Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
782/14.2TVLSB-A.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: ADVOGADO
SIGILO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -A análise jurídica de um contrato feita por “técnica de apoio jurídico”, advogada com inscrição activa na Ordem dos Advogados, ao serviço de uma empresa que presta serviços de assessoria, deverá incluir-se no âmbito da “consulta jurídica” prevista no art.º 1.º da Lei n.º 49/2004 de 24 de Agosto que define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados.
-Logo esta actividade está sujeita ao dever de sigilo profissional.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

           
     I-RELATÓRIO:


BANCO ... Réu nos autos que lhe moveu J... SGPS. SA, ambas melhor identificadas nos autos, vem interpor recurso de apelação do despacho datado de 18-04-2016, na parte em que decidiu que o depoimento da Senhora Dr.ª D... “não está abrangido pelo dever de sigilo profissional”.

Formula as seguintes conclusões:

Conforme resulta da acta da audiência de 16.02.2016, do despacho recorrido e da transcrição parcial do depoimento efectuada no corpo da alegação, a testemunha Sra. Dra. D... é trabalhadora da sociedade C..., Lda, com a função designada “técnica de apoio jurídico” e é também advogada com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados.
Como resulta da transcrição do depoimento efectuado supra, o mesmo versou sobre actos da testemunha – em particular, sobre a análise jurídica por ela efectuada dos contratos celebrados pelo Recorrente com a Recorrida impugnados nos presentes autos e o aconselhamento do director financeiro e o administrador da Recorrida, feito em decorrência dessa análise – que integram a actividade de “consulta jurídica”, tal como definida no art.º 3.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, a qual constitui um acto próprio da profissão de advogado, reservado a licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, como preceituado no art.º 1.º da mesma lei e nos artigos 66.º e 68.º do EOA.
Assim, e contrariamente ao entendido na douta decisão recorrida, o depoimento versou, não sobre a mera relação laboral mantida pela testemunha com a sua entidade patronal ou a sua colaboração numa normal prestação de serviços por parte desta última à Recorrida, mas sobre actos próprios da profissão de advogado e sobre factos conhecidos no exercício dessa profissão.
Tais factos encontram-se abrangidos por segredo profissional, nos termos do art.º 92.º do EOA, o qual vincula também os advogados que exercem a profissão em regime de subordinação, como decorre do art.º 73.º do EOA e foi decidido, com adequada fundamentação, no Parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados proferido no processo n.ºE-14/PP/2008-G (in ROA, ano 68, Setembro/ Dezembro 2008, pp1091 e segs., maxime 1099 e segs.)
Uma vez que não foi obtida autorização do órgão competente da Ordem dos Advogados para que tais factos pudessem ser revelados (como exigido no n.º4 do art.º 92 do EAO), não pode o depoimento da testemunha fazer prova em juízo, como resulta do disposto no n.º5 do mesmo artigo
Ao decidir diversamente, a douta decisão recorrida violou, pois, por errada interpretação e aplicação, as normas dos artigos 66.º, 68.º, 73.º e 92.º n.º1, 4 e 5 do EOA e os artigos 1.º e 3.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto.
Termos em que deverá julgar-se o presente recurso procedente e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida, determinando-se que o depoimento da testemunha –Dra. Dora Marques – prestado na sessão de audiência de julgamento de 16.02.2016, não pode fazer prova em juízo, nos termos do art.º 92.º n.º5 do EOA.

Nas suas contra alegações, a Recorrida pugna pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II-OS FACTOS.

Os elementos com relevo para a decisão são os que constam do relatório, destacando-se ainda o seguinte que resulta dos autos:
1-A testemunha D... foi arrolada pela Autora-J...-SGPS, SA- e a sua inquirição teve lugar na audiência de julgamento ocorrida em 16-02-2016.
2-Da respectiva acta consta que a testemunha, aos costumes, declarou que “trabalha para a empresa C..., Lda onde presta serviços como técnica de apoio jurídico desde Janeiro de 2007”.
3-Declarou que é advogada com inscrição activa na Ordem dos Advogados, mas não exerce a profissão.
Mais declarou, em audiência, o seguinte: “ Sim, eu li os contratos. Não foi uma análise muito profunda, porque eram contratos que tinham, no fundo, conceitos económico-financeiros que já ultrapassam o meu domínio. E, portanto, fiz efectivamente uma leitura básica, só dos conceitos jurídicos, ou seja, verifiquei as identificações das partes, tinha início, fim, tinha um determinado prazo e que ia entrar em vigor, mas depois tinha algumas ou muitas cláusulas com conceitos económico- financeiros, que aí já não careceram da minha análise porque efectivamente é uma área que eu não domino.”
4-Declarou ainda:
Quando eu analisei aquele contrato e vi que, efectivamente, havia uma grande parte dele que não era apreensível para mim, eu questionei designadamente o Dr. J... que é da área financeira e o Dr. J..., que era administrador, no sentido de saber se eles tinham noção do que é que era aquilo e, perdoe-me a expressão do “aquilo”, mas efectivamente eu não conseguia perceber aquilo que queriam eventualmente acordar ou que teriam negociado com o banco. Mas a resposta também não foi mais esclarecedora. Pronto, aquilo que basicamente me disseram é que eu não precisava de me preocupar com essa parte, que era aquilo que tinha sido apresentado pelo banco para uma solução de financiamento, que ia funcionar mais ou menos como os mútuos, mas para aquela situação em concreto, ou para esta empresa em concreto, o banco tinha apresentado este tipo de contrato.”
Tendo-lhe sido perguntado sobre o relacionamento da J... com outros bancos, a testemunha respondeu:
“ (…) no caso da J..., penso que era mesmo com o S..., não tenho qualquer ideia de haver relacionamento com outras instituições bancárias.”
5-Esta empresa presta serviços administrativos e de assessoria à Autora.

III-O DIREITO.

Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, a única questão que importa conhecer consiste em saber se o depoimento prestado pela testemunha Dra. D... deve considerar-se abrangido pelo sigilo profissional, na medida em que esta é advogada.

Não há dúvida de que o advogado está obrigado, ética e juridicamente, a guardar segredo de todos os factos e documentos de que tome conhecimento, de forma directa ou indirecta, no exercício da sua actividade profissional. Esta obrigação é decorrência, não só da necessidade de tutela da relação de confiança que deve existir entre o cliente e o seu advogado, como também do interesse público da função do advogado[1].

Este dever abrange o advogado que exerça a sua actividade em regime de subordinação, como resulta do disposto no art.º 73.º do EOA.[2]  É o que sucede no caso  presente, pois que a Advogada em referência trabalha como “técnica de apoio jurídico” para a sociedade C..., Lda. Tal como se refere na decisão recorrida, a testemunha tem o estatuto de advogada e é empregada da C..., Lda, desde 2007, empresa esta que presta serviços administrativos e de assessoria à Autora.

Não consta dos autos informação detalhada sobre os serviços prestados pela C..., Lda à Autora. Mas cremos poder presumir que, no âmbito desses serviços, estará o aconselhamento jurídico ao nível dos contratos celebrados com as diversas entidades. Precisamente para poder prestar esses serviços é que a C... inclui no seu quadro de pessoal, juristas como a testemunha Dra. D.... E assim, em princípio, esse aconselhamento deverá incluir-se no âmbito da “consulta jurídica” prevista no art.º 1.º da Lei n.º 49/2004 de 24 de Agosto que define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados, logo esta actividade está sujeita ao dever de sigilo profissional. Em tese, é, pois, correcta a argumentação da Apelante.

Porém, no caso concreto dos autos, e do depoimento da testemunha, resulta que efectivamente a mesma leu os contratos mas, verificando que “uma grande parte dele não era apreensível”, para si, questionou uma pessoa da área financeira e o administrador da empresa sobre o teor do contrato, mas a resposta que obteve também não foi esclarecedora. Portanto, o que se depreende do teor do depoimento é que, no caso concreto, a testemunha não exerceu qualquer actividade própria das suas funções de advogada, no âmbito do aconselhamento jurídico, pelo facto de se tratar de matérias que não se enquadravam na sua área de conhecimento. Nestas circunstâncias, impõe-se concluir que o depoimento da testemunha não pode ser considerado como abrangido pelo sigilo profissional, precisamente dadas as circunstâncias específicas do caso concreto.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da Apelante, devendo manter-se a decisão recorrida, embora não aderindo à argumentação da mesma.

IV-DECISÃO.

Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.



Lisboa, 10 de Novembro de 2016



Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal



[1]Vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21de Setembro de 2011, Processo 968/09, disponível em www.dgsi.pt
[2]Aprovado pela Lei 145/2015 de 9 de Setembro.

Decisão Texto Integral: