Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4400/2003-2
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: PENHORA
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A renúncia expressa à reserva de propriedade sobre o bem penhorado por parte do Exequente não é suficiente para fazer prosseguir a execução com a venda do bem objecto de penhora, impondo-se àquele que comprove o cancelamento do respectivo registo, já que a reserva de propriedade não se encontra entre os direitos que caducam com a venda, nos termos do artigo 824°, n° 2, CC, e só por iniciativa do beneficiário poderá ser cancelada.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – Relatório
1. No âmbito da execução para pagamento de quantia certa que TECNICRÉDITO – FINANCIAMENTO DE AQUISIÇÕES A CRÉDTIO, SA, instaurou contra (V), a Exequente interpôs recurso do despacho que a notificou para renunciar à reserva de propriedade sobre o veículo penhorado nos autos, procedendo ao respectivo registo em conformidade (fls. 112).

2. Após admissão do recurso foi proferido despacho de sustentação (fls.165).

3. Conclui a Agravante nas suas alegações:
1. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matricula ...-80-DT, penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo
2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz a aquo competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente
3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam
4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se deve agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada
5. Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da divida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao "domínio" sobre o bem - pois desde o inicio afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.
6. Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá, que deveria a exequente - titular da reserva de propriedade - ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento.
7. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888° do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5°, n° 1, alínea b) e 29° do Decreto-Lei n° 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7° e 119° do Código do Registo Predial e artigos 408°, 409°, n° 1, 601° e 879°, alínea a), todos do Código Civil.

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Colhidos os vistos dos Juizes Adjuntos cumpre apreciar e decidir.

II – Enquadramento fáctico
As ocorrências com relevância para a decisão do recurso são as seguintes:
ü Em execução de sentença que Técnicrédito-Financiamento de Aquisições a Crédito, SA, agora Banco Mais, SA moveu contra (V), a Exequente nomeou à penhora, de entre outros bens, o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 205 1.8 XAD, com matrícula ...-80-DT, da seguinte forma “Nos termos do artigo 924º do Código de Processo Civil, a exequente, ora requerente, nomeia à penhora (...) (iii) o veículo automóvel marca PEUGEOT, modelo 205 1,8 XAD, com a matrícula ...-80-DT, que pode ser encontrado junto à residência do executado, a quem pertence”;
ü Após penhora do referido veículo foi junta ao processo nota de registo e certidão de encargos comprovativa do registo da penhora efectuada, dela se verificando existir sobre o bem penhorado e a favor da Exequente reserva de propriedade;
ü Cumprido o art.º 864, do CPC, e requerida pela Exequente a venda do veículo penhorado, foi proferido o despacho objecto do presente recurso nos termos do qual se ordenou a notificação da Exequente para renunciar à reserva de propriedade e proceder ao cancelamento do respectivo registo;

III – Enquadramento jurídico
Delimitada pelas conclusões do agravo, a questão a decidir no recurso e que constitui o objecto de conhecimento por parte deste tribunal cifra-se em determinar da necessidade da Exequente (que renunciou expressamente à reserva de propriedade sobre o bem penhorado) comprovar o cancelamento do respectivo registo para fazer prosseguir a execução com a venda do veículo objecto de penhora

.              Insurge-se a Agravante contra o despacho que a notificou para proceder ao cancelamento do registo da reserva de propriedade a seu favor incidente sobre o veículo penhorado alicerçando-se nos seguintes argumentos:
- por o juiz carecer de competência para tal efeito
- por a reserva de propriedade registada não impedir o prosseguimento da execução, quer porque ao tribunal, de acordo com o disposto nos art.ºs 824, do C. Civil, e 888 do CPC, cabe ordenar, oficiosamente, todos os registos que incidam sobre o bem, quer porque a surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se impõe agir em conformidade com o art.º 119, do Código de Registo Predial.
        
1. O primeiro dos argumentos invocados pela Agravante em defesa da sua tese prende-se, necessariamente, com a legalidade do despacho objecto de censura enquanto violador, por interpretação errada, das disposições legais indicadas nas alegações – art.ºs 888, do CPC, 5º, n.º1, al. b) e 29 do DL 54/75, de 12.02, 7º e 119, do Cód. Reg. Predial, 408, 409, n.º1, 601 e 879, al. a), do C. Civil.
  Por conseguinte, não está em causa uma questão de “competência” para o proferimento do despacho recorrido, mas de legalidade do mesmo e, nesse sentido se apreciará a questão.

2.Dispõe o art.º 409, n.º1, do C. Civil, que nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações por outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
          Estatui o n.º2 do referido preceito que tratando-se de coisa imóvel ou de coisa sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.
          Nos termos do art.º 5, n.º1, al b), do DL 54/75, de 12/2, está sujeita a registo a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos.
      A reserva de propriedade possui como função essencial possibilitar ao vendedor a restituição do bem vendido através da resolução do contrato, sendo que, através do registo da referida cláusula, visa-se obstar a que o bem seja objecto de alienação ou execução por outrem que não o vendedor, isto é, garantindo a este, em caso de execução, que o bem não tenha passado para o domínio de terceiro, conservando-se enquanto elemento do património do devedor passível de execução.         
   De acordo com o art.º 119, do Código do Registo Predial, aplicável aos automóveis por força do art.º 29, do DL 54/75, havendo registo provisório (...) de penhora (...) de bens inscritos a favor de pessoa diversa do (...) executado, o juiz deve ordenar a citação do titular inscrito para declarar, no prazo de dez dias, se o prédio ou o direito lhe pertence.
        Decorre expressamente do preceito que o mesmo se circunscreve às situações em que o registo da penhora e apreensão tenha sido lavrado como provisório.
          Constata-se porém que, na prática[1], nas situações em que se verifique um registo de reserva de propriedade sobre o bem penhorado, a penhora é lavrada como definitiva, excepto se se tratarem de penhoras referentes a terceiros que não o beneficiário da reserva de propriedade.
  Conforme refere Luís Lima Pinheiro, É significativo que na prática da Conservatória do Registo de Automóveis a propriedade seja registada «a favor» do comprador, inscrevendo-se a reserva de propriedade como um «encargo».[2]                              
        Desta forma, nos casos em que a penhora é lavrada como definitiva (como o dos autos) não tem cabimento a aplicação do art.º 119, do CRP, isto é, reportando-se a estrutura do referido preceito à penhora provisória, está fora do seu alcance a viabilização do cancelamento do registo da reserva de propriedade.
        Consequentemente, a pretensa aplicabilidade do art.º 119, do CRP, ao caso dos autos mostra-se totalmente inadequada já que, não só não se está perante uma situação em que a penhora é provisória, como não existem dúvidas quanto à propriedade do bem dado à execução[3], sendo certo que, conforme decorre do processo, a Exequente foi notificada para informar se prescindia à reserva de propriedade, tendo a mesma referido que renúncia à reserva de propriedade que em seu favor se mostra inscrita sobre o veículo automóvel que penhorado foi nos autos.
          Falece pois, nesta parte, a argumentação da Agravante.

2.1. No que se reporta ao outro dos argumentos aduzidos pela Recorrente – cancelamento oficioso do registo de acordo com o disposto nos art.ºs 824, do C. Civil, e 888, do CPC – entendemos que, igualmente, carece de consistência para o efeito.
         De acordo com o n.º2 do art.º 824 do C. Civil, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
Dispõe o art.º 888, do CPC  que após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam, nos termos do n° 2 do artigo 824° do Código Civil, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.
Da conjugação dos citados preceitos resulta que o tribunal só ordenará o cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda, isto é, apenas os que são enumerados no referenciado n.º2 do art.º 824 - direitos de garantia e os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia.
Verifica-se pois que o registo da reserva de propriedade apenas poderia ser cancelado oficiosamente pelo tribunal caso o direito registado - a reserva de propriedade – assumisse a natureza de direito real de garantia.
Embora não seja uniforme o entendimento quanto à natureza do direito em causa[4], não oferece dúvidas o facto de na enumeração dos direitos reais de garantia se não encontrar incluída a reserva de propriedade.
Cumpre realçar que, a pugnar pelo entendimento de que a reserva de propriedade assume a natureza de garantia real, impunha-se à Exequente, que tivesse elaborado o requerimento de nomeação de bens de acordo com o disposto no art.º 835, do CPC nos termos do qual, tratando-se de dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora começa, independentemente de nomeação, pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução.
      Ainda que se defenda que o direito em causa nos autos – reserva de propriedade - apresenta a natureza de direito real de gozo, dado que o respectivo registo é anterior ao da penhora, a alienação do veículo resultante da execução mantê-lo-ia, atento ao preceituado nos art.ºs 824, n.º2, do C. Civil, e 888, do CPC.
       Há assim que concluir que o cancelamento do registo da reserva de propriedade se mostra indispensável, em momento anterior ao da venda do bem penhorado, para o aproveitamento (na mesma venda) de todo o potencial económico do referido bem, pois que a mesma se não encontra entre os direitos que caducam com a venda, nos termos do artigo 824°, n° 2, CC, e só por iniciativa do beneficiário poderá ser cancelada[5] (uma vez que o eventual adquirente não conseguiria o cancelamento desse registo).
          Deste modo, justifica-se o despacho recorrido, sendo que o mesmo não só se mostra em consonância com o disposto nos art.ºs 824, n.º2, 601, ambos do C. Civil e 888, do CPC, como se apresenta adequado com vista a obter a cooperação da Exequente que é a principal interessada para o efeito – art.ºs 266 e 266-A, do CPC. 

IV – Decisão
Nestes termos, acordam os Juizes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao agravo, mantendo o despacho recorrido.
          Custas pela Agravante.

   Lisboa,  9 de Julho de 2003

  Graça Amaral
Ezaguy Martins
  Maria José Mouro

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[1] Em rigor, verificada a inscrição registral da reserva de propriedade em favor do exequente, sobre o um veículo penhorado, tal inscrição deveria ser causa de registo provisório de tal penhora e observância dos termos do art.º 119 do CRP – cfr. neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 2/6/99, CJ 1999, tomo III, pág. 119. 
[2] A cláusula de reserva de propriedade, Almedina, Coimbra, pág. 104, nota n.º 184.
[3] A venda com reserva de propriedade é uma alienação sob condição suspensiva – suspende-se o efeito translativo já que a transferência da propriedade está dependente de um evento futuro – normalmente o cumprimento total das obrigações por parte do comprador. Assim, o processamento do art.º 119, do CRP, não se justifica face à certeza, decorrente da prova documental existente no processo, sobre a titularidade do veículo.          
[4] Em Garantia de Cumprimento, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Fonte encaram a reserva de propriedade como garantia indirecta (paralelamente às garantias pessoais e reais) considerando, contudo que a mesma não constitui uma garantia real – 4ª edição, pág. 221/222.
Por sua vez Luís Lima Pinheiro considera a cláusula de reserva de propriedade como uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade erga omnes da resolução  -  obra citada, pág. 115.
[5] Em sentido convergente ao pronunciado cfr. entre outros: Acórdãos da Relação de Lisboa de 21.02.2002 e de 30.04.2002, in respectivamente CJ 2002, tomo I, pág. 112, CJ 2002, tomo II, pág. 124 .
        De notar que alguma Jurisprudência que tem vindo a manifestar-se em sentido contrário ao defendido tem por subjacente as considerações de Vasco da Gama Lobo Xavier (citado, aliás, pela Recorrente) em RDES, 1974, pág. 216 a 219, relativas aos efeitos da renúncia tácita da reserva de propriedade por parte do exequente, sem, contudo, apreciar o problema do registo da reserva da propriedade e do que dele decorre.