Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
70/14.4T8PDL.L1-1
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA E DO VALOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/01/2014
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O n.º 2 do art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, ao atribuir à instância central as ações a que se reporta o n.º 1 do mesmo preceito e que caibam às seções de comércio, deve ser interpretado no sentido de atribuir à instância central as ações a que se reporta o art.º 128.º da mesma lei, que tenham “valor superior a € 50.000,00”.

(Sumário do Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: VC … reclama, nos termos do disposto no art.º 105.º, n.º 4, do C. P. Civil, do despacho proferido pelo Tribunal reclamado em 30/9/2014, que se declarou incompetente em razão do valor e competente a seção cível da instância central, por se tratar de insolvência de valor superior a € 50.000,00, pedindo que se declare competente o tribunal reclamado, com fundamento em que a instância central de Ponta Delgada já se declarou incompetente para a ação, decorrendo do “despacho orientador” do Mm.º Juiz Presidente da Comarca dos Açores, de 8/7/2014, fundado no art.º 104.º do Dec. Lei n.º 49/2014 e nas deliberações do CSM, de 9/4/2014 e 25/6/2014, que os processos de insolvência ainda que de valor superior a € 50.000,00, são da competência das seções de instância local cível.

Já neste Tribunal da Relação foram juntos aos autos o despacho “orientador”, a fls. 46-55 e a deliberação do CSM de 9 de Abril de 2014 e respetivo despacho de execução, a fls. 56-61.

Conhecendo.

Atentos os termos da reclamação e os elementos juntos aos autos, a questão submetida à nossa apreciação consiste em saber se os art.ºs 128.º, n.º 1 e 117.º, n.º 2, da Lei da organização do sistema judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) devem ser interpretados no sentido de que nas comarcas onde não tenha sido instalada uma seção de comércio, os processos de insolvência de valor superior a € 50.000,00 são da competência da seção cível da instância central, como decidiu o tribunal reclamado, ou se os mesmos preceitos devem ser interpretados no sentido de que, independentemente do valor da causa, essa competência pertence às seções de instância local cível, como antes decidido pela instância central, louvando-se nos despachos e deliberação citados.

Na metodologia de apreciação desta questão começaremos por dizer que o despacho “orientador” e a deliberação do CSM não versam diretamente sobre essa mesma questão interpretativa, qua tal, mas sobre a TRANSIÇÃO de processos pendentes em tribunal na data da entrada em vigor da nova organização judiciária, constituindo, eles próprios, atos interpretativos do disposto no art.º 104.º do Dec. Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, o qual tem a natureza jurídica de norma transitória e não de norma atributiva de competência.

O presente processo deu entrada em tribunal em 18/9/2014, pelo que não está nele em causa a TRANSIÇÃO para a nova orgânica judiciária, mas apenas a competência dos novos tribunais para a sua tramitação, por esta instituídos, não lhe sendo aplicável o regime especial transitório estabelecido pelo 104.º, n.º 1, in fine, do Dec. Lei n.º 49/2014, nos termos do qual os: “…processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, … transitam para as correspondentes secções da instância local”.

E, assim, o cerne da questão, que ora nos ocupa, tem natureza meramente interpretativa dos textos legais citados, devendo a competência ser estabelecida de acordo com as normas próprias de atribuição de competência e não de acordo com a citada norma transitória.

Vejamos, pois.

Dispõe o art.º 128.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que:

 “Compete às secções de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.”.

Em conexão com este, dispõe o art.º 117.º, n.º 2, da mesma Lei, que:

 “Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a essas secções”,

 dispondo, por sua vez, o “numero anterior” (art.º 117.º, n.º 1) que:

 “Compete à secção cível da instância central: a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000”.

Na análise exegética destes preceitos constatamos que, depois da norma que colmata a inexistência de seções de comércio (n.º 2 do art.º 117.º), o único critério atributivo de competência à instância central é o critério do valor, a saber, processos de insolvência e os processos especiais de revitalização de valor superior a (euro) 50 000.

Serão, pois, da competência da instância central os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização de valor superior a € 50.000,00 e respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões, não se vislumbrando elemento interpretativo válido e seguro que aponte em sentido contrário, da atribuição direta da competência à instância local, ou que não incluindo tais ações na competência da instância central - como decorreria da sua valoração como “processo especial” por contraposição a “ação declarativa cível de processo comum” - atribuísse essa mesma competência à instância local, por força da norma de competência residual do art.º 130.º, n.º 1, al. a) da mesma Lei.

De fato, não existe uma simetria de oposição entre o disposto no art.º 117.º, n.º 1, al. a), ao reportar-se a “ações declarativas cíveis de processo comum” e o disposto no art.º 128.º, ao enumerar os processos e ações que são da competência das seções de comércio pelo seu objeto, prescindindo da forma de processo, não cuidando de saber se seguem a forma de processo comum ou especial.

Enquanto o art.º 117.º, n.º 1, al. a) dispõe que:

Compete à secção cível da instância central:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000”,

O art.º 128.º, n.º 1 dispõe que:

“1 - Compete às secções de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;

c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;

d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;

e) As ações de liquidação judicial de sociedades;

f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;

g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;

h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;

i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras”.

O n.º 2 do art.º 117.º, ao atribuir à instância central as ações a que se reporta o n.º 1 e que caibam às seções de comércio não pode deixar de ter em consideração essa não simetria oposicional, devendo, por isso, interpretar-se no sentido de atribuir à instância central as ações a que se reporta o art.º 128.º, de “valor superior a € 50.000,00”.

De outro modo, por um lado, se esvaziaria de conteúdo este n.º 2, transformando a instância local numa seção de comércio, ao contrário do explicitamente definido pelo legislador, e por outro, se dificultaria a ação do intérprete, que seria obrigado a aquilatar quais as ações previstas no art.º 128.º, de valor superior a € 50.000,00, que seguem a forma de processo comum, sendo que esta dificultosa e impraticável tarefa seria executada a título gratuito, uma vez que não se vislumbra, qualquer valor a acautelar em distinguir entre as ações do art.º 128.º, para efeitos de atribuição da competência, aquelas que seguem a forma de processo comum e as que seguem outra forma, nomeadamente especial, sendo certo que a generalidade destas apresenta um grau de dificuldade, pelos conhecimentos jurídicos e prática judiciária que exigem, que mais as aconselham a uma instância central, que a uma seção local.

Esta última asserção afigura-se-nos isenta de dúvidas relativamente a todas as ações enumerados no art.º 128.ª citado e é inerente à própria especialização de competência, que tem em atenção a especificidade e grau de dificuldade das matérias em causa.

O art.º 117.º, n.º 1, ao identificar as ações que são da competência da instância central pela forma de processo e pelo valor, faz uma clara separação entre ela e a instância local, a qual não pode ser transposta, ipis verbis, para as ações da competência das seções de comércio, sob pena de desconsideração do texto do art.º 128.º e de um grave gerar de incerteza quanto à competência para todas as ações previstas neste último preceito.

Acresce que a nova organização judiciária deixou de contemplar a dicotomia tribunal singular/tribunal coletivo, pelo que deixou também de fazer sentido recorrer a qualquer argumento de natureza histórica processual, nomeadamente para efeitos de argumentação no sentido de que, antes, determinados processos especiais eram da competência do tribunal singular/juízos cíveis e, por isso, agora, devem continuar atribuídos à instância local porque nada mudou na perspetiva do legislador.

Agora o paradigma é outro, que não esse da forma mais ou menos solene da constituição do tribunal.

No caso sub judice, segundo o critério do valor, que se nos afigura o único denominador comum na interpretação das normas em causa, como acabamos de expor, tendo a ação o valor de € 50.730.00, e não existindo seção de comércio, nos termos do n.º 2, do art.º 117.º da Lei n.º 62/2013, é competente para a sua tramitação a instância central onde deu entrada e não a instância local.

Assim, nos termos do disposto no art.º 105.º, n.º 4, do C. P. Civil, declaramos competente para a ação a instância central de Ponta Delgada.

Custas pela reclamante, que dela tirou proveito.

Notifique.

Baixem os autos.

Lisboa, 1 de dezembro de 2014.

(Orlando Nascimento)