Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1667/17.6T8BRR.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: DESPEDIMENTO
JUSTA CAUSA
CONSUMO
ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: 1–  O conceito de justa causa de despedimento corresponde a um comportamento culposo do trabalhador, violador dos seus deveres contratuais, gerador de uma crise contratual de tal modo grave e insuperável que provoca uma ruptura irreversível entre as partes contratantes de modo a não ser exigível a um empregador normal e razoável a continuação da relação laboral.

2–  Não constitui justa causa de despedimento o comportamento do trabalhador que durante o turno da noite consumiu uma sandes de panado de frango e uma baguete de presunto sem efectuar o seu pagamento, nem o seu registo nas “quebras”, quando, de acordo com os procedimentos instituídos pela empregadora esses produtos, a partir da meia-noite de cada dia, são considerados “quebras”, o que não impedia que pudessem ser vendidos, desde que dentro do prazo de validade, mas que acabariam, com muita probabilidade, por ser consumidos pelos trabalhadores ou destruídos.

(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.



Relatório:


AAA, residente na Rua …,  intentou a presente acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, apresentando o formulário a que aludem os artigos 98º-C e 98º-D do CPT, opondo-se ao despedimento que lhe foi movido por BBB, Lda, com sede  na Rua … Lisboa pedindo que seja declarada a ilicitude ou irregularidade do mesmo com as consequências legais.

Teve lugar a audiência de partes não se obtendo a sua conciliação e tendo o Autor optado pela indemnização em substituição da reintegração.

A Ré contestou reafirmando os factos constantes da nota de culpa e concluindo que o Trabalhador violou os deveres de respeito e de lealdade para com a Entidade Empregadora (art.º 128.º, n.º 1, alíneas a) e f) do Código do Trabalho) e o dever de velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe sejam confiados (art.º 128.º, n.º 1, alínea g) do Código do Trabalho), conduta que  é igualmente passível de responsabilidade criminal uma vez que consubstancia a prática do crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º do Código Penal e que tal comportamento, pela sua gravidade e consequências, torna imediata e praticamente impossível a continuação do contrato de trabalho nos termos do n.º 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho.

Pediu, a final, que  os fundamentos invocados pela Ré para o despedimento com justa causa do Autor sejam considerados procedentes, por provados, considerando-se improcedente a impugnação apresentada pelo Autor.

O Autor contestou alegando, em resumo, que não existe qualquer fundamento para o despedimento posto que os produtos que consumiu, uma sandes de panado e uma baguete de presunto, já se encontravam fora do respectivo prazo de validade, pelo que não poderiam encontrar-se à venda e são postos à disposição dos trabalhadores que os pretendam consumir, que nunca foi confrontado com decisão da empregadora que proibisse os trabalhadores de comerem as sobras, pelo que não resultou qualquer prejuízo para a Ré. Admite que não procedeu de forma totalmente correcta, mas fê-lo porque foi acometido de um súbito ataque de fome, pois já estava a trabalhar há cinco horas seguidas e que a sanção disciplinar de despedimento com justa causa viola  o princípio da proporcionalidade sendo incompatível com a antiguidade da relação de trabalho que  dura há mais de 16 anos, sendo, pois, manifesta a inexistência de justa causa.

Em reconvenção, alegou factos que suportam os pedidos que formula decorrentes da alegada ilicitude do despedimento.

Pediu, a final, que:
- Seja declarada a ilicitude do despedimento do trabalhador, por manifesta improcedência dos motivos invocados, tudo nos termos supra descritos;
- Seja condenada a empregadora a reintegrar o trabalhador no seu posto de trabalho, com efeitos reportados à data do despedimento, sem prejuízo da antiguidade e categoria, ou, em alternativa, ser a empregadora condenada a pagar ao trabalhador a indemnização a que se reporta o artigo 391º do Código do Trabalho, a qual deve ser graduada, pelo menos, no seu limite intermédio, no valor de € 9.965,10.
- Seja condenada a empregadora a pagar ao trabalhador as retribuições já vencidas desde a data do despedimento, acrescidas das que se vierem a vencer até ao trânsito em julgado da presente acção, incluindo subsídios de férias e de Natal, nos termos supra descritos, as quais até à presente data se cifram em € 1.210,00;
- Seja condenada a empregadora a pagar ao trabalhador juros à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, sobre todas as quantias reclamadas;
- Seja a empregadora condenada no pagamento de custas, procuradoria condigna e demais despesas do processo.

A Ré respondeu que nada  deve ao Autor pois o contrato de trabalho que vigorava entre ambos cessou licitamente, sendo certo que lhe pagou todos os créditos emergentes da cessação do seu contrato de trabalho e que no caso de procedência da pretensão do Autor, sempre teriam de ser feitas as deduções a que aludem as als.a) e c) do artigo 390º do CT.

Foi proferido despacho a admitir a reconvenção.

Foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador e fixado o objecto do litígio, abstendo-se o Tribunal a quo de enunciar os temas da prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo conforme decorre das actas que antecedem.

Foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo.
“Pelos fundamentos expostos, julgo improcedente, por não provada, a presente ação com processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, bem como improcedente a reconvenção deduzida pelo Trabalhador-reconvinte AAA, considerando lícito e regular o despedimento do Trabalhador AAA efetuado pela Entidade Empregadora BBB, Ld.ª, absolvendo a Entidade Empregadora-reconvinda BBB, Ld.ª, dos pedidos e do pedido reconvencional contra si deduzidos pelo Trabalhador-reconvinte AAA.
Valor da ação: € 5.000,01 (cinco mil euros e um cêntimo) – cfr. artigo 98.º-P,n.º 2 do CPT.
Custas a cargo do Autor, sem prejuízo da isenção de custas ou apoio judiciário de que beneficie.
Registe e notifique.”

Inconformado, o Autor recorreu, sintetizando as alegações nas seguintes conclusões:
O Recurso foi admitido no modo de subida e efeito adequados.
Neste Tribunal, o Exm.º Sr. Procurador- Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Notificadas do parecer, as partes não responderam.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir:

Objecto do recurso.
Sendo o âmbito do recurso limitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º nº 4 e 639º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), no presente recurso importa apreciar as seguintes questões:
- Se deve ser alterada a decisão que recaiu sobre a matéria de facto.
-Se inexiste justa causa de despedimento.
-Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, quais as consequências que dai resultam.

Fundamentação de facto.

A sentença considerou provada a seguinte factualidade:
- Articulado do Empregador/Ré
1)– Em 2 de Fevereiro de 2017, foi participada à Ré a prática de fatos pelo Autor que indiciavam a violação dos seus deveres profissionais (artigo 1.º);
2)– Na data referida em 1), a trabalhadora da Ré, … comunicou-lhe ter verificado que no dia 8 de Janeiro de 2017, o Autor havia consumido produtos que estavam à venda no seu local de trabalho, e nenhum foi registado na data em questão, nem foram dados como sobras. (artigo 2.º);
3)– Tendo na sequência do referido em 1) e 2), a Ré promovido a realização de uma auditoria interna. (artigo 3.º);
4)– No dia 2 de Março de 2017, conclusa a auditoria interna, a Ré suspendeu o Autor do exercício de funções. (artigo 4.º);
5)– Em 6 de Março de 2017, a Ré instaurou ao Autor o processo disciplinar, mediante o envio da nota de culpa. (artigo 5.º);

6)– Constavam na nota de culpa os seguintes fatos:
“BBB, Ld.ª, NIPC …, com sede na Rua … Lisboa, adiante designada por Entidade Empregadora, acusa o seu trabalhador AAA, adiante designado por Trabalhador Arguido, dos seguintes fatos:
1.- A Entidade Empregadora dedica-se, entre outras actividades, à exploração de postos de abastecimento de combustíveis.
2.- O Trabalhador Arguido foi contratado no dia 13 de Novembro de 2000, exercendo ao serviço da Entidade Empregadora as funções de “Operador de Posto de Abastecimento”.
3.- O Trabalhador Arguido presta actualmente a sua actividade no Posto de abastecimento da …, sito na … lados Sul e Norte, em Almada (doravante designado como “Posto”).
4.- Chegou ao conhecimento da Entidade Empregadora a prática pelo trabalhador Arguido dos fatos que seguidamente se descrevem e que são susceptíveis de justificar o seu despedimento com justa causa.
5.- No dia 8 de Janeiro de 2017, o Trabalhador Arguido estava a desempenhar as suas funções no turno da noite (entre as 23h00 e as 07:00 horas do dia seguinte), no lado Sul do Posto.
6. Quando eram cerca das 3:55 horas, o Trabalhador Arguido encontrava-se sozinho na Loja do Posto e dirigiu-se a uma arca frigorífica aí existente da qual retirou uma sandes de panado e uma baguete de presunto que se encontravam à venda, que levou consigo para o balcão da loja.
7.- Seguidamente, o Trabalhador Arguido comeu a sandes de panado de frango e o presunto que se encontrava no interior da baguete, que retirou do seu interior.
8.- O Trabalhador Arguido não registou a venda dos referidos produtos (sandes de panado de frango e uma baguete de presunto) que consumiu.
9.- Efectivamente, não existe qualquer registo da venda dos referidos produtos entre as 23h00 e as 7h00.
10.- Além disso, não foi depositado em caixa o valor correspondente ao preço dos referidos produtos (Euro 2,65 no caso da sandes de panado de frango e Euros 3,15 no caso da baguete de presunto).
11.- A Entidade Empregadora verificou no impresso de registo de quebras, a existência de sobras do dia anterior, tendo concluído não existir qualquer registo referente ao dia 7 de Janeiro de 2017.
12.- Pelo que se conclui que o Trabalhador Arguido consumiu os referidos produtos que se encontravam à venda no seu local de trabalho sem os pagar.
13.- Após ter tido conhecimento dos referidos factos, a Entidade Empregadora confrontou o Trabalhador Arguido com os mesmos, em reunião realizada no dia 17 de Fevereiro de 2017.
14.- O Trabalhador Arguido assumiu que havia consumido a sandes de panado de frango e a baguete de presunto e não havia registado nem pago estes produtos.
15.- Justificou, no entanto, que tais produtos eram sobras do dia anterior e que era prática no Posto o consumo dessas sobras.
16.- Questionado quanto ao procedimento relativo a sobras do dia anterior, o Trabalhador Arguido disse que as sobras são registadas num impresso próprio pelo Operador, no final do turno noite - que o Trabalhador Arguido disse não ter preenchido no final do turno, dia 8 de Janeiro de 2017 -, e que contrariamente ao procedimento do lado norte, os Operadores podem consumir os produtos mesmo antes da conferência por parte do Responsável do Posto.
17.- A Entidade Empregadora verificou imediatamente se o procedimento aplicado no Posto correspondia ao descrito pelo Trabalhador Arguido, tendo concluído que este mentiu.
18.- Efectivamente, a Entidade Empregadora aferiu que o procedimento aplicado no Posto corresponde ao que foi por si implementado e que é o seguinte:
−Diariamente, no fim do turno da noite (pelas 07:00), são retiradas as sobras do dia anterior e registadas em impresso próprio pelo Operador que está a fazer o turno;
−As sobras do Posto no lado Sul são levadas para o lado Norte e, tal como as sobras do lado Norte, colocadas no escritório para posteriormente serem conferidas pela Responsável do Posto, que após este passo, as coloca à disposição dos trabalhadores que as pretendam consumir ou as destrói;
−Os Operadores não estão autorizados a consumir qualquer sobra sem antes da mesma ser conferida, pois as sobras só são sobras após conferência pelo Responsável do Posto.
19.- Desta forma, o Trabalhador Arguido, além de ter consumido produtos comercializados pela Entidade Empregadora sem os ter registado nem pago, mentiu à Entidade Empregadora, dizendo tratarem-se de sobras que podia comer mesmo sem ter existido qualquer conferência por parte do Responsável do Posto.
20.- O Trabalhador Arguido sabe perfeitamente que não pode consumir produtos que se encontrem à venda no Posto sem os registar e pagar.
21.- E sabe perfeitamente que apenas pode comer sobras que tenham sido conferidas pelo Responsável do Posto, em cumprimento do procedimento instituído pela Entidade Empregadora.
22.- Com o comportamento supra referido, o Trabalhador Arguido violou os deveres de respeito e de lealdade para com a Entidade Empregadora (art.º 128.º, n.º 1, alíneas a) e f) do Código do Trabalho) e o dever de velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe sejam confiados (art.º 128.º, n.º 1, alínea g) do Código do Trabalho).
23.- Tal conduta do Trabalhador Arguido é igualmente passível de responsabilidade criminal uma vez que consubstancia a prática do crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º do Código Penal.
24.- O exercício das funções do Trabalhador Arguido tem por base uma forte relação de confiança, especialmente tendo em conta que o mesmo se encontra muitas vezes sozinho no Posto, sem a presença constante de um superior hierárquico, como sucedeu na noite de 8 de Janeiro de 2017.
25.- Confiança essa que foi irremediavelmente posta em causa pelo Trabalhador Arguido ao praticar os referidos factos.
26.- Assim, o Trabalhador Arguido abalou gravemente a confiança que a Entidade Empregadora tinha no mesmo, fundamental para a continuação do exercício das suas funções.
27.- Tendo ainda lesado a Entidade Empregadora, ao consumir os referidos produtos sem os pagar.
28.- O comportamento descrito do Trabalhador Arguido, pela sua gravidade e consequência, torna imediata e praticamente impossível a continuação do contrato de trabalho que celebrou com a Entidade Empregadora, nos termos do n.º 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho. (artigo 6.º).

7)– Em 28 de Abril de 2017, a Autora enviou ao Autor a decisão final do processo disciplinar, determinando o seu despedimento com justa causa, devidamente fundamentada e acompanhada do relatório final e proposta de decisão do instrutor. (artigo 23.º)
8)– A Ré dedica-se, entre outras actividades, à exploração de postos de abastecimento. (artigo 30.º)
9)– O Autor foi contratado no dia 13 de Novembro de 2000, exercendo ao serviço da Ré as funções de “Operador de Posto de Abastecimento”. (artigo 31.º)
10)– O Autor prestava ultimamente a sua atividade no Posto de abastecimento da … , sito na … , em …. (artigo 32.º)
11)– No dia 8 de Janeiro de 2017, o Autor estava a desempenhar as suas funções no turno da noite (entre as 23h00 e as 07:00 horas do dia seguinte), no lado Sul do Posto. (artigo
33.º)
12)– Quando eram cerca de 3:55 horas, o Autor encontrava-se sozinho na loja do Posto e dirigiu-se a uma arca frigorífica aí existente, da qual retirou uma sandes de panado de frango e uma baguete de presunto que se encontravam à venda, que levou consigo para o balcão da loja. (artigo 34.º)
13)– Seguidamente, o Autor comeu a sandes de panado de frango e o presunto que se encontrava no interior da baguete, que retirou do seu interior. (artigo 35.º)
14)– O Autor não registou a venda dos referidos produtos (sandes de panado de frango e uma baguete de presunto) que consumiu. (artigo 36.º)
15) Não existe qualquer registo da venda dos referidos produtos entre as 23h00 e as 7h00, não foi depositado em caixa o valor correspondente ao preço dos referidos produtos  (€2,65 da sandes de panado de frango e € 3,15 da baguete de presunto), nem foram registados no impresso de registo de quebras (artigo 37.º, 38.º e 39.º)
16)–  O procedimento da Ré referente às sobras consiste:
- Diariamente, no fim do turno da noite (pelas 07:00), são retiradas as sobras do dia anterior e registadas em impresso próprio pelo Operador que está a fazer o turno;
− As sobras do Posto no lado Sul são levadas para o lado Norte e, tal como as sobras do lado Norte, colocadas no escritório para posteriormente serem conferidas pela Responsável do Posto, que após este passo, as coloca à disposição dos trabalhadores que as pretendam consumir ou as destrói;
− Os Operadores não estão autorizados a consumir qualquer sobra sem antes da mesma ser conferida, pois as sobras só são sobras após conferência pelo Responsável do Posto. (artigo 47.º).

A sentença considerou não provada a seguinte factualidade:
Contestação do Autor
A)– Os produtos consumidos pelo Autor pelas 03h55m do dia 08.01.2017 não se encontravam à venda, por se encontrarem fora de validade, e por via disso legalmente impedidos de serem postos à venda. (artigos 16.º, 17.º e 18.º)
B)– À data da prática dos fatos, os referidos produtos, porque confeccionados durante o dia anterior, já se encontravam fora do respectivo prazo de validade, sendo colocados à disposição dos trabalhadores que os pretendam consumir ou as destrói. (artigos 25.º e 26.º)
C)– O Autor não tinha conhecimento do procedimento consignado em 16), não tendo incumprido qualquer dever de declarar as sobras no formulário, do qual tomou conhecimento no decurso do procedimento disciplinar. (artigos 28.º e 47.º)
(…)

Fundamentação de direito.

Apreciemos, agora, se inexiste justa causa de despedimento.
Sobre a questão, após debruçar-se sobre a figura do contrato de trabalho, sobre a definição do despedimento e sobre o conceito de justa causa de despedimento citando jurisprudência e doutrina pertinentes, escreve-se na sentença recorrida, no que ao caso importa, o seguinte:
“Importa saber se o facto de o Autor ter consumido uma sandes de panado de panado e uma baguete de presunto, sem pagar os mesmos ou, pelo menos, registar os mesmos pelas 07 horas no impresso de quebras, constitui infracção disciplinar susceptível de fundar o seu despedimento com invocação de justa causa.
Face a tal cenário, não parecem restar grandes dúvidas de que os factos dados como assentes e acima reproduzidos configuram uma atuação desleal, intencional - praticada com dolo direto - culposa e ilícita, com vista a colher proventos ilegítimos e não devidos pela empregadora, no montante de € 5,80, consistente no consumo indevido dos referidos produtos e, nessa medida, integradora de infracção disciplinar e merecedora do inerente sancionamento.
Mas será que o descrito comportamento se reveste de uma gravidade tal que, só por si e em si, de um ponto de vista objetivo, desapaixonado, jurídico, implica uma quebra irremediável e sem retorno da relação de confiança que o vínculo laboral pressupõe entre empregado e empregador, impondo, nessa medida, a este último, o despedimento com justa causa, por ser a única medida reactiva de cariz disciplinar que se revela proporcional, adequada e eficaz à infracção concreta e em concreto praticada pelo trabalhador arguido?
A jurisprudência dos nossos tribunais superiores, com especial incidência para o Supremo Tribunal de Justiça, tem, em casos como o dos autos, em que está em causa a honestidade ou seriedade dos trabalhadores (cfr., por todos, os seguintes Arestos: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/04/2007, processo n.º 06S4278, publicado em www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/06/2006, publicado em C.J., 2006, Tomo 3.º, página 160 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/2009, Processo n.º 09S0623, publicado em www.dgsi.pt, todos eles referidos, entre muitos outros relativos à violação dos deveres de lealdade e honestidade, por Abílio Neto em “Novo Código do Trabalho e Legislação Complementar Anotados”, 2.ª Edição, Setembro de 2010, EDIFORUM, Lisboa, páginas 738 e seguintes), considerado que está irremediavelmente comprometida a relação de confiança necessariamente pressuposta pelo vínculo laboral, independentemente do valor em causa, não tendo o empregador de manter ao seu serviço o assalariado desonesto e/ou desleal.
O artigo 330.º do Código do Trabalho de 2009, com a epígrafe “Critério de decisão e aplicação de sanção disciplinar” estipula, a esse respeito, no seu número 1, que “A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infração.”.
Ora, se olharmos com olhos de ver, para a atuação do Autor, revestir-se-á a mesma da gravidade legalmente reclamada pelo legislador para que a única saída viável para resolver a crise de carácter laboral gerada pela dita conduta seja a sanção do despedimento com invocação de justa causa?
A resposta, não obstante o valor muito diminuto dos bens envolvidos (€ 5,80), tem de ser afirmativa.
Estamos assim perante várias violações culposas (que, aliás, se presumem enquanto tal, por força do disposto no Art. 799º do Código Civil), por a Trabalhadora negligente ou intencionalmente não ter cumprido os seus deveres como trabalhador, desde logo os resultantes do Art. 126º, n.º 1 do Código do Trabalho, que prevê um dever geral de boa fé por parte do empregador e do trabalhador na execução do contrato de trabalho, e vários dos deveres previstos no Art. 128º, n.º 1 do Código do Trabalho:
“Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:
a)-Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade;
b)-Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade;
c)-Realizar o trabalho com zelo e diligência;
d)-Participar de modo diligente em ações de formação profissional que lhe sejam proporcionadas pelo empregador;
e)-Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias
aos seus direitos ou garantias;
f)-Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios;
g)-Velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe forem confiados pelo empregador;
h)-Promover ou executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa;
i)-Cooperar para a melhoria da segurança e saúde no trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes dos trabalhadores eleitos para esse fim;
j)-Cumprir as prescrições sobre segurança e saúde no trabalho que decorram de lei ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho), que não é cumprido, necessariamente, por um trabalhador que atua desta forma.”
Porém, como referimos, não basta que se verifique uma das situações previstas no Art. 351º, n.º 2 do Código do Trabalho, mesmo que conjugada com outros comportamentos culposos para que se verifique inelutavelmente a ‘justa causa’ de despedimento, sendo necessário que o comportamento do trabalhador tenha gravidade e consequências que impossibilitem a manutenção da relação de trabalho.
A gravidade da conduta “deve ser apreciada em termos objetivos e concretos, de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de empregador normal, face ao caso concreto e segundos critérios de objetividade e de razoabilidade” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 1996, retirado do sítio www.cidadevirtual.pt/stj).
De facto, não se pode pretender analisar a conduta da Trabalhadora do ponto de vista da sua Entidade Empregadora, pois é claro que esta considerou a conduta como grave, tão grave que a despediu no fim do processo disciplinar.
A lei impõe que se faça uma ponderação global de diversos fatores, de acordo com o concreto quadro fáctico sub judice, a apreciar objetivamente, segundo o critério de um bónus pater familias.
Por seu lado, o despedimento deve ser a última sanção a aplicar ao trabalhador, quando se verifica a impossibilidade prática da manutenção do vínculo laboral, por nenhuma outra sanção ser suscetível de sanar a situação (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de dezembro de 1993, CJ/STJ III, p. 290).
Existe, assim, justa causa de despedimento quando não é exigível ao empregador a manutenção do vínculo laboral, por constituir uma injusta imposição a este, sendo que esta inexigibilidade deve ser, como referimos, avaliada objetivamente, de acordo com o critério de um homem médio colocado na situação da entidade patronal e está intimamente ligada com a quebra de confiança resultante da atuação do trabalhador.
De facto, o princípio da confiança e da boa-fé no cumprimento dos contratos é especialmente importante nos contratos de trabalho, de longa duração e que originam uma série de vínculos pessoais, por força, desde logo, do Art. 762º do Código Civil.
Assim, é necessário que a conduta do trabalhador seja “suscetível de destruir ou abalar essa confiança, de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da sua conduta” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de janeiro de 2001, Prontuário de Direito do Trabalho n.º 60, p. 53).
Posto isto, entendemos que, ponderando e sopesando todo o circunstancialismo fáctico que se deu como provado, ficou destruída totalmente esta relação fiduciária decorrente do contrato de trabalho celebrado pelas partes, atenta a gravidade da conduta da trabalhadora tida e enquadrada como um todo.
De facto, realce-se que a situação deixada descrita e analisada, ainda que nas circunstâncias algo particulares em que se desenrolou, configura a prática de um furto por parte do Autor, que, dessa forma, abriu a porta da desconfiança relativamente à sua futura lealdade, seriedade e honestidade, que, na perspetiva da Ré só pode ser fechada satisfatoriamente através da medida disciplinar do despedimento com invocação de justa causa.
A circunstância do montante locupletado ser muito pequeno não torna menos grave a ferida aberta na relação de confiança que toda a relação de trabalho necessariamente pressupõe e que, em termos qualitativos, essências, estruturais, se mostra definitiva e irrecuperavelmente afetada, minada, prejudicada.
Nesta senda, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.02.2013, Processo nº 1006/2011, Relator Desembargador José Eduardo Sapateiro, in www.dgsi.pt:
“I - Constitui justa causa de despedimento a preparação e consumo pelo trabalhador de produtos, no valor de 1 Euro, existentes no estabelecimento de cafetaria da Ré situado dentro do espaço comercial onde aquele desempenhava funções, sem os ter pago previamente, em violação das regras e procedimentos internos estabelecidos pela sua entidade empregadora.
Num juízo de probabilidade sobre a viabilidade do vínculo laboral, como aquele que o tribunal tem de fazer a final (BERNARDO XAVIER, «Justa causa de despedimento: conceito e ónus da prova» in Revista de Direito e de Estudos Sociais XXX, 1, p. 65), considera-se que a relação entre empregador e trabalhador, claramente posta em crise pelo comportamento da Trabalhadora, foi suficientemente afetada para que deixe de ser exigível a sua manutenção ao seu empregador, pelo que se considera que o interesse do empregador em lhe pôr termo é, claramente, superior ao interesse do seu trabalhador na manutenção do contrato de trabalho.
Finalmente, cumpre referir que nesta matéria vigora o princípio da proporcionalidade, por força do Art. 330.º do Código do Trabalho, o qual deve ser aplicado “de modo a que entre a sanção e o facto que a origina haja um natural equilíbrio, de molde a que aquela não se mostre desajustada com este” (Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de novembro de 2000, retirado do sítio www.trc.pt), sendo que, deste ponto de vista, o despedimento, que deve ser utilizado apenas em última instância, como “última ratio” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de outubro de 1999, retirado do sítio www.cidadevirtual.pt/stj).
Porém, temos que esta sanção mostra-se proporcionada e adequada aos factos praticados pelo Trabalhador, que agiu culposamente e de forma muito grave, pelo que não se adequaria a aplicação de qualquer outra sanção disciplinar ao Trabalhador, antes sendo necessário e ajustado, face à quebra total da relação fiduciária existente entre si e a sua Entidade Empregadora, o seu despedimento.
Em suma, deve, pois, considerar-se como lícito e regular o despedimento do Trabalhador efetuado pela Entidade Empregadora, improcedendo, in totum, os pedidos e reconvenção deduzida pelo Trabalhador-reconvinte.”

Discorda o Recorrente do entendimento do Tribunal a quo invocando, em resumo, que embora reconheça que, ao consumir duas sandes que já não poderiam ser comercializadas pela recorrida, adoptou um comportamento susceptível de ser qualificado como infracção disciplinar que se circunscreve à violação de uma parte do procedimento implementado pela recorrida, por meio do qual os seus trabalhadores só podem consumir as sobras do dia anterior depois de as mesmas serem conferidas pela responsável do posto, sobras que não têm qualquer valor económico para a recorrida e cujo destino, caso não sejam consumidas pelos seus trabalhadores, é a sua pura e simples destruição, nos termos igualmente constantes do procedimento implementado pela recorrida, a sanção disciplinar que concretamente lhe foi aplicada, é clamorosamente violadora do princípio da proporcionalidade a que alude o art. 330º, nº 1 do Código do Trabalho, sobretudo quando cotejada com os critérios de apreciação da justa causa, injuntivamente estabelecidos no art. 351º, nº 3 do Código do Trabalho, particularmente no que toca “ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes”, nomeadamente, a antiguidade do recorrente, com mais de 16 (dezasseis) longos anos e o seu irrepreensível passado disciplinar, que a apreciação da justa causa implica, não apenas a prévia selecção dos factos e circunstâncias a ser tidas em conta, mas também a análise de um conjunto de valorações, assentes em critérios de natureza ética, organizacional, técnico-económica e de gestão relacionados com pressupostos de ordem sócio-cultural e até afectiva, sem esquecer o condicionalismo em que decorrem as relações de trabalho entre a empregadora e o trabalhador, nomeadamente o largo tempo de serviço prestado sem qualquer falta, que foi precisamente esta apreciação que o tribunal a quo cuidou de efectuar, acabando, e mal, por concluir pela existência da justa causa invocada pela recorrida.

Contrapõe a Recorrida, em síntese, que o Autor ao negar que consumiu produtos que se encontravam à venda sem os pagar, confirmou a inevitável quebra de confiança que a Recorrida nele depositava, pois é bem demonstrativa que, em razão da desconsideração que faz do seu inqualificável comportamento, voltaria a assumir e praticar no futuro o mesmo tipo de comportamento pelo que, conforme bem concluiu o Tribunal a quo, não se adequaria a este caso concreto a aplicação de qualquer outra sanção disciplinar, antes sendo necessário e ajustado, face à quebra total da relação fiduciária existente entre as partes, o despedimento do Recorrente.

Vejamos:

Atenta a data dos factos, ao caso é aplicável o Código do Trabalho de 2009 na redacção dada pela Lei nº 23/2012 de 25 de Junho.
Ora, como é sabido, para além do dever principal de prestação da actividade de trabalho que impende sobre o trabalhador, sobre ele ainda incidem outros deveres previstos na enumeração exemplificativa do artigo 128º do Código do Trabalho.
Ora, a violação dos deveres laborais constitui infracção disciplinar e quando culposa e grave poderá configurar uma situação de justa causa de despedimento de acordo com o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 351º do CT.
No caso, o Recorrente admite, antes de mais, que ao consumir duas sandes que já não poderiam ser comercializadas pela Recorrida, adoptou um comportamento susceptível de ser qualificado como infracção disciplinar, que se circunscreve à violação de uma parte do procedimento implementado pela recorrida, por meio do qual os seus trabalhadores só podem consumir as sobras do dia anterior depois de conferidas.
Ora, não se provou, conforme alegado pelo Recorrente, que as sandes que consumiu já não se encontravam dentro do prazo de validade, nem que já não podiam ser comercializadas pela Recorrida.
O que se provou foi que o Autor consumiu duas sandes sem pagar as quais, de acordo com os procedimentos da Ré, já eram consideradas “quebras”, mas tal não impedia a sua venda caso estivessem dentro do prazo de validade (ponto 12 do factos provados).
Ou seja, para a Ré aqueles produtos, no momento em que foram consumidos pelo Recorrente, objectivamente, já eram “quebras”, não obstante ainda poderem ser vendidos, caso estivessem dentro do prazo de validade.
Mas para além do Recorrente ter consumido as ditas sandes, ainda se provou que o Autor não registou a venda dos referidos produtos (sandes de panado de frango e uma baguete de presunto) que consumiu (facto 14), que não existe qualquer registo da venda dos referidos produtos entre as 23h00 e as 7h00, que não foi depositado em caixa o valor correspondente ao preço dos referidos produtos  (€2,65 da sandes de panado de frango e € 3,15 da baguete de presunto), nem foram registados no impresso de registo de quebras (facto 15) e que o procedimento da Ré referente às sobras consiste:- Diariamente, no fim do turno da noite (pelas 07:00), são retiradas as sobras do dia anterior e registadas em impresso próprio pelo Operador que está a fazer o turno; As sobras do Posto no lado Sul são levadas para o lado Norte e, tal como as sobras do lado Norte, colocadas no escritório para posteriormente serem conferidas pela Responsável do Posto, que após este passo, as coloca à disposição dos trabalhadores que as pretendam consumir ou as destrói;  os Operadores não estão autorizados a consumir qualquer sobra sem antes da mesma ser conferida, pois as sobras só são sobras após conferência pelo Responsável do Posto.
Ou seja, para além do Recorrente não ter observado os procedimentos instituídos pela Ré (não registou a sua venda, nem registou como quebra) violando, assim, o dever laboral de obediência previsto na al.e) do nº 1 do artigo 128º do CT, ao consumir as mencionadas sandes sem as pagar também violou o dever de lealdade, previsto na al.f) do nº 1 do artigo 128º do CT, na medida e apenas na medida em que consumiu aqueles produtos antes da sua validação como sobras.
Ora, o dever de obediência, como escreve Maria do Rosário Palma Ramalho na obra “Direito do Trabalho Parte II-Situações Laborais Individuais  pags.414 a 416, “é o dever acessório mais importante do trabalhador, a par do dever de lealdade.
A importância do dever de obediência é reconhecida genericamente pela doutrina (que o considera a manifestação, por excelência, da subordinação jurídica), ao ponto de autores como Monteiro Fernandes referirem de uma forma expressiva que, para o trabalhador, «cumprir é, essencialmente obedecer», bem como pela jurisprudência que se refere a este dever como «a pedra angular do contrato de trabalho».
(…) Em termos extensivos, este dever envolve o cumprimento das ordens e instruções do empregador «respeitantes a execução ou disciplina do trabalho» (art.128º nº 1 e) do CT).
Por outras palavras o trabalhador deve obediência não apenas às directrizes do empregador sobre o modo de desenvolvimento da sua actividade laboral (ou seja, ao poder directivo), mas também às directrizes do empregador emanadas do poder disciplinar prescritivo, em matéria da organização da empresa, de comportamento no seu seio, de segurança, higiene e saúde no trabalho, ou outras.
Por outro lado, o dever de obediência é também especialmente intenso, uma vez que se estende às directrizes emanadas do empregador e dos superiores hierárquicos do trabalhador no âmbito da delegação dos poderes laborais a que o empregador tenha procedido (art.128º nº 2 do CT).
(…) Apesar da sua intensidade e extensão, o dever de obediência do trabalhador tem limites gerais e específicos.
Os limites gerais do dever de obediência são os direitos e garantias do trabalhador, como refere o artigo 128º nº 1 e) in fine.
(…) Por fim, o dever de obediência é limitado genericamente pela licitude da própria ordem, não devendo o trabalhador obediência a um comando ilegal”
E como elucida João Leal Amado, in “Contrato de Trabalho” pags.373 “ trata-se do dever que mais fielmente caracteriza o particular modo de cumprimento do contrato de trabalho, representando o lado passivo da subordinação jurídica”.
Sobre o dever de lealdade esclarece o Acórdão do STJ de 05.06.2013, in www.dgsi.pt “o dever de lealdade, de acordo com a doutrina, tem uma dimensão ampla, que abrange, para além do cumprimento do contrato, de acordo com a boa fé, um aspecto pessoal e um aspecto organizacional, que incluem a relevância de condutas extra-laborais do trabalhador e deveres de cuidado com os interesses da organização.
Como acentua Maria do Rosário Ramalho, o dever de lealdade, nesta dimensão ampla, comporta um duplo sentido que se materializa no «envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo» e na «componente organizacional do contrato»[14].
O elemento «da pessoalidade explica que a lealdade do trabalhador no contrato seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento de pessoalidade, traduzido na lealdade pessoal, que justifica por exemplo, o relevo de condutas extra-laborais do trabalhador graves para efeito de configuração de uma situação de justa causa de despedimento, bem como o relevo da perda da confiança pessoal do empregador no trabalhador para o mesmo efeito».
Por outro lado, «a componente organizacional do contrato de trabalho justifica que o dever de lealdade do trabalhador não se cifre apenas em regras de comportamento para com a contraparte mas também na exigência de um comportamento correcto do ponto de vista dos interesses da organização»[15], dependendo, nesta segunda dimensão, o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento «do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho em concreto»[16].
Conforme refere Monteiro Fernandes, «o que pode dar-se por seguro é que o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)», sendo necessário «que a conduta do trabalhador não seja em si mesma, susceptível de destruir ou abalar tal confiança, isto é, capaz de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele», sendo certo que «este traço do dever de lealdade é tanto mais acentuado quanto mais extensa for a (eventual) delegação de poderes no trabalhador e quanto maior for a atinência das funções exercidas à realização final do interesse do empregador»[17].
O dever de lealdade dos trabalhadores assume uma particular pertinência, quando este desempenha funções de responsabilidade, caracterizadas pela administração ou gestão de interesses alheios, e que exigem uma relação de especial confiança com a empregadora[18].
(…)”

Assim, dúvidas não existem de que o comportamento do Autor, violador dos referidos deveres laborais, constitui uma infracção disciplinar que é grave, ilícita e culposa, na medida em que ao Autor era exigível um comportamento conforme aos procedimentos instituídos pela Ré e de que era capaz, dado que não se provou qualquer motivo que o tornasse incapaz de se determinar pelos mesmos.

Mas como é sabido nem todas as infracções disciplinares constituem justa causa de despedimento, pelo que resta, então, apurar se esta particular infracção disciplinar é grave ao ponto de se integrar no conceito de justa causa de despedimento, como entendeu o Tribunal a quo. 

De acordo com o nº 1 do artigo 351º do CT/2009, “Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a relação de trabalho”.

O nº 2 do mesmo artigo enuncia, a título exemplificativo, os casos que constituem justa causa de despedimento prevendo a al.a) a desobediência ilegítima às ordens dadas pelos responsáveis hierarquicamente superiores e o nº 3 estatui que “Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes”.

Como esclarece Maria do Rosário Palma Ramalho, a pags. 899 e 900 da obra citada, o conceito de justa causa exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: “um comportamento ilícito, grave, em si mesmo, ou pelas suas consequências, e culposo do trabalhador (é o elemento subjectivo da justa causa); a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral (é o elemento objectivo da justa causa); a verificação de um nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores, no sentido em que a impossibilidade de subsistência do contrato tem de decorrer, efectivamente, do comportamento do trabalhador”.

Assim, como afirma o Acórdão do STJ de 12.09.2012, in www.dgsi.pt, já na linha de anterior jurisprudência, que temos seguido de perto, “os factos integrativos do conceito de justa causa hão-de materializar um incumprimento culposo dos deveres contratuais por parte do trabalhador, numa dimensão susceptível de ser considerada como grave, quer a gravidade se concretize nos factos em si mesmos quer ocorra nas suas consequências.
Para além disso, exige-se que essa dimensão global de gravidade torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, a que a Doutrina vem chamando elemento objectivo da justa causa.
A subsistência do contrato é aferida no contexto de juízo de prognose em que se projecta o reflexo da infracção e do complexo de interesses por ela afectados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma.
(…)”
E quanto à impossibilidade de subsistência da relação de trabalho escreve António Monteiro Fernandes, na obra “Direito do Trabalho”, 16ª edição, pág. 480 “não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, gerada por factos ou circunstâncias que impeçam definitiva e irremediavelmente a prestação de trabalho e o pagamento da retribuição - como a morte do trabalhador ou do empregador ou a destruição do estabelecimento. Trata-se, essencialmente, de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença – fundamentalmente o da premência da desvinculação e o da manutenção do vínculo (...). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiem tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo”.
Ainda segundo António Monteiro Fernandes, pag.482 da mesma obra, “o que significa a referência legal à «impossibilidade prática» da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador. Nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador”.
Assim, verifica-se “impossibilidade prática de subsistência da relação laboral quando se esteja perante uma situação de quebra de confiança entre trabalhador e empregador, que seja susceptível de criar no espírito deste a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele, estando portanto o conceito de justa causa ligado à ideia de inviabilidade do vínculo contratual, correspondendo a uma crise extrema e irreversível do contrato” - Acórdão do STJ de 21 de Março de 2012, proferido na revista 196/09.6TTMAI.P1-S1- 4.ª
E de acordo com o ensinamento plasmado no Acórdão do STJ de 8.05.2012, in www.dgsi.pt, cujo entendimento também se perfilha, “no âmbito da apreciação da justa causa de despedimento, na ponderação sobre a gravidade da culpa e das suas consequências, importará considerar o entendimento de um “bonus pater familias”, de um “empregador razoável”, segundo critérios de objectividade, em função das circunstâncias de cada caso em concreto, sendo que, o apuramento da “justa causa” se corporiza, essencialmente, na impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho”.

Por fim, dispõe o nº 1 do artigo 330º do CT que “ A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infracção”, o que impede, naturalmente, que a sanção imposta ultrapasse a gravidade da infracção e a culpabilidade do infractor.

Em suma, podemos afirmar que o conceito de justa causa de despedimento corresponde a um comportamento culposo do trabalhador, violador dos seus deveres contratuais, gerador de uma crise contratual de tal modo grave e insuperável que provoca uma ruptura irreversível entre as partes contratantes de modo a não ser exigível a um empregador normal e razoável a continuação da relação laboral.

Regressando ao caso, face aos factos provados adiantamos, desde já, que o comportamento do trabalhador apesar de constituir infracção disciplinar,  grave e culposa, mesmo assim, a sua gravidade não tem a virtualidade de atingir o núcleo do conceito de justa causa.

Na verdade, não obstante o Recorrente ter consumido produtos da empregadora sem pagar ou registar como “quebras”, comportamento que poderia induzir em erro quanto ao destino daqueles produtos, a verdade é que aqueles produtos, no momento em que foram consumidos, já não podiam representar um prejuízo para a empregadora.

É certo que a justa causa não se afere pelo maior ou menor prejuízo que a conduta do trabalhador causa ao empregador mas, no caso, o próprio prejuízo é incerto, na medida em que foi a própria empregadora que estabeleceu e assumiu que, a partir das zero horas de cada dia, aquele produto não é obrigatoriamente objecto de comércio, pode eventualmente ser vendido, o que nos leva a afirmar que é diminuto o grau de lesão dos interesses da empregadora.

Mas impõe-se acrescentar que também é verdade que tal facto, só por si, não legitimava o consumo dos ditos produtos sem que fosse efectuado o respectivo pagamento uma vez que se provou que também existiam procedimentos na Ré relativamente às sobras e que não foram observados pelo Recorrente.

Porém, as particularidades deste caso e que resultam do facto incontornável que os produtos consumidos já eram “quebras”  afastam-no do caso referido no citado Acórdão do Tribunal desta Relação, tanto mais que os produtos em causa acabariam, com muita probabilidade, por ser consumidos pelos trabalhadores da Ré, ou por ser destruídos, pelo que não podemos acompanhar o entendimento de que o comportamento do Autor é susceptível de abalar a confiança que, necessariamente, deve existir entre trabalhador e empregador ou que pode criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da sua conduta, tanto mais que o Autor, à data dos factos, já trabalhava há mais de 16 anos para a Ré e não tinha antecedentes disciplinares.

E repare-se que o Autor não negou ter consumido os ditos produtos sem os pagar; sempre assumiu que os consumiu, não os pagou nem os registou. O que sempre defendeu é que esses produtos já estavam fora do prazo de validade e, por isso, já não estariam à venda.

É verdade que não se provou que os produtos estavam fora do prazo de validade, mas  também não se provou, sem mais, que ainda estavam à venda, pelo que não se pode concluir que o trabalhador deixou de ser digno de confiança porque mentiu.

Consequentemente, perante o quadro factual provado, não se pode afirmar que a manutenção desta relação laboral constituiria um sacrifício injustificado para a Ré ou para um qualquer  empregador minimamente razoável colocado na sua posição.

Por outro lado, salvo o devido respeito, a sanção de despedimento não se adequa à gravidade e à culpa do infractor, que sempre terão de ser temperadas com os mais de 16 anos que o Autor trabalha para Empregadora e com a falta de antecedentes disciplinares, excedendo-as manifestamente e violando, assim, o princípio da proporcionalidade da sanção consagrado no artigo 330º do CT.

E no rol de sanções disciplinares previstas no artigo 328º do CT, outras saltam à vista que seriam ajustadas ao caso.

Mas mais, choca ao senso comum que a conduta do Recorrente, com os contornos delineados nos factos provados-consumo de duas sandes que com muita probabilidade seriam consumidas pelos trabalhadores ou deitadas no lixo - possa integrar justa causa de despedimento.

Assim e pelo exposto, resta concluir que, contrariamente ao que decidiu a sentença recorrida, a actuação do Recorrente não se enquadra numa situação de justa causa de despedimento.
***

Tendo-se concluído pela inexistência de justa causa de despedimento, vejamos quais as consequências que daí resultam.
Em primeiro lugar, se o motivo justificativo do despedimento for declarado improcedente, como foi, o despedimento é ilícito (al.b) do artigo 381º do CT).

Sendo o despedimento ilícito, o empregador é condenado a indemnizar o trabalhador por todos os danos causados, patrimoniais e não patrimoniais e na reintegração do trabalhador no mesmo estabelecimento da empresa sem prejuízo da sua categoria e antiguidade salvo nos casos previstos nos artigos 391º e 392º (als.a) e b) do nº 1 do artigo 389º do CT).

E de acordo com o nº 1 do artigo 390º do CT, “ Sem prejuízo da indemnização prevista na alínea a) do nº 1 do artigo anterior, o trabalhador tem direito a receber as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento”.

A tais quantias acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a citação (o Autor apenas pediu juros desde a citação- nº 1 do art.609º do CPC) e até integral pagamento.

A tais quantias, porque pedido pela Ré, deverão ser deduzidos os valores a que aludem as alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 390º do CT.

Assim, o valor das denominadas retribuições intercalares e respectivos juros deverão ser apurados em incidente de liquidação.

Em substituição da reintegração, o trabalhador pode optar por uma indemnização, opção que o Autor exerceu na audiência de partes.

Nos termos do nº 1 do artigo 391º do CT, cabe ao tribunal determinar o montante da indemnização entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades, por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381º, sendo que para tal determinação o tribunal deve atender ao tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial.

Assim, tendo o Autor optado pela indemnização em substituição da reintegração cabe ao tribunal determinar o seu montante de acordo com os critérios indicados no citado artigo, a saber:
- valor da retribuição do Autor; e
- grau de ilicitude do despedimento decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381º do CT.

Quanto ao critério de cálculo desta indemnização escreve João Leal Amado na obra já citada, pag. 423: “ O nº 1 do art. 391º estabelece dois factores de ponderação, isto é, dois elementos a que o tribunal deverá atender, combinando-os, na definição do quantum indemnizatório: por um lado, deverá ser levado em conta o valor da retribuição do trabalhador (assim, para um trabalhador que aufira uma remuneração elevada, o tribunal tenderá a graduar a indemnização «em baixa», para um trabalhador que aufira um salário modesto, o tribunal tenderá a modelá-la «em alta»); por outro lado, o tribunal deverá avaliar o grau de ilicitude do despedimento, decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381º, pois sendo todos estes despedimentos ilícitos, alguns são-no mais do que outros…”

E como elucida o Acórdão do STJ de 19.2.2013, in www.dgsi.pt. cujo entendimento temos perfilhado e que embora se reporte ao artigo 439º do CT de 2003 (actual artigo 391º do CT), mantém plena actualidade, “(…) III – A indemnização substitutiva da reintegração assume feição mista (reparadora e sancionatória), devendo ser calculada em função dos parâmetros indicados no n.º 1 do citado art. 439.º (valor da retribuição vs. grau da ilicitude), sendo o primeiro (retribuição) factor de variação inversa (quanto menor for, maior deve ser o valor/ano, dentro da latitude legalmente prevista) e o segundo (ilicitude), de variação directa.”
No caso dos autos ficou provado que o Autor auferia a retribuição mensal ilíquida de € 605,00,  pelo que considerando o valor do salário mínimo nacional à data do despedimento (€ 557,00) há que afirmar que o Autor auferia uma retribuição média.

Por outro lado, o despedimento é ilícito, por o seu motivo ter sido julgado improcedente (art.381º al.b) do CT, sendo certo que perante a ordenação estabelecida neste preceito legal, tal fundamento é menos grave que o previsto na alínea que o precede.

Assim, da conjugação de uma retribuição média por um lado, com um despedimento cujo grau de ilicitude terá de ser considerado elevado face à ordem estabelecida no artigo 381º do CT, entendemos que o quantum indemnizatório deve ser fixado em 30 dias de retribuição base correspondente ao valor de €605,00 por cada ano completo ou fracção de antiguidade, como peticionado, valor a apurar em incidente de liquidação.

O Autor não alegou nem provou, nem tal resulta do documento 1 que juntou com a contestação que auferisse qualquer valor a título de diuturnidades.

A esta quantia acrescem juros de mora à taxa legal devidos desde a data da citação, conforme pedido (cfr. nº 1 do artigo 609º do CPC), até integral pagamento.

Em consequência do exposto, o recurso deverá ser julgado procedente, impondo-se a revogação da sentença recorrida.

Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal e Secção em:
(…)
- Julgar a apelação procedente e revogam a sentença recorrida;
-Julgar a acção e a reconvenção procedentes, por provadas e, em consequência, declaram a ilicitude do despedimento movido pela Ré BBB, Lda, contra o Autor AAA, por inexistência de justa causa e condenam a Ré a pagar ao Autor:
 a)- as retribuições que este deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento, às quais serão deduzidas as quantias a que aludem as als.a) e c) do artigo 390º do CT, valores a apurar em incidente de liquidação;
b)- os juros de mora à taxa legal, devidos desde a data da citação até integral pagamento;
c)- uma indemnização em substituição da reintegração, correspondente a 30 dias de retribuição base equivalente ao montante de €605,00 por cada ano completo ou fracção de antiguidade  devida desde 13 de Novembro de 2000 até à data do trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a data da citação até integral e efectivo pagamento, valor a apurar em incidente de liquidação.
Custas pela Ré.



Lisboa, 23 de Maio de 2018



Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Maria Paula Sá Fernandes