Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
590/12.5JDLSB.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: EXAME PERICIAL
MEIO DE PROVA
PROVA PERICIAL
PROVA DIRECTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO E DETERMINADO O REENVIO
Sumário: I- O legislador português consagrou um modelo de perícia preferencialmente pública, regra que apenas é afastada por impossibilidade ou inconveniência - artigos 152.º, 153.º 154.º, nº 1 e 160º-A do Código de Processo Penal, constituindo, portanto, um regime misto com prevalência de intervenção de organismos públicos, com a qualidade pericial a assentar numa certificação pública, sem exclusão da possibilidade hipotética de apresentação de perícias contraditórias quando não existam organismos públicos reconhecidos para a realização da perícia;
II-Um processo judicial é uma forma que se pretende equilibrada de chegar a uma decisão pelo que a existência nos autos de um exame directo a dois quadros ,efectuado por um inspector da PJ, sem conhecimentos científicos comprovados, a atestar que os mesmos constituem falsificações, não tem qualquer valor, entenda-se “pericial”, para comprovar tal facto, o qual requer conhecimentos muito específicos de índole, técnico, artísticos e científicos;
III- Um exame, meio de obtenção prova, é a análise em pessoas, lugares e coisas, de “vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido” - artigo 171º do C.P.P.. O “exame” está sujeito à regra geral de apreciação probatória, a livre apreciação da prova prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal. A perícia, bem ao invés, é um meio de prova que deve ser produzido quando o processo e a futura decisão se defrontam com conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal em três campos do saber, os técnicos, os científicos e os artísticos. Exame é o verter em auto de condições materiais, sem opinar ou emitir juízos. Ou seja, sem conclusões. Perícia é a emissão de um juízo especializado em determinada área do saber, considerando certos factos assentes;
IV- Assim os meios de prova que o tribunal “ a quo” se socorreu para fundamentar positivamente o facto provado de determinados quadros serem “falsificados”, não podem ser valorados enquanto prova pericial e a ela se substituindo, pois as conclusões do exame directo, e a opinião das testemunhas, não têm qualquer valor enquanto juízo técnico, artístico ou científico, não podendo o Tribunal a quo, sem violar o principio da verdade material e do in dúbio pro reo e da livre apreciação da prova, presumir tal factualidade e dar como provado entre o mais o supra identificado facto;
V- A falta da realização da perícia nos casos em que é necessário a detenção de especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos, configura um vício que é de conhecimento oficioso e contido no artº 410º nº 2 al. a) do CPP, ou seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:


ACORDAM EM CONFERÊNCIA, NA 9ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

RELATÓRIO
No processo comum em Tribunal Singular nº590/12.5JDLSB.L1, do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais-Instancia local-secção criminal-J2, o arguido, J..., devidamente identificado nos autos, foi condenado por sentença proferida nestes autos a folhas 434 a 449, em 1.06.2016, pela prática dos seguintes crimes:
(…)
1. de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256, nº 1 – e) do CP na pena de 9 meses de prisão por cada um deles;
2. de um crime tentado de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217 nº 1, 218, nº 1, 22, 23 e 73 do CP na pena de 1 ano de prisão;
3. operando o cúmulo jurídico das penas referidas de 1 e 3, fixo em 1 ano e 6 meses de prisão a pena única em que o arguido vai condenado, cuja execução se suspende por igual período.
Inconformado com tal decisão, interpôs o arguido, o presente recurso (extraindo-se das suas motivações as seguintes conclusões):
A-Consideramos que o Tribunal errou na apreciação da prova, ao dar como provados os factos vertidos nos pontos 4 a 6 e 10 a 14, da matéria de facto dada como provada;
B-Isto porque, e no que respeita ao ponto 4, carecendo a apreciação da autenticidade ou não dos quadros de especiais conhecimentos técnicos e artísticos e, não tendo sido realizada a prova pericial nos termos do artº 151º do C.P Penal, não poderia o tribunal a quo ter concluído pela não autenticidade dos quadros como fez;
C-Também errou o Tribunal ao dar como provados os pontos 5, 6 e 11 a 14, por os factos neles vertidos não resultam de qualquer prova produzida, bem pelo contrário.
D- Assim da fundamentação da matéria de facto provada resulta claro que o tribunal a quo deu tais factos como provados por considerar que o arguido não fez prova da sua inocência, no entanto, não é o arguido que tem de provar a sua inocência, uma vez que esta se presume.
E- Violando o Tribunal claramente o principio in dúbio pro reo constitucionalmente consagrado uma vez que resulta claro da fundamentação que o Tribunal partiu da culpa do arguido e não da sua inocência.
F- Mais errou o Tribunal ao dar como provado no nº 10 que o valor da venda dos dois quadros atingiria valor não inferior a €10000,00 (dez mil euros).
G- Isto porque, tendo as testemunhas sido contraditórias quanto ao valor a atribuir, não poderia o Tribunal com segurança concluir por que valor os quadros poderiam ser vendidos e, por isso, atenta a falta de provas, errou o tribunal a quo ao dar como provado o mencionado ponto.
H- Errou também o Tribunal na aplicação do direito, uma vez que face ao desconhecimento que o arguido tinha da falsidade das obras, deveria o Tribunal tê-lo absolvido.
I- Porém ainda que assim não se entendesse, o Tribunal errou ao condenar o Arguido por burla qualificada, pois não se tendo apurado o valor pelo qual os quadros seriam vendidos, não poderia o Tribunal qualificar o crime pelo valor dos mesmos, em caso de dúvida, não é admissível presumir contra o arguido, uma circunstância qualificativa de um crime.
J- Assim, apenas poderia imputar ao arguido a prática de um crime de burla simples, na forma tentada, o que não existindo queixa dos eventuais lesados, importaria o arquivamento do processo.
K- Não decidindo assim, violou o Tribunal o disposto no artigo 217º, nº1 e 3. Do C. Penal e 48º e 49º do C.Penal.
L- Também consideramos que o Tribunal, no caso de condenação, errou na determinação da pena, uma vez que, sendo os crimes praticados puníveis com pena de prisão ou com pena de multa, sendo o arguido primário, tendo os factos ocorrido há mais de 5 anos e tendo mantido sempre um comportamento de acordo com o direito, deveria ter optado por uma pena não privativa de liberdade.
M-Não decidindo assim, violou o Tribunal o disposto nos artigos 40º e 70º do Código Penal.
Termos em que e, com os mais de direito que resultarão do suprimento de V.Exas., Venerandos Desembargadores, deve ser concedido provimento ao recurso, reformando-se a douta sentença recorrida nos termos peticionados.
O recurso foi admitido através de despacho de folhas 493.
O MºPº respondeu pela forma constante de folhas 496 e seguintes, pugnando a final dever ser mantida a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Remetidos os autos para o Tribunal da Relação de Lisboa, a Digna Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal, acompanhou a resposta apresentada pelo MºPº na 1ª instância.
Foi proferido despacho de aperfeiçoamento para apresentação de novas conclusões, a folhas 518 e 519, datado de 30 de Maio de 2017, sendo que as mesmas foram atempadamente juntas aos autos.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o presente recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma, cumprindo agora apreciar e decidir.
Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379° do mesmo diploma legal.
Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).

O objecto do recurso interposto pelo arguido, o qual é delimitado pelo teor das suas conclusões, suscita o conhecimento das seguintes questões:
-O Tribunal “ a quo”, errou na apreciação da prova, quanto aos factos contidos nos números 4 a 6 e 10 a 14 dos factos provados, sendo que nos termos do arº 151º do CPP, teria que ser efectuada uma prova pericial aos quadros em apreço, pois só assim se poderiam determinar a sua autenticidade, a qual depende de especiais conhecimentos técnicos e artísticos.
-Violação do princípio in dúbio pro reo.
-o arguido deveria ter sido absolvido, sendo que o Tribunal errou ao condená-lo pela prática de um crime tentado burla qualificada, quando não sabia o valor pelo qual os quadros iriam ser vendidos, devendo considerar-se que praticou um crime tentado de burla simples, o qual por não existir queixa deveria ser arquivado.
-Violação dos artigos 40º e 70º do Código Penal, pois o Tribunal deveria ter optado por penas não privativas de liberdade e não pela prisão face ao facto de ser primário e de já ter decorrido cerca de 5 anos desde a pratica dos factos.

Vejamos então:
A “sentença” sob censura tem o seguinte teor nos segmentos que nos interessam (de acordo com o suporte digital contido nos autos em formato word):
(…)
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto provada
Com relevo para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. Em data não concretamente apurada, mas situada antes de setembro de 2012, o arguido entrou na posse, em moldes não concretizados, de dois quadros;
2. Um deles consiste num acrílico sobre platex, com as dimensões aproximadas de 79x54cm, representando menina com cabeça em forma de sol e no qual se encontram aposta a palavra “Cesariny”, como se da assinatura do pintor Mário Cesariny se tratasse;
3. O segundo quadro é também um acrílico sobre platex, com as dimensões aproximadas de 60x100cm, com motivo abstrato a branco, preto, azul e laranja, no qual se encontram aposta a palavra “Lapa”, como se da assinatura do pintor Álvaro Lapa se tratasse;
4. Porém, nenhum dos referidos quadros foi pintado por aqueles artistas, nem corresponde à réplica de qualquer obra original destes;
5. Na posse dos referidos quadros, não ignorando que os mesmos não eram originais e não haviam sido pintados pelas pessoas cuja assinatura neles constavam, o arguido formulou o desígnio de, invocando a sua autenticidade, colocar os mesmos no mercado, a fim de obter quantias monetárias que faria suas;
6. Assim e prevalecendo-se de conhecimentos que detinha no mercado de obras de arte, solicitou a J…, responsável pela “Casa Museu Vasco de Lima Couto”, que autenticasse uma fotografia da tela referida em 2;
7. José Ferreira, desconhecendo a proveniência do quadro e baseando-se na relação de confiança que tinha no arguido, bem como no facto de aquele quadro constar de um livro dedicado à obra de Cesariny que o arguido então lhe exibiu, emitiu a declaração constante do verso da fotografia de fls. 51, na qual pode ler-se Pintura (…) justifica-se que é do Autor Mário Cesariny;
8. Na posse daqueles quadros e da aludida declaração, no dia 12.9.2012, o arguido colocou-os à venda na Leiloeira “O..y”, em Cascais, juntamente com outras três telas;
9. A aludida leiloeira funciona através de licitações on-line ou telefónicas, sendo que ambos os quadros receberam ofertas desde o dia 16.9.2012, data em que foram anunciados, até ao dia 21 do mesmo mês, data em que foram apreendidos no âmbito destes autos;
10. Caso a venda dos mesmos se tivesse concretizado, o valor total da venda dos dois quadros atingiria valor não inferior a € 10.000.00 (dez mil euros);
11. O arguido sabia que os quadros que colocou no mercado eram falsificados, por não terem sido pintados pelos autores neles referidos, não tendo, assim, qualquer valor comercial;
12. Ainda assim, decidiu agir como descrito, atuando como se de obras autênticas e verdadeiras se tratassem, o que fez com intenção de obter vantagem patrimonial;
13. Ao colocá-las à venda nos termos descritos, como se de obras verdadeiras se tratassem, o arguido quis criar nos potenciais adquirentes a convicção de que eram obras genuínas e, com isso, vendê-las por valor total não inferior a € 10.000,00 (dez mil euros), assim causando aos compradores prejuízo de igual montante e obtendo, para ele próprio, a correspondente vantagem patrimonial, que sabia ser indevida, o que apenas não se concretizou por razões alheias à sua vontade;
14. Atuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
15. O arguido trabalhou como comerciante de arte sacra e talhas durante cerca de 6/7 anos e tinha um armazém e uma loja;
16. Está desempregado há cerca de 3 anos, vive com a ex-mulher e o casal tem 2 filhos a cargo, beneficiando da ajuda financeira dos pais;
17. Não tem antecedentes criminais.

2. Factos Não Provados
Não se provaram os seguintes factos:
A. O arguido fez incluir num livro da obra de Mário Cesariny uma página contendo o quadro descrito em 2 dos factos provados;
B. O arguido sabia que as obras genuínas dos referidos pintores possuem certificados de autenticidade emitidos por comités de peritos.

3. Motivação de facto
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base na análise crítica e conjugada, à luz de regras da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos seguintes meios de prova:
- declarações do arguido, mormente no que às suas atuais condições financeiras e familiares diz respeito. Com efeito, no que aos factos imputados diz respeito, a versão dos factos apresentada pelo arguido (pensava que os quadros eram verdadeiros, que os tinha comprado em 2002 por € 5.500.00, os tinha vendido em 2003 por mais € 1.000.00 no total, o comprador destes, em 2012, contactou-o a ele, arguido, para ver se ele arranjava comprador porque queria vender os quadros, o que o arguido fez e decidiu vendê-los na “O…y Leilões” a conselho do amigo P…; que o certificado de autenticidade obtido para o quadro de Cesariny foi a pedido dele, sim, e com o tal livro que tinha uma fotografia daquele mesmo quadro como sendo de Cesariny, livro esse que alguém lhe emprestou, não sabe quem e não tem o livro nem o consegue localizar) não mereceram qualquer credibilidade ao Tribunal pelos motivos que se passam a expor e que, a final, melhor serão detalhados;
- depoimentos de “a” e “b”, inspetores da Polícia Judiciária em exercício de funções na brigada de investigação dos crimes contra o património cultural, que descreveram a suspeita então criada, o facto de o nome do arguido, então, já andar associado à venda de quadros falsificados e todas as diligências desenvolvidas, o que fizeram com objetividade, isenção e segurança. Mais referiram os valores pelos quais, em 2012, os quadros em causa poderiam vir a ser vendidos (um deles referiu o total de € 10.000.00 e o outro afirmou o valor total de € 14.000.00);
- depoimento de”c”, gerente da leiloeira referida e que, de forma isenta, descreveu os procedimentos adotados, o contrato que é feito com quem pretende vender objetos, a forma como a leiloeira funciona, sem cuidarem de saber da autenticidade das obras apresentadas para venda, a inexistência de valor base para as licitações e os dias durante os quais receberam licitações para os quadros apreendidos. Esta testemunha também deu a sua opinião sobre os valores a que os quadros em causa poderiam chegar (total de € 7.000.00 a € 8.000.00), sendo embora certo tê-lo feito não como especialista, que não é, mas apenas a título de opinião pessoal;
- depoimento de “d”, que conhece o arguido por ter tido negócios com ele e que, de forma segura e objetiva, referiu ter sido ele próprio quem sugeriu ao arguido colocar os quadros à venda na “O..Y Leilões”, sendo embora certo então não os ter visto. Referiu que houvera um negócio anterior, entre o arguido e uma Ana Braga, negócio esse no qual a testemunha fora intermediária e que tinha corrido mal, pelo que o arguido devia dinheiro à referida Ana Braga. Nessa sequência e porque precisava de dinheiro, o arguido disse à testemunha que tinha uns quadros para vender, tendo, então, a testemunha sugerido que ela os colocasse à venda na referida leiloeira. Esta testemunha abalou, assim, a versão do arguido de que os quadros teriam sido postos à venda a pedido de quem os comprara em 2003, para essa pessoa fazer dinheiro com a venda. Afinal, quem precisava de dinheiro era o arguido e não a tal pessoa que, de resto, não foi arrolada como testemunha nem foi ouvida em julgamento;
- depoimento de “e”, funcionária da leiloeira, confirmou o contrato de fls. 39 como sendo um contrato daquela leiloeira, muito embora não tenha sido subscrito por ela;
- depoimento de Hugo Lapa, filho do pintor Álvaro Lapa, que esclareceu o conhecimento que tem da obra do pai e que, de forma detalhada e concreta, relatou como tomou conhecimento desta situação e os motivos que o levam a afirmar, com toda a certeza, que a pintura apreendida não foi pintada pelo seu pai, sendo falsificada, nomeadamente motivos formais e cromáticos (sem acumulação matérica de tinta e os tons de azul e de laranja não são os que o pai usava). Viu a obra em julgamento e concretizou os detalhes referidos de forma segura e objetiva;
- depoimento de “f” , amigo do pai do arguido e a pessoa a quem o arguido recorreu para obter o certificado de autenticidade junto aos autos a fls. 51. Descreveu a forma como o arguido o abordou, o que lhe pediu e o livro que com ele levava. Disse que não conhecia aquele livro mas que acreditou no que o arguido lhe disse. Afirmou que a assinatura é de Cesariny mas não foi capaz de dizer ao Tribunal as razões concretas que o fazem afirmar tal coisa;
- depoimento de “g”, especialista em arte contemporânea no Museu do Chiado e subscritor do exame direto de fls. 56, que confirmou na presença dos dois quadros, o que fez de forma segura e concreta, de resto corroborando o que, relativamente ao quadro de Álvaro Lapa, o filho deste já havia dito em julgamento. Foi seguro e objetivo;
- depoimento de “h”, diretor artístico da Fundação Cupertino de Miranda, herdeira do espólio de Mário Cesariny e dos direitos da obra pictórica deste. Descreveu os elementos do quadro de Cesariny que, inequivocamente, evidenciam a falsidade do mesmo, o que fez em consonância com o que Rui Santos já havia dito em julgamento sobre esse mesmo quadro. Foi seguro e objetivo;
- teor de fls. 41 (apreensão), imagens de fls. 31 e 32, “certificado de autenticidade” de fls. 33 e 51, print de fls. 34 e 35, contrato de fls. 39, exame direto de fls. 56, documentos juntos em audiência de julgamento pela defesa do arguido e CRC deste.
A versão do arguido trazida a audiência de julgamento, acima resumida, não convenceu o Tribunal, pelos seguintes motivos:
- em primeiro lugar e como já se referiu, contrariamente ao que o arguido disse, resultou provado que o arguido quis vender os quadros apreendidos porque precisava de dinheiro para pagar à tal referida A… (segundo a testemunha P…), e não a pedido de quem os comprara em 2003, pessoa que nunca foi indicada como testemunha e não foi ouvida em julgamento;
- em segundo lugar, o documento que o arguido juntou como prova da compra, por ele feita em 2002, dos referidos quadros, não prova essa mesma compra, desde logo por as dimensões dos quadros nele referidas não coincidirem com os quadros apreendidos nos autos;
- em terceiro lugar, sendo o arguido um negociante de arte e tendo exercido essa atividade durante cerca de 6/7 anos, não é admissível que não tenha admitido como possível que os quadros fossem falsificados (mormente tendo em conta não ser a primeira vez que falsificam quadros destes autores, conforme referido em julgamento pelos inspetores da PJ) e, admitindo essa possibilidade, se não quisesse enganar ninguém, cumprir-lhe-ia, no mínimo, cuidar de saber, junto de quem melhor conhecesse as obras dos autores, se os mesmos eram verdadeiros ou falsos, o que não fez;
- em quarto lugar, se o arguido estava convencido que os quadros eram verdadeiros, fica por explicar a razão pela qual os decidiu colocar à venda na “O..Y Leilões”, onde não há verificação da autenticidade das obras e onde os quadros poderiam ser vendidos por qualquer preço, inclusivamente muito abaixo do seu valor real;
- por último e relativamente ao tal livro que o arguido levava quando pediu a J… que certificasse a autenticidade do quadro de Cesariny, não se compreende que o arguido já não tenha o tal livro, não saiba dizer quem o emprestou, não o consiga descrever, localizar e apresentar em julgamento.
Por todas estas razões conjugadas, o Tribunal não se convenceu da versão dos factos apresentada pelo arguido de forma fugidia e sem coerência, tendo ficado convencido, sem margem para dúvida, da factualidade dada como provada.

Relativamente aos factos dados como não provados, sobre os mesmos não foi efetuada qualquer prova: nem que tenha sido o arguido a incluir no tal livro da obra de Mário Cesariny uma página contendo o quadro descrito em 2 dos factos provados, nem sequer que, em Portugal, as obras genuínas dos referidos pintores possuem certificados de autenticidade emitidos por comités de peritos.

4. Apreciando de Direito
O arguido vem acusado de 2 crimes de falsificação de documento e de um crime tentado de burla qualificada.
Vejamos cada um deles de forma individualizada.

Falsificação de Documentos – arts. 256, nºs 1 – a), c) e e) do CP.
Nos termos do art. 256, nº 1 do CP, “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
O bem jurídico protegido pelo crime de falsificação de documento é a segurança e a credibilidade dos documentos no tráfego jurídico.
O tipo legal prevê, assim, diversas modalidades de conduta.
As alíneas e) e f) compreendem condutas relativas ao uso de documentos falsos, cuja falsificação tenha sido realizada por terceiro; as alíneas a) e b) tipificam a denominada falsificação material; a alínea d) visa a falsificação intelectual.
Conforme explica Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18ª edição, Almedina, 2007, pág. 882, “verifica-se a falsificação ou falsidade material quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente; verifica-se a falsificação ou falsidade intelectual ou ideológica quando o documento não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar.”
Quanto à falsidade intelectual, a falsidade em documento é, conforme escreve Helena Moniz em anotação ao art. 256, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. II, Coimbra, 1999, pág. 683, “punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica.”
No caso dos autos, conclui-se que a conduta do arguido não é subsumível nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 256 do CP referida na acusação, por não ter resultado provado que tenha sido o arguido ou alguém a mando dele a elaborar os quadros falsificados (alínea a) do referido artigo), nem ter sido o arguido ou alguém a mando dele a proceder à assinatura fraudulenta dos documentos em causa (alínea c) do art. 256 transcrito).
Resta, pois, a hipótese da factualidade provada se subsumir na qualificação jurídica prevista na al. e) do nº 1 do artº 256 do CP, na medida em que o arguido utilizou documentos falsos, cuja falsificação terá sido realizada por terceiro.
Esta modalidade de falsificação apresenta como elemento objetivo do tipo a circulação do documento falso, a qual inclui o uso por pessoa que não o autor da falsificação.
Na referida modalidade, o crime de falsificação apresenta-se como um crime de dano, uma vez que o bem jurídico só é efetivamente violado quando o documento é utilizado, isto é, posto em circulação, sendo também um crime de mera atividade, uma vez que se preenche através da mera execução de um comportamento (assim, também Paulo Pinto de Albuquerque, Miguez Garcia e Castela Rio).
Relativamente aos elementos subjetivos do tipo penal em análise, exige-se que o agente atue com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.
Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se que o agente atue com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (ou seja, vantagem que se obtenha através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado), não se exigindo uma específica intenção de provocar um engano no tráfego jurídico.
O preenchimento do tipo subjetivo exige, assim, o dolo, em qualquer das suas modalidades (art. 14 do CP).
Aquando da prática do crime, exige-se, pois, que o agente tenha conhecimento que está a usar um documento falso e, apesar disso, queira usá-lo.
No caso dos autos, estão em causa 2 crimes de falsificação de documento.
O arguido utilizou dois quadros dos pintores referidos falsificados, isto é, quadros que não foram pintados por esses pintores, como o arguido sabia, mas que foram utilizados como se fossem genuínos.
Da factualidade provada resulta que o arguido agiu como descrito com intenção de causar prejuízo a terceiros e de obter benefício patrimonial ilegítimo. Assim, inequívoco é que o referido dolo específico se mostra provado. O arguido visava obter, como lucro que sabia ser indevido, o valor que viesse a ser pago por quem se decidisse a comprar tais quadros.
Podemos, pois, concluir que a factualidade apurada preenche a tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes de falsificação de documento de que o arguido vem acusado.
A cada um dos quadros corresponde um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256, nº 1 – e) do CP.
Considerando que não existem causas de justificação nem de exclusão da culpa, o arguido é juridico-penalmente responsável pela prática de 2 crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256, nº 1 – e) do CP.

Burla Qualificada: arts. 217, nº 1 e 218, nº 1 do CP (tentada)
Analisemos e concretizemos cada um dos elementos do tipo de ilícito em questão. No que respeita aos elementos objetivos, há que atentar nos seguintes elementos:
· emprego de “astúcia” pelo agente;
· “erro ou engano” da vítima, devido ao emprego da astúcia;
· “prática de atos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
· “prejuízo patrimonial” in casu da vítima, resultante da prática dos referidos atos.
É, pois, indispensável que se verifique um triplo nexo de causalidade, ou seja, sucessivas relações de causa e efeito. Assim, é necessário que da encenação astuciosamente montada pelo agente resulte o erro ou engano da vítima; que desse erro ou engano resulte a prática de atos pela vítima; que da prática desses atos resulte, finalmente, o prejuízo patrimonial e o correspondente enriquecimento ilegítimo.
Com base no que ficou provado, constata-se que o arguido desenvolveu uma atuação positiva, aproveitando circunstâncias que conhecia e que podia manobrar e valendo-se dos conhecimentos que tinha. Agiu, assim, com astúcia. Sabia que as quantias que viessem a ser pagas por eventuais compradores dos quadros em causa, que nada valiam, ser-lhe-iam entregues e montou a encenação descrita.
Por outro lado e já ao nível dos elementos subjetivos do tipo, o arguido teve intenção de fazer suas e apropriar-se das quantias que viessem a ser pagas pelos eventuais compradores dos quadros falsos e, assim, de lesar patrimonialmente esses mesmos compradores.
O arguido aproveitou circunstâncias que lhe eram favoráveis e que conferiam alguma plausibilidade à encenação montada.
O erro ou engano dos eventuais compradores seria resultado da encenação montada, isto é, seria por estarem em erro quanto à autenticidade dos quadros que os compradores pagariam o valor oferecido em leilão.
O engano que a atuação do arguido provocaria nos visados teria uma função instrumental relativamente aos atos que aquele queria que estes praticassem. A finalidade imediata do arguido não poderia ter deixado de ser enganar os eventuais compradores, mas este engano seria apenas um meio para, viciando a formação da vontade destes, levá-los a praticar atos de disposição patrimonial, os quais traduzir-se-iam, simultaneamente, num proveito patrimonial injusto, porque indevido, para o arguido e num prejuízo patrimonial para os compradores.
Há, inequivocamente, atos de execução do tipo de crime referido (art. 22, nº 2 do CP).
O crime não se consumou, não tendo chegado a haver o prejuízo patrimonial referido, por razões alheias à vontade do arguido (intervenção da Polícia Judiciária e apreensão dos quadros antes da respetiva venda), sendo a tentativa punível (art. 24 do CP interpretado a contrario).
No que diz respeito aos elementos subjetivos do tipo de burla, apenas o dolo vale como título de imputação subjetiva do facto ao agente.
O arguido conhecia e quis a realização do facto típico, abarcando o seu dolo todos os elementos precedentemente identificados.
Acrescendo ao dolo genérico com que o arguido atuou, releva também de uma forma típica e a título de elemento subjetivo especial da ilicitude, a intenção de enriquecimento ilegítimo mobilizadora para a ação. O arguido sabia que a sua atuação implicaria um prejuízo patrimonial para os compradores eventuais, e este conhecimento não o desmobilizou da ação.
Preenchidos os elementos do tipo de crime em causa e não existindo causas de exclusão da ilicitude nem da culpa, o arguido é juridico-penalmente responsável pela prática de um crime de burla tentado.
Tendo em conta o valor a que, previsivelmente, ascenderia o prejuízo patrimonial querido (art. 202 – a) do CP), o crime tentado de burla praticado pelo arguido é qualificado, p. e p. pelos arts. 217, nº 1 e 218, nº 1 do CP.

Medida das Penas
Os crimes praticados são punidos com as seguintes penas:
Falsificação de documentos: prisão até 3 anos ou multa.
Burla qualificada tentada: prisão até 3 anos e 4 meses ou multa até 400 dias (arts. 23 e 73 do CP)
No caso em apreço, o arguido não tem antecedentes criminais e mostra-se inserida socialmente.
Contudo, a atuação desenvolvida pelo arguido é globalmente grave e demonstra desrespeito pelos outros, pela propriedade alheia, falta de seriedade e uma energia criminosa relevante para “planos e esquemas”, que cria e concretiza.
Em face disto, o Tribunal entende que todos os crimes praticados deverão ser punidos com pena de prisão, não sendo suficientes penas de multa.
Há, na determinação da medida das penas, que ter em conta as circunstâncias referidas no nº 2 do art. 71 do CP.
Assim, recolhe-se:
- em desfavor do arguido, o dolo intenso (direto) com que agiu, o grau de ilicitude revelado, as circunstâncias em que os factos foram praticados e a frieza com que planeou e executou o plano que engendrou;
- em seu favor, a sua inserção social e familiar e ausência de antecedentes criminais.
Tudo ponderado, o Tribunal tem por adequado e proporcional condenar o arguido nas seguintes penas parcelares:
- 9 meses de prisão por cada um dos crimes de falsificação de documento;
- 1 ano de prisão pelo crime tentado de burla qualificada.
Em cúmulo jurídico das penas referidas, fixo em 1 ano e 6 meses de prisão a pena única em que o arguido vai condenado.
Por considerar estarem reunidos os pressupostos previstos no art. 50, nº 1 do CP, e acreditando o Tribunal que a ameaça de prisão será suficiente para evitar que o arguido volte a praticar factos da mesma natureza, suspende-se a execução da referida pena de prisão por igual período.

III. DECISÃO

Pelo exposto, o Tribunal decide condenar o arguido J... pela prática:
1. de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256, nº 1 – e) do CP na pena de 9 meses de prisão por cada um deles;
2. de um crime tentado de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217 nº 1, 218, nº 1, 22, 23 e 73 do CP na pena de 1 ano de prisão;
3. operando o cúmulo jurídico das penas referidas de 1 e 3, fixo em 1 ano e 6 meses de prisão a pena única em que o arguido vai condenado, cuja execução se suspende por igual período.
Condeno o arguido nas custas do processo, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida.

Declaro perdidos a favor do Estado os quadros apreendidos, por falsificados, e determino a sua destruição.
(…)
Decidindo, diremos:
Conhecendo, dir-se-á desde já:
Da perícia –artº 151º do CPP
Alega o recorrente no seu recurso que o Tribunal “ a quo não poderia ter dado como provado o facto contido no nº 4,e os demais que indica e acima indicados, e concretamente o facto de os dois quadros não serem os originais, mas sim falsificações, uma vez que tal juízo e correlativa conclusão depende sempre de um juízo técnico cientifico, o qual não foi efectuado nestes autos, pelo que, acrescenta e conclui nesta parte ter existido um erro de apreciação da prova efectuada pelo Tribunal “a quo”.
Ora do confronto da motivação de recurso e respectivas conclusões com a fundamentação do acórdão recorrido, resulta para além das acima transcritas, serem para já as seguintes as questões de direito probatório a decidir no caso presente:
A) Descortinar se, em face dos elementos documentais juntos aos autos, existe prova pericial de que os quadros apreendidos nos autos constituem falsificações dos originais;
B) Esclarecer, se em face da resposta à questão anterior e dos demais meios de prova produzidos ou examinados na audiência de discussão e julgamento referidos no texto da sentença recorrida, o tribunal a quo não podia, face às regras aplicáveis em matéria de produção e valoração da prova, julgar provado que o arguido praticou os factos típicos dos crimes pelos quais está acusado e constantes nos números 4 a 6 e 10 a 14 da factualidade provada, incorrendo por isso no vício de erro notório na apreciação da prova relativamente àqueles mesmos factos.
Vejamos então:
A este respeito passamos a explanar o seguinte, e relativamente à prova pericial que o arguido clama que deveria ter sido efectuada, e só assim, se esse fosse o caso, poder dar tal facto como provado.
Seguindo de perto o exarado no AC do TRE de 13.5.2014, in www.dgsi.pt, “Quanto à natureza das perícias já afirmámos que o legislador português consagrou “ … um modelo de perícia preferencialmente pública, regra que apenas é afastada por impossibilidade ou inconveniência - artigos 152.º, 153.º 154.º, nº 1 e 160º-A do Código de Processo Penal. Consagrou-se, portanto, um regime misto com prevalência de intervenção de organismos públicos, com a qualidade pericial a assentar numa certificação pública, sem exclusão da possibilidade hipotética de apresentação de perícias contraditórias quando não existam organismos públicos reconhecidos para a realização da perícia”.
De qualquer forma, a preferência por um regime de perícias públicas ou privadas é uma opção do legislador nacional, como aliás reconhece o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no seu acórdão Eugénia Lazãr v. Roménia, (“a opção de definir a perícia médico-legal como essencialmente pública ou privada é matéria do ordenamento interno e não cabe ao TEDH intervir no debate”), desde que o regime interno da perícia se rodeie das garantias suficientes para preservar a sua credibilidade, eficácia e devido cumprimento do princípio da igualdade de armas.
Aqui convém recordar que o para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem uma perícia deve cumprir uma tríplice perspectiva: ver assegurada a imparcialidade do(s) perito(s); realizar-se em prazo razoável; sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório.
E a exigência de cumprimento do princípio da igualdade de armas e do contraditório, passa pela possibilidade de ter alguma intervenção não na realização da perícia, sim de colaboração na mesma. É assim que os casos Cottin v. Bélgica (02-06-1995, § 33) e Mantovanelli v. França (17-02-1997, § 36) afirmam que a simples possibilidade de discutir a perícia em audiência pode não ser suficiente se a parte não teve oportunidade de oferecer os seus “comentários” no momento da realização da mesma.
E para este fim – “oferecer os seus comentários” - a possibilidade de nomear consultores técnicos e a sua activa participação no apresentar de dúvidas e sugestões de execução parece-nos ser suficiente para o fim indicado.
Naturalmente que essa participação estará dependente da fase processual e do estatuto dos intervenientes no processo, já que a natureza inquisitória do inquérito penal, a existência de periculum in mora e a inexistência de arguidos e assistentes no momento em que se constata a necessidade de realização da perícia deverão ser tratadas de forma diversa em contraposição com uma perícia a realizar em instrução ou julgamento.(…)
Porque aqui devemos ter presente que não existe qualquer entidade pública com competência exclusiva para realizar perícias nesta área. Mas inultrapassável seria que a perícia teria que ser ordenada pelo tribunal a quem incumbiria, igualmente, o controlo da idoneidade científica e ética dessa entidade, de forma a assegurar a consequente imparcialidade dos peritos e credibilidade da perícia.
A perícia supõe despacho da autoridade judiciária na nomeação dos peritos - Artigo 154.º, nº 1 do Código de Processo Penal, pelo que a simples constatação nos autos de um exame efectuado por quem não detém tal qualidade, mas feito em área técnica ou científica, não é a mesma coisa do que a junção de uma perícia judicial, por muito especializados que sejam os seus autores e científico o seu conteúdo, como também não o são as testemunhas nas opiniões e juízos alegadamente técnicos que aportem na audiência de discussão e julgamento.
Perante prova pericial, que o C.P.P acolhe entre os meios de prova, resultando do seu artigo 151.º que se mantem actualizada a definição de MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 261, para quem a perícia: «Traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas.»( vide aqui o AC da TRE de 2.02.2016, in www. dgsi.pt)
E a razão é simples. Um processo judicial é uma forma que se pretende equilibrada de chegar a uma decisão pelo que a existência nos autos de um exame directo ( vide folhas 56) efectuado por um inspector da PJ, sem conhecimentos científicos comprovados, a atestar que os dois quadros apreendidos nos autos ( e referidos no número 4 dos factos provados) constituem falsificações, não tem qualquer valor, entenda-se “pericial”, para comprovar tal facto, o qual como se sabe requer conhecimentos muito específicos técnico, artísticos e científicos, uma vez que nos movemos no mercado da arte, já por si bastante escorregadio, como é aliás por todos muito bem consabido.
Note-se:
De facto, são coisas e regime distintos. Um exame, meio de obtenção prova, é a análise em pessoas, lugares e coisas, de “vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido” - artigo 171º do C.P.P..
O “exame” está sujeito à regra geral de apreciação probatória, a livre apreciação da prova prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal.
A perícia, bem ao invés, é um meio de prova que deve (ou tem que) ser produzido quando o processo e a futura decisão se defrontam com conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal em três campos do saber, os técnicos, os científicos e os artísticos.
Dada a dita característica complexa de tais conhecimentos é suposto que o tribunal seja adjuvado por quem reúna os conhecimentos e a credibilidade necessárias para verter, com conhecimento e neutralidade, em linguagem comum a referida complexidade.
Isto supõe que tal pessoa deva ser escolhida por lei (LPC e IML) ou pelo tribunal e, se for caso, por este ajuramentada como perito, elabore relatório pericial e preste esclarecimentos, se estes se revelarem necessários. É o que resulta do regime sabido dos artigos 151º a 163º do C.P.P.
São, pois, coisas distintas com distintos regimes.
Tão distintos que a perícia tem (como já vimos) um regime especial de produção e apreciação probatória, diverso de qualquer outro meio de prova ou de obtenção de prova. E esse distinto regime consta do nº 2 do artigo 163º do C.P.P. e determina que o “juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” e que, podendo o juiz “divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência” mas com apelo aos conhecimentos materiais supostos na perícia.
Por isso que seja nosso entendimento que o artigo 163º, nº 2 não é uma excepção à livre apreciação probatória, sim uma sua regra de apreciação qualificada por argumento na mesma área de saber técnico, científico ou artístico.(…)

Exame é o verter em auto de condições materiais, sem opinar ou emitir juízos. Ou seja, sem conclusões. Perícia é a emissão de um juízo especializado em determinada área do saber, considerando certos factos assentes ( vide aqui AC TRE de 2.05.2017 in www.dgsi.pt).

Aqui é preciso um juízo técnico, artístico ou/ e até científico imparcial, para se chegar a tal conclusão e que não é colmatado com o depoimento das testemunhas, as quais pese embora a sua “qualidade”, director de museu, filho de um autor e director de uma galeria de arte, coadjuvado com um documento alegadamente um atestado de autenticidade que se pode comprovar tais factos, até porque as testemunhas emitem opiniões sobre os quadros ( que até foram por elas visionados), mas não emitem um juízo técnico/ artístico a que está inerente a qualidade da prova pericial.
A natureza da perícia, no ordenamento processual penal português se caracteriza-se por ser tendencialmente pública e exigir dois pressupostos para a sua realização: um o aspecto formal – a nomeação por entidade judiciária – outro material, a necessidade de especiais conhecimentos para percepcionar e apreciar factos, que é o que, convenhamos, está patentemente em falta no caso dos autos.
Tanto assim é que os peritos são ajuramentados – artigos 91º, nº 2 a 6 e 156º do C.P.P., daqui resultando que não é perito quem não é nomeado como tal pela autoridade judiciária ou não pertence ao quadro de peritos de um estabelecimento público com atribuições periciais. Isto é, não é perito judicial quem quer, quem é arrolado como testemunha, quem efectuou um exame directo e mesmo quem é perito de qualquer outra entidade ou profissional de determinada área e por o ser.
Ora sendo” a perícia um “meio de prova” - artigos 151º a 163º C.P.P. – deve realizar-se quando a percepção (compreensão) e a apreciação (valoração) de factos exigirem especiais conhecimentos – 151º C.P.P. (artigo 388º do C.C.), que é convenhamos exactamente o caso dos autos.
A perícia pode ser essencial no apuramento de factos, como se pretende no caso concreto, em que a finalidade da perícia também é apurar factos que não é possível obter de outra forma, como este recurso bem demonstra, pois que assenta na perícia a esperança de obtenção de dados factuais essenciais que permitam a condenação ou absolvição do arguido e ora recorrente.
E aqui tanto mais porque os factos do processo estão contidos na regra resultante do artigo 163º, n. 1 do C.P.P. por exigirem um especial juízo técnico cientifico e artístico, tanto mais que no caso “sub judice”, não estamos perante qualquer relatório pericial, pelo que o exame directo de folhas 56 efectuado por um inspector da PJ e as opiniões das testemunhas ouvidas, por o não serem, não poderão mesmo se conjugadas até, serem valoradas enquanto tal, nomeadamente nos termos e com os efeitos consignados no artigo 163° do Código Processo Penal.
É indubitável, igualmente, que o exame directo e a opinião reveladas pelas testemunhas ouvidas em julgamento, não têm a natureza de perícia processual penal na medida em que está omisso também o seu pressuposto formal.
E este pressuposto formal é absolutamente essencial – não é mera questão de formalismo desajustado – pois que ali se concretizam os deveres do juiz como “gatekeeper”, como guardião da imparcialidade do ou dos peritos e da sua credibilidade científica ( da perícia efectuada).
Ora inquestionável, parece-nos é que nos presentes autos não temos qualquer relatório pericial, que possa emitir um “juízo” sobre a autenticidade ou não dos quadros apreendidos, mas que seria essencial face à essencialidade dessa mesma perícia, atendendo à especial necessidade de neste caso ser preciso um juízo técnico científico e artístico.
Assim os meios de prova que o tribunal “ a quo” se socorreu para fundamentar positivamente o facto provado sob o nº 4, não podem ser valorados enquanto prova pericial e a ela se substituindo, pois as conclusões do exame directo, e a opinião das testemunhas, não têm qualquer valor enquanto juízo técnico, artístico ou científico e qualquer outra prova ou indício que possa de forma razoável e de acordo com as regras da experiência atribuir a autoria dos factos ao ora recorrente, não podendo o Tribunal a quo, sem violar o principio da verdade material e do in dúbio pro reo e da livre apreciação da prova, presumir tal factualidade e dar como provado entre o mais o supra identificado facto ( nº 4).
Tanto mais que o juízo técnico-artistico-científico necessário nestes autos, para apurar da autenticidade dos quadros, presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do art. 163º nº 1 do CPP., assim só a perícia visa a percepção e interpretação de factos importantes para a decisão da causa, em si mesmos considerados, e só ela goza da especial força probatória estabelecida no art. 163º do CPP, diferenças substanciais, que relevam particularmente em casos como o presente.
Pode então considerar-se, porém, como na sentença recorrida, os factos indicados pelo arguido e nomeadamente os dos nº 4 a 6 “4.Porém, nenhum dos referidos quadros foi pintado por aqueles artistas, nem corresponde à réplica de qualquer obra original destes;5.Na posse dos referidos quadros, não ignorando que os mesmos não eram originais e não haviam sido pintados pelas pessoas cuja assinatura neles constavam, o arguido formulou o desígnio de, invocando a sua autenticidade, colocar os mesmos no mercado, a fim de obter quantias monetárias que faria suas;6.Assim e prevalecendo-se de conhecimentos que detinha no mercado de obras de arte, solicitou a J…, responsável pela “Casa Museu Vasco de Lima Couto”, que autenticasse uma fotografia da tela referida em 2;
Entendemos que não, independentemente do maior ou menor valor indiciário dos factos circunstanciais a considerar, pois o valor probatório específico resultante da autenticidade dos dois quadros referidos no nº 2 e 3, assenta na sua comparação e identificação por quem detenha especiais conhecimentos, técnico, artísticos e científicos, ou seja, mediante prova pericial, meio de prova regulado nos artigos 151º a 163º do CPP.
Na verdade, ao determinar que a prova pericial tem lugar quando a percepção ou avaliação dos factos exigirem especiais conhecimentos, o art. 151º do C.P.P acolhe, em matéria de aquisição e valoração da prova, um caso de prova legal negativa que excepciona o princípio ou regra da liberdade de prova ou prova livre estabelecido no art. 125º do CPP e o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CP), pois não prescinde daquele meio probatório para prova de determinados factos, conforme resulta da própria razão de ser da prova pericial.
Ou seja, uma vez que a prova pericial visa a comprovação de determinados factos que apenas podem ser observados ou compreendidos e valorados cabalmente, em virtude de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, que não é suposto encontrarem-se nos juízes e outros profissionais do foro, conforme decorre entre nós nos termos do citado art. 151º do CPP, resulta daí que o tribunal não possa julgar provado os factos em causa mesmo que afirme a convicção de que o facto em causa se encontra suficientemente provado com base noutros elementos probatórios que, por definição, não assegurarão aqueles conhecimentos com o formalismo que a lei de processo exige no art. 151 º e sgs do CPP( aqui vide, nota de rodapé do AC TRE de 13.05.2014os juízes não são cientistas amadores”).
Deste modo, perante a ausência de prova pericial, não tem suporte probatório a consideração, pelo tribunal recorrido, de que os dois quadros apreendidos não são os originais, pelos motivos que atrás se deixaram expostos.
Ora a falta da realização da perícia configura um vício que é de conhecimento oficioso e contido no artº 410º nº 2 al. a) do CPP, ou seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
O qual ocorrerá sempre, quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Ora a tal respeito diremos que o vício previsto na al. a), do nº 2 do citado art.410º, do CPP, trata consabidamente de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, no “ Curso de Processo Penal”, Vol. III, pag.339/340 «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada».
Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão, que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que são coisas distintas, e como tal não podem ser confundidas.
Pelo que se conclui existir na sentença recorrida tal vicio nos termos supra indicados, por omissão da feitura de uma diligência de prova essencial para a decisão, concretamente a realização de uma perícia aos quadros apreendidos.
A existência manifesta do vício supra referido, torna impossível decidir a causa, o qual acarreta impreterivelmente a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal “ a quo”.
Há sim, nos termos dos arts. 426.º nº 1 e 426.º-A do CPP, que reenviar o processo para novo julgamento, ordenando-se previamente a feitura de uma perícia aos dois quadros apreendidos nos termos do artº 151º do CPP.

DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam as Juízas da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:

1- Declarar nula a sentença proferida pelo Tribunal “ a quo” pela existência do vício contido na alínea, a ) do nº2 do artº 410º CPP, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento na sua totalidade, ordenando-se previamente a feitura de uma perícia aos dois quadros apreendidos, 426º nº 1 e 426º A , todos do CPP;
2- Não é devida tributação;
3- Notifique-se e diligências necessárias.

Lisboa, 6 de Julho de 2017 (processado integralmente em computador e revisto integralmente pela juiz desembargadora relatora, artº 94º nº 2 do C.P.P.)



Filipa Costa Lourenço


Margarida Vieira de Almeida