Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
343/21.0T8RGR-A.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: INVENTÁRIO
TESTAMENTO
CANADÁ
VALIDADE EM PORTUGAL
REGULAMENTO (UE) Nº 650/2012
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, prevalece sobre as normas dos Artigos 62º a 65º do Código Civil e revogou tacitamente o Artigo 2223º do Código Civil.
II. Um testamento manuscrito no Canadá, em 16.5.2018, respeitando a lei local, é válido e deve ser reconhecido no subsequente inventário em Portugal, tendo o óbito ocorrido em 1.7.2018 e havendo que considerar que o inventariado tem residência habitual em Portugal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
AB requereu inventário judicial por óbito de seus pais CD e EF, sendo também interessada a sua irmã GH.
Em 17.12.2022, foi proferida a seguinte decisão:
«AB requereu processo especial de inventário, para partilha do acervo hereditário de CD e EF, falecidos respectivamente a 7 de Agosto de 2012 e 1 de Julho de 2018, casados que foram entre si, e que tiveram como residência na Rua (...), concelho da Ribeira Grande.
Por despacho com referência citius 52215858 foi designada como cabeça de casal GH.
Por requerimento com referência citius 4703400 a cabeça de casal, entre outros, procedeu à junção da competente relação de bens.
Mais informou que EF tinha deixado testamento, o qual protestou juntar aos autos.
O que posteriormente realizou (cf. documento com referência citius 4787664).
AB (cf. documento com referência citius 4849514 apresentou reclamação a relação de bens.
Alegou então - síntese nossa - que
(i) Encontrava-se em falta a certidão do registo predial do prédio relacionado como verba única na relação de bens;
(ii) Deveria ser relacionado o crédito da herança sobre IJ pela utilização desta do prédio urbano pertencente à herança, desde a data do falecimento do inventariado até à data, no montante mensal de €200,00 (duzentos euros), perfazendo o total de €10.600,00 (dez mil e seiscentos euros);
(iii) É inválido o testamento apresentado nos autos
A cabeça de. casal GH respondeu (cf. documento com referência citius. 4874043) à reclamação, alegando - síntese nossa:
(i) Proceder à junção da certidão do registo predial alegadamente em falta;
(ii) Inexistir qualquer fundamento para a reclamação de quantias a título de rendas, o que mesmo a ser matéria a discutir, sempre seria em sede de prestação de contas, e não de partilha de acervo hereditário;
(iii) O testamento foi realizado de acordo com a legislação em vigor no país onde foi elaborado, onde o testador residiu durante 5 (cinco) anos, pelo que obedece ao disposto nos artºs 35º e ss. do Código Civil.
(…)
Com interesse para a decisão do presente incidente, temos como demonstrados os seguintes factos:
1. O inventariado EF faleceu a 1 de Julho de 2018 - cf. assento de óbito constante de requerimento inicial.
2. O interessado AB reclama montantes a título de rendas apenas desde a data do falecimento de EF - cf. reclamação a relação de bens.
3. O inventariado EF assinou o documento intitulado "Testamento" com data de 16 de Maio de 2018 - cf. documento com referência citius 4893691.
4. O referido documento surge verificado por notária em 17 de Agosto de 2022
vi. Fundamentação de Direito:
Encontramo-nos no âmbito de processo especial de inventário, o qual se destina - no que ao presente caso concerne - a fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens (cf. artº 1082º a) do Código de Processo Civil).
A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor (cf. art.º 2031º do Código Civil) e os efeitos da aceitação da herança (pelos herdeiros) retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, nos termos do disposto no art.º 2050, nº 2 do mesmo diploma legal.
(…)
Quanto ao testamento apresentado nos autos, iniciamos a nossa analise citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Fevereiro de 2016, proc. nº 342/13.5TBVNTC. G1 :
(…)
Prescreve o art.º 65º, nº 2 do Código Civil que "Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada."
E o art.º 2223º do mesmo diploma legal que "O testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação."
E ponto assente que o inventariado EF era cidadão português à data da outorga do "Testamento" e da sua morte, pelo que aplica-se à sua sucessão por morte a sua lei pessoal ao tempo do falecimento deste (cf. art.ºs 25º e 62º, ambos do Código Civil), a qual corresponde à lei da sua nacionalidade (cf. art.º 31º, nº 1 do Código Civil), ou seja, a lei portuguesa.
De acordo com a lei portuguesa (designadamente o art.º 2223º do Código Civil), o inventariado EF devia, como cidadão português, ao outorgar testamento no estrangeiro, ainda que respeitando as normas desse outro país, ter em mente que o mesmo só seria eficaz em Portugal caso tivesse sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.
E, conforme nos dizem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado vol. VI, Coimbra Editora, pág. 356,
"E esse carácter solene, que a lei exige do acto testamentário, traduz-se na intervenção da entidade dotada de fé pública, seja na elaboração da disposição de última vontade, seja na aprovação por mera delibação das disposições lavradas pelo declarante. "
É a intervenção do oficial público com funções notariais que constitui a "marca de água" de autenticidade e solenidade exigida nos art.ºs 65º e 2223º do Código Civil.
Trata-se de garantir que a formação da vontade do autor da herança seja correcta e fidedigna.
A exigência dessa solenidade não se encontra demonstrada nos autos.
Por um lado, está em causa um testamento assinado pelo próprio testador; por outro, não foi o mesmo aprovado por oficial público, não se tendo demonstrado que o testador o tenha apresentado para aprovação.
Pelo contrário,
O documento em causa consiste num documento escrito, assinado pelo inventariado na presença de duas testemunhas.
E não se mostra evidenciado que, em vida do inventariado, a sua alegada expressão de vontade tenha sido elaborada por oficial público, ou que tenha sido aprovada pelo mesmo.
Não se torna particularmente relevante se o documento em causa é válido no local (país) onde o mesmo foi realizado (Canadá); o que se trata de aferir é se o mesmo pode ser julgado válido em Portugal.
E o que se mostra evidenciado é que as aprovações ou certificações realizadas no documento foram apostas em data relevantemente separada (e posterior) da data da outorga do documento, já depois do falecimento do testador e ora inventariado.
Corno se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Junho de 2019, proc. Nº 2430/11.3TBBCLG1.S2,
"Ou seja, e em suma, ainda que o testamento seja válido à luz da lei do local e da data da sua celebração, não podemos considerar que o mesmo produza efeitos em Portugal, per não ter sido obsernda a forma solene na sua feitura ou aprovação, ou seja, por o mesmo não ter sido celebrado por oficial público ou por não ter sido aprovado por oficial público."
Assim,
O "testamento" assinado pelo inventariado EF não pode ser julgado válido em Portugal, e mais propriamente para efeitos do presente processo de inventário.
Pelo que,
Nesta parte, a impugnação apresentada pelo interessado AB será julgada procedente.
vii. Decisão:
Nos termos e com os fundamentos supra mencionados,
(…) Julga-se procedente a impugnação apresentada pelo interessado AB no que toca ao testamentos, assinado pelo inventariado EF, julgando-se o mesmo inválido, ineficaz e sem qualquer efeito perante a lei portuguesa.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
a.- «Um testamento feito por cidadão português em país estrangeiro, tem de cumprir as normas legais desse país quanto à forma dos atos aí praticados, salvaguardados que sejam os princípios da ordem pública portuguesa.
b.- Perante a lei inglesa, em vigor no Canadá, o testamento dos autos é válido, validade que foi atestada pelas autoridades ali competentes para isso.
c.- A solenidade exigida pela nossa lei, foi observada já que o testamento junto aos autos foi escrito perante duas testemunhas, e devidamente assinado pelo testador e legalizado pela autoridade competente do lugar em que foi feito.
d.- O testamento destes autos é a manifestação correta e indubitável da vontade do testador que quis compensar a recorrente das muitas despesas e trabalhos que com ele teve durante mais de seis longos anos, sendo certo que, regressado ao seu País, seu outro filho pressionou-o para alterar o testamento em causa o que ele nunca quis, até morrer.
e.- A douta decisão reçorrida ao considerar procedente a -impugnação desse documento feita pelo recorrido, não fez a melhor interpretação do disposto nos artigos 2223º, e 31º, nº 2, do Código Civil; corretamente conjugados, devendo assim ser revogada, ordenando-se o reconhecimento do testamento.»
*
Não se mostram juntas contra-alegações.
Foi proferido despacho a conferir às partes o direito ao contraditório porquanto este Tribunal da Relação pretende aplicar o Regulamento (UE) 650/2012.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, a questão a decidir consiste em aferir a validade e atendibilidade no inventário do testamento efetuado pelo de cujus no Canadá.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Além da matéria a que se reporta o relatório, estão documentalmente provados os seguintes factos:
1. EF faleceu  a 1.7.2018 em Ponta Delgada, Açores;
2. Com data de 16.5.2018, foi manuscrito o “Testamento” junto a fls.  46 v., nos termos do qual:
«A pedido do senhor EF, eu JMP faço a sua vontade e desejo e passo a escrever:
Eu EF com toda as minhas posses mentais, declaro que deixo à minha filha GH toda a minha parte no único bem que tenho a minha casa que fica na Rua  (…)  S. Miguel Açores,
Sendo a minha filha sempre a cuidar de mim.
Por ser essa a minha vontade abaixo assino;
Testemunhas:
JMP
RJF
                                                           EF»
3- Em 5.7.2022,   a notária JS elaborou o documento de fls. 40 e seguintes, onde apresenta as seguintes Conclusões:
«Levando-se em consideração as atividades por mim realizadas, concluo que o testamento de EF, redigido de acordo com as Leis da Inglaterra em 16 de maio de 2018 é, conforme as verificações e de acordo com a lei, o testamento original de EF, redigido de acordo com as leis da Inglaterra, e ele foi anexado ao original  deste auto e mantido no escritório da notária abaixo assinada, para assim permitir a entrega de cópias autenticadas [do testamento] aos interessados.»
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O inventariado EF tinha nacionalidade portuguesa e faleceu em Ponta Delgada, a 1 de julho de 2018.
O Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, é aplicável às sucessões abertas a partir de 17.8.2015 (cf. Artigo 83º, nº 1). Ora, tendo a sucessão por óbito de EF sido aberta em 1.7.2018, tal Regulamento aplica-se à respetiva sucessão, sendo competentes os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito (Artigo 4º do referido Regulamento).
Na definição do conceito de residência habitual haverá que ter presente o conteúdo do Considerando (23) do Regulamento onde se consignou o seguinte:
«Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito. A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento
Para este efeito, importa também atender ao Considerando (24) do Regulamento, nos termos do qual:
«Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerando como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situações o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais
Nos termos do Artigo 21º do Regulamento:
1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito.
2. Caso, a título excecionar, resulte claramente do conjunto das circunstâncias que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do nº 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.
Este regime do nº 2 é particularmente pertinente para países como o nosso, em que emigrantes passam grande parte da vida ativa noutro país da União Europeia, mantendo a intenção de regressar. «A conexão manifestamente mais estreita com outro país só existirá se o de cujus se limitar a ter no país da residência habitual o centro dos seus interesses – local de trabalho, de morada e da família -, sem que sobreviessem outros laços de diferente natureza (patrimonial, cultural, social). Apenas nessas circunstâncias haverá uma manifesta (percetível para todos) maior ligação com outro país, apesar do centro de vida estar estabelecido no Estado da residência. (…) Importa saber se as ligações sentimentais do falecido (as datas especiais, as férias, a intenção de regressar), o ambiente cultural e social em que vive integrado e a circunstância de a maioria do património se situar em Portugal revelam uma ligação manifestamente mais estreita com o país da nacionalidade.” (Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do regulamento europeu das sucessões», no BFDUC, vol. XCIV, t. II, 2018, pp. 1195-1196 e 1197).
No caso em apreço, existem elementos suficientes para afirmar que o inventariado tinha a sua residência habitual – interpretada nos precisos moldes preconizado no Regulamento e seus considerandos – em Portugal. Com efeito, o inventariado era português e faleceu em Ponta Delgada, sendo natural da ilha de São Miguel. E, sobretudo, o inventariado deixou como único bem a partilhar a sua residência sita na Ilha de São Miguel na freguesia (…). Mesmo que estivesse provado que, nos últimos anos de vida, o inventariado coabitou com a filha no Canadá a fim de ser tratado por esta (conforme parece pressupor-se no que é afirmado no testamento), o demais circunstancialismo fáctico é suficiente para afirmar que o mesmo tinha residência habitual em São Miguel, para efeitos da aplicação do Regulamento nº 650/2012.
Posto isto e no que tange ao âmbito do Regulamento, conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 591:
«O Reg. da UE veicula regras uniformes de competência internacional, lei aplicável e reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria de sucessões internacionais, aplicando-se a relações sucessórias plurilocalizadas na União Europeia (com exceção do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) que têm pontos de contacto relevantes com mais de um país, nomeadamente por via da existência de bens sitos em vários países. A transnacionalidade da situação jurídica pode advir da sua conexão com um Estado-membro e com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia (RL 19-11-19, 28325/17). O art.º 20º consagra a aplicação universal das normas do Reg., o que, conjugado com o primado do direito comunitário, significa que as normas de conflitos do Reg. prevalecem sobre as normas dos art.ºs 62º a 65º do CC. Outra decorrência do carácter universal das normas é que, “através do funcionamento das respetivas conexões, as normas de conflitos tanto podem designar como aplicável o direito material de um Estado-membro como de um Estado terceiro” (Gomes de Almeida, “Apontamentos sobre o novo direito de conflitos sucessório”, Revista do CEJ, nº 2, pp. 35-36). O Reg. segue o modelo da sucessão unitária, aplicando-se uma única lei a toda a sucessão (art. 23º, nº 1), sem prejuízo de, no domínio do reenvio, a lex domicilii adotar o sistema da cisão (cf. art.º 34º; Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do Reg. europeu das sucessões”, BFDUC, vol. XCIV, t. II, 2018, pp. 1187-1188).»
Também Helena Mota em Cristina Araújo Dias (Coord.), Código Civil Anotado, Livro V, Direitos das Sucessões, Almedina, 2018, p. 335, afirma que:
«Donde poderemos concluir que o art.º 2223º foi tacitamente revogado pelo Regulamento das Sucessões Internacionais e que qualquer testamento feito de forma escrita por português em país estrangeiro será formalmente válido se forem observadas as exigências formais determinadas por qualquer uma das leis indicadas supra no artº. 27º do Regulamento não se lhe aplicando as demais exigências formais previstas na lei portuguesa, nomeadamente a intervenção de autoridade pública na sua feitura ou aprovação.»
Nos termos do Artigo 27º do Regulamento:
1. Uma disposição por morte feita por escrito é válida do ponto de vista formal se a sua forma respeitar a lei:
a) Do Estado onde a disposição foi feita ou o pacto sucessório celebrado;
(…)
Para determinar se o testador ou uma das pessoas cuja sucessão é objeto do pacto sucessório tinham ou não o seu domicílio num determinado Estado aplica-se a lei desse Estado.
(…)
2. Para efeitos do presente artigo, considera-se que diz respeito a questões de forma qualquer disposição legal que limite as formas autorizadas das disposições por morte referentes à idade, nacionalidade ou outras características pessoais do testador ou das pessoas cuja sucessão é objeto de um pacto sucessório. É aplicável a mesma regra às características que devem possuir quaisquer testemunhas exigidas para a validade de uma disposição por morte.
No que tange à validade formal das disposições por morte feitas por escrito, esta norma estabelece uma conexão alternativa que cria múltiplas possibilidades para favorecer essa validade (Luís de Lima Pinheiro, Direito Privado Internacional, Vol. II – Direito de Conflitos – Parte Especial, 2015, p. 287).
Ora, o testamento lavrado pelo inventariado no Canadá, em 16.5.2018, respeitou a forma exigível localmente, consoante decorre da atestação notarial junta aos autos.
Nessa precisa medida, e sem necessidade de outras considerações, tal testamento tem de ser atendido e relevado no inventário pendente no processo principal, a correr termos em Portugal.
Custas
O recurso deve ser julgado procedente, sendo certo que o apelado não apresentou contra-alegações.
Ensina a este propósito Salvador da Costa, “Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido”, 18.6.2020, publicado no blog do IPPC:
«Na base da referida responsabilidade pelo pagamento das custas relativas às ações, aos incidentes e aos recursos está um de dois princípios, ou seja, o da causalidade e o do proveito, este a título meramente subsidiário, no caso de o primeiro se não conformar com a natureza das coisas.3
Grosso modo, a causalidade consubstancia-se na relação entre um acontecimento (causa) e um posterior acontecimento (efeito), em termos de este ser uma consequência daquele.
Considerando o disposto na primeira parte do n.º 1 deste artigo, o primeiro evento é determinado comportamento processual da parte e o último a sua responsabilização pelo pagamento das custas.
Nesta perspetiva, do referido princípio da causalidade emerge a solução legal de dever pagar as custas relativas às ações, aos incidentes e aos recursos a parte a cujo comportamento lato sensu o ajuizamento do litígio seja objetivamente imputável.
A dúvida revelada pela doutrina e pela jurisprudência ao longo do tempo sobre quem devia ser responsabilizado pelo pagamento das custas processuais com base no princípio da causalidade levou o legislador a intervir por via da inserção do normativo que atualmente consta do n.º 2 do artigo, em termos de presunção iuris et de iure, ou seja, de que se entende sempre dar causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for.
Consequentemente, o referido nexo de causalidade tem como primeiro evento o decaimento nas ações, nos incidentes e nos recursos, e o último na responsabilização pelo pagamento das custas de quem decaiu, conforme o respetivo grau.
Assim, a parte vencida nas ações, nos incidentes e nos recursos é responsável pelo pagamento das custas, ainda que em relação a eles não tenha exercido o direito de contraditório, o que se conforme com o velho princípio que envolve esta matéria, ou seja, o da justiça gratuita para o vencedor.»
Reiterando tal entendimento, cf. artigo do mesmo autor, “Custas da apelação na proporção do decaimento a apurar a final”, publicando no mesmo blog em 31.10.2020.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão impugnada, sendo julgada procedente a apelação, determinando-se que o testamento elaborado pelo inventariado em 16.5.2018, no Canadá, deve ser reconhecido no âmbito deste inventário.
Custas pelo apelado na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 16.5.2023
Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).