Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15919/16.9T8LSB-B.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
AVAL
LIVRANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - A regra da obrigatoriedade da realização da audiência prévia, fora dos casos de não realização ou dispensa expressamente previstos na lei (cf. artigos 592.º, 593.º e 597.º do CPC), apenas pode ser afastada quando as especificidades da causa assim o justifiquem, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (artigos 6.º e 547.º do CPC), desde que, para além do indispensável contraditório sobre as questões de direito ou de facto a apreciar no saneador-sentença, as partes se possam previamente pronunciar sobre a conveniência duma diferente tramitação processual, manifestando a sua concordância de forma expressa ou tácita (pela não oposição) à dispensa da audiência prévia.
II - Não é esse o caso quando auscultadas sobre a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa com dispensa de audiência prévia, ambas as partes se pronunciaram, mas nada disseram a respeito dessa dispensa, tendo mesmo uma das partes pugnado pelo prosseguimento dos autos com a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, e a ulterior produção de prova pericial.
III - Por isso, e não sendo caso para considerar inútil a realização da audiência prévia, antes se vendo vantagem em realizar uma efetiva discussão de facto e de direito com observância dos princípios do contraditório, da cooperação e da oralidade, impõe-se concluir pela falta de acerto e ilegalidade da decisão recorrida, na parte em que dispensou tal diligência, e julgar verificada a nulidade processual da falta da sua realização, com a anulação, por arrastamento, do saneador-sentença recorrido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
CS interpôs o presente recurso de apelação da decisão que, com dispensa da audiência prévia, conheceu do mérito da causa no saneador, julgando totalmente improcedente a oposição à execução mediante embargos que aquele deduziu, por apenso à ação executiva para pagamento de quantia certa que lhe move (e a outros) o NOVO BANCO, S.A..
No requerimento executivo, apresentado em 23-06-2016, a Exequente peticionou o pagamento da quantia exequenda no valor de 113.259,83 €, dos quais 110.550,88 de capital e 2.708,95 € de juros de mora vencidos, bem como os juros de mora vincendos, com base em livrança subscrita pela sociedade “JS - Sociedade de Canalizações, Lda.”, entretanto declarada insolvente, e avalizada pelos Executados CS, MS e FS, alegando, além do mais, que a livrança foi entregue em branco para garantia do cumprimento do contrato de locação financeira celebrado entre a sociedade subscritora e a sociedade Besleasing e Factoring- Instituição Financeira de Crédito, S.A., que entretanto se fundiu com a sociedade Exequente, tendo tal livrança sido preenchida no seguimento da resolução desse contrato em virtude da mora no pagamento das rendas, do que foi dado conhecimento aos avalistas.
Em 30-08-2017, o Executado CS deduziu a presente oposição à execução, invocando: a) nulidade do aval por indeterminabilidade do objeto; b) preenchimento abusivo da livrança, em virtude da falta dos pressupostos de resolução do contrato (por a sociedade locatária se encontrar apenas em mora) e da falta de interpelação admonitória dos avalistas; c) nulidade da cláusula contratual geral inserta na alínea b) do n.º 3 do art. 13.º do contrato de locação financeira (cláusula penal); d) não estar a totalidade da quantia exequenda abrangida pelo aval.
Terminou pedindo que a oposição fosse julgada procedente, declarando-se extinta a execução.
Juntou documento, arrolou testemunhas e requereu a realização de perícia para determinar o valor de mercado da fração autónoma objeto do referido contrato de locação financeira: a fração autónoma designada pela letra “K”, que corresponde a um pavilhão no rés do-chão, no Edifício Nascente, n.º 21, destinado a atividades industriais (produtos transformados não poluentes), armazenagem, restauração, ramo alimentar, prestação de serviços e outras atividades que não careçam de alvará, composto de zona ampla, duas instalações sanitárias e um compartimento, no exterior cinco lugares de estacionamento, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em Casal de Vale …, Lote …, Alto da Bela Vista, freguesia do Cacém, concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém sob a ficha n.º … e inscrito na matriz predial urbana n.º … daquela freguesia.
A Exequente apresentou Contestação, pugnando pela total improcedência da oposição à execução, oferecendo prova documental e testemunhal.
Em 04-12-2021, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«Os autos contêm os elementos necessários à prolação da decisão de mérito sobre toda a causa, pelo que pretende este tribunal passar a decidir ao abrigo do disposto no artº 595º, nº 1, al. b), do Cód. Proc. Civil.
Assim, a fase que se seguiria, de acordo com a lei, seria a de convocar a “audiência prévia”, para os fins previstos no art. 591º, al. b), do CPC, facultando às partes a discussão de facto e de direito.
Ora, afigura-se-nos que as partes já debateram nos articulados a discussão de facto e de direito sobre o aspecto da causa.
Por conseguinte, pretende o Tribunal dispensar a realização da audiência prévia, ao abrigo do poder/dever de gestão processual na dimensão do poder de simplificação e agilização processual (artigos 6.º e 547º, ambos do CPC).
Com efeito, as questões a decidir, em nosso entender, são muito simples e, além disso, a decisão sobre as mesmas é pacífica na jurisprudência e na doutrina.
Assim sendo, ao abrigo do disposto no art. 3º, nº 3, do CPC, e a fim de evitar decisões surpresa, determina-se a notificação das partes para, no prazo de 10 (dez) dias, querendo, se pronunciarem quanto a esta questão, podendo ainda naquele prazo, caso assim o entendam, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência prévia se esta tivesse lugar.
Deverão ainda as partes ser advertidas de que, decorrido tal prazo, se nada disserem, o tribunal proferirá decisão por escrito sobre o mérito da causa.
Notifique.»
A Exequente-Embargada apresentou “alegações por escrito”, invocando o disposto no art. 3.º, n.º 3, do CPC, em que, além de invocar o caso julgado face ao decidido no apenso A de embargos de executado deduzidos por MS, se pronunciou sobre a matéria de exceção invocada na petição de embargos.
O Executado-Embargante apresentou requerimento no qual, depois de aludir, citando parte do mesmo, ao despacho de 04-12-2021, alegou designadamente o seguinte (reproduz-se o teor do requerimento, salvo as passagens que são meras citações):
“salvo o devido respeito pela opinião contrária, entende o Executado que os presentes autos ainda não contêm os elementos necessários à prolação da decisão de mérito da causa.
3. Na verdade, o Executado alegou, nos art.ºs 61º a 81º da sua Oposição à Execução, que o contrato dos autos foi elaborado com o recurso a cláusulas contratuais gerais e que a cláusula penal prevista na cláusula 13ª desse contrato é manifestamente desproporcionada relativamente aos danos a ressarcir.
4. Alegando, designadamente, que o valor de 197.000,00 €, já pago ao Exequente, acrescido do valor do imóvel em questão, excede em muito o valor do financiamento (345.000,00 €).
5. Tendo também alegado, no art.º 71º da Oposição à Execução, que o imóvel em causa foi avaliado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 286.237,95 €, sendo o seu valor de mercado superior.
6. Sendo certo que, quanto maior for o valor do imóvel em questão, mais a cláusula penal do contrato se afigurará desproporcionada.
7. Para prova desta matéria, o Executado requereu a realização de uma perícia, com o seguinte objeto: (…)
8. Até agora tal perícia ainda não foi realizada nem sequer admitida.
9. Nem tão-pouco recaiu sobre o pedido da sua realização qualquer despacho.
10. Mais, o Executado requereu que fosse ouvida como testemunha MIS, sem que a respetiva audição tenha, até agora, sido admitida.
11. Conforme tem vindo a ser decidido pela Jurisprudência, o conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando-se as diferentes soluções plausíveis de direito.
12. Neste sentido, pode citar-se o Acórdão do TRL de 18-11-21 in www.dgsi.pt (Proc. nº 941/20.9T8OER-A.L1-6): (…)
13. E, bem assim, o Acórdão do TRP de 22-05-2019 in www.dgsi.pt (Proc. nº 3610/18.6T8MTS.P1): (…)
14. Ora, a Jurisprudência tem vindo a considerar que cláusulas de teor idêntico à do contrato dos autos são nulas, por excessivas.
15. A esse respeito, veja-se o Acórdão do STJ de 23/04/1998 (Proc. nº 97B011) in www.dgsi.pt: (…)
16. E, bem assim, o Acórdão do TRL de 01/15/2009 (Proc. nº 9574/2008-8) in www.dgsi.pt: (…)
17. Por outro lado, a Jurisprudência é praticamente unânime no sentido de que, quando nos encontramos no âmbito das relações imediatas – como acontece no caso vertente – o avalista pode opor ao portador da letra todas as exceções que cabiam ao avalizado.
18. Neste sentido, para além dos Acórdãos já transcritos na Oposição à Execução, veja-se o Acórdão do TRL de 19-2-19 in www.dgsi.pt (Proc. nº 4242/14.3TBCSC – A. L1-7): (…)
19. Face ao exposto, ainda e sempre salvo o devido respeito pela opinião contrária, não poderá decidir-se do mérito da causa sem que antes se ordene a realização da perícia requerida nos autos e a audição da testemunha indicada.
20. Ainda para mais se tivermos em atenção que a realização da perícia só poderá ser indeferida se for impertinente ou dilatória.
21. O que não é, manifestamente, o caso dos autos.
22. A este propósito, veja-se o Acórdão do TRC de 11-05-20 in www.dgsi.pt (Proc. nº 992/20.3T8CTB-A.C1): (…)
Termos em que, com os mais de direito, requer-se que V. Exa se digne proferir despacho identificando o objeto do litígio e enunciando os temas de prova, admitindo, bem assim, a realização das diligências de prova requeridas pelo Executado, abstendo-se de proferir decisão de mérito até que estas se encontrem concluídas, seguindo-se os ulteriores trâmites até final.”
Em 29-01-2022, foi proferida a decisão recorrida, cujo teor é designadamente o seguinte:
“Indefere-se o requerido pelo opoente, pois, conforme se referiu no anterior despacho, os autos contêm todos os elementos necessários à prolação de mérito sobre toda a causa.
Deste modo, e não tendo o opoente requerido a realização da audiência prévia, na sequência do nosso anterior despacho, iremos proferir de imediato a sentença.
I. Da audiência prévia.
Ao abrigo do disposto no artigo 593º, n.º 1 do CPC, por entender que a audiência prévia se destinaria apenas aos fins indicados nas als. d) e f) do nº 1 do artigo 591º do CPC, dispenso a sua realização.
*
II. Do valor do processo.
Nos termos do disposto nos arts. 304º, nº 1 e 306º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, fixo à causa o valor de € 113.259,83, que corresponde à realidade do pedido executivo e não foi impugnado por qualquer das partes (cfr. arts. 305º, nº 4 e 307º, nº 1, ambos do mesmo Código).
*
III. Despacho a que alude o artigo 595º do Código de Processo Civil.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O requerimento executivo é apto e o processo é o próprio, inexistindo nulidades que o afectem na sua totalidade.
As partes são dotadas de personalidade e de capacidade judiciária e, por terem interesse na causa, são legítimas, sendo também regular o respectivo patrocínio.
Inexistem quaisquer nulidades secundárias arguidas, excepções ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa.
*
Porque os autos contêm os elementos necessários à prolação da decisão de mérito, passo a decidir ao abrigo do disposto no artº 595º, nº 1, al. b), do Cód. Proc. Civil.
(…) [segue-se o relatório, bem como fundamentação de facto e de direito]
VI - Decisão
Pelo exposto, em conformidade com as citadas disposições legais, decide o Tribunal julgar totalmente improcedente, por não provada, a oposição à execução deduzida por CS contra Novo Banco, S.A., devendo os autos da acção executiva prosseguirem os ulteriores termos.
Custas a cargo do opoente - art. 527º, nºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.
Registe e notifique.”
Inconformado com esta decisão, veio o Executado-Embargante interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1.ª Ao contrário do decidido no Saneador-Sentença recorrido, os autos não continham todos os elementos necessários à prolação da decisão de mérito da causa, atentas todas as soluções plausíveis de Direito;
2.ª Sendo relevante apurar qual o valor de mercado do imóvel cuja aquisição havia sido financiada pelo contrato de locação financeira dos autos;
3.ª Facto que, tendo sido alegado pelo Opoente, era relevante para a apreciação da questão da nulidade da cláusula 13ª, n.º 3, al. b) das Condições Gerais do contrato dos autos, por desproporcionada aos danos a ressarcir;
4.ª Ao contrário do decidido no Saneador-Sentença recorrido, não tendo a livrança entrado em circulação e encontrando-nos no âmbito das relações imediatas, podia o Opoente/avalista invocar os meios de defesa do avalizado;
5.ª O referido meio de defesa não era apenas um meio de defesa do avalizado;
6.ª Sendo também um meio de defesa próprio do Opoente/avalista, o qual, no pacto de preenchimento, só havia dado autorização para que a livrança fosse preenchida caso não fossem cumpridas as obrigações derivadas do contrato de locação financeira dos autos;
7.ª Havendo que apurar da existência ou inexistência (por serem nulas ou estarem dependentes da prévia resolução do contrato) dessas obrigações;
8.ª Mesmo que se entendesse que o Tribunal recorrido podia decidir, como decidiu, do mérito da causa sem previamente ordenar a realização da perícia requerida pelo Opoente e da audição da testemunha por ele indicada, nunca poderia ter dispensado a realização da audiência prévia;
9.ª Conforme se dispõe no art. 593º, n.º 1 do CPC, o Tribunal só pode dispensar a audiência prévia “nas ações que hajam de prosseguir”;
10.ª O Saneador-Sentença no âmbito do qual foi dispensada a realização de um ato que a lei prescreve – cfr. art. 591º do CPC – com influência na decisão da causa, é nulo – cfr. art. 195º do CPC;
11.ª A Sentença recorrida decidiu que o Exequente podia resolver o contrato dos autos sem prévia interpelação, uma vez que constava do contrato uma cláusula resolutiva expressa que o permitia;
12.ª Porém, o Exequente não invocou em sua defesa a referida cláusula;
13.ª Assim, não tendo a questão da existência de eventual cláusula resolutiva expressa sido suscitada por qualquer das partes, estava vedado ao Tribunal ocupar-se dela;
14.ª Ao Tribunal só é permitido o conhecimento oficioso das exceções dilatórias e das exceções perentórias cujo conhecimento a lei não torne dependente da vontade do interessado;
15.ª Desta forma, o Tribunal conheceu de questão que não podia apreciar;
16.ª Consequentemente, a Sentença é nula por excesso de pronúncia;
17.ª De qualquer modo, não tendo a questão da cláusula resolutiva expressa sido suscitada por qualquer das partes, não podia Tribunal a quo tê-la apreciado sem que antes tivesse notificado as partes para se pronunciarem sobre a mesma;
18.ª Não o tendo feito, verifica-se a violação do princípio do contraditório;
19.ª Tendo-se praticado um ato que a Lei não admite, ocorre uma nulidade, por o conhecimento dessa questão ter tido manifesta influência na decisão da causa;
20.ª O Tribunal não conheceu a questão, suscitada pelo Oponente, da invalidade da cláusula inserta na al. b) o n.º 3 da Cláusula 13ª do contrato dos autos, por entender que, tendo em conta a independência e abstração inerentes ao aval, o avalista não pode servir-se dos meios de defesa do avalizado contra o portador da letra;
21.ª No caso dos autos, a livrança não foi endossada nem posta em circulação, estando-se assim no âmbito daquilo a que se convencionou chamar as “relações imediatas”;
22.ª Como tal, era lícito ao Oponente invocar que a mencionada cláusula contratual era nula por se tratar de cláusula penal desproporcional aos danos a ressarcir;
23.ª Consequentemente, o Meritíssimo Juiz deveria ter-se pronunciado sobre essa questão, suscitada pelo Oponente na sua petição de embargos;
24.ª Não o tendo feito, a Sentença é nula por omissão de pronúncia;
25.ª Consta dos Factos 4.1 e 4.2 a maior parte daquilo que foi alegado/confessado pelo Exequente no ponto 7 do seu requerimento executivo;
26.ª No entanto, foi também aí alegado, sem que conste daqueles factos, que o contrato de locação financeira imobiliária dos autos tinha o valor total de 345.600,00 €;
27.ª Tal aspeto é relevante para a apreciação da questão, suscitada pelo Opoente, da nulidade/redução da cláusula 13ª, n.º 3, al. b) das Cláusulas Gerais do referido contrato, por desproporcionada aos danos a ressarcir;
28.ª Desta forma, o Facto 4.2 deve passar a ter a seguinte redação:
A livrança destinou-se a garantir o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de locação financeira imobiliária nº 2019170, formalizado no dia 17/01/2007, com o valor total de 345.600,00 €, através do qual a Besleasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. declarou dar de locação a JS – Sociedade de Canalizações, Lda., que por sua vez declarou aceitar, o imóvel melhor identificado no ponto I das Condições Particulares;
29.ª Consta do Facto 4.7 que no dia 16/12/2010 foi assinado entre “a exequente locadora e a sociedade locatária, nesse acto representada pelo aqui opoente na qualidade de gerente com poderes para o acto”, um Aditamento ao contrato de locação financeira dos autos;
30.ª Basta analisar as págs. 19 a 23 do Doc. n.º 2 junto com o requerimento executivo para verificar que esse aditamento foi assinado (tendo a assinatura sido reconhecida) por MS e não pelo Opoente CS;
31.ª Assim, a expressão “nesse acto representada pelo aqui opoente na qualidade de gerente com poderes para o acto” deve ser eliminada do Facto 4.7;
32.ª Alegou/confessou ainda o Exequente, no ponto 9 do seu requerimento executivo que:
Comprometeu-se, ainda, o Exequente a vender o dito imóvel àquela sociedade se assim aquela o pretendesse, posto que o contrato fosse integralmente cumprido, e pago o valor residual de € 34.560,00, conforme Cláusula IV das Condições Particulares do cit. Doc. n.º 2;
33.ª Tal facto, para além de ter sido confessado pelo Exequente, encontra-se provado pelo Doc. n.º 2 junto ao requerimento executivo;
34.ª Como resulta do Facto nº 4.5, encontra-se previsto na cláusula 13ª, nº 3, al. b) do contrato dos autos que, resolvido este, seria devida uma indemnização equivalente a 30% das rendas vincendas e do valor residual;
35.ª É relevante para a apreciação da questão da nulidade desta cláusula – por desproporção em relação aos danos a ressarcir - saber qual o valor residual;
36.ª Devendo, pois, acrescentar-se à matéria assente um Facto de teor idêntico ao alegado no ponto 9 do requerimento executivo;
37.ª Consta do art. 8º da Oposição à Execução que:
“Ora, a livrança dada à execução foi entregue ao Exequente em branco, encontrando-se por preencher, designadamente, a respectiva quantia e a data de vencimento”;
38.ª O que, aliás, o Exequente confessa no ponto 6 do requerimento executivo;
39.ª Este facto é relevante para a apreciação da questão, suscitada pelo Opoente, do preenchimento abusivo da livrança;
40.ª Desta forma, deve ser acrescentado à matéria assente um facto de teor igual ao alegado no art. 80 da Oposição;
41.ª O alegado nos arts. 12º e 13º da Oposição encontra-se provado pelo Doc. nº 2 junto com o requerimento executivo e é relevante para apreciar a questão da indeterminabilidade do objeto do aval;
42.ª Devendo, pois, aditar-se à matéria assente dois factos de teor idêntico ao alegado nos arts. 12º e 13º da Oposição;
43.ª O alegado no art. 21º da Oposição resulta provado em virtude do Doc. nº 8 junto com o requerimento executivo e pela confissão feita pelo Exequente no art. 78º da sua Contestação e é relevante para apreciar as questões da indeterminabilidade do objeto do aval, do preenchimento abusivo da livrança e da nulidade da cláusula 13ª, n.º 3, al. b) das Condições Gerais do contrato dos autos;
44.ª Devendo, pois, acrescentar-se à matéria assente um Facto de teor idêntico ao alegado no art. 21º da Oposição;
45.ª Os factos alegados nos arts. 61º e 62º da Oposição não foram impugnados pelo Exequente;
46.ª Muito pelo contrário, foram por este reconhecidos nos arts. 73º e 74º da sua Contestação;
47.ª Devendo, pois, considerar-se provados tais factos por confissão, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 732º, n.º 3, 567º, 568º e 574º n.º 2 do CPC;
48.ª Tais factos são relevantes para a apreciação das questões do preenchimento abusivo da livrança, pressupostos da resolução do contrato e nulidade da cláusula 13ª das cláusulas gerais do contrato dos autos (incluindo a questão da nulidade da cláusula resolutiva expressa);
49.ª Devendo, pois, acrescentar-se à matéria assente dois factos de teor idêntico ao alegado nos arts. 61º e 62º da Oposição;
50.ª Os factos alegados nos arts. 69º a 71º da Oposição encontram-se provados pelo Doc. nº 1 junto com a Oposição;
51.ª O teor dos referidos artigos é relevante para apreciar a nulidade/redução da cláusula 13ª, n0 3, al. b) das Cláusulas Gerais do contrato de locação financeira dos autos, por desproporcionada aos danos a ressarcir;
52.ª Devendo, pois, ser acrescentado aos Factos Provados um com o seguinte teor: O imóvel mencionado no Facto 4.2 dos Factos Assentes, cuja propriedade pertence ao Exequente,  foi avaliado em 2015 pela Autoridade Tributária e  Aduaneira em 286.237,95;
53.ª Prevê-se no Ponto X do contrato de locação financeira dos autos que o Ponto IV (do qual constava a modalidade de cálculo, modalidade de pagamento, número de rendas, valor das rendas, indexação e taxa das rendas e respetivo vencimento) podia ser alterado por acordo e simples troca de correspondência entre as partes;
54.ª Assim, sem qualquer intervenção ou sequer conhecimento por parte dos avalistas, podiam ser alteradas cláusulas tão determinantes como as que diziam respeito ao número e valor das rendas e às taxas de juro aplicáveis;
55.ª Ao contrário do decidido na Sentença recorrida, a obrigação avalizada, para além de indeterminada, não era, na data da sua constituição, passível de ser determinada;
56.ª O Oponente não podia saber, na data em que a obrigação foi constituída, qual era o seu conteúdo e quais eram os limites da sua responsabilidade;
57.ª Consequentemente, o aval dos autos é nulo por indeterminabilidade do seu objeto;
58.ª Não podia o Tribunal debruçar-se, como se debruçou, sobre a cláusula resolutiva expressa;
59.ª Tal cláusula é nula, por se tratar de cláusula contratual geral e o Exequente não provou ter cumprido, relativamente a ela, os deveres de comunicação e informação previstos nos arts. 511, 611 e 811 da LCCG;
60.ª Muito menos que o tenha feito com a antecedência devida;
61.ª Sendo nula a referida cláusula – que deverá, pois, ser excluída do contrato – não se verificou o incumprimento definitivo do mesmo (que estava dependente de interpelação admonitória);
62.ª Quando o Exequente, por carta datada de 26/09/2014, resolveu o contrato dos autos, a condição prevista naquela cláusula 13ª – mora por mais de 60 dias – apenas se verificava relativamente à 91ª prestação, vencida desde 20/07/2014;
63.ª Atribuir-se, como se atribuiu no Saneador-Sentença recorrido, eficácia àquela cláusula resolutiva expressa, permitiria a resolução imediata de um contrato com base no atraso de pagamento de uma prestação no valor de 2.189,00 €, quando a devedora já havia pago 90 prestações (no montante global de 197.010,00 €);
64.ª O que não pode deixar de se considerar atentatório da boa fé e um claro abuso de direito;
65.ª Mesmo que se admitisse a existência dessa cláusula resolutiva expressa, nunca poderia o Saneador-Sentença recorrido considerar legítimo o seu acionamento.
66.ª A aplicação, em concreto da referida cláusula ao caso dos autos, revela-se manifestamente excessiva em relação aos danos a ressarcir;
67.ª Deveria tal cláusula penal ter sido reduzida pelo Tribunal com base no art. 811º, n.º 3 e 812º do C. Civil;
68.ª Não sendo legítima a resolução imediata do contrato (sem interpelação admonitória), foi abusivo o preenchimento da livrança dos autos;
69.ª Antes do preenchimento das livranças deve ser dada aos avalistas a possibilidade de cumprir, sob pena de, caso essa interpelação para cumprimento não aconteça, não lhe poderem ser impostas as penas associadas ao incumprimento;
70.ª Sendo abusivo o preenchimento da livrança que os contemplou;
71.ª Devendo, pois, julgar-se extinta a execução;
72.ª Decidindo como decidiu, o Saneador-Sentença recorrido violou os arts. 195, 567º, 574º n.º 2, 578º, 579º 593º, 595º, 608º, 732º, n.º 3 do CPC; 280º, 805º, 808º, 811º e 812º do CC; 17º; 19º e 32º da LULL e 5º, 6º e 8º do DL n.º 446/85.
Termina o Apelante requerendo que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se o Saneador-sentença recorrido.
A Exequente-Apelada apresentou alegação de resposta, defendendo que seja negado provimento ao recurso.
Foi proferido despacho de admissão do recurso, no qual consta, além do mais, que:
“Afigurando-se-me que a decisão recorrida não enferma de qualquer nulidade que cumpra reparar, ou pedido de reforma que cumpra apreciar, determina-se que os autos subam ao Tribunal da Relação de Lisboa – art. 641º, nº 1, do CPC.”
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se o saneador-sentença recorrido é nulo porque não podia ter sido proferido, conhecendo do mérito da causa, sem a realização de audiência prévia;
2.ª) Se o saneador-sentença recorrido é nulo por omissão de pronúncia sobre questão que o juiz devia apreciar - atinente à nulidade da cláusula 13.ª, n.º 3, al. b) das Condições Gerais do contrato dos autos (por desproporcionada aos danos a ressarcir) - e para cujo conhecimento era indispensável a produção da prova pericial;
3.ª) Se o saneador-sentença recorrido é nulo por o juiz ter conhecido de questão - atinente a cláusula resolutiva expressa do contrato de locação financeira - de que não podia tomar conhecimento, pelo menos sem previamente ouvir as partes a esse respeito;
4.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto;
5.ª) Se o aval na livrança em apreço é nulo por indeterminabilidade do seu objeto;
6.ª) Se a livrança foi preenchida abusivamente, ante a (in)validade da cláusula 13.ª, n.º 3, al. b) das Condições Gerais do contrato de locação financeira e a falta de interpelação admonitória dos avalistas.
1.ª questão – Da dispensa da audiência prévia
O Apelante insurge-se contra a circunstância de a prolação da decisão recorrida - que conheceu do mérito da causa, julgando improcedentes os embargos - não ter sido precedida da realização de audiência prévia.
A Exequente-Apelada discorda, argumentando, em síntese, a este respeito que: em momento processual algum o Recorrente se opôs à não realização da audiência prévia, tendo até apresentado alegações escritas no prazo concedido pelo Tribunal, pelo que não se tendo pronunciado no devido tempo, reclamando, assim, do despacho saneador, não pode vir agora, em sede de recurso, suscitar uma questão cujo meio processual de reação há muito que se encontra ultrapassado; o Tribunal a quo cumpriu todas as formalidades processuais a que está vinculado por lei, em obediência aos princípios do contraditório e da gestão processual na dimensão do poder de simplificação e agilização processual, pelo que improcede a alegada nulidade do Saneador-Sentença derivada da dispensa da realização da Audiência Prévia.
Apreciando.
Na apreciação da questão vamos seguir de perto a fundamentação expendida em anterior acórdão da Relação de Lisboa relatado pela ora Relatora e com intervenção do ora 1.º Adjunto (ac. de 09-07-2020, processo n.º 18004/17.2T8SNT.L1), e também no acórdão desta Relação de 04-06-2020, proferido no processo n.º 6798/16.7T8LSB-A, em que a ora Relatora teve intervenção como 2.ª Adjunta, salientando-se, desde já, que este último foi proferido num caso em tudo idêntico ao dos autos.
Começamos por lembrar que, nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação (cf. art. 597.º do CPC e art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08), a realização da audiência constitui o regime regra, conforme resulta do disposto nos artigos 592.º e 593.º do CPC. Assim, no que ora importa, preceitua o n.º 1 do art. 593.º (atinente à “Dispensa da audiência prévia”) que “(N)as ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º”.
Nos casos previstos na alínea a) do n.º 1 do art. 592.º e no n.º 1 do art. 593.º, em que a audiência prévia não se realiza ou é dispensada, o juiz profere despacho saneador (cf. n.º 1 do art. 595.º), despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (cf. n.º 1 do art. 596.º) e despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas – cf. artigos 592.º, n.º 2, e 593.º, n.º 2.
O despacho saneador destina-se, conforme resulta do n.º 1 do art. 595.º do CPC, a conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, o tribunal deva apreciar oficiosamente [alínea a)]; e a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória [alínea b)]. De salientar ainda que, quando a audiência prévia se destine a facultar às partes a discussão de facto e de direito nos casos em que o juiz tenciona proferir saneador-sentença nos termos conjugados dos artigos 591.º, n.º 1, al. b), e 595.º, n.º 1, al. b), é possível, quando a complexidade das questões a decidir o exija, que este seja proferido por escrito, após a audiência prévia, conforme resulta do n.º 2 do art. 595.º.
A importância que o legislador do novo Código de Processo Civil pretendeu conferir à audiência prévia, como um dos instrumentos de promoção de uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, resulta bem patente da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 2012-11-22) que está na génese da Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou aquele Código, designadamente das seguintes passagens (sublinhado nosso):
O novo figurino da audiência prévia, designação ora dada à audiência a realizar após a fase dos articulados, assente decisivamente num princípio de oralidade e concentração dos debates, pressupondo a intervenção ativa de todos os intervenientes na lide, com vista a obter uma delimitação daquilo que é verdadeiramente essencial para a sua plena compreensão e justa resolução, conjugado com a regra da inadiabilidade e com a programação da audiência final, é suscetível de potenciar esse resultado desejável.
(…) No que respeita à tramitação da ação declarativa, as alterações introduzidas visam assegurar a concentração processual, em termos de a lide, cumprida a fase dos articulados, se desenvolver em torno de duas audiências: a audiência prévia e a audiência final.
Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspectos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense.
(…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.”
Sendo muito vasta a doutrina a este respeito, destaca-se a lição de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, pág. 650, explicando estes autores, em anotação ao art. 593.º, que “os casos em que a dispensa da audiência prévia é permitida só parcialmente coincidem com aqueles em que se admitia a dispensa da audiência preliminar: a dispensa pressupõe agora que a audiência prévia se destinasse apenas ao proferimento de despacho saneador (dantes, a audiência preliminar não podia sequer ser convocada com este fim exclusivo), à adequação formal ou gestão processual (dantes, esta finalidade era quanto muito, complementar das da audiência preliminar), ou ao proferimento do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (único aspeto em que existe alguma coincidência com o código anterior, já que neste se admitia a dispensa da audiência preliminar quando esta se destinasse à fixação da base instrutória.
Fora destes casos, o juiz não pode dispensar a audiência prévia, nomeadamente quando se verifiquem os requisitos da alínea b) ou da 2.ª parte da alínea c) do art. 591-1. Quanto à realização da tentativa de conciliação (alínea a) do mesmo art. 591), há que ter em conta que ela não é obrigatória (art. 594), o mesmo se podendo dizer da discussão das posições das partes (1.ª parte do art. 591-1-c). Finalmente, resulta do n.º 2-d do artigo em anotação que a programação da audiência final (al. g) do memso art. 591-1) tem lugar fora da audiência prévia quando esta seja dispensada, pelo que tão-pouco constitui finalidade obrigatória dela.
Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do art. 3-3, “assim se garantindo, não apenas o comtraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa” (ac. do TRP de 12.11.15 Filipe Caroço, www.dgsi.pt, proc. 4507/13). No mesmo sentido: acs. do TRL de 13.11.14 (Ana Azeredo Coelho), www.dgsi.pt, proc. 673/03, de 5.5.15 (Cristina Coelho), www.dgsi.pt, proc. 1386/13, e do TRP de 24.9.15 (Judite Pires), www.dgsi.pt, proc. 128/14, decretando nulidade, respetivamente por não convocação da audiência prévia para discussão do mérito da causa, apreciado no despacho saneador, e por não convocação da audiência prévia para discussão de exceção perentória, julgada procedente no despacho saneador. Também no mesmo sentido, mas admitindo (“quando muito”) que, por adequação formal, após audição das partes, o juiz possa dispensar a audiência prévia, com fundamento em que a matéria em causa já fora suficientemente debatida nos articulados (restrição esta muito duvidosa), veja-se o ac. do TRL de 9.10.14 (Jorge Manuel Leitão Leal) www.dgsi.pt, proc. 2164/12, e, no mesmo sentido, o ac. do TRE de 30.6.16 (Mário Serrano), www.dgsi.pt, proc. 309/15. No mesmo sentido da nossa anotação: Rui Pinto, Notas cit., n.ºs 3 e 4 da anotação ao artigo 595 (também crítico em face da possibilidade da adequação formal admitida pelo citado ac. do TRL de 9.10.14).
Maior margem de discricionariedade resulta do art. 597 para as ações de valor não superior a metade da alçada de Relação”.
Serve esta citação também para evidenciar que a jurisprudência não foi pacífica a este respeito, não faltando decisões judiciais (sobretudo da 1.ª instância) no sentido da possibilidade de dispensa da audiência prévia quando se destinasse a proferir despacho saneador que conhecesse do mérito da causa, argumentando que o art. 593.º, n.º 1, do CPC, ao referir-se ao fim indicado na alínea d) do n.º 1 do 591.º abrange a previsão da alínea b) do art. 595.º, n.º 1, atinente ao despacho saneador. Mas trata-se, a nosso ver, de uma inaceitável interpretação ab-rogante do art. 593.º, n.º 1, do CPC.
Numa posição mais alinhada com o regime legal, mas ainda assim não isenta crítica (e que não seguimos), tem sido defendida a desnecessidade da audiência prévia cuja finalidade fosse a discussão prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 591.º do CPC e a prolação de despacho saneador que conheça do mérito da causa, apreciando uma exceção perentória, nos termos conjugados dos artigos 591.º, n.º 1, al. d), e 595.º, n.º 1, al. b), ambos do CPC, desde que o contraditório a respeito da matéria da exceção já tivesse sido cumprido – neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa de 11-10-2018, no processo n.º 166/17.0T8AND.L1-6.
Pensamos, contudo, que a jurisprudência vem maioritariamente convergindo no sentido, que também perfilhamos, de reconhecer que, no atual Código de Processo Civil, se consagrou, como regra, a obrigatoriedade da realização da audiência prévia, com as ressalvas expressamente previstas nos citados artigos (592.º, 593.º e 597.º do CPC), admitindo tão só os “desvios” que, casuisticamente, possam ser determinados pelo juiz, com a prévia audição e o (indispensável) acordo das partes à dispensa da audiência prévia, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (artigos 6.º e 547.º do CPC). Assim, a título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 09-10-2014, no processo n.º 2164/12.1TVLSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário, pelo seu interesse, se passa a citar:
“I. Se, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito.
II. A não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio; tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do CPC).
III. A prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido.”
No mesmo sentido, veja-se ainda, da mesma Relação, o acórdão de 05-05-2015, no processo n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7, e, mais recentemente, o acórdão de 08-02-2018, no processo n.º 3054-17.7T8LSB-A.L1-6, ambos disponíveis em www.dgsi.pt; e ainda o acórdão de 11-12-2019, proferido no processo n.º 98964/18.2YIPRT, em que foi Adjunta a ora Relatora, (disponível em https://outrosacordaostrp.com), com diversas referências à doutrina e jurisprudência sobre esta problemática e cujo sumário tem o seguinte teor:
“I – Nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação, quando o juiz tencionar conhecer, de imediato, do mérito da causa, a audiência prévia não pode ser dispensada (arts. 593/1, a contrario, e 591/1-b, ambos do CPC), sob pena de nulidade (art. 195/1 do CPC), contra a qual, se a dispensa estiver a coberto de um despacho judicial, se deve reagir com um recurso.
II – Ao abrigo do poder de adequação processual (arts. 6 e 547 do CPC), pode-se aceitar, no entanto, essa dispensa, desde que, pelo menos, ouvidas as partes, estas a aceitem ou não se oponham a ela.
III – Aquela nulidade não fica sanada pelo facto de o contraditório ter sido observado por escrito, pois que a audiência prévia pressupõe a oralidade.”
Nesta linha, insere-se também o acórdão da Relação de Guimarães de 01-03-2018, proferido no processo n.º 9217/15.2T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere designadamente que:
“3- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem;
4- Em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, caso o juiz entenda, finda a fase dos articulados, que o processo deverá findar imediatamente com decisão de mérito, deve convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito, sem o que a prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença viola o princípio do contraditório (constituindo uma decisão-surpresa, caso a questão não tenha sido debatida nos articulados);
5- Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.”
Aliás, nesse acórdão, depois de se afirmar o que foi reproduzido no ponto 4 do sumário, desenvolve-se essa afirmação, citando precisamente o referido acórdão da Relação de Lisboa de 09-10-2014, no processo n.º 2164/12.1TVLSB.L1-2 (sublinhado nosso): “(…) A não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio; tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do CPC). (…) A prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido.”
É também esta, como já acima adiantámos, a nossa posição. Com efeito, fazendo uma interpretação teleológica e sistemática de todos os citados preceitos legais, consideramos que a regra da obrigatoriedade da realização da audiência prévia, aplicável numa “normal” tramitação dos autos, e fora dos casos expressamente previstos na lei (cf. artigos 592.º, 593.º e 597.º do CPC), apenas pode ser afastada quando as especificidades da causa assim o justifiquem, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (artigos 6.º e 547.º do CPC), desde que, para além do indispensável contraditório sobre as questões de direito ou de facto a apreciar no saneador-sentença, as partes se possam previamente pronunciar sobre a conveniência duma diferente tramitação processual, manifestando a sua concordância de forma expressa ou tácita (pela não oposição) à dispensa da audiência prévia.
De salientar que a importância dos deveres de gestão processual e adequação formal está bem patente em vários outros preceitos do atual Código de Processo Civil e também mereceu destaque na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 2012.11.22):
“Mantém-se e amplia-se o princípio da adequação formal, por forma a permitir a prática dos actos que melhor se ajustem aos fins do processo, bem como as necessárias adaptações, quando a tramitação processual prevista na lei não se adeqúe às especificidades da causa ou não seja a mais eficiente.
Importa-se para o processo comum o princípio da gestão processual, consagrado e testado no âmbito do regime processual experimental, conferindo ao juiz um poder autónomo de direcção ativa do processo, podendo determinar a adopção dos mecanismos de simplificação e de agilização processual que, respeitando os princípios fundamentais da igualdade das partes e do contraditório, garantam a composição do litígio em prazo razoável. No entanto, não descurando uma visão participada do processo, impõe-se que tais decisões sejam antecedidas da audição das partes” (sublinhado nosso).
Sendo este o quadro legal em que nos movemos, não poderá deixar de se entender que perante a não realização da audiência, dispensada por decisão judicial, fora das situações em que tal dispensa seja legalmente admissível, se verifica uma nulidade processual (a omissão de um ato que a lei impõe). E o recurso dessa decisão constitui o meio próprio para reagir contra tal nulidade, porquanto coberta por uma decisão judicial/despacho que ordenou, autorizou ou sancionou (ainda que só de modo implícito) o respetivo ato ou omissão. Neste sentido, veja-se a lição de Manuel de Andrade, explicando que se trata da “doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se” (in “Noções elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 183). Não estando a nulidade a coberto de decisão judicial (despacho), a mesma deve ser arguida, mediante reclamação, nos termos e prazo do art. 199.º do CPC.
Embora essa nulidade processual implique a anulação de subsequente saneador-sentença (cf. art. 195.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), até se pode afirmar também, como faz Miguel Teixeira de Sousa, “o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC); a nulidade do processo só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que revela a nulidade processual) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um acto, mas também com o conteúdo do despacho).” - Post de 21-12-2015 (Jurisprudência 250), in https://blogippc.blogspot.com/
Transpondo estas considerações para os presentes autos, começamos por verificar que: (i) não se estava perante um caso de “não realização da audiência prévia”, mormente nos termos do art. 592.º, n.º 1, al. b); e (ii) tão pouco podia ser dispensada a audiência prévia ao abrigo do art. 593.º, n.º 1, já que a mesma não se destinaria, se fosse convocada numa “normal” tramitação dos autos, apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do art. 591.º - cf. n.º 3 do art. 593.º, antes se destinaria, na perspetiva do Tribunal a quo, a facultar às partes a discussão nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art. 591.º do CPC, bem como à prolação de saneador-sentença que iria determinar a extinção da instância, não podendo a ação prosseguir - cf. artigos 277.º, al. a), 591.º, n.º 1, al. d), e 595.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Portanto, não há dúvida que, como o Tribunal recorrido tencionava conhecer imediatamente do mérito da causa, colocando fim ao processo com essa decisão (saneador-sentença), se aplicava a regra da realização da audiência prévia.
Assim se pronunciou já, numa situação em tudo igual à dos autos, este Tribunal da Relação de Lisboa, no referido acórdão de 04-06-2020, afirmando-se: «claramente, como se estava perante o fim indicado na al. b do art. 591/1 – pois que o juiz tencionava conhecer, imediatamente, do mérito da causa – e não perante um dos previstos nas alíneas (d), (e) e (f), a audiência não podia ser dispensada.
Neste sentido, o ac. do TRP de 12/11/2015, proc., 4507/13.1TBMTS-A.P1, com o qual o Prof. Miguel Teixeira de Sousa [num post de 21/12/2015 no blog do IPPC] concorda, embora dizendo que “O acórdão complica o que era bastante mais simples de fundamentar; a audiência prévia não podia ser dispensada, simplesmente porque a sua realização é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador (art. 591/1-b e 593/1 a contrario, CPC).
Em algumas decisões judiciais tem-se visto defender que o art. 591/1-d do CPC se refere à hipótese de se visar proferir despacho saneador, nos termos do art. 595/1, e que este tem duas alíneas. Quando o art. 593/1 permite a dispensa da audiência prévia no caso do art. 591/1-d está a permiti-la quer seja o caso da al. a ou da al. b do art. 595/1. Como a al. b se refere à hipótese de conhecimento imediato do mérito da causa, a possibilidade da dispensa abrange esta hipótese. Será com base nisto que o exequente defende que a lei prevê, nestes casos, a possibilidade de dispensa da audiência prévia.
Mas esta argumentação esquece que o art. 593/1 diz que a audiência só pode ser dispensada quando ela se destine apenas aos fins indicados nas alíneas (d) a (f), não abrangendo, por isso, a al. b do art. 591/1. Assim, aquela interpretação é uma ilegítima interpretação ab-rogante do art. 593/1 do CPC.”
Resta saber se, ante o processado anterior à prolação do despacho recorrido, se estava perante um caso em que o Tribunal podia ter dispensado a audiência prévia, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal.
Desde já adiantamos que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, as partes foram notificadas para, em 10 dias, se pronunciarem sobre a possibilidade de dispensa de audiência prévia, a qual se destinaria precisamente aos fins previstos no art. 591.º, n.º 1, al. b), do CPC, com advertência de que, caso nada viessem dizer, o Tribunal proferiria decisão por escrito sobre o mérito da causa.
Ora, ambas as partes se pronunciaram, mas nada disseram a respeito da dispensa da audiência prévia, sendo descabido considerar que, como o Embargante não requereu a realização da audiência prévia, a mesma não se tinha de realizar. Ao assim entender, o Tribunal recorrido desconsiderou em absoluto que o Embargante não requereu - nem tinha que requerer - a realização de audiência prévia, até porque pugnou pelo prosseguimento dos autos com a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, além da ulterior produção de prova pericial, caso em que, obviamente, a audiência prévia podia ser dispensada, pelo que não havia motivo para vir “requerer” a realização da audiência prévia.
De qualquer modo, a regra é, não se pode olvidar, a de que a audiência prévia se tem de realizar, só podendo ser dispensada com base nos aludidos deveres de gestão processual e adequação formal em situações pontuais, verificados determinados pressupostos, um dos quais não pode deixar de ser a expressa concordância das partes à dispensa da audiência prévia e à imediata prolação da decisão de mérito. Ora, é por demais evidente que, não se pode retirar da falta de oposição expressa à dispensa da audiência uma espécie de assentimento tácito, tanto mais que a advertência feita no aludido despacho foi a de que seria proferida (de imediato) decisão escrita sobre o mérito da causa se as partes nada viessem dizer, o que não aconteceu, já que ambas se pronunciaram, defendendo o Embargante que o estado do processo ainda não permitia conhecer do mérito da causa.
Também nesta linha de pensamento se afirmou no referido acórdão da Relação de Lisboa de 04-06-2020, a propósito da possibilidade da dispensa da audiência prévia com base no poder de adequação processual (arts. 6.º e 547.º do CPC), que:
«Mas, aceitando-se embora essa possibilidade, há que ter em conta que a “adequação processual tem sempre como limite as normas imperativas e os princípios fundamentais do processo civil” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, 2017, pág. 472), e que, como se diz no ac. do STJ de 12/09/2019, proc. 1238/14.9TVLSB.L1.S2, com o exercício do dever de gestão processual se pretende obter uma tramitação expedita dentro dos mecanismos previstos na lei, e não a realização de actos não permitidos por lei […].” Pelo que não se pode chegar ao ponto de, através do poder de adequação processual, mas sem o acordo das partes, se dispensar actos ou formalidades prescritos pela lei com carácter obrigatório.
Neste sentido, do consentimento das partes como um dos requisitos da dispensa da audiência com base no poder de adequação, veja-se, expressamente, o ac. do TRL de 04/06/2019, proc. 214/16.1T8MFR.L1-7; é este também, ao que se crê, o entendimento daqueles que se pronunciam no sentido da decisão da dispensa ser precedida da consulta das partes (veja-se Lebre de Freitas, obra citada, 2.º vol., pág. 650, e os acórdãos aí referidos, conjugado com a critica, logo a seguir, no mesmo parágrafo, a um outro acórdão do TRL que admite a hipótese de, por adequação processual, após a audição das partes, o juiz poder dispensar a audiência prévia, com fundamento em que a matéria em causa já fora suficientemente debatida nos articulados; com idêntica crítica, veja-se Rui Pinto, Notas ao CPC, vol. II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2015, págs. 57-58). Para que é que se consultariam as partes sobre a possibilidade da dispensa, se depois, perante a oposição de uma delas, se dispensaria a mesma? De resto, pareceria ser este, também, o entendimento do despacho recorrido, quando refere: “e, concordando com essa dispensa, para, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência prévia […].”
(…) Ora, no caso dos autos, embora os embargantes (…) não tenham requerido “que se obstasse ao imediato conhecimento do mérito da causa”, declararam entender “ser imprescindível que se produza prova testemunhal” e “requereram que os autos prossigam os seus termos, realizando-se audiência de julgamento, com as demais consequências legais”, o que não pode ser visto como uma não oposição à dispensa da audiência prévia. Pelo contrário, tendo o tribunal advertido as partes de que, decorrido tal prazo, se nada disserem, o tribunal proferirá decisão por escrito sobre o mérito da causa, a reacção dos embargantes é clara no sentido de não aceitarem o que tribunal queria, o que tem o sentido de uma oposição.
É certo que o tribunal recorrido poderia dizer que se os embargantes o que queriam era que se realizasse o julgamento para se produzir prova testemunhal, não se estavam a opor à dispensa da audiência prévia caso ficasse demonstrado que era possível decidir sem produção de prova testemunhal como o tribunal recorrido entenderá que demonstrou; mas a isto poderá responder-se que dizendo os embargantes que era necessário produzir prova, já estavam a dizer que, para eles a questão não podia ser decidida logo no saneador, o que representa uma oposição implícita à dispensa da audiência prévia no caso.
Não deixe de se dizer, ainda, que o princípio da adequação processual tem por fim permitir a adopção de mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (arts. 6 e 547 do CPC); ora, a complicada tramitação processual que se tem de exigir para que a dispensa da audiência prévia, quando obrigatória, não provoque nulidade processual, não se tem mostrado compatível com aquela simplificação e agilização processual.
O que, por outro lado, tem ainda a ver com outra circunstância: é que vários dos tribunais que dispensam, com a fundamentação da adequação processual, a audiência em contrapartida da possibilidade da discussão por escrito, o fazem em despachos em que expõem a posição de Direito que pensam vir a tomar e, aí sim, se pode entender que a parte pode discutir, com relevo, a matéria em causa, sem serem apanhadas de surpresa com o sentido da decisão que vier a ser tomada (veja-se, a discussão da questão, com algumas referências, no ac. do TRP de 10/12/2019, proc. 744/18.0T8PVZ.P1); ora, não foi isso o que aconteceu no caso dos autos.”
Não se olvida, por fim, o princípio da limitação dos atos (cf. art. 130.º do CPC), ponderando da utilidade de que, no presente processo, se poderá ainda revestir a realização da audiência prévia, considerando as posições já manifestadas pelas partes. Ora, desde logo pelo teor da alegação de recurso, face às várias questões de facto aí suscitadas, não podemos deixar de reconhecer que existirá toda a vantagem em proceder a uma efetiva discussão de facto e de direito, com observância dos princípios da cooperação, do contraditório e da oralidade, diligência que será gravada.
Além das considerações que a este respeito já acima fizemos, lembramos, mais uma vez, a fundamentação exposta no referido acórdão da Relação de Lisboa de 04-06-2020: “A dispensa da audiência prévia, quando se está perante um caso que não admite essa dispensa, ou quando ela não foi devidamente dispensada do modo referido acima, é uma irregularidade processual que implica uma nulidade processual, porque a lei entende que a observância do contraditório – na vertente de se dar às partes a possibilidade de influenciarem uma decisão antes de ela ser proferida – deve ter lugar oralmente, perante o juiz e, por isso, a não observância deste modo de exercício do contraditório pode, segundo a lei, influir no exame ou na decisão da causa (art. 195/1 do CPC).
Ou seja, na concepção da reforma de 2013 do CPC, concorde-se ou não se concorde com ela, “a audiência prévia […] assume[-se] como um dos momentos mais marcantes da acção declarativa. Esta audiência visa assegurar, com efectividade, a aproximação entre as partes, e estas e o tribunal, através de uma cultura de diálogo. Visa ainda que a actuação dos sujeitos processuais seja dominada pela ideia da oralidade e da cooperação entre todos. A audiência prévia contém virtualidades que a tornam um palco privilegiado onde, simultaneamente, actuam todos os intervenientes processuais, numa verdadeira comunidade de trabalho, sendo tal audiência um dos expoentes máximos da oralidade e da cooperação que caracterizam o processo civil moderno. […] […A] regra acerca da realização da audiência prévia expressa o entendimento legislativo de que há objectivos que só serão efectivamente alcançados por via desta audiência e das suas virtualidades […]” (as passagens entre aspas são de Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2015, págs. 256 e 322).
(…) Contra isto não vale dizer que a nulidade se encontra sanada, ou que ela não se chega a verificar, porque o contraditório acabou por ser observado (veja-se, por exemplo, o voto de vencido ao ac. do TRL de 10/10/2019, citado acima).
Primeiro, porque já se disse que é o modo como o contraditório deve ser observado que no caso tem relevo e não a formal observância do contraditório.
Segundo, porque, como referido acima, a observância do contraditório por escrito apenas teria relevo se ambas as partes tivessem aceitado a dispensa da audiência prévia (oral) ou não se tivessem oposto a ela.
Assim, verifica-se a nulidade da dispensa da audiência prévia que, entre o mais, tinha como finalidade o conhecimento do mérito da causa.
Não devendo ter sido dispensada, era nela que devia ter sido decidido tudo aquilo que foi decidido no saneador-sentença (o art. 593/1do CPC só permite a dispensa quando a audiência se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d a f), o que implica que toda ele seja anulado, por arrastamento da declaração da nulidade da dispensa (art. 195/2 do CPC).
Do meio de reacção
Apesar de ser uma nulidade processual, ela está coberta, expressamente, por um despacho judicial. Por isso, no caso, o modo de reacção contra ela não é a arguição da nulidade, sujeita ao prazo de 10 dias, mas o recurso contra o despacho em causa (neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, págs. 384-385). (…)».
Perante tudo isto, mais não resta do que concluir pela falta de acerto e ilegalidade da decisão recorrida, na parte em que dispensou a audiência prévia, e julgar verificada a nulidade processual da falta de realização da audiência prévia, com a anulação, por arrastamento, do saneador-sentença recorrido.
Por tudo o exposto, procedem, neste particular, as conclusões da alegação de recurso, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
Vencida a Exequente-Embargada-Apelada, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
*
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, na parte em que dispensou a audiência prévia, bem como julgar verificada a nulidade processual da dispensa da audiência prévia, com a consequente anulação, por arrastamento, da saneador-sentença recorrido, determinando-se agora que o processo prossiga os seus termos normais com a realização de tal diligência.
Mais se decide condenar a Exequente-Embargada-Apelada no pagamento das custas do presente recurso.
D.N.

Lisboa, 26-05-2022
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira (vencido, conforme declaração de voto infra)

Declaração de voto:
Vencido por entender que, no caso concreto, a dispensa de audiência prévia não gerou qualquer nulidade processual, na medida em que não corresponde a qualquer violação do princípio do contraditório que haja influído no exame ou decisão da causa.
Com efeito, e face ao disposto no art.º 195º do Código de Processo Civil, a dispensa da audiência prévia fora das circunstâncias a que aludem o art.º 592º e 593º, ambos do Código de Processo Civil, só produz nulidade se a lei assim o declarar (o que não é o caso), ou se influir no exame ou na decisão da causa, designadamente por violação do princípio do contraditório decorrente do nº 3 do art.º 3º do Código de Processo Civil.
Mas, no caso concreto dos autos, a circunstância de ambas as partes terem tido a possibilidade de “alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência prévia” (como ficou a constar do despacho de 4/12/2021), do mesmo modo se podendo pronunciar quanto à questão da dispensa dessa audiência prévia (igualmente nos termos determinados nesse mesmo despacho de 4/12/2021), permite afirmar que o contraditório se mostrava já concretamente assegurado (e efectivado), desde logo porque, “para além do indispensável contraditório sobre as questões de direito ou de facto a apreciar no saneador-sentença”, as partes puderam igualmente pronunciar-se “sobre a conveniência duma diferente tramitação processual, manifestando a sua concordância de forma expressa ou tácita (pela não oposição) à dispensa da audiência prévia” (aqui se recorrendo ao teor literal da posição maioritária expressa na fundamentação do acórdão), e na medida em que se entende que o debate por escrito não constitui qualquer diminuição do exercício efectivo do contraditório, relativamente ao debate oral.
O que equivale a afirmar que a violação da regra da obrigatoriedade de realização de audiência prévia, para debater oralmente e conhecer do mérito dos embargos de executado, em sede de despacho saneador (julgando os mesmos improcedentes), não teve qualquer influência no exame nem na decisão tomada, já que, sendo consubstanciado esse exame no exercício oral (em audiência prévia) do contraditório pelas partes, foi o mesmo contraditório anteriormente assegurado, por escrito.
Pelo contrário, a adopção da posição vencedora é susceptível de conduzir à desconsideração dos princípios de simplificação e agilização processual que decorrem do art.º 6º do Código de Processo Civil, e que merecem a mesma consideração que o princípio do contraditório, não podendo este considerar-se de forma absoluta, mas na sua relação com os referidos princípios de implicação e agilização processual, igualmente caros ao legislador de 2013, como decorre dos parágrafos 16 e 17 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII.
(António Moreira)