Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2075/12.0TTLSB.L1-4
Relator: ISABEL TAPADINHAS
Descritores: ESTADO ESTRANGEIRO
IMUNIDADE JURISDICIONAL
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE DESPEDIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: DESATENTIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário: I - A imunidade de jurisdição dos Estados é distinta das imunidades diplomáticas e consulares que a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas (aprovada em 18.04.61) atribui aos agentes diplomáticos.
II - Esta imunidade jurisdicional dos Estados apresenta-se como corolário do princípio da igualdade entre Estados e radica numa regra costumeira de acordo com a qual nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado (par in parem non habet judicium), regra esta cujo sentido atual deve ser captado e definido.
III - É hoje dominante a conceção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos atos praticados jure imperii, excluindo da imunidade os atos praticados jure gestionis.
IV - Numa ação de impugnação de despedimento intentada por uma cidadã argelina contratada pela Embaixada em Portugal da República Democrática e Popular da Argélia para exercer funções de cozinheira, em que o fundamento da ação é a comunicação pela Embaixada à autora de que o contrato de trabalho cessou (situação em que a parte agiu como qualquer empregador privado), a Embaixada apenas gozaria de imunidade de jurisdição se tivesse sido formulado pedido de reintegração da autora e outros que tivessem essa reintegração como pressuposto.
V - Não tendo sido formulado pedido de reintegração ou outros que tivessem essa reintegração como pressuposto, os tribunais portugueses têm competência internacional para conhecer dos pedidos formulados pela autora nessa ação - pagamento de retribuições que deveria auferir entre o despedimento e a sentença, de retribuições de férias e subsídios de férias e de Natal decorrentes do despedimento ilícito e indemnização em substituição da reintegração.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:

      Relatório

     Na presente ação declarativa de condenação com processo comum que contra Embaixada em Portugal da República Democrática e Popular da Argélia instaurou AA aquela, na contestação, a excecionou dilatória a imunidade de jurisdição e a consequente incompetência internacional dos tribunais portugueses.
     Na resposta à contestação, a autora pugnou pela improcedência deste exceção.
     Findos os articulados foi proferida, em 17 de Setembro de 2013, sentença, cujo dispositivo se transcreve:
     Face ao exposto e nos termos dos preceitos legais supra indicados, decide-se:
1) Reconhecer a imunidade de jurisdição à Ré Embaixada em Portugal da República Democrática e Popular da Argélia em Lisboa na presente acção contra si instaurada pela Autora Fatiha Hadj Madani
2) E julgar procedente a excepção de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para preparar e julgar a presente acção e, consequentemente, absolver a Ré da instância.
     Custas pela Autora, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
     Inconformada com a decisão da mesma interpôs a autora recurso, tendo sintetizado a sua alegação nas seguintes conclusões:
19. A douta sentença recorrida, considera os tribunais portugueses incompetentes, sem que seja considerada a “Declaração” junta à P.I. sob o Doc nº. 2, nem o facto de a ora Recorrente ter autorização de residência portuguesa (e não um mero visto diplomático) e bem assim de ser contribuinte fiscal e da segurança social portuguesas;
20. A douta sentença recorrida, considera a impugnação de um despedimento ilícito um acto jure imperii e não jure gestiones, como de facto é;
20. A douta sentença recorrida deverá também ser considerada nula, tendo em conta que põe termo ao processo, sem se pronunciar sobre o mérito da causa, devendo para tanto, pronunciar-se não apenas sobre questões de competência jurisdicional, entenda-se, a competência do tribunal, mas também de substância;
      Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogar-se a douta sentença recorrida, baixando os autos ao tribunal a quo e prosseguindo os mesmos até final.
     A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.
      Formulou as seguintes conclusões:
a) Dizem as presentes alegações respeito ao recurso interposto pela Recorrente da Douta Sentença proferida pelo Tribunal o quo nos autos à margem identificados, que reconheceu e bem a imunidade de jurisdição à Recorrida, na acção contra si instaurada pela Recorrente, e julgou procedente a excepção de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para preparar e julgar a referida acção e, consequentemente, absolveu a Recorrida da instância, pelo que deverá a sentença do Tribunal a quo ser confirmada pelo Tribunal de Recurso.
b) Ainda assim, também se deverá considerar que a pretensão ora deduzida pela Recorrente não poderá proceder, porquanto, conforme é sabido, e cumpre referir, a Recorrida não tem, em si, personalidade jurídica, sendo uma Missão da República Democrática e Popular da Argélia que tem, nos termos de artigo 2.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, a qual entrou em vigor relativamente a Portugal no dia 11 de Outubro de 1968, entre outras funções, a função de representar a República Democrática e Popular da Argélia junto do Estado Português.
c) A imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros é considerada como Princípio Fundamental em Direito Internacional, o qual tem assegurada a sua recepção automática no Direito Interno Português, por via do artigo 8.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.
d) A Recorrente pretende agora que a sentença do Tribunal a quo seja revogada e substituída por outra que declare a competência do Tribunal a quo para conhecer do mérito da causa.
e) Contudo, a pretensão ora deduzida pela Recorrente não pode proceder, porquanto, conforme é sabido, e cumpre referir, a Recorrida não tem, em si, personalidade jurídica, sendo uma Missão da República Democrática e Popular da Argélia que tem, nos termos do artigo 2.° da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, a qual entrou em vigor relativamente a Portugal no dia 11 de Outubro de 1968, entre outras funções, a função de representar a República Democrática e Popular da Argélia junto do Estado Português.
f) Ora, como é sabido, a Recorrida goza de imunidade de jurisdição, em virtude do seu estatuto diplomático, pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da acção objecto do presente recurso, imunidade de jurisdição que a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia, ora Recorrida invoca novamente de forma expressa.
g) O princípio da imunidade de jurisdição resulta também do artigo 2.º n° 1 da Carta das Nações Unidas, que estabelece o principio da igualdade soberana entre Estados.
h) Sendo que o corolário do princípio da igualdade dos Estados é o de que, em princípio, nenhum Estado pode julgar os actos de outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, máxime, por intermédio de um dos seus tribunais, sem consentimento deste.
i) Este princípio encontra-se consagrado na jurisprudência internacional, inclusivamente pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
j) Com efeito, e conforme dispõe o artigo 31.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, o agente diplomático goza de imunidade da jurisdição penal, mas também civil e administrativa do Estado receptor, salvo se se tratar de (i) acção real sobre imóvel privado situada no território do Estado acreditados, excepto se o possuir por conta do Estado acreditante para os fins da missão, (ii) acção sucessória ou (iii) acção referente a qualquer actividade profissional ou comercial exercida pelo agente diplomático no Estada acreditador fora das suas funções oficiais.
k) Ora, as acções do foro laboral encontram-se abrangidas pela imunidade jurisdicional
l) Só assim não seria se a Recorrida tivesse renunciado à imunidade de jurisdição dos seus agentes diplomáticos (artigo 32.º, n.° l da referida Convenção), o que não é o caso.
m) Ora, conforme dispõe o Acórdão de 12 de Julho de 1989 do Tribunal da Relação de Lisboa, se tal se verifica com os representantes do Estado, por maioria de razão se deverá verificar com o próprio Estado, bem como com as respectivas Embaixadas que o representam no Estrangeiro (artigo 3.º, a) da Convenção de Viena).
n) Além disso, estamos perante uma relação laboral entre uma cidadã Argelina e o Estado da Argélia.
o) Acresce que, na altura, a Recorrente foi contratada na Argélia pela Embaixada, para vir trabalhar para a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal, tendo nesse momento a Embaixada tratado dos documentos para a entrada e permanência desta em Portugal.
p) Estando a Recorrente autorizada a permanecer em Portugal como Pessoal Auxiliar de Missão Estrangeira.
q) Devendo ser considerada como membro do Pessoal da Missão, nos termos do art.º 1º da referida Convenção de Viena, sendo assim, membro da Missão.
r) Assim, a Recorrente aquando da sua contratação, passou a fazer parte dos Membros da Missão, nos termos do disposto no art.º 7.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.
s) Pelo que, estamos perante uma relação jurídica à qual só poderá ser aplicada a legislação Argelina.
t) Desta forma, não se poderá nunca considerar estarmos perante uma relação privada. Estamos sim, no âmbito de um contrato essencial às próprias funções da Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal, porquanto, no exercício das suas funções, a Recorrente era a responsável pela preparação e confecção de toda a alimentação servida na Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal, e especialmente da Exma. Sra. Embaixadora e da sua família, que são funções de extrema relevância em qualquer Embaixada, nomeadamente no que à imagem pública da Embaixada e do País que a Missão Diplomática representa, diz respeito, bem como à saúde e segurança da Exma. Sra. Embaixadora, da Embaixada e dos que com ela contactam.
u) Resulta assim, que deverá ser confirmada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, reconhecendo-se a imunidade jurisdicional da Embaixada da Argélia, ora Recorrida e declarando a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para conhecer da acção judicial objecto do presente recurso, absolvendo a Recorrida da instância quanto a todos es pedidos formuladas pela Recorrente
      Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, requer-se a V. Exa. que seja confirmada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, reconhecendo-se a imunidade jurisdicional da Embaixada da Argélia, ora Recorrida, declarando a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para conhecer da acção judicial objecto do presente recurso e absolvendo a Recorrida da instância quanto a todos os pedidos formulados pela Recorrente.
      (...)
     Por despacho da Relatora proferido, em 12 de Dezembro de 2013, ao abrigo do disposto no art. o art. 656.° do Cód. Proc. Civil, o recurso foi julgado procedente e a sentença recorrida revogada, ordenando-se o prosseguimento dos autos para conhecimento dos pedidos.
     Irresignada, a ré veio, nos termos do disposto no art. 656º.º Cód. Proc. Civil, reclamar para a conferência, pugnando pela manutenção da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
     Foram dispensados os vistos, com a concordância dos adjuntos.
     A única questão colocada no recurso delimitado pelas respetivas conclusões (com trânsito em julgado das questões nela não contidas) – arts. 635.º, nº 3 e 639.º, nº 1 do Cód. Proc. Civil – consiste em saber se a exceção de incompetência absoluta do Tribunal em razão da nacionalidade deve ser julgada improcedente.
      Fundamentação de facto
      A 1.ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto não objeto de impugnação e que aqui se acolhe.
1) A autora AA é cidadã argelina.
2) Na data de 15/10/2004, na Argélia, a autora e a ré Embaixada em Portugal da República Democrática e Popular da Argélia, acordaram de forma verbal que aquela prestaria a exercer as funções de cozinheira para esta e sob a sua autoridade, direção e fiscalização, mediante uma remuneração mensal,
3) Tendo em consequência deste acordo, a ré tratado da documentação para a entrada da autora em Portugal para funções como membro da Missão.
4) Posteriormente, em 21/02/2005, nas instalações da ré, esta e a autora reduziram a escrito o referido acordo verbal, através da subscrição do escrito particular denominado «CONTRAT D’ENGAGEMENT», cuja cópia consta de fls. 68 a 70 dos autos e cujo teor se dá por integralmente, e cuja tradução consta de fls. 66 e 67 dos autos e cujo teor se dá por integralmente.
5) A autora exerceu as funções de cozinheira na própria Embaixada e na residência oficial da Sra. Embaixadora da Argélia.
6) Funções essas que desempenhou até 31.05.2011.
7) Data em que a ré lhe entregou a carta cuja cópia consta de fls. 18 dos autos e cujo teor se dá por integralmente, e cuja tradução consta de fls. 17 dos autos e cujo teor se dá por integralmente.
8) Enquanto prestou o seu trabalho para a ré, por iniciativa desta, a autora fazia descontos para a Segurança Social Portuguesa.
      Fundamentação de direito
     A decisão reclamada encontra-se corretamente elaborada, bem estruturada e fundamentada, abordando a questão colocada com clareza, profundidade, objetividade e acerto.
      Aí se escreveu o seguinte:
      « O direito internacional comum reconhece aos Estados certos direitos derivados da sua qualidade de sujeitos de direito internacional, direitos esses essenciais sem os quais os Estados não poderiam viver e dos quais decorrem todos os seus outros direitos.
     Um desses direitos fundamentais é o direito à igualdade (igualdade nas relações entre os Estados, direito a uma igual medida de soberania, garantia da igualdade na aplicação do direito internacional).
     A soberania é um dos elementos constitutivos do Estado, sendo uma das suas marcas o exercício dos poderes de jurisdição, tanto de sentido normativo, como administrativo, ou jurisdicional, havendo uma tendencial correspondência entre os limites territoriais e o alcance do direito de jurisdição (Jónatas E. M. Machado, “Direito Internacional, do Paradigama Clássico ao Pós-11 de Setembro”, pág. 130 e segs.)
     Os direitos fundamentais dos Estados sofrem, todavia, algumas restrições. Umas resultam do costume internacional, outras derivam de normas convencionais.
     A imunidade de jurisdição de que gozam os Estados estrangeiros é uma dessas restrições.
      Embora ainda se tivesse defendido - como dá conta Luiz Paulo Romano (“A imunidade de Jurisdição do Estado Estrangeiro: absoluta ou relativa?”, Enciclopédia Jurídica, acessível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id:1638.) - que as regras estatuídas pela Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas cujo texto foi aprovado em 18 de Abril de 1961, por oitenta e um países soberanos conferiam aos Estados estrangeiros imunidade total em face da jurisdição do país em que se situavam tais missões, julgamos que este entendimento está hoje completamente superado.
     Temos, pois, como assente que a imunidade dos próprios Estados não radica no citado direito convencional, sendo algo de distinto das imunidades diplomáticas e consulares. De acordo com esta regra nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado.
     Porém desde há muito que o princípio da imunidade de jurisdição dos Estados tem vindo a sofrer restrições, consequência da crescente intervenção estadual no campo das finanças, do comércio, da indústria e dos transportes.
     E a doutrina, na definição do sentido daquela regra costumeira, foi-se separando, ora pugnando a favor da imunidade absoluta, ora defendendo a imunidade relativa.
     A partir da segunda grande guerra mundial começou a operar-se uma distinção entre as atividades governamentais tradicionais e as que entram no domínio das transações comerciais. Foi o início da distinção entre os actos iure imperii e os actos iure gestionis (Albino de Azevedo Soares, “Lições de Direito Internacional Público”, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 340).
      Hoje é dominante a tese da imunidade restrita que pressupõe aquela distinção.
     Quanto ao critério a usar na distinção, o mesmo não tem sido pacífico. Enquanto uns põem o acento na natureza do ato, outros atendem mais à finalidade por ele visada.
     Atualmente, a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados aberta à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa, em Basileia, a 16 de Maio de 1972, com entrada em vigor na ordem jurídica internacional a 11 de Junho de 1976, após as três ratificações necessárias e assinada por Portugal em 10 de Maio de 1979 consagra a tese da imunidade relativa e põe definitivamente de lado a qualificação do ato através da sua finalidade. Em matéria de contratos distingue entre os contratos de trabalho e outros contratos, não permitindo, em qualquer dos casos, que o Estado possa invocar a imunidade de jurisdição. Tal orientação, cujo teor é justificado pelo facto de a atuação estadual que obriga à celebração de tais contratos não poder ser considerada iure imperii, é complementada pelo art. 7.º, que nega igualmente a possibilidade de o Estado recorrer àquele tipo de defesa formal sempre que a atividade financeira, industrial ou comercial é levada a cabo por um escritório, agência ou estabelecimento que age da mesma forma como agiria uma pessoa privada. (Albino de Azevedo Soares, ob. cit., pág. 341 e segs.).
      Embora Portugal tenha assinado Convenção de Basileia não a ratificou, o que significa que a mesma não vigora na ordem interna portuguesa (art. 8.º, nº 2, a contrario, da Constituição da República Portuguesa). Todavia este facto não a torna inócua, na medida em que, evidenciando uma certa tendência na definição do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, na prática internacional, pode ajudar a definir o conteúdo, a marcha evolutiva e o sentido atual da correspondente regra consuetudinária.
     Ora, a constatação duma certa tendência na limitação do princípio da imunidade na prática internacional não pode deixar de ter repercussão na definição do sentido atual da referida regra consuetudinária.
      O Ac. do STJ de 13 de Novembro de 2002 (CJ, Ano X, T. III, pág. 276) dá também conta dessa tendência, fazendo um estudo desenvolvido sobre a matéria.
      Destacamos algumas passagens e dados recolhidos.
    Desde há vários anos, as sessões regulares do Instituto de Direito Internacional vêm salientando que deve ser, em via de regra, afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro quando estejam em causa relações reguladas pelo direito privado (civil ou comercial), o que inclui, além do mais (...), contracts of employment and contracts for professional services to which a foreign State (or its agent) is a party (...). Esta linha de orientação tem sido evidenciada pelas análises comparadas das diversas jurisprudências nacionais (...).
      O tema foi recentemente objecto de desenvolvida monografia da autoria de Isabelle Pingel-Lenuzza (“Les Immunités des États en Droit International, Editions Bruylant/Editions de L’ Université de Bruxelles”, 1997) que, a propósito do não reconhecimento da imunidade de jurisdição em litígios laborais, refere que “a prática tende a admitir (...) que o Estado não beneficia da imunidade nos litígios que o opõem a uma pessoa privada com a qual concluiu o contrato de trabalho”.
     Adverte, porém, a mesma autora que esta regra tem sido aplicada com nuances, revelando o exame das jurisprudências nacionais que se a imunidade é geralmente recusada nos casos em que o litígio respeita a um trabalhador que exerce funções subalternas, ela já lhe é frequentemente concedida quando a pessoa em causa ocupa funções mais elevadas.
     Acrescenta que a justificação desta orientação assenta no reconhecimento de que só os contratos de trabalho celebrados com pessoal de grau elevado é que é suscetível de estar relacionado com o exercício do poder público (jus imperii) e de beneficiar a este título, da imunidade.
      Também Michel Menjucq, citado no mesmo acórdão, afirma - sintetizando a atual orientação jurisprudencial francesa na matéria - que unicamente as pessoas que tenham uma função de direcção agem no interesse do serviço público estrangeiro e podem ver ser-lhes opostas a imunidade do Estado estrangeiro, [o qual] pratica um acto de soberania ao despedi-las; pelo contrário, as pessoas que apenas têm uma função subalterna no serviço público, não implicando qualquer responsabilidade de direcção do serviço, não são consideradas (....) como actuando no interesse do serviço público. Consequentemente, a acção judicial por elas intentada não pode ser entravada pela imunidade do Estado estrangeiro, pois este intervém, ao despedi-las, como simples empregador privado, praticando um acto de gestão.
     Face a estas considerações, iluminando a conceção atual do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, resta analisar a relação material controvertida tal como se mostra configurada na petição inicial e também o pedido.
     Recorde-se que a ação foi proposta contra a Embaixada da Argélia em Portugal, e não contra a pessoa do seu Embaixador, e, como se viu, relativamente aos Estados estrangeiros, a imunidade de jurisdição é sempre relativa, dependendo da natureza da atividade desenvolvida pelo autor.
     Saliente-se também, que a ação não tem por objeto a sua renovação do contrato de trabalho ou a reintegração da trabalhadora, hipótese em que seria possível a invocação da imunidade (Ac. do STJ de 12.01.2006, doc. nº SJ200602180032794, www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto).
     O fundamento da ação é a cessação da relação de trabalho, por facto imputável à entidade empregadora.
     Em razão disso a autora pede que o despedimento seja declarado sem justa causa, logo ilícito, e em consequência:
A) Ser a R. condenada ao pagamento das retribuições que o R. deixou de auferir desde a data do despedimento, 31/01/2011, até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida nos presentes autos e que no presente se computam em € 15.096,00 (quinze mil e noventa e seis euros);
B) Ser a R. condenada, em substituição à reintegração da A. no seu posto de trabalho, a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 13.209,00 (treze mil, duzentos e nove euros);
C) Ser a R. condenada no pagamento da quantia de € 3.774,00
(três mil, setecentos e setenta e quatro euros) relativa a férias, subsídio de férias e férias não gozadas, vencidas em 1 de Janeiro de 2011;
D) Ser a R. condenada ao pagamento da quantia de € 1.572,51 (mil, quinhentos e setenta e dois euros e cinquenta e um cêntimos) relativa aos duodécimos de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal relativos aos cinco meses que trabalhou em 2011.
     Ao comunicar à autora que o contrato de trabalho tinha cessado, a recorrida agiu como qualquer empregador privado. Não praticou um ato de soberania.
     No presente caso, as funções exercidas pela autora são obviamente de carácter subalterno, não lhe podendo, manifestamente, ser reconhecida qualquer posição de direção na organização do serviço público da ré ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação.
     A sentença recorrida, após reconhecer que as funções exercidas pela autora, (cozinheira) não podem ser consideradas como de grau elevado (não se trata de um cargo de chefia de topo e/ou ou de representação) e tais funções não lhe conferiam nenhuma responsabilidade particular no domínio do exercício do serviço público diplomático), ponderou que se tratou de uma contratação realizada em território argelino, de uma cidadã argelina e que veio para Portugal como membro da missão e que o contrato de trabalho está escrito em língua francesa e contém um conjunto de cláusulas cujo regime está muito mais próximo do regime legal argelino do que o regime legal português e concluiu que, como à data de interposição da ação, a autora tinha (e continua a ter) nacionalidade argelina e que, aquando da celebração do contrato de trabalho (designadamente do contrato verbal), a autora não tinha nacionalidade portuguesa nem tinha residência em Portugal, a ré gozava de imunidade de jurisdição, nos termos da Convenção Europeia sobre a Imunidade.
     Não se pode subscrever este entendimento, que, pela sua latitude, acabaria por abranger todo o pessoal necessário ao funcionamento regular de qualquer representação diplomática, independentemente do nível de relevância e de responsabilidade das funções exercidas. A natureza das atividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer outro trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular. No caso, a resposta é negativa. A relação de trabalho subordinado estabelecida entre a autora e a ré é regida pelo direito português em termos idênticos ao vulgar contrato de trabalho para prestação de serviços domésticos (confeção de refeições) celebrado com qualquer particular.
      Neste sentido, vejam-se os arts. 1.º e 18.º do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial) e o Ac. do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 19 de julho de 2012 (http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62011CJ0154:PT:HTML).»
     Concordando-se, totalmente, com a decisão proferida, bem como com os fundamentos invocados, é de confirmar inteiramente essa decisão.
      Para não estarmos aqui a repetir aquilo que já foi dito - e bem -, focaremos apenas o que nos parece mais relevante face à motivação da reclamação.
      Não se ignora que a jurisprudência nacional tem-se mostrado, particularmente oscilante, entre uma conceção mais dilatada do alcance da regra da imunidade de jurisdição (Acs. desta Relação de 12.07.1989, CJ, Ano XIV, tomo IV, pág. 178 e do Tribunal da Relação do Porto, de 5.01.1981, CJ, Ano VI, tomo I, pág. 183) e uma conceção mais restrita, como a do Ac. deste Tribunal de 30.05.1990, confirmado pelo Ac. do STJ de 30.01.1991, BMJ nº 403, pág. 267, que ambos decidiram serem os tribunais de trabalho portugueses internacionalmente competentes para conhecer de ação de impugnação de despedimento intentada por empregada doméstica do 1.º Secretário da Embaixada da França em Lisboa. É esta última a conceção que se reputa mais correta e mais conforme ao estádio atual da prática e da jurisprudência internacionais – note-se que a esmagadora maioria desses acórdãos não são recentes, sendo certo que, desde então, se registou uma evolução significativa no sentido apontado pela decisão reclamada (de que dá conta o aí citado acórdão de 13.11.2002).
     Recorde-se que o costume internacional é a segunda das fontes formais enunciadas no art. 38.º, nº 1 do Estatuto do TIJ (Tribunal Internacional de Justiça) - onde aparece definido como prova de uma prática geral aceite como sendo direito - e que a função do costume é idêntica à das convenções. Tanto define direitos e obrigações subjetivas particulares entre Estados, como cria normas objetivas gerais válidas para o conjunto dos membros da sociedade internacional.
     Por outro lado, o citado art. 38.º do Estatuto do TIJ não faz depender a aplicação judicial dos costumes gerais, da circunstância de os litigantes os terem praticado ou aceitado. Por isso, o TIJ tem aplicado costumes considerados gerais à solução de litígios entre Estados que não tinham aceitado a aplicação desses costumes ao caso litigioso.
      De sublinhar, ainda, que imunidade de jurisdição do Estado e dos seus bens, geralmente aceite como um princípio do direito internacional consuetudinário (par in parem non habet jurisdictionem), integrado no Direito Interno por força do art. 8, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, foi objeto de uma Convenção internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, aberta à assinatura em Nova York em 17 de Janeiro de 2005, que ainda não entrou em vigor - Portugal ratificou já esta Convenção, aprovada pela Resolução da Assembleia da Republica nº 46/2006, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 57/2006, tendo o instrumento de ratificação sido depositado em 14 de Setembro de 2006 e a Convenção publicada no DR I Série-A, de 20 de Junho de 2006.
     Poderá, no entanto, como afirma Margarida Salema D’Oliveira Martins, constituir uma base importante para os tribunais (“Direito Diplomático e Consular”, pág. 69).
     A Convenção refere-se, na sua Parte III, aos Processos judiciais nos quais os Estados não podem invocar imunidade:
- no art. 10.º, sob a epígrafe “Transacções comerciais”;
- no art. 11.º, sob a epígrafe “Contratos de trabalho”;
- no art. 12.º, sob a epigrafe “Danos causados a pessoas e bens”;
- no art. 13.º, sob a epígrafe “Propriedade, posse e utilização de bens”;
- no art. 14.º, sob a epígrafe “Propriedade intelectual e industrial”;
- no art. 15.º, sob a epígrafe “Participação em sociedades ou outras pessoas colectivas” e, finalmente, no art. 16.º, sob a epígrafe “Navios de que um Estado é proprietário ou explora.
      Analisada a relação material controvertida tal como se mostra configurada na petição inicial aí se incluindo o pedido não podemos deixar de concluir que a autora, pelo contrato celebrado passou a ser membro do pessoal serviço (alínea g) do art. 1.º da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas).
     Todavia, as funções para que foi contratada não eram de direção, antes tinham carácter subalterno. A autora cumpria todas as tarefas próprias de uma cozinheira, exercendo-as sob a direção da entidade empregadora. Também não eram funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental (jus imperi).
     Tanto a designação do contrato, como as suas cláusulas, apontam para um contrato de natureza privada, designado pelas partes como contrato de trabalho.
     O fundamento da ação é a cessação da relação de trabalho, por facto imputável à entidade empregadora. Ao comunicar à autora que o contrato de trabalho tinha cessado a ré agiu como qualquer empregador privado. Não praticou um ato de soberania.
     Não altera os dados da situação o facto de a autora ser membro do pessoal de serviço da ré pois nessa qualidade não goza sequer dos privilégios e imunidades, contemplados pelo art. art. 37.º, nº 2 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (desde logo, porque foi a autora que propôs a ação).
     Sublinha-se ainda que o art. 32.º da Convenção de Basileia (convenção que, não vigorando na ordem interna portuguesa, tem, como ficou dito, o mérito de evidenciar uma tendência geral sobre o âmbito de aplicação do princípio de direito internacional sobre da imunidade dos Estados) apenas salvaguarda os privilégios e imunidade das missões diplomáticas e postos consulares consagrados noutras fontes (Convenções de Viena - sobre Relações Diplomáticas e sobre Relações Consulares, esta aprovada em Viena, em 24 de Abril de 1963).
     Sabido que, na ordem interna portuguesa, vigora a regra consuetudinária (costume internacional de âmbito geral – art. 8.º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), com o conteúdo e o sentido (atualizado) já definidos, entendemos que o âmbito das restrições que aquela regra (consuetudinária) permite não pode ultrapassar - por tudo o que já se disse - as que constam daquela convenção e da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, segundo a qual, a imunidade pode ser invocada se estiver em causa um contrato de trabalho e o objeto do processo for a sua renovação ou a reintegração duma pessoa singular – art. 11.º, nº 2, alínea c) -, que aceitamos como manifestações de uma certa prática (ou tendência) internacional.
      Refira-se, ainda, que o Regulamento (CE) n° 44/2001, que estabelece as regras de determinação da competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, se aplica a todos os litígios em matéria civil e comercial, com exceção de certas matérias expressamente indicadas neste mesmo regulamento.
     Este Regulamento tem por objeto unificar as regras de competência dos Estados-Membros tanto nos litígios internos à União como nos que contêm um elemento de estraneidade, com o objetivo de eliminar os obstáculos ao funcionamento do mercado interno que podem resultar das disparidades nas legislações nacionais existentes na matéria.
     Com efeito, o Regulamento e particularmente o seu capítulo II, no qual se insere o art. 18.°, contém um conjunto de regras que formam um sistema global, aplicáveis não apenas às relações entre diferentes Estados-Membros mas também às relações entre um Estado-Membro e um Estado terceiro.
     A secção 5 do capítulo II do Regulamento, composta pelos arts. 18.° a 21.°, enuncia as regras de competência relativas aos litígios que têm por objeto contratos individuais de trabalho, regras essas que têm por objetivo proteger a parte contratante mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos interesses dessa parte e que permitem, nomeadamente, ao trabalhador demandar a entidade patronal perante o órgão jurisdicional que considera ser mais próximo dos seus interesses, reconhecendo-lhe a faculdade de agir perante um órgão jurisdicional do Estado no qual tem o seu domicílio ou do Estado onde leva a cabo habitualmente o seu trabalho, ou ainda do Estado no qual se encontra o estabelecimento do empregador.
      O art. 18.° tem a seguinte redação:
1. Em matéria de contrato individual de trabalho, a competência será determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 4.° e no ponto 5 do artigo 5.°
2. Se um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio no território de um Estado-Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num dos Estados-Membros, considera-se para efeitos de litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado-Membro.
      O Ac. do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 19 de julho de 2012, muito oportunamente citado na decisão reclamada, proferido no âmbito de um litígio que opunha um motorista de dupla nacionalidade argelina e alemã da Embaixada da República Argelina Democrática e Popular estabelecida em Berlim (Alemanha) ao seu empregador, concluiu que o art. 18.°, nº 2, do Regulamento (CE) n°44/2001 deve ser interpretado no sentido de que uma embaixada de um Estado terceiro situada no território de um Estado-Membro constitui um estabelecimento na aceção desta disposição num litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado por esta em nome do Estado acreditante, quando as funções desempenhadas pelo trabalhador não se enquadram no exercício do poder público, competindo ao órgão jurisdicional nacional determinar a natureza exata das funções exercidas pelo trabalhador.
      Impõe-se, pois, confirmar a decisão reclamada.
      Decisão
      Pelo exposto, acorda-se em desatender a reclamação.
      Custas pela reclamante.
      Lisboa, 15 de Janeiro de 2014

      Isabel Tapadinhas
      Leopoldo Soares
      José Eduardo Sapateiro