Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
527/11.9PLSNT-A.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROCESSO URGENTE
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PRAZO PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - O tribunal tem o dever de dar conhecimento à queixosa, que se pretendia constituir assistente, de que o processo foi classificado como urgente, face à relevância do mesmo para o futuro desenrolar do mesmo, o qual interferia directamente com o exercício dos seus direitos processuais, bem como devia ter alertado a pessoa a notificar de que o prazo concedido corria em férias face à natureza urgente do processo.

II - É, no mínimo, excessivo e desproporcionado fazer recair sobre a requerente o aludido ónus ou exigir-lhe que adivinhasse a qualificação jurídica dos factos denunciados, provisoriamente operada pelo MP, ou ainda que ao processo tinha sido atribuída natureza urgente em consequência daquela subsunção, com a agravante de se estar a cercear, de modo definitivo, um direito essencial da ofendida, impedindo-a, de forma irremediável, de dar continuidade ao procedimento iniciado com a queixa oportunamente apresentada.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

1— Relatório

Na sequência de notificação ordenada, para o efeito, pelo Ministério Público, no decurso do inquérito supra identificado, A..., na qualidade de representante legal da menor C..., requereu a sua constituição como assistente.

No exercício do respectivo contraditório, o MP opôs-se ao pedido, considerando-o intempestivo.

Por despacho judicial de 2/10/2014, foi aquele pedido indeferido, com a seguinte fundamentação:

«A... foi notificada, na qualidade de representante legal da menor C..., para, no prazo de 10 dias, se constituir assistente, por carta enviada via postal simples com prova de depósito, como impõe o art.° 68.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, por estar em causa crime de natureza particular.

Tal carta foi depositada no dia 18 de Julho de 2014 (fls. 263), considerando-se a notificação efectuada no dia 23 de Julho de 2014 (art.° 113.°, n.° 3, do Código de Processo Penal).

O presente processo tem natureza urgente, pelo que os prazos a ele relativos correm em férias - cfr. art° 28° da Lei n.° 112/09, de 19.09.

O mencionado prazo de 10 dias de que A... Amaral dispunha para requerer a sua constituição como assistente quanto ao crime de natureza particular terminava, portanto, no dia 04 de Agosto de 2014.

 

A... Amaral apenas requereu a sua constituição como assistente, na qualidade de representante legal da menor C..., no dia 11 de Agosto de 2014 (fls. 264).

Assim, relativamente ao crime com natureza particular, não admito a sua

constituição como assistente por extemporaneidade. Notifique.

Não se conformando com a decisão, a requerente A…interpôs o presente recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões:

1. Da notificação para a constituição, depositada em 18-07-2014 e efetuada a 23 de Julho de 2014, nada se deduz quanto àquela natureza urgente do processo;

Não é exigível que, dos factos indiciados, deva a Recorrente deduzir que o processo de inquérito iria revestir a natureza urgente;

3.      Não é legítimo invocar a eventual consulta dos autos por parte da Recorrente para apuramento da sua natureza urgente;

4.      A qualificação jurídica dos factos apurados, em sede de inquérito, cabe ao Ministério Público que tem a sua direção;

5.      Até à notificação do despacho recorrido - porque sobre tal nunca foi notificada ¬não sabia, nem tinha como saber a Recorrente, que o processo de inquérito tinha a natureza urgente;

6.      Deveria a secretaria ter notificado a Recorrente da qualificação de natureza urgente que atribuiu ao processo;

7.     Não tendo ocorrido notificação informando a Recorrente da natureza urgente do inquérito não pode Tribunal a quo fundamentar a decisão recorrida na extemporaneidade do requerimento de constituição de assistente da Recorrente;

Nestes termos e nos mais de Direito que por V/Ex.'s doutamente serão supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso, por provado, e, em consequéncia, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, tendo em conta o supra exposto, o altere, admitindo-se a intervenção da Recorrente como assistente em representação da menor Chanelie Pinheiro.»

Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, concluindo do seguinte modo:

1.      A recorrente requereu a constituição como assistente como legal representante da sua filha menor, sendo o mesmo extemporâneo.

2.      A... foi devidamente notificada, na qualidade de representante legal da menor C..., para, no prazo de 10 dias, se constituir assistente, por carta enviada através de via postal simples com prova de depósito, como previsto no disposto no artigo 68°, n° 2 do Código de Processo Penal, por estar em causa, entre outros, um crime de natureza particular.

3.      A referida carta foi depositada devidamente no dia 18.07.2014 cfr. fls. 263, considerando-se notificada no dia 23.07.2014, nos termos do disposto no artigo 113°, n° 3 do Código de Processo Penal.

4.      Atendendo ao disposto no artigo 28°, n.°1 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, este processo assumiu natureza urgente - artigo 103° do Código de Processo Penal, o que quer dizer que os prazos a ele respectivos correm em férias, nos termos do disposto no artigo 28° da supra citada lei.

5.     Nesta conformidade, a investigação dos factos denunciados, nos autos, assumem natureza prioritária.

6.      Ora, o mencionado prazo de 10 dias, de que a recorrente dispunha para requerer a constituição como assistente em representação da sua filha, quanto ao crime de natureza particular terminava, no dia 4.08.2014.

7.     A recorrente apenas requereu a constituição como assistente, na qualidade de representante legal de C..., no dia 11.08.2014 - cfr. fls. 264.

8.      O mandatário da recorrente, tendo junto aos autos procuração a fls. 236, em 12 de Maio de 2014, tendo o mesmo estado presente aquando da inquirição da representante legal da menor, não se compreende como vem invocar a falta de conhecimento da natureza do crime em causa.

9.     A secretaria não tem que notificar a recorrente da qualificação jurídica dos autos, aliás os técnicos de direito, têm o dever e obrigação profissional de consultar os autos, uma vez que os mesmos não estão sujeitos a segredo de justiça, a fim de representar e pugnar pelos interesses de quem representa.

10.    Assim, dúvidas não restam, que não assiste razão à ora recorrente.

Termos em que deverá ser mantida a douta decisão recorrida, julgando-se manifestamente improcedente o recurso interposto pela recorrente.

Subiram os autos a esta Relação, tendo a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer concordante com aquela resposta, pugnando pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no art. 417.°, n.° 2 do CPP, a recorrente veio, mais uma vez, defender o seu ponto de vista, enfatizando que desconhecia a natureza urgente do processo, pois nunca lhe foi dado conhecimento desse facto, nem foi notificada do correspondente despacho, nem na notificação que lhe foi feita para se constituir assistente vem mencionada tal natureza ou de que o prazo corria em férias judiciais. Proferido despacho preliminar e obtidos os vistos legais, teve lugar a conferência, cumprindo decidir.

***

11— FUNDAMENTAÇÃO

1.      Perante as conclusões formuladas pela recorrente - as quais, como vem sendo recorrentemente afirmado, delimitam e fixam o objecto do recurso -, extrai-se que a questão colocada a este tribunal de recurso é a de saber se o pedido de constituição de assistente por aquela formulado é tempestivo ou se, pelo contrário, foi apresentado fora de prazo.

2.      Conhecendo do objecto do recurso:

No decurso do inquérito cuja investigação tinha por objecto factos de que teria sido vítima a ora recorrente A..., esta apresentou mais tarde nova queixa, contra o mesmo arguido, denunciando factos susceptíveis de integrarem a prática, segundo o MP, de um crime de injúria cometido contra a menor C..., filha de ambos.

Trata-se de crime de natureza particular, pelo que o respectivo procedimento criminal depende de acusação particular da ofendida — a menor C... - ou de quem a represente, sendo obrigatória a apresentação de queixa, a constituição de assistente e a dedução de acusação por parte daquela, sob pena de ilegitimidade do MP, conforme exigido pelo art. 50.°, do CPP (diploma a que pertencem todas as normas a seguir citadas, se outra menção as não acompanhar),

Por isso, logo que apresentada a respectiva queixa, o MP ordenou a notificação da ofendida para, em dez dias, se constituir assistente, ao abrigo do art. 68.°, n.° 2, sendo certo que, sobre esta matéria foi fixada jurisprudência pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 1/2011. D.R. n.° 18 Série I de 2011-01-26, no sentido de que «em procedimento dependente de acusação particular, o direito constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito no prazo fixado no n.° 2 do artigo 68.° do Código de Processo Penal».

Expedida a respectiva carta para notificação em 15/7/2014, foi depositada na caixa postal em 18/7/2014 (fls. 6 e 7), considerando-se feita a notificação no 5.° dia posterior, conforme resulta do texto da própria carta, ou seja em 23/7/2014.

A recorrente requereu a constituição de assistente, em representação da filha menor C..., no dia 12/8/2014.

Segundo o art. 103.°, n.° 1, os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente e fora do período de férias judiciais, exceptuando-se os actos processuais identificados no n.° 2, relativos a arguidos detidos ou presos, ou ainda os actos considerados urgentes em legislação especial, entre outros.

O procedimento por crime de injúria a particular não tem carácter urgente, nem há detidos à ordem do presente processo.

Por isso, em condições normais, o respectivo prazo suspender-se-ia no período de férias judicias de verão, ou seja até ao dia 31/8, começando a correr apenas em 1/9/2014 (primeiro dia após férias). Nessa perspectiva, que é a defendida pela recorrente, o seu requerimento estaria manifestamente em tempo.

Todavia, entendeu o tibunal recorrido, no seguimento do promovido pelo MP, que o prazo de dez dias concedido à ofendida corria em férias, por se tratar de processo urgente, ao abrigo do art. 28.°, da Lei n.° 112/2009, de 16/9, cuja redacção é a seguinte:

«Celeridade processual

1 — Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.

 

2 — A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.° 2 do artigo 103.° do Código de Processo Penai.»

O fundamento para aplicação desta norma ao presente incidente de constituição de assistente decorre do seguinte:

- A ora recorrente A... havia apresentado urna primeira queixa contra o mesmo arguido, por injúrias e ameaças de que ela própria foi vítima, queixou-se ainda de injúrias e ofensas à integridade física levadas a cabo pelo arguido na pessoa da sobrinha N…, de 15 anos de idade, bem como de agressões (chapadas e palmadas) à filha menor.

- Após as declarações por aquela prestadas no processo, o MP proferiu despacho (em 21/5/2012 – fls. 4), no qual considerou que os factos denunciados poderiam integrar a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica – art. 152.°, do CP –, atribuindo ao processo carácter urgente, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 28.°, da Lei n.° 112/2009, de 16/9 e 103.°, do CPP.

Não consta dos autos que de tal despacho tenha sido dado conhecimento à queixosa.

Do teor da notificação que a esta foi endereçada para se constituir assistente pelo crime de injúria de que é ofendida a menor C... – crime que mantém autonomia relativamente à violência doméstica em que foi integrada a demais factualidade denunciada e de que é ofendida a queixosa A..., pois, de outra forma não se justificaria a notificação ordenada – também nada se refere quanto ao caracter urgente do processo, ou de que o prazo concedido corria em férias.

Para o efeito não é despiciendo o facto de estarmos perante duas realidades distintas: uma, a queixa da ofendida A..., em nome próprio, pelos crimes de que pessoalmente foi vítima; a outra, a queixa posteriormente apresentada pela mesma pessoa, mas em representação da filha menor C..., por factos de que esta é ofendida. É por estes factos e só por eles que se exige a constituição de assistente, por parte desta ofendida. Sendo menor, terá de intervir no processo através de representante legal, no caso a mãe, em procedimento movido contra o pai.

Se à ordem do processo não havia arguidos detidos e nenhum dos crimes denunciados, individualmente considerados, nomeadamente aquele pelo qual se justificava a constituição de assistente, implicava a classificação do processo como urgente, e se não foi dado conhecimento, à requerente, da decisão do MP em que este - numa fase inicial do processo e sem que tivesse sido deduzida acusação pelos factos denunciados - admite a possibilidade de se estar perante um crime de violência doméstica de que foi vítima a queixosa A..., não se pode exigir a esta que tivesse agido, em representação da menor C..., como se tivesse conhecimento daquela decisão do titular do inquérito.

Como já mencionámos supra, a requerente não foi notificada de tal despacho que classificou o processo como urgente, nem na notificação que lhe foi feita para se constituir assistente se deduz que se trata de processo urgente ou que o prazo concedido corria em férias.

E não se argumente que a recorrente é que tinha a obrigação de ir consultar o processo, para se informar da eventual natureza urgente deste. Por essa linha de pensamento, ninguém precisava de ser notificado de qualquer acto processual e passava a colmatar-se a falta dessa notificação com o ónus de a parte ter de consultar o processo sempre que nele tivesse de intervir ou se quisesse estar a par do desenrolar do mesmo, o que atenta contra os mais elementares princípios do processo penal.

Consideramos que é, no mínimo, excessivo e desproporcionado fazer recair sobre a requerente o aludido ónus ou exigir-lhe que adivinhasse a qualificação jurídica dos factos denunciados, provisoriamente operada pelo MP, ou ainda que ao processo tinha sido atribuída natureza urgente em consequência daquela subsunção, com a agravante de se estar a cercear, de modo definitivo, um direito essencial da ofendida, impedindo-a, de forma irremediável, de dar continuidade ao procedimento iniciado com a queixa oportunamente apresentada.

O tribunal é que tinha o dever de dar conhecimento daquele facto à queixosa, face à relevância do mesmo para o futuro desenrolar do processo, o qual interferia directamente com o exercício dos seus direitos processuais, bem como devia ter alertado a pessoa a notificar de que o prazo concedido corria em férias face à natureza urgente do processo.

Tendo a recorrente agido no total desconhecimento, que lhe não é imputável, da decisão proferida no processo que constitui fundamento da rejeição do seu pedido de constituição de assistente, ter-se-á de considerar tempestivo tal pedido.

Procedendo, por isso, o presente recurso.

III — DECISÃO:

Em conformidade com o exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que considere tempestivo o pedido de constituição de assistente formulado pela recorrente.

Sem custas, por não serem devidas.

(Elaborado em computador e revisto pelo relator)

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2015

José Adriano

Vieira Lamim