Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1522/21.5YLPRT.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
ARRENDAMENTO
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- A promessa de arrendamento deve valer como arrendamento definitivo desde que contenha os elementos essenciais de um contrato de arrendamento e as partes atuem em conformidade, sendo suficiente para fundamentar o procedimento especial de despejo em caso de cessação do contrato por oposição à renovação, nos termos do art. 15, nº 2, al. c), do NRAU;
II- No procedimento especial de despejo, pode o arrendatário defender-se, na oposição, por impugnação e exceção e ainda, por reconvenção, fazer valer, designadamente, o seu direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
A [ …., Unipessoal, Lda, ]intentou, em 25.11.2021, junto do Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), procedimento especial de despejo contra B [ …. Portuguesa, Lda ] , com vista ao despejo do r/c do prédio sito na Rua …, nº 170/172, em Lisboa, com fundamento na cessação do contrato, celebrado em 2011, por oposição à renovação pelo senhorio.
A Ré deduziu oposição, invocando, em síntese, que entre a anterior proprietária do imóvel, a Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., e a Ré, foi celebrado um contrato promessa de arrendamento não habitacional respeitante ao dito espaço, tendo em conta que a Ré já explorava um estabelecimento comercial no nº 176 do mesmo edifício desde 1962, pelo que as partes pretendiam juntar ambos os espaços com vista à existência de uma única loja, como veio a suceder, ficando a Ré na expectativa da celebração do contrato prometido, conforme estipulado. Conclui que estando em causa um contrato promessa de arrendamento e não um contrato de arrendamento, o procedimento especial de despejo, que pressupõe este último, deve ser considerado inepto, por haver contradição entre o pedido e a causa de pedir. Mais reclama, em reconvenção, a quantia de € 12.105,99, respeitante a uma renda paga em duplicado e ao valor de reparações, necessárias e urgentes, realizadas pela Ré no espaço em apreço, sustentando ainda que a inadmissibilidade da reconvenção configuraria violação do disposto no art. 18, nº 2, da C.R.P..
Remetidos os autos à distribuição foi, em 21.2.2022, proferido despacho que concluiu: “(…) não admito a reconvenção e, consequentemente, absolvo o Autor da instância reconvencional.”
Mais se determinou a notificação da A. para se pronunciar sobre a matéria de exceção arguida, ao que esta correspondeu, concluindo pela respetiva improcedência.
Entendendo-se, por sua vez, que o estado dos autos já o permitia, sem necessidade de mais provas e, depois de ouvidas as partes, proferiu-se sentença, em 18.5.2022, que concluiu nos seguintes termos:“(…) julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência declaro a extinção do contrato de arrendamento, por não renovação do mesmo, e condeno o Opoente/Requerido no despejo do locado, sito na Rua ..., n° 170/172, r/c, em Lisboa.
Fixo o valor da acção em quinze mil Euros, nos termos do disposto nos artigos 298.°, n.° 1 e 306.°, n.° 2, ambos do Código de Processo Civil e 26.° do Decreto-Lei n.° 1/2013, de 7 de Agosto.
Custas a suportar pelo Opoente/Requerido, nos termos do artigo 527.°, n° 1 e 2 do Código de Processo Civil.
(…).”
Desta decisão interpôs recurso a Ré, apresentando as respetivas alegações que culmina com as conclusões a seguir transcritas:

1. O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida no autos do PED n.° 1522/21.5YLPRT, em 18.05.2022, que julgou procedente a acção, e em consequência, declarou a extinção do contrato de arrendamento, por não renovação do mesmo e condenou o Oponente/Requerido no despejo do locado, sito na Rua ..., n° 170/172, r/c, em Lisboa, mais precisamente por entendermos que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, quanto à seleção da matéria de facto e quanto à interpretação e aplicação do Direito;
2. Em concreto, o presente recurso tem, assim, por objeto:
a) Da Sentença e seu conteúdo;
b) A impugnação da matéria de facto, através da reapreciação da prova documental - ineptidão do Requerimento de Despejo; e
c) O erro de julgamento quanto à matéria de direito, mais precisamente no que respeita à interpretação e aplicação, ao caso concreto, do disposto no artigo 1070.°, do Código Civil;
d) O erro de não admissão da reconvenção.
3. Em 13.01.2022, a ora Apelada intentou um Procedimento Especial de Despejo, com vista à resolução do contrato de arrendamento do imóvel identificado e entrega do locado à sua proprietária;
4. A pretendida resolução do contrato de arrendamento teve como fundamento efectivar a cessação do arrendamento, atenta a não entrega do locado na data prevista.
5. Em sede de Oposição ao PED, a ora Apelante invocou uma excepção dilatória por não se estar perante um contrato de arrendamento, que a aqui Apelada fosse condenada a cumprir o contrato promessa e firmar o contrato prometido e ainda condenar a requerente no pagamento das Benfeitorias e rendas pagas em duplicado que nunca foram devolvidas à ora Apelante.
6. O Douto Tribunal a quo considerou que o contrato promessa era um contrato de arrendamento e considerou a acção procedente por provada e declarou a extinção do contrato arrendamento, por não renovação do mesmo, tendo sido o ora Apelante condenada no despejo do locado sito na Rua ... 170/172.
7. Nos termos do art° 607° do Código do Processo Civil, o juiz na sentença deve declarar quais os factos provados e não provados, o que nesta sentença não aconteceu
8. A sentença, no que concerne à matéria de facto provada, deve evidenciar, de forma imediata, coerente e lógica, a realidade sob apreciação, o que de modo algum se satisfaz com a colagem de diversos elementos que nem sequer internamente se mostram ordenados.
9. Tal como acontece com um puzzle, em que o encaixe das peças se revela imprescindível à representação da imagem, também a realidade que o Tribunal considera apurada apenas ganha sentido com a ordenação dos diversos segmentos da matéria de facto.
10. O que não ocorre na douta sentença do Tribunal a quo, pelo que deve a mesma ser corrigida nesse sentido.
11. Nos termos do art° 15° da NRAU, no PED, em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.° 1 do artigo 1097.° ou no n.° 1 do artigo 1098.° do Código Civil.
12. Nos documentos dos autos o que se encontra não é um Contrato de arrendamento mas sim um contrato-promessa de arrendamento.
13. O Contrato Promessa de Arrendamento não é o contrato de arrendamento em si (este último tem de ser celebrado na mesma).
14. trata-se de uma promessa, de ambas as partes, de que o negócio vai avançar, impedindo o proprietário de arrendar a casa a outro inquilino sob pena de incumprimento deste contrato.
15. Celebram-se contratos deste género quando o imóvel para arrendar não possui ainda condições de ser habitado/ utilizado, como foi o caso.
16. Um contrato promessa que, por ser um contrato promessa não contém os elementos necessários e que constam no art° 1070° do Código Civil, nem os obrigatórios de um qualquer contrato prometido.
17. Existe um conjunto de informações essenciais que devem constar do Contrato Promessa de Arrendamento.
18. Desde logo, é imprescindível a identificação das partes (proprietário, quem o representa e futuro inquilino, quem o representa), bem como a localização exata do imóvel (legalmente designada por "locado”).
19. Desconhece-se quem assina pela proprietária, não se encontra identificado, nem se tem poderes para o acto.
20. Como podemos aceitar que se credibilize tal documento desconhecendo quem o assina?
21. As sociedades comerciais podem ser representadas não apenas pelos órgãos de representação mas também por procuradores ou mandatários nomeados (artigos 252 n.° 6 e 391.° n.° 7 do CSC, respetivamente), no entanto, como nem sequer sabemos quem assina em representação, também não sabemos se tinha poderes para o acto.
22. Tratando-se de um contrato promessa, essa situação ficaria colmatada com a assinatura do contrato prometido com alguém com poderes para o acto, onde constaria, nos termos do art° 409° do CSC a indicação da qualidade de quem assinasse para vincular a sociedade, o que nunca ocorreu, apesar da insistência da Apelante.
23. Para além da falta de poderes, não sendo um contrato de arrendamento e que não contém os elementos essenciais a um contrato de arrendamento nem os obrigatórios de qualquer tipo de contrato, como podia ser aceite para um procedimento especial de Despejo?
24. Nos termos do art. 607°, n° 5 é vedado ao juiz declarar provados ( apesar de não os ter declarado) determinados factos para os quais a lei exija determinada formalidade especial ou por documentos sem que essa exigência legal se mostre satisfeita.
25. “I - A resolução do arrendamento não pode ser pedida em acção com base em contrato-promessa de arrendamento, visto que não se pode peticionar a resolução de um contrato que, ainda, não foi celebrado”, Acórdão n° 9440731 do TRPorto, 22 de Maio de 1995
26. "A acção de despejo só pode ser utilizada quando se pretende a resolução de um contrato de arrendamento válido e não a resolução de um outro contrato, designadamente, de um contrato-promessa de arrendamento’’, Acórdão n° 0077446 de Supremo Tribunal Administrativo, 24 de Novembro de 1994
27. Não estando perante um contrato de arrendamento, não podemos deixar de invocar a ineptidão do Requerimento Especial de Despejo, que, ao contrário de uma acção comum de despejo, obriga à existência de um contrato de arrendamento
28. A ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo, excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.
29. Refere o n° 1 do art° 1070° do Código Civil que "1. O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível"
30. Mesmo que, se considerasse a eventualidade de o contrato-promessa de arrendamento ter o valor de contrato prometido, “1 - É nulo o contrato de arrendamento cujo local arrendado (para fins não habitacionais) não disponha de licença de utilização (cfr. art. 1070°/1 e 294.° do C. Civil e 5°/1 e 8 do DL 160/2006, de 8 de Agosto).
2 - Nulidade que é típica, determinando o seu conhecimento oficioso pelo tribunal", In www.dgsi.pt, Acordão do TRCoimbra, n° processo 36/12.9TBCTB.C1.
31. Estamos perante, não um contrato de arrendamento mas sim um contrato-promessa do mesmo que, não foi nunca firmado o contrato prometido por falta de uma licença de utilização, conforme expresso no contrato-promessa, clausula nona.
32. Mesmo que se considerasse que esse contrato promessa tinha sido convolado em contrato de arrendamento, o contrato seria sempre nulo, subsistindo dessa forma o contrato-promessa.
33. Desconhece-se quem assinou o contrato-promessa pelo proprietário da fracção e se tinha ou não poderes de representação para o efeito, pelo que se desconhece se a sociedade que era proprietária da fracção se vinculou ao acto, nos termos do art° 261° n° 2 e art° 409° ambos do CSC.
34. A Apelante não se pode conformar com o erro de julgamento quanto à matéria de direito, mais precisamente no que respeita à interpretação e aplicação, ao caso concreto, do disposto no artigo 1070.°, do Código Civil e art° 252° n° 6 do CSC, devendo a douta Sentença de que se recorre ser revogada e substituída por outra que, não considerando a existência da convolação do contrato-promessa de arrendamento em Contrato de arrendamento, porque assim não se pode considerar nos termos do art° 1070° o CC e art° 252° n° 6 do CSC e fazendo uma melhor subsunção dos factos e interpretação jurídica, julgue a presente ação totalmente procedente, para todos os efeitos legais;
35. A ora Apelante veio, em sede de Oposição ao PED, nos termos do art° 583° CPC deduzir s sua Reconvenção.
36. O regime do PED não contempla, de forma expressa, a possibilidade de dedução de reconvenção pelo demandado, mas prevê a existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório (n° 2 do art. 15- H da NRAU).
37. Pese embora o PED não admita a formulação de pedido reconvencional pelo arrendatário, é forçoso reconhecer que, em certos casos e atentos nos factos invocados, devem ser levados em conta por configurarem defesa por exceção admitida, que como tal deve ser apreciada e conhecida.
38. É de se admitir que na peça processual de oposição deduzida pelo arrendatário, este possa valer o seu direito a benfeitorias, consoante as possibilidades dadas pelo direito substantivo, mediante pedido reconvencional, obviando esta forma a uma violação à tutela jurisdicional efectiva da posição material do arrendatário - v. neste sentido Rui Pinto, Execução e Despejo, Coimbra Editora, pág. 1186, e igualmente julgando admissível a reconvenção no Procedimento Especial de Despejo, “No procedimento especial de despejo, o inquilino pode, na oposição, reconvencionar o pagamento de benfeitorias (ao contrário do que acontece nas acções declarativas especiais do DL 269/98 e nas injunções de valor inferior a 15.000€)”, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/04/2017 no Proc. n° 3222/16.9YLPRT.L2; o acórdão do TRL de 06/03/2014, proc. 2389/13.2YLPRT; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-09-2019, no proc. n° 427/19.4YLPRT-A.L1-2; o acórdão do TRP de 13/03/2017, proc. 1875/16.7YLPRT-B.P1; ac. do TRL de 02/06/2016, 4274/15.4YLPRT.L1 -8; ac. do TRL de 09/07/2015, proc. 2684/14.3YLPRT.L1-7; e ac. do TRL de 17/03/2016, proc. 2090/15.2YLPRT.L1-6;
39. A tramitação própria do PED não é necessariamente incompatível com a reconvenção. Embora corresponda a esta a forma de processo comum declarativo, sempre pode o juiz admiti-la, adaptando o processado (art. 266, n° 3, e 37, n°s 2 e 3, do C.P.C.).
40. Veja-se que constituindo o PED um processo declarativo especial, naquilo que não esteja especialmente regulado valem as regras gerais e comuns do Código de Processo Civil e em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, vale o que se acha estabelecido para o processo comum (art. 549 do C.P.C.) (ver ainda Rui Pinto, ob. cit., pág. 160).
41. Citando Rui Pinto ( Execução e Despejo, Coimbra Editora., págs. 153/154) que refere a propósito da oposição no PED: “Dado ainda não ter corrido prévio processo judicial, deve entender-se que o direito de defesa determina que o conteúdo da oposição seja qualquer fundamento que possa ser invocado no processo de declaração. (...) Portanto, pode ser oposta impugnação e exceção e, bem assim, fazer-se valer o direito a benfeitorias. Se tal era admissível em sede de art. 929.°, n° 1, CPC (...) não (pode) deixar de ser permitido, sob pena de violação do direito à tutela jurisdicional efetiva da posição material do inquilino.
Assim, consoante as possibilidades dadas pelo direito substantivo, tanto poderá pedir a condenação do senhorio no pagamento do valor das benfeitorias, como o reconhecimento do direito a levantá-las, em reconvenção."
42. A tramitação própria do PED não é necessariamente incompatível com a reconvenção.
43. Embora corresponda a esta a forma de processo comum declarativo, sempre pode o juiz admiti-la, adaptando o processado (art. 266, n° 3, e 37, n°s 2 e 3, do C.P.C.).
44. Constituindo o PED um processo declarativo especial, naquilo que não esteja especialmente regulado valem as regras gerais e comuns do Código de Processo Civil e em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, vale o que se acha estabelecido para o processo comum (art. 549 do C.P.C.) (ver ainda Rui Pinto, ob. cit., pág. 160).
45. A não admissão do pedido reconvencional no PED, configura uma violação clara do artigo 18.°, n.° 2 da C.R.P., na medida em que é violador da equidade e do princípio da igualdade das partes restringir, no âmbito do Procedimento Especial de Despejo e da Lei n.° 6/2006, o leque de opções de defesa processual admitidas ao arrendatário, em termos distintos daqueles que são admitidos em termos gerais processuais
46. Devendo a douta Sentença de que se recorre ser revogada e substituída por outra não considerando a existência da convolação do contrato-promessa de arrendamento em Contrato de arrendamento, porque assim não se pode considerar nos termos do art° 1070° o CC e art° 252° n° 6 e art° 409°, ambos do CSC e fazendo uma melhor subsunção dos factos e interpretação jurídica, julgue o presente recurso totalmente procedente e ainda que admita o Pedido Reconvencional sob pena de ma clara violação clara do artigo 18.°, n.° 2 da C.R.P., na medida em que é violador da equidade e do princípio da igualdade das partes restringir, no âmbito do Procedimento Especial de Despejo e da Lei n.° 6/2006, o leque de opções de defesa processual admitidas ao arrendatário, em termos distintos daqueles que são admitidos em termos gerais processuais.”
Pede a revogação da sentença recorrida, proferindo-se decisão que reconheça o direito da Ré ao arrendamento e admita o pedido reconvencional.
Em contra-alegações, conclui a apelada pela manutenção do decidido, defendendo ainda que o despacho de 21.2.2022, que não admitiu a reconvenção, não pode ser impugnado no presente recurso, posto que do mesmo cabia recurso autónomo ao abrigo do art. 644, nº 1, al. b), do C.P.C..
O recurso foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentos de Facto:
Da sentença recorrida não consta, como deveria, a indicação expressa dos factos provados, como bem assinala a apelante.
Não obstante a deficiência indicada, que configura nulidade da referida sentença (art. 615, nº 1, al. b), do C.P.C.), sempre caberá a este Tribunal, ainda assim, conhecer do objeto do recurso (art. 665, nº 1, do C.P.C.), enumerando agora os factos que a 1ª instância teve como assentes em face dos autos (factos admitidos por acordo e documentos juntos), a saber, com interesse para a apreciação das questões em análise, para além do que acima consta do relatório:
1) Com data de 31.1.2011, foi celebrado entre a então Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., e a Ré B “Contrato Promessa de Arrendamento não habitacional” respeitante ao r/c do prédio sito na Rua ..., com entrada pelo nº 170/172, em Lisboa, pelo prazo de 5 anos, com início no dia 1.2.2011 e termo em 31.1.2016, e renovável por períodos iguais e sucessivos de 3 anos, mediante a renda inicial de € 500,00, atualizável anualmente, nos termos do doc. junto a fls. 2 a 11 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
2) Ficando, além do mais, estabelecido que “O presente contrato de promessa de arrendamento não habitacional com prazo certo é celebrado nos termos do art. 1110º, conjugado com o disposto art. 1094º, ambos do Código Civil, na versão aprovada pela Lei 6/2006, reconhecendo as partes que será este o regime aplicável ao presente contrato” (cláus. 1ª, nº 3);
3) E que “o Promitente Senhorio poderá opor-se à renovação automática do contrato mediante comunicação remetida ao(s) Promitente(s) Arrendatário(s) por carta registada com aviso de recepção, ou por qualquer outra forma prevista na lei, com a antecedência não inferior a um ano do termo do contrato” (cláus. 2ª, nº 1);
4) E ainda que “a celebração do contrato definitivo será marcado pelo Promitente Senhorio logo que obtida a respectiva licença de utilização, mediante (…)” (cláus. 9ª, nº 1);
5) A Ré explora um estabelecimento comercial no aludido r/c, pagando a correspondente renda;
6) Por carta registada com aviso de receção enviada em 25.1.2018, a Fidelidade- Companhia de Seguros, S.A., comunicou à Ré, invocando o art. 1097 do C.C. e o estipulado no contrato, a oposição à renovação do contrato de arrendamento não habitacional com efeitos a partir de 31.1.2019;
7) Em 3.9.2018, a A. A, adquiriu o r/c dos autos;
8) A Ré não entregou aquele r/c à A..
*
III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões da recorrente acima transcritas, em causa está apreciar:
- da ineptidão do requerimento de despejo e do contrato celebrado entre as partes;
- da admissibilidade da reconvenção e da possibilidade de impugnação do despacho de 21.2.2022 no presente recurso interposto da decisão final.
A) Da ineptidão do requerimento de despejo e do contrato celebrado entre as partes:
Defendeu a Ré na contestação a ineptidão do requerimento de despejo, tendo em conta que apenas foi celebrado um contrato promessa de arrendamento não habitacional respeitante ao r/c dos autos e não qualquer contrato de arrendamento. Argumentou, no essencial, que nos termos do art. 15, nº 2, al. c), do NRAU, apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo, em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no nº 1 do artigo 1097 ou no nº 1 do artigo 1098 do C.C.. Assim, e não existindo contrato de arrendamento mas sim apenas um contrato promessa de arrendamento, não pode pedir-se o despejo, sob pena de contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que configura a ineptidão do requerimento inicial.
Respondendo à exceção, a A. sustentou que embora não celebrado o contrato definitivo, o contrato promessa celebrado configura um verdadeiro contrato de arrendamento, uma vez que do seu teor resultam todos os elementos típicos da locação, tendo sido acordado o prazo, o montante mensal das rendas, o regime das benfeitorias e instalada uma das partes no imóvel prometido dar de arrendamento.
Na sentença, concluiu-se pela inexistência da exceção de ineptidão arguida, nos seguintes termos: “(…) Compulsados os autos, temos que efectivamente o contrato junto com o requerimento de despejo tem como denominação “contrato promessa de arrendamento não habitacional com prazo certo”. Analisado o seu teor, do mesmo consta que é celebrado pelo prazo de cinco anos, com início no dia 1 de Fevereiro de 2011 e termo em 31 de Janeiro de 2016, renovando- se por prazos de três anos, salvo se for denunciado. Prevê-se o valor das rendas e as previsões habituais e expectáveis de um contrato de arrendamento.
Não nos restam dúvidas, da própria posição das partes, que desde a celebração do contrato em causa o Opoente/Requerido passou a actuar como arrendatário da fracção, pagando a correspondente renda ao senhorio.
A locação é “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição” (artigo 1022.° do Código Civil), denominando-se arrendamento quando incide sobre imóvel e aluguer tratando-se de bem móvel (artigo 1023.° do mesmo diploma).
Pese embora os outorgantes tenham denominado o contrato de “contrato promessa”, estamos, na prática, perante um verdadeiro contrato de arrendamento, que assim se manteve até à oposição à renovação comunicada pelo senhorio, ora Requerente, nos termos do regime legal do contrato de arrendamento.
Conforme decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 28/01/2013, Processo 6793/10.0YYPRT.P1, 1, disponível na Base de Dados da DGSI, inwww.dgsi.pt, “1. Ainda que as partes tenham denominado certo contrato como promessa de arrendamento, se nele convencionaram que a finalidade era a habitação e se verificou a ocupação da coisa mediante a correspondente retribuição mensal, tal situação deve definir-se como contrato de arrendamento. 2. O documento que formalizou o dito contrato acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida (v. g., notificação judicial avulsa) são elementos necessários e suficientes para a constituição do título executivo complexo exigido pelo art.° 15° n.° 2 do NRAU (na redacção anterior à conferida pela Lei n.° 31/2012, de 14.8).”
O Requerente/senhorio alega de forma perceptível os factos que fundamentam a sua pretensão e deduz claramente o pedido. O contrato junto consubstancia um verdadeiro contrato de arrendamento, independentemente da denominação que lhe foi atribuída, pelo que é de admitir que fundamente Procedimento Especial de Despejo.
Assim, não se verifica Ineptidão do Requerimento de Despejo.
(…).”
No recurso, a apelante/Ré reitera a argumentação avançada na contestação, aludindo ainda à falta de informações essenciais no contrato promessa e à falta de comprovação dos poderes de representação de quem outorgou o contrato (conclusões 17ª a 23ª e 33ª). Mais invoca que mesmo considerando que o contrato promessa teria o valor de contrato de arrendamento, este seria nulo por falta de licença de utilização, subsistindo apenas o contrato promessa (conclusões 29ª a 32ª).
A apelada sustenta o acerto do decidido.
Vejamos.
De acordo com o disposto no art. 1022 do C.C., “Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.”
Por sua vez, nos termos do art. 1023 do C.C., “A locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel.”
Já o contrato promessa, de acordo com o art. 410 do C.C., tem por objeto uma obrigação de prestação de facto, que consiste na celebração do contrato prometido, através da emissão das declarações negociais que lhe são próprias([1]).
Como é evidente, não será pela designação atribuída pelas partes a um contrato que este se configura e define, sendo antes a partir da respetiva interpretação que o poderemos identificar juridicamente, não estando o tribunal sujeito à qualificação que as partes lhe atribuíram (art. 5, nº 3, do C.P.C.).
No caso em análise, muito embora os contraentes tenham designado como “Contrato Promessa de Arrendamento não habitacional” o contrato celebrado em 2011 respeitante à utilização, pela Ré, do r/c do prédio sito na Rua ... nº 170/172, em Lisboa, fazendo expressamente depender a celebração do contrato definitivo da obtenção da respetiva licença de utilização, submeteram o acordo firmado aos exatos requisitos do contrato definitivo, com os elementos essenciais de um contrato de arrendamento.
Assim, estabeleceram o prazo correspondente (5 anos), a sua renovação (por períodos iguais e sucessivos de 3 anos), a renda inicial (€ 500,00) e regime de atualização anual, definiram o regime de obras e reparações no espaço (cláusula 5ª), previram várias obrigações do arrendatário (cláusula 6ª), bem como as condições de resolução do contrato (cláusula 7ª) e a situação do fiador (cláusula 8ª), limitando-se a substituir no texto a designação de senhorio e arrendatário pelas de promitente/senhorio e promitente/arrendatário, respetivamente.
Para além disso, estabeleceram igualmente que “o Promitente Senhorio poderá opor-se à renovação automática do contrato mediante comunicação remetida ao(s) Promitente(s) Arrendatário(s) por carta registada com aviso de recepção, ou por qualquer outra forma prevista na lei, com a antecedência não inferior a um ano do termo do contrato” (cláusula 2ª, nº 1), reforçando, nessa formulação, a vontade clara de sujeitar o conteúdo do contrato, desde logo, ao regime próprio do arrendamento.
Veja-se, aliás, que declaradamente submeteram aquele contrato, sem ressalva, ao regime do NRAU (ver cláus. 1ª, nº 3 – ponto 2 supra).
Acresce que, como a Ré também reconhece, o aludido r/c foi-lhe entregue, ali explorando ela um estabelecimento comercial e pagando a renda.
Deste modo, o aludido contrato promessa, pela sua concreta formulação e atuação das partes que decorre consensualmente dos autos, constitui um verdadeiro arrendamento a título definitivo assim produzindo os correspondentes efeitos.
Conforme sustentado no Ac. do STJ de 10.11.2020([2]), citado pela A. na resposta à exceção: “(…) A promessa de arrendamento pode ser convolada em arrendamento definitivo por força da interpretação das suas declarações negociais, independentemente da celebração do contrato de arrendamento definitivo, desde que as cláusulas constantes da promessa e a subsequente execução do contrato-promessa celebrado correspondam, pelo menos, aos elementos típicos da locação prometida: o promitente arrendatário ocupe – isto é, usufrua efectivamente do gozo – o imóvel prometido arrendar; o pagamento da retribuição típica do arrendamento (art. 1022º do CCiv.); a utilização para o fim a que se destina, tendo em conta a identificação da sua natureza.(…).”
Invoca ainda a apelante que, mesmo atribuindo ao contrato promessa o valor de contrato de arrendamento, este seria nulo por falta de licença de utilização, subsistindo apenas o contrato promessa. Refere-se ainda à falta de informações essenciais no contrato promessa e à falta de comprovação dos poderes de representação de quem o outorgou.
Desde logo, trata-se de matéria nova que não foi invocada na contestação e que, consequentemente, não foi nem tinha que ser apreciada na sentença.
Estamos, pois, perante matéria nova de que o tribunal “ad quem” não pode conhecer, pois este não pode apreciar questões que não tenham sido invocadas no tribunal recorrido, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. De resto, e sem prejuízo destas últimas, os recursos visam apenas modificar as decisões impugnadas mediante o reexame das questões nelas equacionadas e não apreciar matéria nova sobre a qual o tribunal recorrido não teve ensejo de se pronunciar.
Tal constitui, de resto, importante limitação do objeto do recurso que tem por fim “obviar a que numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas”, sendo ainda certo que tal apreciação sempre equivaleria a suprimir um ou mais graus de jurisdição([3]).
Em todo o caso, e no que respeita à dita nulidade do contrato de arrendamento por falta de licença de utilização, o certo é que, como vimos, as partes quiseram atribuir ao contrato celebrado os efeitos de um efetivo contrato de arrendamento, não obstante a inexistência (pelo menos à época) de uma licença de utilização. Assim, tendo-se a Ré conformado com a produção de efeitos jurídicos inerentes ao contrato definitivo, duvidoso sempre seria que pudesse agora arguir a referida nulidade à luz do art. 334 do C.P.C.([4])([5]).
Reitera-se que o próprio contrato prevê que o promitente senhorio possa opor-se à renovação automática do contrato mediante comunicação remetida ao promitente arrendatário, como veio a suceder, tal como se desse contrato definitivo se tratasse.
Em suma, o contrato firmado entre as partes, não obstante a sua designação, contendo os elementos essenciais de um contrato de arrendamento e valendo enquanto tal nos moldes referidos, era suficiente para fundamentar o procedimento especial de despejo baseado na cessação por oposição à renovação, nos termos do art. 15, nº 2, al. c), do NRAU.
Pelo que não está o pedido em contradição com a causa de pedir nem é inepta a petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo do art. 186, nº 1, al. b), do C.P.C..
Finalmente, e sem prejuízo do que adiante diremos sobre a reconvenção, é de concluir que a Ré deveria ter procedido à devolução do imóvel dos autos à A. a partir de 31.1.2019, face à cessação do contrato por oposição da senhoria à sua renovação em termos cuja validade a Ré não contrariou.
Donde, improcede o recurso nesta parte, sendo de confirmar a sentença recorrida.
B) Da admissibilidade da reconvenção e da possibilidade de impugnação do despacho de 21.2.2022 no presente recurso interposto da decisão final:
A Ré pediu na oposição por si deduzida, em reconvenção, a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de € 12.105,99, respeitante a uma renda paga em duplicado e ao valor de reparações, necessárias e urgentes, por si realizadas no espaço dos autos, sustentando ainda que a inadmissibilidade da reconvenção configuraria violação do disposto no art. 18, nº 2, da C.R.P..
Em 21.2.2022, foi proferido despacho nos seguintes termos: “(…) Na tramitação do Procedimento Especial de Despejo, prevê-se o requerimento de despejo e oposição, que determina a remessa dos autos para distribuição.
Pese embora não seja unânime na doutrina e na jurisprudência a admissibilidade de deduzir pedido reconvencional no âmbito de Procedimento Especial de Despejo, entendemos ser de admitir (apenas) em situações específicas (sob pena de desvirtuar a natureza deste procedimento), nomeadamente quando o fundamento do despejo é a falta de pagamento de rendas e o arrendatário pretende fazer valer o direito a benfeitorias, para efeitos de compensação.
A Ré deduz pedido reconvencional, invocando “Rendas pagas em duplicado e obras de conservação efectuadas na fracção - Benfeitorias necessárias”.
Nos termos do artigo 266º, n.º 2 do Código de Processo Civil, a reconvenção é admissível:
- Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
- Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
- Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
- Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
A admissibilidade da reconvenção depende da verificação dos requisitos substantivos previstos no artigo 266.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, a par de requisitos adjectivos, designadamente previstos no n.º 3 do mesmo artigo.
Os factos alegados pela Ré como causa de pedir da reconvenção não servem de fundamento à acção ou à sua defesa.
Na presente acção a Autora não pretende o pagamento de qualquer valor sobre o qual possa haver lugar a eventual compensação. A causa de pedir da acção é a oposição à renovação do contrato pelo senhorio e não a falta de pagamento de rendas. Não é peticionado qualquer crédito que justifique o pagamento/compensação pretendida pelos Réus.
Sendo esse o caso, o Réu/Requerido terá de lançar mão aos meios comuns para fazer valer o seu direito a eventuais créditos.
De todo o modo, quanto a eventuais benfeitorias e despesas, no contrato celebrado consta, além do mais, que a realização de obras depende de autorização do "promitente senhorio", as obras de conservação ordinária ou extraordinária são a cargo do "promitente arrendatário" e que o "promitente arrendatário" não terá o direito a levantar as obras ou benfeitorias realizadas no locado, ainda que autorizadas, renunciando a vir a exigir qualquer indemnização, o que obvia a que possa ser deduzida reconvenção com este fundamento.
Nestes termos e pelo exposto, não admito a reconvenção e, consequentemente, absolvo o Autor da instância reconvencional.
Custas pela Ré, na proporção do valor da reconvenção (doze mil cento e cinco Euros e noventa e nove cêntimos).
Notifique.”
Entendeu-se, assim, que não se mostram verificados os requisitos substantivos previstos no art. 266, nº 2, do C.P.C., sendo a causa de pedir a oposição à renovação do contrato e não a falta de pagamento de rendas, e que, estando em causa procedimento especial de despejo, a reconvenção era inadmissível na concreta situação dos autos.
A apelante defende no recurso a possibilidade da dedução de reconvenção in casu, sob pena de violação do art. 18, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Por sua vez, a recorrida contrapõe, em primeira linha, que o aludido despacho de 21.2.2022 não pode ser já impugnado, tendo transitado em julgado posto que dele não interpôs recurso a Ré através de apelação autónoma, nos termos do art. 644, nº 1, al. b), do C.P.C.. Mais sustenta, em qualquer caso, o acerto do decidido e a inadmissibilidade da reconvenção.
Vejamos.
Não assiste, a nosso ver, razão à recorrida no que respeita à inadmissibilidade do recurso neste tocante.
De acordo com o art. 644 do C.P.C., cabe recurso de apelação da decisão de 1ª instância que ponha termo à causa, a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente e do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos (nº 1) e, ainda, das decisões elencadas no nº 2 do mesmo dispositivo. Nos termos do nº 3 do mesmo art. 644, as restantes decisões apenas poderão ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto daquelas outras previstas no nº 1 do artigo. Por isso, e em regra, as decisões interlocutórias do processo passam a ser somente impugnáveis com o recurso a interpor da decisão final (ou com as demais decisões referidas no nº 1 do art. 644), não transitando, assim, em julgado.
A recorrida defende que a decisão de 21.2.2022 deveria ter sido impugnada nos termos da al. b) do nº 1 do art. 644 do C.P.C., segundo a qual cabe recurso de apelação “Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.”
Ora, s.m.o., a decisão de 21.2.2022 não foi proferida no âmbito de despacho saneador ou equivalente, antes respeitando ao indeferimento liminar da reconvenção deduzida, sem efetivo conhecimento do seu mérito, e antes de terminados os articulados, apesar de se ter concluído, com a inadmissibilidade daquele pedido, pela absolvição da A. da instância reconvencional.
Aliás, no seguimento dessa mesma decisão foi determinada ainda a notificação da A. para se pronunciar sobre a matéria de exceção arguida (ao que esta correspondeu, concluindo pela respetiva improcedência), entendendo-se depois que o estado dos autos já permitia, sem necessidade de mais provas, o conhecimento de mérito, observando-se o contraditório.
Só na sentença que conheceu da causa, entretanto proferida em 18.5.2022, foi conferida a validade formal da instância.
Donde, a referida decisão de 21.2.2022 que rejeitou liminarmente a reconvenção mostra-se impugnável nos termos do nº 3 do art. 644 do C.P.C., por via do presente recurso interposto da decisão final.
Assim, nada obsta ao conhecimento do objeto do recurso nesta parte.
Cumpre, pois, ponderar se é admissível o pedido deduzido pela Ré em reconvenção.
O pedido formulado pela Ré contra a A. na oposição qualifica-se materialmente como reconvenção, nos termos gerais do art. 266 do C.P.C., pois encontram-se verificados os requisitos substantivos previstos no nº 2 deste dispositivo, ao contrário do sugerido na dita decisão de 21.2.2022.
Com efeito, dispõe o nº 2 do art. 266 que “A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.”
Por sua vez, estabelece o nº 3 do mesmo art. 266 que “Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.”
Ora, tendo a Ré pedido em reconvenção a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de € 12.105,99, respeitante a uma renda paga em duplicado e ao valor de reparações, necessárias e urgentes, por si realizadas no espaço dos autos, ajusta-se tal pretensão ao previsto na al. b) do nº 2 do art. 266 do C.P.C. – “Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida”.
Ou seja, mostra-se irrelevante para o efeito que a causa de pedir da ação seja a oposição à renovação do contrato pelo senhorio e não a falta de pagamento de rendas, visto que a A. visou, com a ação interposta, a entrega do imóvel.
Resta avaliar da admissibilidade em concreto do referido pedido no âmbito do procedimento especial de despejo, matéria controvertida na doutrina e na jurisprudência.
No sentido da admissibilidade da reconvenção no procedimento especial de despejo vejam-se, entre outros, o Ac. da RL de 5.4.2022, Proc. 937/21.3YLPRT.L1-7, o Ac. da RL de 27.4.2017, Proc. 3222/16.9YLPRT-2, e o Ac. da RL de 6.3.2014, Proc. 2389/13.2YLPRT.L1-2, todos em www.dgsi.pt, e ainda, nomeadamente, Rui Pinto, “O Novo Regime Processual do Despejo”, 2ª ed., Abril 2013, págs. 153/154 e 161. Ver, ainda, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 4ª ed., 2018, pág. 536.
Já no sentido da inadmissibilidade da reconvenção nesse processo especial vejam-se o Ac. da RL de 26.9.2019, Proc. 427/19.4YLPRT-A.L1-2, o Ac. da RP de 30.6.2014, Proc. 1572/13.5YLPRT.P1 e o Ac da RE de 20.11.2014, Proc. 3588/13.2YLPRT.E1, todos em www.dgsi.pt, e também Laurinda Gemas, “Algumas questões controversas no novo regime processual de cessação do contrato de arrendamento”, Revista do CEJ nº 1, 2013, págs. 23/24.
Vejamos, antecipando, desde já, que seguimos a primeira posição, conforme defendido no Acórdão desta RL de 29.9.2020, Proc. nº 2723/19.1YLPRT.L1-7, também disponível em www.dgsi.pt, com a mesma relatora e primeira adjunta, cuja fundamentação, por isso mesmo, aqui acompanhamos de perto.
A Lei nº 31/2012, de 14.8, alterou o NRAU (aprovado pela Lei 6/2006, de 27.2), criando, além do mais, um novo procedimento especial de despejo do local arrendado com vista a permitir “a célere recolocação daquele no mercado de arrendamento” (art. 1º da referida Lei), isto é, visando agilizar o procedimento de despejo.
Por sua vez, o DL nº 1/2013, de 7.1, e a Portaria nº 9/2013, de 10.1, vieram definir as regras do funcionamento do Balcão Nacional do Arrendamento e do procedimento especial de despejo.
Tal procedimento especial de despejo (PED) encontra-se contemplado nos arts. 15 a 15-S do NRAU e é apenas aplicável nas situações previstas no nº 2 do mencionado art. 15. Nos demais casos, e de modo a fazer cessar o arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação, deverá o senhorio recorrer à ação de despejo prevista no art. 14 do mesmo NRAU.
No que respeita à oposição ao procedimento especial de despejo, dispõe o art. 15-F do NRAU (aditado pela Lei nº 31/2012, de 14.8), que: 1. O requerido pode opor-se à pretensão no prazo de 15 dias a contar da sua notificação. 2. A oposição não carece de forma articulada, devendo ser apresentada no BNA apenas por via eletrónica, com menção da existência do mandato e do domicílio profissional do mandatário, sob pena de pagamento imediato de uma multa no valor de 2 unidades de conta processuais. 3. (…). 4. (…). 5. (…).”
Por sua vez, prevê o art. 15-H que: 1. Deduzida oposição, o BNA apresenta os autos à distribuição e remete ao requerente cópia da oposição. 2. Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes para, no prazo de 5 dias, aperfeiçoarem as peças processuais, ou, no prazo de 10 dias, apresentarem novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório. 3. Não julgando logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou não decidindo logo do mérito da causa, o juiz ordena a notificação das partes da data da audiência de julgamento. 4. Os autos são igualmente apresentados à distribuição sempre que se suscite questão sujeita a decisão judicial.”
É obrigatória a constituição de advogado para a dedução de oposição ao requerimento de despejo tendo as partes de fazer-se representar por advogado nos atos processuais subsequentes à distribuição no procedimento (art. 15-S, nºs 3 e 4), aos respetivos prazos aplicam-se as regras previstas no Código de Processo Civil, não havendo lugar à sua suspensão durante as férias judiciais nem a qualquer dilação (art. 15-S, nº 5), e assumindo os atos a praticar pelo juiz no âmbito do PED carácter urgente (art. 15-S, nº 8).
O regime do PED não contempla, por isso, de forma expressa, a possibilidade de dedução de reconvenção pelo demandado, mas prevê a existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório (nº 2 do art. 15-H).
Defende Laurinda Gemas (ob. cit., loc. cit) que: “(…) Não obstante a possibilidade de resposta à oposição, parece que dificilmente será admissível a defesa por reconvenção, atento o disposto no art. 266.º, n.º 3, do CPC, já que ao pedido reconvencional corresponderá a forma de processo comum declarativo, manifestamente incompatível com o processo especial duma ação no âmbito do PED, em particular face à urgência que os atos a praticar pelo juiz aqui assumem (art. 15.º-S, n.º 8), ao oferecimento das provas na audiência (art. 15.º-I, n.º 6) e à inexistência de audiência prévia. Admite-se, com dúvidas que, sendo peticionadas rendas, encargos e despesas pelo senhorio, o requerido possa invocar a compensação, designadamente com o crédito por benfeitorias ou outra indemnização a que tenha direito. Poderá também, dum modo geral, a defesa fundar-se no direito de retenção (arts. 216.º, 754.º, 756.º, 1273.º e 1275.º do CC e art. 29.º da Lei n.º 6/2006). A não ser assim, a ação a intentar pelo arrendatário poderá constituir causa prejudicial (cfr. art. 272.ª do CPC).(…).”
Sendo embora sensíveis a esta argumentação, e admitindo que a existência de um pedido formulado pelo demandado contra o demandante introduza no processo a necessidade de apreciar e decidir novas questões que podem contrariar a regra de celeridade e simplificação que presidiu à criação do PED, cremos que razões de economia processual e de tutela efetiva do arrendatário aconselham, em princípio, a sua admissão.
Será esse claramente o caso se estiver em causa a eventual extinção total ou parcial da dívida reclamada pelo A. (art. 15, nº 5) através da invocação pelo R. da compensação de créditos (art. 847 do C.C.).
Mas também se nos afigura essa a forma mais adequada de proteger o interesse do arrendatário se este pretender reclamar do senhorio o seu crédito por benfeitorias ou despesas relativas ao imóvel (arts. 1036 e 1273 do C.C.), tendo em conta o direito que lhe assistirá de reter o locado, nos termos do art. 754 do C.C., quando obrigado a entregar o mesmo. Admitindo-se que tal direito apenas deveria ser exercido em ação autónoma que constituiria causa prejudicial relativamente ao PED, acabaríamos por contrariar, de igual modo, o caráter urgente deste mesmo procedimento (ver art. 272, nº 1, do C.P.C.).
Assim, concordamos com Rui Pinto([6]) que refere a propósito da oposição no PED: “Dado ainda não ter corrido prévio processo judicial, deve entender-se que o direito de defesa determina que o conteúdo da oposição seja qualquer fundamento que possa ser invocado no processo de declaração.
(…) Portanto, pode ser oposta impugnação e exceção e, bem assim, fazer-se valer o direito a benfeitorias. Se tal era admissível em sede de art. 929.º, nº 1, CPC (…) não (pode) deixar de ser permitido, sob pena de violação do direito à tutela jurisdicional efetiva da posição material do inquilino.
Assim, consoante as possibilidades dadas pelo direito substantivo, tanto poderá pedir a condenação do senhorio no pagamento do valor das benfeitorias, como o reconhecimento do direito a levantá-las, em reconvenção.”
Por sua vez, pensamos que a tramitação própria do PED não é necessariamente incompatível com a reconvenção, pois embora a esta corresponda a forma de processo comum declarativo, sempre pode o juiz admiti-la, adaptando o processado (art. 266, nº 3, e 37, nºs 2 e 3, do C.P.C.).
Veja-se que constituindo o PED um processo declarativo especial, naquilo que não esteja especialmente regulado valem as regras gerais e comuns do Código de Processo Civil e em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, vale o que se acha estabelecido para o processo comum (art. 549 do C.P.C.)([7])
Finalmente, a possibilidade da existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório (nº 2 do art. 15-H) tanto poderá servir para responder à matéria de exceção como para responder à matéria da reconvenção deduzida ao abrigo do art. 266 do C.P.C..
Em suma, não podemos concordar com o despacho que julgou processualmente inadmissível a reconvenção deduzida com a oposição – respeitante ao pagamento de renda paga em duplicado e ao valor de reparações, necessárias e urgentes, realizadas no espaço em apreço – seja por inobservância do disposto no nº 2 do art. 266 do C.P.C., seja por estar em causa procedimento especial de despejo.
Assim, o pedido indemnizatório formulado pela Ré encontra, à partida, enquadramento na al. b) do nº 1 do art. 266, do C.P.C., e não conflitua, como vimos, com o regime do PED, respeitando a crédito que, sendo reconhecido, pode conferir à Ré direito de retenção sobre o imóvel em questão (art. 754 do C.C.).
Deste modo, cumpre revogar o aludido despacho de 21.2.2022 que julgou inadmissível a reconvenção deduzida, devendo prosseguir os autos para a respetiva apreciação, com eventual convite prévio ao aperfeiçoamento da dita reconvenção, se julgado necessário, no âmbito dos poderes de gestão processo (arts. 6, nº 2, e 590, nº 2, al. b), e nº s 3 e 4, do C.P.C.).
Tal decisão não prejudica, entretanto, a decisão do mérito da causa acima confirmada (a obrigação de entrega do imóvel), sem prejuízo do possível exercício do direito de retenção por parte da Ré sendo exigida a entrega.
Procede, pois, o recurso interposto do despacho de 21.2.2022 que julgou inadmissível a reconvenção deduzida.
*
IV- Decisão:
Termos em que e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
- julgar improcedente o recurso interposto da sentença proferida em 18.5.2022 e confirmar o aí decidido; e, sem embargo,
- julgar procedente o recurso interposto do despacho proferido em 21.2.2022, que julgou inadmissível a reconvenção deduzida pela Ré, e determinar o prosseguimento dos autos para a respetiva apreciação, sem prejuízo do exercício dos poderes de gestão processual que se revelem adequados.
Custas por apelante e apelada em partes iguais.
Notifique.

Lisboa, 13.9.2022
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho                         
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________
[1] Ver, a propósito, o Ac. do STJ de 8.6.2006, Proc. 06A1483, em www.dgsi.pt.
[2] Proc. 51/18.9T8BGC-A.G1.S1, em www.dgsi.pt.
[3] Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, 6ª ed., 2020, págs. 139 a 141.
[4] A ilegitimidade em que se traduz o abuso de direito não resulta da violação formal de qualquer preceito legal em concreto mas da utilização manifestamente anormal, excessiva, do direito, independentemente do animus ou da consciência que o seu titular tenha do carácter abusivo da sua conduta (Ver “Dicionário Jurídico”, Ana Prata, 3ª ed., pág. 7, e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 5ª ed., pág. 498).
[5] Segundo Laurinda Gemas e Outros, in “Arrendamento Urbano”, 2ª ed., pág. 256, o arrendamento que, por causa imputável ao senhorio, seja celebrado sem licença de utilização quando exigível, confere ao arrendatário o direito de resolver o contrato (art. 5, nº 7, do DL nº 160/2006, de 8.8, que aprova os elementos do contrato de arrendamento e os requisitos a que obedece a sua celebração), ou de pedir a declaração de nulidade do negócio (art. 1070 do C.C. e 4 do DL nº 160/2006, de 8.8), sempre com direito a indemnização nos termos gerais (arts. 801, nº 2, e 562 do C.C.).
[6] Ob. cit., págs. 153/154.
[7] Ver ainda Rui Pinto, ob. cit., pág. 160.