de competência devem (…) articular-se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão (…)” (ainda e sempre, o realce a negrito é nosso).

Ou seja, enquanto nos casos do art.º 5º se trata de contemplar a possibilidade de o “requerente” – na terminologia do Regulamento – demandar o requerido no foro do seu domicílio ou num outro, à sua escolha – qual seja, na hipótese de ação fundada em responsabilidade extracontratual, o lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso – já nas situações previstas no art.º 22º apenas serão competentes os tribunais ali referidos quanto a cada uma delas “qualquer que seja o domicílio”.
Deste modo, baseando-se a presente ação na responsabilidade civil extracontratual do proprietário do veículo 00-00-BL, “A”, que na petição inicial foi dado como residente em território nacional, e tendo o ato ilícito culposo que lhe é imputado, tido lugar em Espanha, podendo a A. ter demandado aquele no referido Reino, não estava porém inibida de o fazer perante as justiças de Portugal.

Como desde logo contemplava também o já citado art.º 65º, n.º 1, do Código de Processo Civil: “(…) a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias: a) Ter o réu ou algum dos réus domicílio em território português, salvo tratando-se de acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro;”.

Contra isto de nada valendo, e salvo o devido respeito, a ponderação feita na decisão recorrida, de que “Todos os elementos integradores da causa de pedir invocada se verificaram em território espanhol”.
De resto, nessa ordem de ideias resultariam inconsequentes, em grande medida, os fatores de atribuição de competência internacional, enunciados no referido art.º 65º, n.º 1, alíneas a), b) e d), do Código de Processo Civil.

Também não colhendo o argumento – alinhado pelo Recorrido – de que, a optar-se pelo critério geral do domicílio do Réu resultaria, por aplicação do critério enunciado no art.º 74º, n.º 2 do Código de Processo Civil, impossível “a determinação do tribunal português competente na ordem jurídica interna, uma vez que o fato danoso ocorreu em território espanhol.”.
O que tornaria “inviável (…) o reconhecimento da competência internacional dos tribunais portugueses com base no critério geral enunciado no art.º 2º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho”.

É que, e precisamente, tal normativo – estabelecendo a competência territorial do forum comissi delicti – supõe que esse lugar se situa em território nacional.
Ora, não sendo esse o caso, mas estando excluída a competência internacional do foro do lugar onde o facto ocorreu, e estabelecida a dos tribunais portugueses, temos que se recai na regra geral do art.º 85º, n.º 1, do mesmo Código.
Inciso de acordo com o qual “Em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu.”.
Certo aqui, recorda-se, que como anotam José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto,[2] se tratam as “regras de competência territorial, de normas de competência interna, que só funcionam depois de estabelecida a competência internacional dos tribunais portugueses”.
E, acrescentaremos nós, devem ser interpretadas nessa conformidade.

Diga-se ainda que, quando o A. – sediado em Lisboa – soubesse já o Réu como ausente em parte incerta, aquando da propositura da ação, e como tal o tivesse indicado na petição inicial, se alcançaria idêntico resultado, por força do disposto no art.º 85º, n.º 2, do Código de Processo Civil: “Se, porém, o réu (…) for (…) ausente, será demandado no tribunal do domicílio do autor;”.   

Procedem assim as conclusões do Recorrente.

Sendo os tribunais portugueses internacionalmente competentes para a presente ação.


III – Nestes termos, acordam em julgar o recurso procedente, e revogam a decisão recorrida,-------------------------------------------------
declarando o tribunal a quo internacionalmente competente para a presente ação,--------------------------------------------------------------------
que deverá assim prosseguir seus termos na 1ª instância, se a tanto nada mais obstar.

         Sem custas, cfr. art.º 4º, alínea l), do Regulamento das Custas Processuais.

***
Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 713º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, da responsabilidade do relator, como segue:
(…)

***

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Maria Teresa Albuquerque
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[1] “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 94.
[2] In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 156.