Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5435/20.0T8LSB-B.L1-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: EXECUÇÃO
SUSPENSÃO
PRESTAÇÃO ESPONTÂNEA DE CAUÇÃO
LEVANTAMENTO DA PENHORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A actividade desenvolvida no âmbito da acção executiva deve pautar-se pelo princípio da proporcionalidade, do qual decorre que na execução não devem ser impostos ao executado, maiores encargos do que aqueles que se mostrem indispensáveis ao respectivo fim, isto é, a obtenção da satisfação do direito do credor.
2. Prestada caução julgada idónea para a suspensão da execução, cujo valor oferecido excede o total em dívida pela executada, segundo a liquidação efectuada pelo AE, nada obsta a que possa substituir a penhora efectuada, em montante inferior à quantia exequenda.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
      
I - Relatório
1. G, LDA, veio interpor recurso da decisão proferida nos presentes autos de incidente de prestação espontânea de caução, em apenso aos autos de execução que lhe move BDA.
2. Nas suas alegações, a Recorrente formula as seguintes conclusões:
- A Recorrida moveu uma execução contra a Recorrente, reclamando o pagamento de um montante de €32.268,26;
- A Recorrente deduziu embargos de executado, os quais se encontram pendentes de decisão;
- No âmbito da execução, foram penhorados saldos bancários da Recorrente, perfazendo um montante de €21.579,46;
-Posteriormente, a Recorrente deduziu um incidente de caução, com vista à suspensão da execução e à substituição das penhoras já efetuadas, para o efeito tendo oferecido uma garantia bancária autónoma, irrevogável, incondicional e à primeira solicitação, no valor de €38.000,00, emitida pelo Banco, a favor da Exequente, ora Recorrida;
- Mediante sentença, o Tribunal a quo considerou a caução idónea, ordenou a suspensão da execução, mas decidiu pela manutenção das penhoras já realizadas nos saldos bancários da Recorrente;
- Para o efeito, argumentou que a suspensão da execução significa que a execução se suspende na fase em que se encontrar, pelo que as penhoras, já tendo ocorrido, se mantêm;
- Salvo o devido respeito, este entendimento não encontra acolhimento, nem na Lei, nem na jurisprudência e na doutrina;
- Não estabelecendo a lei qualquer limite temporal, a caução pode ser prestada a todo o tempo;
- É hoje assente que a penhora pode ser substituída por caução, à luz do disposto no artigo 751°, n.° 8 do CPC;
- Dispõe esse preceito que «o executado que se oponha à execução pode, no ato da oposição, requerer a substituição da penhora por caução idónea que igualmente garanta os fins da execução».
- A caução funciona assim como um sucedâneo da penhora: ambas servem o desígnio de garantia do Exequente relativamente ao pagamento, pelo Executado, da quantia exequenda que, a final, lhe possa ser exigida;
- LEBRE DE FREITAS considera, assim como ANSELMO DE CASTRO, que não deve ser admitida a cumulação da penhora com a caução idónea, procedendo-se ao levantamento daquela;
- Igualmente, também a jurisprudência tem defendido que a prestação de caução idónea deve conduzir à substituição da penhora e ao levantamento da mesma;
- Ademais, a manutenção da penhora com a caução idónea ofenderia os princípios da proporcionalidade e da adequação, que devem presidir à penhora, e por isso seria demasiado e desnecessariamente onerosa para o devedor ou, no caso sub judice, da Recorrente.
- Deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser revogada a Decisão Recorrida na parte em que determina o não levantamento das penhoras realizadas nos saldos bancários da Recorrente.
3. A Recorrida/Exequente nas suas contra-alegações formulou as seguintes conclusões:
- O recurso interposto pela Recorrente, tem por objeto a douta sentença proferida em 03-02-2021, na parte em que o Tribunal recorrido decidiu manter as penhoras das contas bancárias já efetuadas, apesar da prestação de caução;
- No entanto, a douta sentença proferida, na parte em discussão, não merece qualquer reparo;
- A função da caução prevista no artigo 733.º n.º 1 a) do CPC é a de garantir o cabal cumprimento da obrigação exequenda;
- Apesar de a lei estabelecer a suspensão da execução com a prestação de caução, não estabelece, como consequência, o levantamento das penhoras efetuadas;
- A verdade é que, no caso em apreço, a suspensão da execução significa que a suspensão se suspende na fase em que se encontrar;
- Uma vez que já foram efetuadas penhoras no processo principal, estas deverão manter-se, não podendo haver lugar ao seu levantamento, conforme pretendido pela ora recorrente;
- Considerando a prova e os factos invocados, andou bem o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, não merecendo qualquer censura a douta sentença proferida.
4. Cumpre apreciar e decidir.
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II – Enquadramento facto-jurídico
1. da factualidade
Na decisão sob recurso foram considerados como provados, os seguintes factos.
1) A exequente propôs ação executiva contra, entre outros, a aqui requerente , pedindo o pagamento da quantia de € 32 268,26, acrescido de juros de mora vincendos sobre o capital de €31.908,00 desde a data de apresentação do requerimento executivo até integral pagamento.
2) A executada veio deduzir oposição à execução, mediante embargos de executado, os quais foram admitidos liminarmente.
3) Na execução referida em 1) supra foram penhorados, por referência à executada ora requerente, depósitos bancários e valor mobiliário depositado no valor global de €21.579,46 conforme auto de penhora de 28.09.2020 junto ao processo principal, ora dado por reproduzido.
4) Nos termos da liquidação efetuada pela Sra. AE a 25.09.2020 e cuja cópia foi anexa à p.i. do presente incidente, ora dada por reproduzida, o valor total dos honorários líquidos e despesas em dívida ao agente de execução são de €2.300,43 e o valor em divida pelo executado (incluindo tais honorários e despesas) é €36.762,08.
5) A requerente juntou à p.i. deste apenso documento de Garantia Bancária n.º GAR/20301963, no valor total de €38.000,00 (trinta e oito mil euros - cf. clausula 5), emitido pelo Banco a 20 de novembro de 2020 a pedido da sociedade G, Lda. em beneficio da sociedade B, Lda., vigente até 12 (doze) meses após o trânsito em julgado da sentença proferida por qualquer tribunal a quem seja atribuída a decisão do processo (clausula 4) - processo identificado na clausula 1 - , conforme documento anexo à p.i. de incidente de caução, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6) As assinaturas dos outorgantes, na qualidade de procuradores com poderes para o ato da Sociedade Anonima Banco , SA, que constam do documento referido em 5 supra foram reconhecidas por Sra. Advogada, nos termos descritos no reconhecimento com registo 6699 P/5372 de 20.11.2020 anexo ao documento de garantia aludido em 5 supra e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
7) Dá-se por reproduzido o teor dos documentos juntos ao requerimento de 14.01.2021 (apresentados pela requerente do incidente).
2. do direito
Como se sabe, o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com excepção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, artigos 635.º, 608.º e 663.º, do vigente CPC[1], não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas invocadas pelas mesmas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, artigo 5.º, n.º 3.
No seu necessário atendimento, a saber está se como pretende a Recorrente, tendo sido considerada idónea a caução prestada, determinando a suspensão da execução, não deveria a decisão sob recurso ter ordenado a manutenção das penhoras realizadas quantos aos saldos bancários nos autos de execução, antes sim o seu levantamento.
Contrapõe a Recorrida que deve ser mantido o decidido.
Vejamos.
Como se sabe a finalidade da ação executiva é a de exigir e obter, de forma coerciva o cumprimento de uma obrigação, baseando-se num documento, o título executivo, que determina o seu fim ou limites[2], sendo por ele que se conhece, com precisão, o conteúdo da obrigação do devedor, e que se concretiza através da apreensão dos bens do património do devedor que se mostrem necessários para o credor ver realizado o seu direito, pela adjudicação de tais bens, ou pelo produto da sua venda.
Divisa-se, com facilidade, uma necessária ponderação entre os interesses do credor/exequente e o devedor executado, não se configurando como despiciendo o tempo da realização efetiva do pagamento, pelo que na procura do equilíbrio dos interesses conflituantes releva o reconhecido princípio do favor creditoris, ainda que não erigido a princípio geral, e menos fundamental do processo executivo[3], com possível apreciação casuística, na otimização dos direitos colidentes, mas também na configuração do regime jurídico aplicável.
Na verdade, pese embora o fim da execução seja, como já se aludiu, a satisfação coativa da obrigação, nem sempre o interesse do credor é priorizado, prevalecendo por vezes o do executado, se este for sensivelmente superior ou mais forte que o interesse do credor, no estabelecimento de um padrão normativo, no âmbito do qual a marcha do processo fica enformada pela primazia do interesse do credor, prevalecendo o interesse do devedor tão só se for consideravelmente superior ao do credor[4].  
Nem sempre ressaltando, em termos óbvios e muito menos absolutos, o padrão normativo da prevalência do interesse do credor, o designado favor creditoris não autoriza uma interpretação restritiva dos princípios constitucionais densificados como tal, permitindo sim, a ponderação a realizar pelo aplicador do direito, importando na avaliação dinâmica dos interesses do exequente e do executado, atender “(…) como critério de ponderação o princípio geral da menor onerosidade ou do menor sacrifício do executado (…)”[5].
Com efeito, é próprio de um Estado de Direito, que a atividade desenvolvida no âmbito da ação executiva se paute pelo princípio da proporcionalidade, imanente no art.º 2, da Constituição da Republica, e que se espelha no n.º 3, do art.º 735, do qual decorre que na execução não devem ser impostos ao executado, maiores encargos do que aqueles que se mostrem indispensáveis ao respetivo fim, isto é, a obtenção da satisfação do direito do credor[6].
Assim balizados, temos que a Recorrente veio deduzir incidente de prestação espontânea de caução, nos termos do art.º 733, n.º1, pretendo obter a suspensão da execução, referenciando que a penhora dos saldos bancários lhe acarretavam prejuízos no âmbito da sua atividade comercial e financeira, oferecendo uma garantia bancária, indicando-a como idónea, adequada e suficiente para caucionar a quantia exequenda e despesas prováveis da execução, conforme nota junta pelo AE, pedindo igualmente o levantamento das penhoras, suspendendo-se, qualquer diligência de penhora.
A exequente, então requerida, pugnando pela não idoneidade, questão ora ultrapassada, declinou a pretendida substituição, até porque as penhoras realizadas eram insuficientes para a satisfação do pagamento da quantia exequenda.
Ora, para além de no caso sob análise a penhora efetuada, dos saldos bancários e valor mobiliário depositado, ficar aquém do montante em causa, conforme decorre do disposto no art.º 751, n.º 8, na redação dada pela Lei 117/2019, de 13.09, o executado que se oponha à execução, pode no ato da oposição, requerer a substituição da penhora por caução idónea que igualmente garanta os fins da execução.
Como se sabe, trata-se de uma solução legislativa que nem sempre mereceu acolhimento, nomeadamente com reforma de 95/96 da lei processual civil, DL 329-A/95, de 12.12 e 180/96, de 25.09, surgindo com as alterações operadas pelo DL 38/2003, introduzindo o n.º 5 no então art.º 834, versão de 1961, e após n.º 6, na redação dada pelo DL 226/2008, de 20.11, consignando o que em termos doutrinários vinha sido entendido[7], no sentido de, para além de ser atribuída à caução a função de mera garantia da dívida exequenda, também ser admissível que as penhoras realizadas podiam ser substituídas por caução, sendo levantadas pela sua prestação, ao encontro aliás, do que sem limitações acontece na substituição do arresto por caução adequada, conforme o art.º 368, n.º3, por força do art.º 376, n.º1, conhecida a instrumentalidade do mesmo em relação à penhora.
Configurando-se como legalmente admissível a pretendida substituição, desde logo em termos de harmonização do sistema jurídico, diga-se, numa ótica não concretizada, que o entendimento vertido na decisão sob recurso não contraria o referenciado, porquanto, e como facilmente se de depreende, sendo o pedido de suspensão admissível e determinada esta na fase em que a execução se encontrar, no caso de penhoras efetuadas, a sua manutenção não só é compreensível, mas também exigível, quando já tendo havido citação dos credores, pois a suspensão não abrange o apenso de verificação e graduação de créditos, art.º 733, n.º2, pese embora não possa obter pagamento, conforme o n.º4, parte final, da mesma disposição legal.
No entanto, no caso sob análise, decorre dos autos de execução, conforme informação prestada ao AE, que não foram reclamados quaisquer créditos, e assim nesse âmbito, nada importa atender.
Deste modo, não estando em causa a idoneidade da caução prestada, garantindo a mesma a realização efetiva do direito de crédito da exequente, ora Recorrida, excedendo o montante oferecido o valor total em dívida pela executada[8], agora Recorrente, segundo a liquidação efetuada pelo AE[9], nada obsta que na situação concretamente analisada, para além da garantia de pagamento da quantia exequenda, colocando o exequente a coberto dos riscos da demora no prosseguimento da ação executiva[10], a mencionada caução prestada, possa substituir as penhoras realizadas dos saldos bancários[11], como o solicitado atempadamente, sem que a literalidade da norma o impeça, na devida articulação dos termos processuais.
A tal impele o aludido o princípio geral da menor onerosidade ou do menor sacrifício do executado, na necessária busca axiológica com o recurso à proporcionalidade e adequação que devem pautar a realização e a manutenção da penhora.
Na realidade, não deve ser esquecido que a penhora constitui uma efetiva agressão a um património alheio, in casu ao do devedor, e assim, desde logo, com as devidas repercussões no direito de propriedade, de consagração constitucional, compreendendo-se, desse modo, que em sede do processo de execução se deva ter presente tal princípio da proporcionalidade, no sentido de apenas serem objeto de penhora os bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas presumidas, não devendo a penhora, consequentemente, abranger bens em excesso, sem prejuízo do disposto no disposto no n.º 3, do art.º 751[12], inaplicável aos autos, com vista a procura do necessário equilíbrio dos interesses contrapostos.
Desta forma, na procedência das conclusões formuladas pela Recorrente, não pode manter-se a decisão sob recurso na parte na parte que manteve as penhoras, devendo assim ser revogada e substituída por outra, que determine o seu levantamento.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, e ordenando a substituição por outra que determine o levantamento das penhoras realizadas.
Custas pela Apelada.
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Lisboa, 23 de março de 2021
Ana Resende
Dina Monteiro
Isabel Salgado
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[1] Diploma a que se fará referência, se mais nada for dito.
[2] Conforme resulta do art.º 10, n.º 5 e 6, sendo pelo título executivo que se conhece, com precisão, o conteúdo da obrigação do devedor, qual o montante que deve ser pago, qual a coisa que tem de ser entregue - determinada individualmente, ou contida dentro de certo género, quantidade e qualidade - qual a natureza, características e espécie do facto a prestar, título esse que se entende, veja-se, entre outros o Ac. do STJ de 7.5.2005, in www.dgsi.pt, não se confundir com a causa de pedir da acção executiva, já que esta se traduz na obrigação exequenda, que deverá ela sim, constar do título oferecido à execução.
[3] Cfr. Delgado de Carvalho, J.H., “Substituição dos bens penhorados – a regra da mais fácil realização do valor pecuniário dos bens do devedor”, pag.1 e seguintes, in Blog do IPPC, blogippc.blospot.com., que nesta parte se segue de perto.
[4] Delgado Carvalho, obra citada, pag. 2.
[5] Delgado Carvalho, obra citada, pag. 3.
[6] Cfr. Ac. RL, de 11.09.2018, in www.dgsi.pt.
[7] Caso de Anselmo de Castro, in “Acção Executiva Singular, Comum e Especial” e Lebre de Freitas, in “Acção Executiva”, referenciados, nomeadamente, in Ac. RC, de 20.06.2017, in www.dgsi.pt.
[8] Garantia Bancária n.º GAR/20301963, no valor total de €38.000,00.
[9] Quantia exequenda de €31.908,00, acrescida de juros de mora no total, de € 32.268,26. Nos termos da liquidação efetuada pelo AE, o valor total dos honorários líquidos e despesas em dívida ao agente de execução são de €2.300,43 e o valor em divida pelo executado, incluindo tais honorários e despesas, é €36.762,08.
[10] Impedindo que o executado, durante o período da suspensão, leve a cabo condutas que possam delapidar o património necessário para a satisfação do direito do exequente/credor.
[11] Conforme o auto de penhora de 28.09.2020, consultado nos autos de execução, mostram-se penhorados, os saldos bancários dos depósitos bancários, DO, no montante de 17.371,26€, 11,92€, 3.655,91€, valores mobiliários depositados, 415,00€, num total de 21.579,46€.
[12] Admitindo, ainda que por excesso não se adeque ao montante do crédito exequendo, a penhora de bens imóveis ou do estabelecimento comercial, em determinadas situações.