Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
790/09.5GDALM.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME EXAURIDO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1-O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrange também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. E, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
2-O tipo de crime, enquanto crime de reiteração ou exaurido, abrange a prática de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo, que se praticaram na pessoa do cônjuge, ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus tratos, físicos ou psíquicos (art° 152°/1, do CP).
3-Sendo, tipicamente, um crime de reiteração ou exaurido - e colocando-se a questão no âmbito dessa reiteração e não da exceção - que congrega condutas de natureza heterogénea, normalmente tipificadas como crimes, se individualmente consideradas, mas aqui sempre valoradas globalmente, o objeto do caso julgado não se afere considerando a materialidade de cada concreta conduta ofensiva.
4-Esse caso julgado congrega todo um leque de condutas naturalísticas, unificadas pela violação do bem jurídico tutelado, da saúde e dignidade do outro cônjuge/companheira, dentro da relação marital. É esse bem jurídico que unifica as diversas lesões produzidas, no corpo, na saúde, na dignidade e integridade da vítima e não a natureza de cada ato concreto.
5-A apreciação de uma nova conduta, temporalmente inserida no âmbito do período de tempo considerado para uma anterior condenação pelo mesmo crime, desde que individualmente susceptível de integrar o referido crime, por ser relativa a toda uma prática de humilhação, degradação e aviltamento da dignidade do cônjuge, está coberta pela proibição do ne bis in idem, que constitui a manifestação substantiva do princípio do caso julgado.
Decisão Texto Parcial:            Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa

            I- Relatório:

            Em processo comum, com intervenção do Tribunal singular, o arguido P..., casado, pintor, nascido a...., , na Guiné, filho de..... e de...., residente na Rua...., foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, do Código Penal, na pena de dezoito meses de prisão e pela prática de três crimes de violação, p. e p., cada um deles, pelo artº 164º/1, al. a), do Cód. Penal, em três penas de quatro anos de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de seis anos e seis meses de prisão.

            Mais foi condenado a pagar à ofendida/demandante S... a quantia de 10.000,00€, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde o trânsito da sentença até integral cumprimento.

            O arguido tinha sido acusado pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo artº 152º/b, do CP. Contudo, em sede de julgamento, foi-lhe comunicada uma alteração não substancial de factos por força da qual lhe foi imputada, em concurso real com o referido crime, a prática de quatro crimes de violação, p. e p., cada um deles, pelo artº 164º/1, a), e três deles também pela alínea b) do mesmo normativo.

                                                           *

            O arguido recorreu, concluindo as respectivas alegações nos termos que se transcrevem:

            (...).

            Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer.

                                                                       *

            II- Questões a decidir:

            Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso[1], excetuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso2.

            -As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:

            -Erro notório na apreciação da prova;

            -Violação do princípio in dubio pro reo;

            Violação do princípio da livre apreciação da prova;

-Desconsideração dos factos contidos nos pontos 3 e 4 do provado, por já terem sido julgados e por impossibilidade de defesa sobre eles;

            -Excesso da medida da pena aplicada, que deve ser substituída por pena que possa ser suspensa na sua execução.

                                                           *

            III-Fundamentação de facto:

1-O arguido e a ofendida S... vivem como marido e mulher desde 1998, sendo casados um com o outro desde 11 de Março de 2005.

2- Desde o início da relação que o arguido bateu na ofendida, designadamente desferindo-lhe socos na cabeça.

3-O arguido obrigava a ofendida a manter relações sexuais com ele agarrando-a, empurrando-a para cima da cama, rasgando-lhe a roupa que ela tinha vestida e mantendo com ela relações de cópula completa.

4-A ofendida sofreu um acidente e ficou com dificuldade em se colocar de cócoras, facto que o arguido conhecia. Ainda assim, o arguido obrigava a ofendida a colocar-se naquela posição para com ele manter relações sexuais.

5-Noutras ocasiões, quando a ofendida chegava a casa, o arguido, para a humilhar, metia-lhe a mão na vagina e dizia: "estás cheia de leite".

6-No dia 19 de Dezembro de 2009, cerca das 14H00, após uma ausência de cerca de 6 meses, o arguido foi a casa, sita na R..., n°..., Monte da Caparica, e aguardou pela ofendida e, logo que ela chegou, disse-lhe que queria manter relações sexuais com ela e como ela recusou, disse-lhe: "és minha mulher, a casa é minha, tenho o direito à hora que quiser" e, ato contínuo, agarrou-a, retirou-lhe a roupa que vestia e manteve com ela relações sexuais de cópula completa, contra a sua vontade.

7-Naquele mesmo dia, cerca das 19H00, o arguido disse à ofendida para ir para o quarto de ambos para, de novo, manter relações de sexo. Como a ofendida recusou, o arguido agarrou-a por um dos braços, arrastou-a para o quarto e aí colocou-se sobre ela, apoiando-se sobre os joelhos, ao mesmo tempo que dizia "hoje mato-te".

8-O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo maltratar física e psiquicamente a ofendida e querendo manter, com ela e contra a sua vontade, relações sexuais, o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.

9-O arguido foi condenado na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, pela prática, em 12/4/2009, de um crime de violência doméstica contra cônjuge. A decisão transitou em julgado em 5/7/2010.

10-O arguido actualmente não mantém qualquer contacto com a ofendida. Trabalha em Espanha.

11-Como consequência das agressões do arguido designadamente das descritas nos números 3, 4, 6 e 7 da matéria de facto assente, a ofendida sofreu muitas dores.

12-A ofendida vivia inquieta e constantemente receosa pelas atitudes do arguido, tendo receio que este a molestasse fisicamente e vivendo em constante sobressalto.

13-A demandante sentia-se humilhada e vexada com os insultos e comportamentos do arguido.

14-A filha da ofendida presenciava alguns dos comportamentos do arguido, o que a deixava envergonhada.

15-Sentia um grande sofrimento e desgosto sempre que o arguido teve relações sexuais consigo, contra a sua vontade.

16-Sentiu pânico quando o demandado lhe disse que a ia matar, acreditando que o mesmo o fizesse.

17-A descrita conduta do arguido causou-lhe um grande abalo psicológico e perdeu a capacidade de se concentrar em qualquer assunto.

18-A ofendida apresenta uma tristeza constante, chora quando recorda o assunto e vive em estado de angústia e ansiedade.

***

            Foi considerado não existirem factos não provados, com interesse para a resolução da causa.

***

IV- Fundamentação probatória:

O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:

«A convicção do Tribunal, no que respeita à decisão de facto, assentou na conjugação de toda a prova produzida em audiência, analisada à luz das regras de experiência de comum.

Em concreto.

O arguido não compareceu em audiência de julgamento pelo que, por seu intermédio, nada foi possível apurar.

A ofendida, S... prestou um depoimento claro e seguro, relatando de forma precisa e esclarecedora todos os factos, de relevo para o caso concreto, que ocorreram no período em que viveu com o arguido. A sua postura em audiência e a sua resposta, firme, sem hesitações - mas profundamente sentida - tomou o seu depoimento totalmente credível.

Acresce que tal depoimento se mostra reforçado pelo depoimento prestado pela filha, M... que, no essencial, o corrobora. Com efeito, tal testemunha vivia com a mãe, motivo pelo qual presenciou alguns dos factos descritos, sendo frequente - como relatou, de forma convicta e credível - acudir em defesa da mãe quando se apercebia que esta era molestada pelo arguido, o que ocorreu inclusivamente em situações em que ambos se encontravam no interior do quarto do casal.

Salienta-se ainda que o depoimento do filho do arguido, J..., não mereceu qualquer credibilidade. Com efeito, a testemunha que referiu já não viver com o casal em Dezembro de 2009, afirmou, de modo peremptório, que no dia 19 desse mês passou a tarde na casa deles e que nada de especial ocorreu. Questionado sobre as razões porque se recorda da data em causa - já que nada de especial aconteceu no dia em que afirma ter estado na casa do pai - não conseguiu dar qualquer resposta razoável e que fizesse qualquer tipo de sentido. Pelo contrário, o seu discurso mostrou-se sempre concentrado num único ponto (o ter estado em casa no dia em questão), não sabendo responder, ainda que de modo genérico, a qualquer questão relativa a um qualquer aspecto lateral. Acresce que, de todo o seu depoimento, resulta clara uma forte animosidade relativamente à ofendida.

Face a tais depoimentos não teve o Tribunal quaisquer dúvidas sobre a veracidade dos factos imputados ao arguido.

No que concerne aos antecedentes criminais do arguido atendeu o Tribunal ao respectivo registo junto aos autos»

***

Com relevo para a decisão do recurso há que considerar ainda que:

19-O arguido foi condenado, por sentença de 15/07/2010, transitada em julgado a 5/07/2010, no âmbito do processo n°263/09.6GDALM, do Tribunal de Almada, na pena de dois anos e três meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°/1-b), do CP, em que foi ofendida S..., na pena de dois anos de prisão pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°/1-b) e n° 2, do CP, em que foi ofendida M... e, em cúmulo jurídico, na pena única de três anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, pela prática dos seguintes factos:

«1) O arguido P... e a ofendida S..., casaram em Portugal em 2005.

2)Têm dois filhos, a M... nascida em 14.12.1988, esta mais tarde perfilhada pelo arguido e J... nascido em 10.06.1991.

3)O arguido e a S... vieram para Portugal em 1997, tendo começado a viver juntos em 1998, vivendo primeiro na Calçada da ... e depois na Rua ..., nº..., Monte da Caparica .

4)A M... veio para Portugal em Dezembro de 2004 e o J... em 2008.

5)O arguido chegou a agredir a arguida, em datas não concretamente concretizadas na casa de morada de família, com murros e pontapés, que a atingiram na cara e no corpo e causaram-lhe diversos hematomas e equimoses.

6)Por vergonha a S... não recorreu a tratamento médico e também nunca fez qualquer queixa-crime, porque o arguido lhe disse, e continua dizer, que a matava e à M... se tivesse algum problema com a polícia.

7)Para além disso, o arguido também agrediu por várias vezes a sua filha M..., desde que esta chegou a Portugal em Dezembro de 2004, há data com 16 anos .

8)O arguido tem uma personalidade implicativa e entende que nada está bem feito em casa.

9)Outras vezes, o arguido implicava por não ter dado autorização para a filha M... sair de casa, para além de exigir que a S... lhe diga onde vai quando esta sai de casa.

10)Várias vezes, quando a S... chega a casa vinda do trabalho, o arguido obriga-a a despir-se e introduz-lhe a mão na vagina e diz que esteve com outros homens.

11)Quando está em casa fecha à chave o quarto do casal, impedindo a S... de ter roupa limpa para vestir.

12)As agressões ocorrem nas alturas em que o arguido está em casa, o que devido ao seu trabalho acontece de dois em dois meses.

13)Nomeadamente, no mês de Junho/Julho de 2005, na altura das matrículas escolares, por volta da hora de Almoço, a M..., na altura com 16 anos, apresentou uns papéis de matrícula escolar ao arguido para este assinar.

14)O arguido disse que a mãe é que tratava do assunto.

15)Acontece que a M... insistiu com o arguido para que assinasse.

16)De imediato este desferiu-lhe bofetadas na cara, atingindo-a nas duas faces.

17)A conduta do arguido foi causa directa e necessária de dores na cara da M....

18)No dia 2 de Janeiro de 2009, de manhã, a S..., como sempre fez, disse ao arguido que ia a uma consulta no Centro de Saúde.

19)Nessa sequência o arguido disse se era altura para lhe contar que ia sair.

20)De seguida desferiu vários murros que atingiram a S... na cara e cabeça.

21)Ao mesmo tempo que lhe chamava "cadela" e "puta".

22)A conduta do arguido foi causa direta, necessária e adequada de dores na cara e cabeça da S....

23)No dia 12.04.2009, pelas 08h:40, na residência do casal, a M..., com 20 anos, encontrava-se a limpar a sala quando o arguido lhe disse: "eu não te avisei que não te quero na sala quando estou sentado."

24)De seguida a M... saiu do local e foi limpar a casa-de-banho.

25)Pouco depois o arguido foi à casa-de-banho agarrou a M... pelo pescoço e projectou-a por várias vezes contra a parede.

26-Ao ouvir o que se estava a passar, a S... foi em auxílio da sua filha.

27)Por forma a parar as agressões, a S... atirou um prato à cabeça do arguido.

28)De seguida fechou-se no quarto com a M...

29)Pouco depois foram chamadas as autoridades policiais.

30)A conduta do arguido foi causa directa, necessária e adequada de dores no corpo da M....

31)A S... vive com bastante medo do arguido e teme que ela concretize as suas ameaças de morte relativamente a ela e à sua filha.

32)O arguido ao agir da forma supra descrita quis molestar fisicamente a S... e a sua filha M..., intimidá-las, humilhá-las e ofendê-las na sua honra e consideração, bem sabendo que sendo sua mulher e filha ainda lhes devia especial respeito e que com o seu comportamento causava às ofendidas vergonha, humilhação, angústia e tristeza, fazendo com que vivessem deprimidas e enervadas.

33)O arguido agiu com o propósito, concretizado, de molestar o corpo da sua filha M..., indiferente ao facto de ser sua filha e lhe dever um especial respeito.

34)Agiu o arguido livre e conscientemente embora sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas pela lei criminal.

35)O arguido não tem antecedentes criminais.

36)Nos períodos em que se encontra em Espanha, trabalha na construção naval e aufere € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) mensais.

37)Paga de renda de casa € 400,00 (quatrocentos euros).

38)Tem dois filhos.

39)Tem a 4ª classe».

20- Na fundamentação da mencionada sentença verteu-se o entendimento de que «desta forma podemos concluir que o arguido com as suas condutas preencheu os elementos objectivo do tipo previsto no art° 152°, n° 1, alínea b e n° 2 do CP».

20- Neste Tribunal, em face dos termos do recurso, procedeu-se à comunicação aos intervenientes processuais de uma alteração não substancial, consistente na qualificação dos factos contidos na acusação como integrantes do tipo de crime p. e p. pela alínea a) do art° 152°/1, do CP.

                                                                       ***

V- Fundamentos de direito:

A) Do erro notório na apreciação da prova e violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo:

A questão primordial colocada pelo recorrente prende-se com o entendimento de que a prova foi mal apreciada e que se impõe que se considerem os factos que lhe foram imputados não provados sendo ele, consequentemente, absolvido dos crimes pelos quais foi condenado. Como fundamento dessa pretensão invoca que:

i)Foi abalada a credibilidade dos depoimentos da ofendida e da sua filha pelo depoimento da testemunha M... que, relativamente aos motivos pelos quais terá impedido que se consumasse a violação em curso, descrita no ponto 7 do provado, produziu um depoimento inaceitável, pois que refere que terão decorrido 10 minutos entre o momento da "eminência da violação" e a sua intervenção. Face a este depoimento, retirada a credibilidade da ofendida, não há fundamento que justifique o provado;

ii)Em face da desconsideração dos argumentos supra mencionados foi violado o princípio do in dubio que deveria ter levado à sua absolvição, por força do disposto no art° 412°/3-a) e b), do CPP;

iii)Foi violado o princípio da livre apreciação porque o recorrente entende que os factos provados deveriam ter sido considerados não provados, em face do art° 412°/3-a) e b) do CPP.

A primeira questão que se coloca é a de saber que concreto defeito jurídico o recorrente imputa à sentença recorrida, uma vez que invoca duas normas distintas, por força das quais se pode impugnar, de formas também distintas, a prova considerada para efeitos de condenação, pois se referiu, muito claramente, ao vício de erro notório na apreciação da prova mas, ainda que "em passant," acabou por trazer à colação o art° 412°/3, do CPP, que se refere à reapreciação da prova. É que a invocação de vícios e a formulação de pedido de reapreciação da prova são questões distintas, se bem que ambas ao serviço do recurso relativo à matéria de facto.

Na situação da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art° 412°/3 e 4 do CPP, a apreciação pretendida implica uma reapreciação da prova produzida e documentada, dentro dos condicionalismos legais, aí referidos; no caso da impugnação restrita, a que se reporta o art° 410°/2, do CPP, a apreciação dos vícios atem-se à letra da decisão, só por si ou conjugada com regras de experiência comum, não interferindo na análise quaisquer outros dados, ainda que resultantes do julgamento ou documentados nos autos.

No caso, não obstante a invocação da norma do art° 412°/3, não se pode entender, de modo algum, que o recorrente tenha formulado um pedido de reapreciação de prova. Não só não o enunciou, como a invocação que fez da norma que o regulamenta se encontra perfeitamente desgarrada de um qualquer pedido de atuação jurisdicional, porquanto a apresentou como decorrência de um entendimento de que se teria imposto, em sede de sentença recorrida, a absolvição por força de uma apreciação probatória diversa daquela que fez vencimento (veja-se, a título de exemplo, a formulação da conclusão 16a, supra transcrita).

Por outro lado, se o recorrente tivesse pretendido provocar uma reapreciação de facto, deveria ter ensaiado, pelo menos, o cumprimento dos ónus formais de que ela depende, nos termos do art° 412°/3 e 4, do CPP, o que não fez. Ou seja, não há fundamento algum para entender que o apelo que fez ao art° 412°/3 tenha qualquer correspondência com um efectivo pedido de reapreciação de prova. Antes pelo contrário, é muito clara a subsunção da questão que apresenta ao âmbito do erro notório na apreciação da prova.

O que o recorrente fez, ao longo de toda a motivação, foi uma pura apreciação da prova produzida com recurso a considerandos vários (no qual inclui excertos do depoimento da testemunha Maria Almedina) para chegar à conclusão de que o Tribunal valorou mal a prova, por erro notório na sua apreciação, com violação dos princípios da livre valoração e do in dubio, num erro cuja correção implica a sua absolvição. Nitidamente, invoca em benefício da sua pretensão apenas o vício de erro notório na apreciação da prova onde tem cabimento a invocação dos princípios que entende que foram violados (art° 410/2, c), do CPP).

O erro notório na apreciação da prova é o vício que tem a ver com a aptidão da fundamentação da aquisição probatória à consideração sobre se determinados factos se encontram, ou não, provados e tem que resultar, impreterivelmente, do próprio teor da sentença. Existe erro notório na apreciação da prova quando, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Ocorre o vício, quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta (3), quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de «legas artis» (4), ou quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do «in dubio» (5).

Este vício prende-se com os limites a que está sujeito o princípio da livre apreciação da prova, p. no artigo 127.°/CP, que «não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável: Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão» (6); «não deve traduzir-se em mais que não aprisionar o juiz em critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não para o isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, (...) conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto» (7).

Em processo penal figura, como critério positivo de prova de um facto, o parâmetro da prova além da presunção de inocência (8), vindo do direito processual anglo-saxónico, entendido como prova para além de toda a dúvida razoável (9). Articula-se com o princípio da livre convicção como se fossem «dois círculos concêntricos de salvaguarda que o sistema processual penal coloca em defesa do cidadão inocente de não correr o risco de ser condenado. Ambos incidem sobre o momento da valoração da prova pelo juiz; momento verdadeiramente crucial para tomar efectivo o direito individual a ver reconhecida a própria inocência, se não resulta provada a sua culpa. O primeiro círculo, com a afirmação do princípio da livre convicção (...) coloca o momento da valoração da prova a coberto dos efeitos devastadores produzidos pelo sistema precedente da prova legal (...).0 acusado, com efeito, não pode sofrer condenação em resultado do emprego de regras probatórias formais, como as que resultam do modelo aritmético da prova e tem, sem dúvida, o direito de exigir que a garantia da sua presunção de inocência seja efectivamente accionada no caso concreto colocado à valoração do juiz. Com o segundo círculo de salvaguarda, procura evitar-se que a livre valoração do juiz se transforme em arbítrio. O juiz não está sujeito a vínculos normativos externos, mas deve chegar à formação da sua convicção através do emprego de critérios racionais, próprios da lógica, da ciência e do conhecimento comum. A certeza probatória que desse modo o juiz alcança (...) [trata-se] naturalmente de uma certeza lógica, aplicada ao caso concreto e modelada segundo um itinerário argumentativo objectivamente susceptível de controlo» (10).

Funciona também como base ou pressuposto do princípio in dubio pro reu. «Ao pedir-se ao juiz, para prova dos factos, uma convicção objectivável e motivável, está-se a impedi-lo de decidir quando não tenha chegado a esse convencimento; ou seja: quando possa objectivar e motivar uma dúvida. Espera-se deste modo que a decisão convença. Convença o juiz no seu íntimo, mas contenha em si igualmente a virtualidade de convencer o arguido e, nele, a inteira comunidade jurídica (...). O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no "in dubio pro reo" o seu limite normativo: ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último. Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva.» 11).

O princípio in dubio é uma regra de decisão, que funciona na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos. Assim o impõe o processo penal da presunção de inocência, leal e respeitador da confiança legítima dos cidadãos nas decisões dos Tribunais (12). A sua aplicação desdobra-se em dois momentos: no da avaliação probatória direta, imediata, em primeira instância e em sede de efetiva reapreciação de prova, na fase de recurso, através da apreciação do processo de aquisição processual da prova fixada, na vertente da avaliação sobre a existência, ou não, de vício de erro na sua ponderação.

Numa primeira fase «o universo fáctico - de acordo com o «pro reo» passar a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para prova dos segundos se exige certeza» (13). Numa segunda fase, funciona aquando da sua aplicação em Tribunal de recurso: sempre que resulta do texto da decisão recorrida a existência de dúvida sobre factos desfavoráveis ao arguido, ou ainda que não constando, ocorra que a dúvida se instala, quando apreciado o iter cognitivo do julgador. «Entendidos, assim, objectivamente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dublo pro reo, sempre será de considerar este princípio violado quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta de uma análise e apreciação objectiva da prova produzida à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório (cfr art. 127° do CPP)» (14).

O preceituado no art° 127°/CPP deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objeto da prova tanto inclui os factos probandos (prova direta) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indireta ou indiciaria).

Significa o exposto que, neste caso, as questões colocadas de violação dos princípios da livre valoração da prova e do in dubio se apresentam como manifestações do vício invocado, de erro notório na apreciação da prova e como tal que serão analisadas.

O recorrente invoca o erro com fundamento numa pretensa afetação da credibilidade das declarações feitas pela ofendida e por sua filha, porquanto entende que a testemunha que foi apresentada, apta a corroborar essas declarações, prestou um depoimento indigno de credibilidade. A questão repercute-se em duas direções: uma, relativa à avaliação do depoimento da testemunha e outra, relativa às repercussões que esse depoimento possa ter na validade dos demais.

Quanto à aptidão probatória do depoimento da testemunha o que se pode dizer é que ele não foi usado como fundamento de aquisição probatória, pelo que qualquer análise que agora se ensaie, no sentido da sua desvalorização, é inútil. E mais inútil é se consideramos que a argumentação usada - que extravasa o domínio da literalidade da sentença e, consequentemente, nunca seria apta a produzir o vício em apreço -não teria nunca qualquer aptidão modificativa porque se reporta a uma pretensa violação, ocorrida pela ocasião dos factos referidos em 7, violação da qual o arguido não foi acusado.

Quanto à implicação desse depoimento na aptidão probatória dos demais, verifica-se que não existe. Por um lado, aquilo que o recorrente refere, de que a testemunha teria sido levada a julgamento apenas com o fito de corroborar a credibilidade dos depoimentos da ofendida e sua filha, não tem qualquer fundamento fáctico, ou seja, não passa de uma conjetura por provar. Depois, porque a avaliação probatória dos depoimentos da ofendida e da sua filha M... foi avaliada individualmente, pelo valor atribuído a cada um deles, não se revelando que a respectiva credibilidade afetável pela incredibilidade do depoimento da MA, que nem depôs quanto aos factos provados nem mereceu consideração quanto aqueles sobre os quais depôs.

Em face do exposto não se configura que a sentença recorrida, ao valorar os depoimentos da ofendida e de sua filha como valorou, tenha incorrido em vício. E, ainda em face do exposto, se explica que essa valorização não constitui violação dos princípios da livre valoração da prova e do in dublo pro reo, porque não implica dúvida alguma sobre a adequação do percurso cognitivo decisivo para a aquisição processual do provado, em face da prova produzida em julgamento e efetivamente considerada para essa aquisição e da aplicação das regras de experiência comum, nem determina dúvidas sobre a adequação da imputação dos factos ao arguido.

Aliás, analisada a sentença, não se vislumbram vícios nem nulidades de conhecimento oficioso. Improcede, na conformidade, o vício invocado.

                                               ***

B) Da desconsideração dos factos descritos nos pontos 3 e 4 do provado, por já terem sido julgados e por impossibilidade de defesa sobre eles:

O recorrente entende que todos os factos ocorridos até Abril de 2009 se encontram julgados no âmbito do processo 263/096GDALM, motivo pelo qual as atuações descritas em 3 e 4 do provado não podem ser consideradas. Mais entende que são genéricas e que por esse motivo também não podem ser consideradas.

Começando pelo fim dir-se-á que é entendimento jurisprudencial comum o de que as afirmações genéricas, não individualizadas, nomeadamente por falta da indicação do lugar, do tempo, do modo ou da motivação da prática dos factos concretos imputados como constitutivos do crime, violam os direitos de defesa do arguido, em especial o seu direito ao contraditório (15). Na verdade, se a acusação tem de conter, sob pena de nulidade, «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada», não são "factos" suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que se indica um conjunto fáctico não concretizado. Em face dos termos da acusação é claro que toda a matéria vertida para a sentença sob os pontos 2 a 5 se reporta a imputações genéricas, relativas a factos ocorridos desde 1998 que, salvo melhor leitura, terão sido vertidas para os autos apenas enquanto enquadramento dos factos, devidamente concretizados, contidos nos pontos 6 e seguintes da sentença. Repare-se que o Ministério Público acusou o arguido de um único crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°/1-b), do CP, sendo que apenas em sede de julgamento se autonomizaram desse crime quatro outros crimes de violação. Tudo leva a supor que a imputação desses factos, contidos até ao ponto 6 do provado, se reportava a toda uma vivência, que permitia a melhor compreensão dos factos concretamente imputados, descritos a seguir.

Considera-se, pois, que os factos contidos nos pontos 2 a 5 do provado constituem imputações genéricas, insuscetíveis de suportar uma condenação penal, o que leva à revogação da decisão condenatória sobre eles proferida, designadamente de dois crimes de violação que se reportam aos pontos 3 e 4 da matéria de facto, já que relativamente ao crime de violência doméstica pelo qual foi condenado ele não resultou da consideração daquela precisa matéria de facto.

Não obstante, suscita ainda o recorrente a questão de todos os factos ocorrido até abril de 2009 estarem já julgados e cobertos pela condenação proferida no processo 236/09.6GDALM, que urge analisar. A questão reporta-se evidentemente à abrangência do caso julgado aí proferido e à proibição do ne bis in idem, princípio consagrado no art° 29°/5, da CRP.

No referido processo o arguido foi condenado numa pena de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de dois crimes de violência doméstica, relativos a factos ocorridos entre 1998 e 12/04/2009, um deles na pessoa da ora ofendida e outro na pessoa de sua filha: No que concerne ao crime pelo qual foi condenado, por violência contra a ora ofendida, foi considerado que toda a conduta descrita na matéria de facto preencheu os elementos do tipo, ou seja, os limites do caso julgado hão de ter em conta que o arguido foi condenado porque «chegou a agredir a (ofendida) em datas não concretamente concretizadas na casa de morada de família, com murros e pontapés, que a atingiram na cara e no corpo e causaram-lhe diversos hematomas e equimoses» e porque no «dia 2 de Janeiro de 2009 (...) desferiu vários murros que atingiram a S... na cara e cabeça», «ao mesmo tempo que lhe chamava "cadela" e "puta"», sendo certo que era sua intenção, ao agir do modo descrito «molestar fisicamente a S... e a sua filha M..., humilhá-las e ofendê-las na sua honra e consideração».

No caso em análise, foi considerado que os factos descritos sob os pontos 2 e 5 «foram já apreciados, e alvo de decisão judicial», motivo pelo qual foram considerados fora do objeto deste processo, mas penalizou-se o arguido pela prática dos factos contidos nos pontos 3 e 4. Em face disto impõe-se averiguar se tais factos estão cobertos, ou não, pelo caso julgado formal emergente dessa outra condenação.

O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°, do CP, na sua vertente de ofensas dirigidas ao cônjuge, que é aquilo que nos interessa, no caso, é um crime que visa prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, tendo em conta a gravidade individual e social destes comportamentos e a consciencialização da sua inadequação, gravidade e perniciosidade. Entendeu-se, e bem, que não é por ocorrerem no seio e no recato da família que se podem eximir à tutela do direito penal, pois que os danos pessoais e sociais que causam são tão ou mais gravosos do que aqueles que provém da prática de atos semelhantes fora desse circunstancialismo. Contudo, a ratio do tipo não está na proteção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana, enquanto membro de um determinado agregado familiar. O âmbito punitivo deste tipo de crime abarca, pois, todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade, quer no âmbito dos maus tratos físicos, quer no dos maus tratos psíquicos, abrangendo ainda situações como as ameaças, as humilhações, as provocações, as pequenas privações de liberdade e de movimentos e as ofensas de âmbito sexual. O bem jurídico protegido é plural e complexo, visando essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrangendo também a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. Esse bem jurídico, por conseguinte, é suscetível de ser afetado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afetem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.

Ocorre que estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado, ou não.

Sendo tipicamente um crime de reiteração, em face da redação introduzida pela L. 59/2007 (que foi mantida, no que ao caso interessa, pela Lei 20/20013, de 19/2) que visou dirimir a discussão jurisprudencial sobre se um único acto podia integrar a previsão normativa, ficou expresso que o crime pode ser cometido através de uma única conduta, sem bem que isso exija naturalmente que esse comportamento violento único, pela sua gravidade intrínseca, preencha o tipo de ilícito (16). Conforme se refere na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 98/X, que esteve na origem da Lei 59/2007, «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa» (17).

Em suma, para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal da vítima, enquanto cônjuge.

No caso que nos ocupa a questão que se coloca é saber se as condutas descritas em 3 e 4 do provado estão, ou não, abrangidas pelo caso julgado emergente da condenação no processo 263/09.6GDALM., ou seja a questão não se coloca em face de um único ato delituoso, mas de um conjunto de atos que se devem considerar, ou não, abrangidos num outro conjunto, já objeto de decisão penal.

O crime de maus tratos é, doutrinalmente, o típico crime habitual ou reiterado. «Os crimes habituais implicam a repetição de actos ofensivos; essa repetição terá lugar com actos de vontade e eventos diversos. (...) É o que sucede, por exemplo, com os maus tratos. A doutrina divide-se, considerando uns que a unificação é mera imposição legal e respeita apenas à estrutura objectiva do facto; e, outros mais acertamente consideram tal repetição como significativa de uma tendência ou hábito de vontade. Não bastará então a resolução voluntária relativa a cada facto, mas que os actos da vontade provenham de uma inclinação habitual da própria vontade» (18); « Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual» (19).«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos 'reiterados". Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por "actos reiterados". (...) Apenas se pode admitir a "consumação por actos reiterados" (um crime habitual) em casos especiais - o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. (...) Como a doutrina indica, os crimes "habituais" (seja qual for o entendimento a dar à "habitualidade" do crime, o mesmo é dizer, à "reiteração" dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152°), o crime de lenocínio (art. 170°)» (20).

Sendo, tipicamente, um crime de reiteração - e colocando-se a questão no âmbito dessa reiteração e não da exceção - que congrega condutas de natureza heterogénea, normalmente tipificadas como crimes, se individualmente consideradas, mas aqui sempre valoradas globalmente, não se pode, claramente, definir o objeto do caso julgado considerando unicamente a materialidade da concreta conduta ofensiva, como faz a decisão recorrida. Aí, nitidamente, o critério do julgador foi destrinçar dentro do tipo de ofensas pelas quais o arguido já tinha sido condenado, aquelas que correspondiam a condutas materialmente idênticas e considerar, apenas essas, integradas no âmbito do caso julgado, autonomizando as demais. Consequentemente, considerou-se que apenas os socos e as injúrias contidas em 2 e 5 correspondiam aos murros e pontapés e às injúrias, referidos no anterior processo sob os pontos 5 e 10 do provado e autonomizou-se o resto (factos dos pontos 3 e 4).

A tutela do direito penal refere-se, normalmente, a atos isolados, dando origem a que cada ato configure um crime autónomo (art° 300/1, do CP). Mas, situações há em que, por necessidade de acorrer a circunstâncias distintas, se configuraram doutrinariamente construções tendentes a punir num mesmo crime variados atos de execução de um ou de distintos tipos consagrados. A nossa legislação acolheu algumas destas construções e designadamente, as do crime permanente, no art° 119°/2 - a), do CP); do crime continuado, nos art°s 119°/ 2- b), 30°/2 e 3, e 79°, do CP; do crime habitual, no art° 119°/ 2 b), do CP, bem como do crime que se consuma por atos sucessivos ou reiterados, no art° 19°, n° 3, do CPP também designado, doutrinariamente, por crime prolongado, de trato sucessivo ou exaurido.

Quando os crimes envolvem uma repetitividade no tempo que se transforma em "atividade" do agente, em que a contagem dos atos se toma impossível ou inútil pela gravidade que distingue o conjunto da soma dos atos, doutrina e jurisprudência falam em crime prolongado, de trato sucessivo ou exaurido, na  medida em que englobam num único crime uma diversidade de condutas (que isoladamente constituiriam crime) crime esse em que à medida que os atos se repetem, numa unidade resolutiva (que não é uma unidade de resolução) se agrava a culpa do agente. A uma pluralidade de ações, compreendidas dentro de um determinado limite temporal e correspondendo, cada uma delas, a uma nova resolução criminosa, ainda que em tudo semelhante à anterior, faz-se corresponder um único crime, que se consuma nos primeiros atos subsumíveis ao tipo (ou até através de simples atos de execução, independentemente da sua correspondência à execução completa do tipo) mas que é punido pela conduta de maior gravidade penal que o integra (21).«0 crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos atos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única. Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infrações, nos termos do art.° 30.°, n.° 1, do CP» (22).

São requisitos substantivos positivos do crime exaurido a homogeneidade da conduta do agente, a sua repetição no tempo, a violação do mesmo tipo de crime ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico e, em caso de crimes contra as pessoas, a identidade da vítima. É requisito substantivo negativo a ocorrência de hiato ou hiatos significativos de tempo entre as diversas condutas, de tal forma que coloquem em crise, no âmbito da apreciação dos factos, que a repetição das condutas se deva a uma efetiva tendência ou hábito de vontade criminosa do agente. É requisito processual o facto de o tipo incriminador supor ou prever a reiteração sendo que, «contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude» (23).

Temos então por assente, que o tipo de crime da violência doméstica, enquanto crime de reiteração, abrange a prática de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo, que se praticaram na pessoa do cônjuge, ainda que de natureza diversa, desde que todos elas se tenham reportado a maus tratos, físicos ou psíquicos (art° 152°/1, do CP).

No caso dos autos temos que se prova que desde que a relação análoga à dos cônjuges se estabeleceu, no ano de 1998, e até cerca de seis meses antes de 19/12/2009, ou seja, sensivelmente até Junho de 2009 (balizas temporais estabelecidas pela conjugação dos pontos 1 e 6 do provado e pela forma verbal usada, em contraponto com a descrição de factos ocorridos após 19/12/2009) o arguido obrigava a ofendida a colocar-se de cócoras para com ele manter relações sexuais, no que tinha dificuldade e lhe causava dor (pontos 4 e 11) e obrigava-a a manter tais relações, atirando-a para cima da cama e rasgando-lhe a roupa (ponto 3). Tais factos integrariam, sem dúvida, se circunstanciados, um crime de violência doméstica, na previsão de maus tratos físicos (24) e um crime de violação. Se é certo que o crime de violação seria autonomizável, por lhe caber pena mais grave (art° 152°/1), analisada a imagem global dos fatos contidos em 4) e 11) do provado, salta à vista que eles redundavam numa prática igualmente tendente à degradação, humilhação e aviltamento da dignidade da ofendida, bens juridicamente tutelados pelo tipo da violência doméstica. A questão é a de saber se os fatos contidos em 4) e 11) estariam contidos no crime de violência doméstica pelo qual já foi condenado, na medida em que são simplesmente novos fatos relativos a uma reiteração criminosa já punida, porquanto, em aplicação do princípio do in dubio, se teria que presumir, em benefício do arguido, que terão sido cometidos no limite do período de tempo que foi considerado para a anterior condenação.

A questão, contudo, leva-nos à definição e aos limites do caso julgado material, pois que só mediante a conclusão de que o caso julgado estabelecido nessa condenação não permite semelhante entendimento seria cabida a sua punição em processo autónomo.

A lei penal e processual penal não define o caso julgado, não obstante se lhe referir em determinados preceitos. Contudo, faz parte do leque de garantias constitucionais o ne bis in idem, ou seja a impossibilidade de «ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime» (art° 29°/5, da CRP), garantia que também colhe proteção no art° 4° do Protocolo n° 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e no art° 14°/7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Esta proibição de duplo julgamento não é mais do que a manifestação da dimensão substantiva da figura do caso julgado, que na sua vertente subjetiva confere ao cidadão o direito ao ne bis in idem e, na vertente objetiva, impõe ao Estado a obrigação de conformação legislativa com esse princípio. Podemos, pois, defini-lo como o efeito processual da sentença transitada em julgado, que a torna decisiva e vinculativa e impede que o que nela se decidiu seja modificado ou atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material). A produção de efeitos, no caso julgado material, exige identidade do agente, do crime e da vítima.

A questão decisiva, no caso, é saber o que se entende por identidade do crime.

Dúvidas não restam que a identidade ocorre quando os factos naturalísticos são rigorosamente os mesmos, ainda que sujeitos a subsunção jurídica distinta. Ultrapassada a pureza das correntes naturalística e normativa, entende-se hoje que o «facto é, antes do mais, o facto natural, no sentido de facto histórico que as provas vão reconstruir. Obviamente, que o facto natural é recolhido para o processo na medida em que tenha relevância jurídico-penal, e só nessa medida, mas isso não implica que perca a sua natureza ontológica, relativa ao domínio do ser, e se transforme para o processo só em algo atinente ao mundo dos valores. O facto terá, antes, uma natureza ambivalente, na medida em que existe como facto histórico dentro e fora do processo, mas transitou para o processo, porque passou a valer como violação jurídico-penal. Assim, o objecto do processo mais não é do que uma realidade histórica que se pretende ver valorada por normas jurídico-penais» (25); «para a determinação de identidade de facto, é a nosso ver imprescindível considerar o seu significado jurídico. Os processos de subsumpção são um caminho de ida e volta, em que se transita da informação fáctica à norma jurídica e desta aos factos outra vez. Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em temos gerais - e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível -, então deve operar o princípio ne bis in idem". Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal»

            Transposta a teoria para o caso concreto, temos que o crime de violência doméstica, pelo qual o arguido havia sido condenado, congrega todo um leque de condutas naturalístícas, unificadas pela violação do bem jurídico tutelado, da saúde e dignidade do outro cônjuge/companheira, dentro da relação marital. É esse bem jurídico que unifica as diversas lesões produzidas, no corpo, na saúde, na dignidade e integridade da vítima e não a natureza de cada ato concreto. O crime é muito mais que uma soma de ofensas corporais - «as condutas que integram os respectivos tipos-norma não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos (lei antiga) ou violência doméstica (lei nova)» (27).

E, em face do exposto, considerando que a nova atuação do arguido, aqui descrita, se integra no período de tempo que foi considerado para a anterior condenação, outra solução não resta do que a conclusão de que também os factos contidos em 4 se encontram abrangidos pelo caso julgado material constituído pelo trânsito em julgado da anterior sentença, se bem que relativos a factos naturalisticamente aí não considerados, mas que mais não são do que novos factos, integrados no âmbito de um único crime reiterado ou exaurido. A sua consideração neste processo viola, claramente, o princípio do ne bis in idem.

Tem, pois, razão o recorrente ao pugnar pela impossibilidade de consideração, no âmbito deste processo, de toda a factualidade contida nos pontos 2 a 5.

***

C- Do excesso da medida da pena aplicada, que deve ser substituída por pena que possa ser suspensa na sua execução.

            Em face do exposto, impõe-se a reavaliação do enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.

            Afastada a consideração dos factos contidos nos pontos 2 a 5 do provado, resta-nos a apreciação dos factos descritos em 6, 7, 8 e 11 a 18. Tendo sido deduzida acusação pelo crime de violência doméstica, foi autonomizado um crime de violação, com reporte aos factos contidos em 6 do provado, o que se mostra juridicamente adequado, pois que o crime de violência doméstica encontra-se numa relação de subsidiariedade expressa com os crimes puníveis com pena mais grave do que a prisão até 5 anos (art° 152°/1, in fine).

Ainda que confinada a factualidade relativa ao crime de violência doméstica a um único ato, dúvidas não temos de que em face do seu enquadramento naquilo que foi a vivência do casal, descrita nos pontos 2 a 5, ele mais não foi do que uma manifestação dos maus tratos, físicos e psíquicos, que o arguido não se coibiu de voltar a aplicar à sua mulher, depois de um hiato temporal de cerca de seis meses, portanto em situação de disrupção com aqueles que foram considerados na anterior sentença. A nova conduta revela o especial desvalor da ação, pressuposto pelo crime de violência doméstica, pelo que integra a previsão objetiva do tipo.

            Temos assim que o comportamento do arguido integra a prática, em autoria material e concurso real, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°/1-a, do CP e de um crime de violação, p. e p. pelo art° 164°/1-a), do mesmo diploma. Refira-se, que não obstante a acusação ter sido deduzida pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°/1-b), o facto que subsume o crime à previsão da alínea a) - o casamento- consta dessa própria acusação e constitui um menos relativamente à factualidade descrita que implicava a consideração de dois períodos -de vivência em comum e de casamento - tendo sido aceite pelo arguido, em face da posição que assumiu face à comunicação que lhe foi feita.

            O arguido havia sido condenado em penas de 18 meses pelo crime de violência doméstica e em quatro anos por cada um dos crimes de violação.

Os considerandos vertidos na sentença recorrida relativos à reiteração das violações são inadequados porque, afinal, está em causa um único crime.

De qualquer modo, considerada a factualidade vertida nos pontos 2 a 5 - que não podendo ser objeto de incriminação autónoma, é relevante para a perceção imagem global dos factos - manifesta-se um grau de ilicitude elevado na prática de ambos os crimes. Em lugar de perceber o sofrimento que vinha causando na pessoa da sua mulher, a quem deve respeito e consideração, o arguido renovou a sua atuação delituosa ao primeiro contacto, após seis meses de ausência. Agiu com dolo direto. O despudor do arguido foi ao ponto de permitir que a filha de ambos presenciasse as agressões que infligia à mãe.

O arguido trabalha em Espanha.

No caso, são relevantes as necessidades de prevenção geral, atenta a frequência com que este tipo de crime vem sendo cometido e a danosidade social que acarreta. Por outro lado, especialmente relevantes são ainda as necessidade de prevenção especial, porque não obstante se ter dado como provado que o arguido atualmente não mantém contacto com a ofendida, isso não significa que, regressado de Espanha, não a volte a procurar e a ofender, da forma como tem vindo a fazer.

Nos termos do art° 40°/CP, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n° 1), sendo que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n° 2). Por força do art° 710/ CP, «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, influam na ilicitude do facto (art° 71°/2, a)), na culpa do agente (alíneas b) e c) do mesmo normativo) e na necessidade de pena (alíneas d), e) e 0).

Ao definir a pena, o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido para, adequadamente, determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, ou seja, a medida correspondente à culpa manifestada. Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é "merecido" não é algo preciso, resultante de uma conceção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo para a estabilização da consciência jurídica geral (28).

Limitando-se, a pena, pela medida da culpabilidade, mas visando fins de prevenção especial e geral, ela fixar-se-á abaixo do limite máximo, se assim for exigido pelas necessidades especiais e, a essa diminuição, não se opuserem as exigências mínimas preventivas gerais (29). O seu limite mínimo é, portanto, dado pelo quantum da pena que, em concreto, ainda realize eficazmente a proteção dos bens jurídicos visados. Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para dar resposta às necessidades da reintegração social do agente. Ou seja, a culpa estabelece o máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar. A moldura de prevenção, por sua vez, é definida entre o limiar mínimo - abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias - e a medida máxima e ótima de tutela dos bens jurídicos e das mencionadas expectativas. Dentro desses limites, relevam as exigências de prevenção especial de socialização, visando atingir a desmotivação adequada para evitar a recidiva por parte do agente, bem como a sua ressocialização (30).

Dito de outro modo: a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo (31).

Na sub-moldura da prevenção geral pesa a importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença coletiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva. Prevenção significa proteção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (32).

Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.

Resumindo: porque na fixação da pena concreta se cuida da proteção de bens jurídicos, ela deva ser determinada - dentro de uma moldura de culpa, limitada por necessidades de prevenção geral positiva - em função das exigências de prevenção especial ou de socialização do agente.

Em face do exposto e do provado, e estando este Tribunal limitado pela proibição de reformatio in pejus, condena-se o arguido na pena de dezoito meses de prisão, pelo crime de violência doméstica e na pena de quatro anos de prisão, pelo crime de violação.

Em cúmulo jurídico, e tendo em conta a personalidade perversa revelada pelo arguido no conjunto dos factos cometidos (art° 77°/1, do CP), entende-se adequada a pena de quatro anos e dez meses de prisão.

Pretende o recorrente a suspensão da execução da pena de prisão.

Para aplicação desta pena de substituição é condição que o julgador se convença, face ao facto e ao agente, de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delituosas (33), atingindo as finalidades da proteção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (art° 500/1, do CP). A este juízo de prognose é essencial a consideração da personalidade do agente, das suas condições de vida, da conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias que rodearam o crime. Não são considerações de culpa que devem ser atendidas, mas juízos sobre o modo como o arguido se irá comportar em liberdade, considerando a sua personalidade, as suas condições de vida, o seu comportamento e as demais circunstâncias do caso, tudo determinando que o juízo de prognose do julgador seja favorável à suspensão, por esta se revelar adequada e suficiente. É certo que o Tribunal corre um risco, porque a decisão de suspender não assenta em certezas, mas trata-se de um risco calculado, prudente, porque a perspetiva no momento da decisão é, tem que ser, positiva.

No caso é indubitável a existência do pressuposto formal, uma vez que o arguido vai condenado na pena de quatro anos e dez meses de prisão.

Quanto ao pressuposto material, há que considerar que o arguido praticou os factos no âmbito de uma vivência conjugal que, pressupostamente, cessou, na medida em que se prova de não mantém contactos com a ofendida. Essa falta de contacto entre os dois, no momento, não significa, como já se referiu, que o arguido, a qualquer momento, não reapareça e volte a delinquir, mas isso também depende, seguramente, das precauções que a ofendida queria tomar para o evitar. Neste contexto, entende-se que a execução da pena de prisão não se impõe, bastando-se aos fins de prevenção da prática de futuros crimes, a ameaça de pena, motivo pelo qual se suspende a sua execução por período igual ao da pena aplicada (art° 500/5, do CP).

A prática deste tipo de criminalidade resulta, normalmente, de características da personalidade, sendo que os agentes beneficiam largamente da sujeição a tratamento psicológico, ou mesmo psiquiátrico. Isto leva a que seja, em tudo, aconselhável fazer acompanhar a suspensão das penas aplicadas à aplicação da pena acessória de frequência de programas específicos de prevenção (art° 152°/4, do CP). Contudo, uma vez que o arguido se encontra a trabalhar em Espanha, resulta inútil a aplicação dessa pena, porque é infiscalizável.

Aplica-se, no entanto, a pena acessória de proibição de contactos com a vítima, que se revela condição essencial à prevenção da prática de futuros crimes e, bem assim, à pacificação dos intervenientes. Em face da alteração levada a efeito pela Lei 20/2013 ao n° 5 do art° 152°/CP tal pena acessória implica o afastamento da residência e local de trabalho da ofendida e a fiscalização que for considerada adequada, através de meios técnicos de controlo à distância.

O presente recurso não abrangeu a condenação em indemnização civil, motivo pelo qual esta não é aqui apreciada.

Em resumo:

1-O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrange também a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. E, por conseguinte, é suscetível de ser afetado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afetem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.

2-O tipo de crime, enquanto crime de reiteração ou exaurido, abrange a prática de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo, que se praticaram na pessoa do cônjuge, ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus tratos, físicos ou psíquicos (art° 152°/1, do CP).

3-Sendo, tipicamente, um crime de reiteração ou exaurido - e colocando-se a questão no âmbito dessa reiteração e não da exceção — que congrega condutas de natureza heterogénea, normalmente tipificadas como crimes, se individualmente consideradas, mas aqui sempre valoradas globalmente, o objeto do caso julgado não se afere considerando a materialidade de cada concreta conduta ofensiva.

4-Esse caso julgado congrega todo um leque de condutas naturalísticas, unificadas pela violação do bem jurídico tutelado, da saúde e dignidade do outro cônjuge/companheira, dentro da relação marital. É esse bem jurídico que unifica as diversas lesões produzidas, no corpo, na saúde, na dignidade e integridade da vítima e não a natureza de cada ato concreto.

5-A apreciação de uma nova conduta, temporalmente inserida no âmbito do período de tempo considerado para um anterior condenação pelo mesmo crime, desde que individualmente susceptível de integrar o referido crime, por ser relativa a toda uma prática de humilhação, degradação e aviltamento da dignidade do cônjuge, está coberta pela proibição do ne bis in idem, que constitui a manifestação substantiva do princípio do caso julgado.

                                                *

VI- Decisão:

Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida e em:

a)Absolver o arguido da prática de três dos crimes de violação que lhe foram imputados, tendo em conta a alteração não substancial de factos que foi levada a efeito em sede de audiência de julgamento;

b)Condenar o arguido pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de violência doméstica, p. pelo art° 152°/1-a), do CP, na pena de dezoito meses de prisão e pela prática de um crime de violação, p. e p. pelo art° 164°/1, al. a), do CP, na pena quatro anos de prisão;

c)Condenar o arguido na pena única de quatro anos e dez meses de prisão;

d)Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, S..., pelo período de quatro anos e dez meses, o que implica o afastamento da sua residência e local de trabalho, devendo operar-se a fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância, a regulamentar no Tribunal recorrido;

e)Suspender a execução da pena de prisão (e apenas desta) pelo período de quatro anos e dez meses.

Pelo presente recurso não são devidas custas.

                                                           *

                                                                                  Lisboa, 17/04/2013

                                                                                  Maria da Graça dos santos Silva

                                                                                   Ana Paula Grandvaux                              

1.Cf.Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, III, 2ª edição, 2000, pág 335, e Acs. do STJ de 13/5/1998, em BMJ 477º, 263, de 25/6/1998, em BMJ 478º-242 e de 3/2/199, em BMJ477º-271.

2.Cf. Arts. 402º, 403º/1 e 412º do CPP e Ac do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR,I-A Série, de 28/12/1995.

3 .Cf. Ac. do STJ, de 24.03.2004, proferido no processo n°.03P4043, em www.dgsi.pt

4 .Cf. AC RP de 2/2/2005, no proc. 0413844; da R.G, de 27/6/2005, no proc. 895/05-1°.

5 .CF ac. STJ 3/3/99, proc. 98P930, da RG. de 27/4/2006, proc. 625/06.

6.CrfAc. TC nº1165/96 e 464/97.

7 Cf. Eduardo Correia, em «Les Preuves en Droit Penal Portugais», na RDES, XIV, Janeiro-Junho/ 1967,1-2, 29.

8 Colhido pela CRP — art° 32°12- e pelo CEDH — art° 6°§2.

9 «Proof beyond any reasonable doubt, ou guilt beyond any reasonable doubt».

10 Cf. Enzo Zappalà, em AAVV, «ll Libero Convincimento Del Giudiuce Penale. Vechie e Nouve Esperienze», Milano — Dott. A. Guiffrè Editore, 2004, 117, citado no AC.RE., n° 2457/06-1, de 30/01/2007, em www,clgsi.pt.

11 Cf. Cristina Líbano Monteiro, em «Perigosidade de lnimputáveis e «In Dublo Pro Reo» Coimbra Editora, 1997, 51-53.

12 Cf. acs do TC, n° 429/95,39/2004,44/2004,159/2004 e 722/2004.

13 Cf. Cristina Líbano Monteiro, obra citada, 53.

14 CF. AC. da RE., 2457/06-1, de 30/01/2007, em www.dgsi.pt.

15 Cf. Acs do STJ de 2004/6/05 no proc. 04P908, de 2007/02/21 no proc. 06P4341, da R.E., no processo n° 134/10.3GCABF.E1, de 8/1/2013,

16 Cf Maria Elisabete Ferreira, em «Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal», Almedina, 2005, págs. 106/107 e A. do STJ de 24/4/2006, no proc. 06P975, em www.dgsi.pt/.

17 Cf Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.° 10, de 18/10/2006.

18 Cf. Cavaleiro Ferreira em «Direito Penal Português» l, 269, Sociedade Cientifica da Universidade Católia Portuguesa,Verbo, 1981.

19 Cf. Figueiredo Dias em «Direito Penal», oarte geral, tomo I, 2a edí. Coimbra Editora, 314.

20 Cf. Lobo Moutinho, em «Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português», página 620, nota 1854, citado no voto de vencido do ac. do STJ n° 862/11.6TAPFR.S1, em www.dgsi.pt.

21 Cf. entre o mais, Eduardo Correia, 1968:201 e 202, Ac STJ de 29/11/2012, no proc. 862/11.6TAPFR.S1; de 23/01/2008, no proc. 4830/07-3';

22. Cf Ac. do STJ de 12-07-2006, proc. 1709/06-3'

23 .Cf. Ac. do STJ de 23-01-2008, proc. n.° 4830/07-3'

24 Salvo melhor entendimento, o que se diz no ponto 3 não é que o arguido obrigasse a ofendida a manter relações sexuais consigo contra sua vontade ou que usasse de violência para conseguir tais relações, mas apenas que durante as relações a obrigava a posições que lhe eram difíceis, necessariamente por lhe causarem dor. Tais factos não são suscetíveis de integrar um crime de violação, porque a violência não era exercida para obter as relações mas no decurso das relações.

25 Souto Moura, citado no ac. da R.Lx, de 08/11/2011, no processo 5752/09.0TDLSB.L1-5

26 Ac R. Lx. De 13/04/2011, no proc. 250/06.6PCLRS.L1-3

27 Cf. Ac. da Rel. de Coimbra de 15/12/2010, no proc. 512/09.0PBAVR.C1.

28 Cf. Claus Roxin, em «Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal» (tradução de Muñoz Conde - 1981), 96/98.

29 Cf. «Derecho Penal- Parte General», I, (tradução da 2' edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), 99/101 e 103.

30 Cf. Figueiredo Dias, em «As consequências jurídicas do crime», 1993,238 e ss.

31 Aí se radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo c caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.

32 Cf Figueiredo Dias, «Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», 227 e segs.

33 Cf. ac. STJ supra citado.


[1]


Decisão Texto Integral: