Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4899/16.0T8LRS.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
IN ITINERE
NECESSIDADES ATENDÍVEIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I. Corresponde à satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador o desvio e a interrupção destinados à aquisição de uma camisola de um clube de futebol para oferecer ao afilhado, quando tal ocorre no âmbito da viagem de regresso a casa e por um curto período de tempo.

II. O infortúnio sofrido pelo trabalhador nessas circunstâncias, ao regressar ao veículo automóvel, mantém a conexão com a sua situação laboral e constitui, por isso, um acidente in itinere.
(Elaborado pela relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO

O A. demandou a R. alegando ter sofrido acidente “in itinere”
Instruídos os autos, procedeu-se à realização de exame médico e a tentativa de conciliação, na qual a seguradora reconheceu a existência de contrato de seguro com a empregadora mas recusou qualquer responsabilidade na reparação dos danos por não aceitar a existência de acidente de trabalho por o trabalhador ter ocorrido na sequência de um desvio efetuado no trajeto habitual, desvio esse que não foi determinado por uma necessidade atendível ou de força maior.
O A. interpôs ação alegando, em síntese, que 23-9-2015 regressava a casa depois de exercer a sua atividade profissional ao serviço de (…) SA a qual havia celebrado com BBB, SA contrato de seguro de acidentes de trabalho, quando teve um acidente, evento que configura um acidente de trabalho pois ocorreu quando regressava a casa após a sua jornada de trabalho, pelo trajeto que habitualmente utiliza e numa paragem que então efetuou para adquirir um presente para o seu afilhado, aquisição esta que lhe determinou um desvio de não mais de 1 km e que lhe demoraria cerca de dez minutos. No parque de estacionamento do estabelecimento sofreu uma queda que lhe causou lesões que se vieram a consolidar com sequelas determinantes de incapacidade permanente parcial (IPP). A recusa da seguradora em assumir os tratamentos demandados pelas lesões causou danos ao autor, pois teve de suportar tais tratamentos, os custos necessários à sua deslocação para tratamento e determinou que tivesse ficado sujeito aos valores pagos pela segurança social durante o período em que esteve de baixa médica, valores esses que são inferiores aos que receberia como reparação por incapacidade temporária por acidente de trabalho, tudo valores que, tal como o capital de remição da pensão devida pelas sequelas que apresenta, reclama da seguradora.
Com estes fundamentos reclama:
a) O capital de remição resultante da pensão anual no valor de €289,12, devida desde 14/04/2016, acrescido dos juros legais contados a partir desta data;
b) A quantia de €2551,58 a título e diferença entre a remuneração devida ao trabalhador- no valor de €1233,27, e o valor que recebeu de baixa normal de doença pela Segurança social, nos termos do art.º 13.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro;
c) A quantia de €5.347,35, indemnização pelas incapacidades temporárias sofridas;
d) A quantia de €279,00, a título de despesas com consultas, tratamentos médicos, enfermagem e fisioterapia;
e) A quantia de €207,62, a título de despesas com transportes e deslocações para consultas e tratamentos;
f) A quantia de 18,00, referente a despesas de transportes com as deslocações obrigatórias a Tribunal para realização do exame médico;
g) Juros de mora desde o vencimento de cada prestação.”.
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Citada, a Ré seguradora contestou, reconhecendo a existência de contrato de seguro mas recusando qualquer responsabilidade na reparação dos danos invocados pelo autor, pois não só a interrupção que efetuou não corresponde a uma necessidade de força maior ou atendível , como a lesão que apresentou não se mostra consentânea com a queda que refere ter ocorrido, sendo antes consentânea com a prática desportiva, a qual o autor costumava praticar no local onde ocorreu a queda. Logo que constatou tal facto cessou a assistência que prestava na sequência da participação efetuada, solicitando ao autor o reembolso das despesas efetuadas, pelo que impugna os danos alegados pelo autor. Conclui pela sua absolvição.
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Proferido despacho saneador, com condensação da matéria de facto e realizada audiência de julgamento, o Tribunal proferiu a final sentença em que julgou a ação “parcialmente procedente por provada, e condenando a ré seguradora a reconhecer que o autor foi interveniente em acidente de trabalho no dia 23-9-2015 e do qual resultou uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 2,00% desde a data da alta ocorrida em 13-4-2016, condená-la a:
a) Pagar ao autor o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 289,12€ (duzentos e oitenta e nove euros e doze cêntimos)
b) Pagar ao autor a quantia de 919,91 (novecentos e dezanove euros e noventa um cêntimos) a título de diferenças entre o valor recebido pelo autor a título de subsídio de doença entre e corresponde ao que era devido pelo período de incapacidade temporária absoluta (ITA) entre 24-9-2015 e 19-1-2016 e pelos primeiros catorze dias de incapacidade temporária parcial (ITP) a 20,00%.
c) Pagar ao autor a quantia de 562,32€ (quinhentos e sessenta e dois euros e trinta e dois cêntimos) referente ao período de incapacidade temporária parcial (ITP) a 20,00% entre 3-2-2016 e 13-4-2016
d) Pagar ao autor a quantia de 274,00€ (duzentos e setenta e quatro euros) a título de despesas com consultas médicas e tratamentos efectuados.
e) Pagar ao autor a quantia de 4,30€ (quatro euros e trinta cêntimos) a título de despesas efetuadas com parqueamento em deslocações para consultas e tratamentos médicos.
f) Pagar ao autor a quantia que, em sede de liquidação de execução de sentença, se venha apurar ter sido despendida com a deslocação em viatura própria para as consultas e tratamentos apurados nos autos
g) Pagar ao autor os juros de mora, vencidos e vincendos, á taxa anual de 4,00% contabilizados sobre o capital de remição desde 14-4-2016, sobre os valores de incapacidades temporárias desde a data de vencimento de cada prestação, sobre os valores referidos em c), d) e e) desde 12-9-2017, sempre até efetivo e integral pagamento.
h) Pagara ao ISS, IP a quantia de 3 864,95€ (três mil oitocentos sessenta e quatro euros e noventa e cinco cêntimos) a título de reembolso de valores por este pagos ao autor, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa anual de 4,00% desde 2-10-2017 e até efetivo e integral pagamento.
i) Absolver a ré do mais contra si peticionado nos autos”.
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Inconformada, a R. empregadora recorreu, pedindo a revogação da sentença e concluindo:
A – A queda sofrida pelo sinistrado no estacionamento das instalações da (…) (espaço de aluguer de campos de futebol e festas de aniversário, com loja desportiva e bar), depois de sair do trabalho, motivada pela intenção de comprar uma camisola do Real Madrid, não constitui um acidente de trabalho.
B – De facto, o desvio que fez ao trajeto para adquirir uma camisola do Real Madrid para o afilhado não se consubstancia na satisfação de uma necessidade atendível (imprescindível e inadiável), que se prende intimamente com a sua vida familiar e com o complexo de valores em que a mesma assenta, e, por conseguinte, a queda ocorrida não é qualificável como acidente de trabalho.
C – Tal desvio não ocorreu para a satisfação de uma verdadeira necessidade, socialmente significativa ou juridicamente relevante.
D - Para o Dr. Carlos Alegre, a necessidade atendível será aquela “que, de algum modo não pode ser evitada ou adiada, muito embora, se não o for, seja facilmente desculpável ou aceitável, de acordo com os critérios dominantes em determinado momento, local e circunstâncias”.
E - Para José Andrade Mesquita, “A necessidade atendível tem a ver com a prossecução de objetivos meritórios, de acordo com as valorações do ordenamento jurídico. Pode tratar-se da alimentação do próprio trabalhador, da verificação de uma aparente anomalia no automóvel, ou de transporte dos filhos à escola. Já o desvio para ir fazer compras não se enquadra neste conceito, a não ser que a organização do dia de trabalho não permita ao trabalhador adquirir bens de primeira necessidade noutra ocasião. Justifica-se, por exemplo, um desvio para comprar água se, entretanto, o abastecimento foi interrompido.”
F - A Jurisprudência e o Professor Júlio Gomes, dão como exemplos de necessidades atendíveis, as necessidades fisiológicas, tomar um café ou uma refeição, comprar medicamentos na farmácia, enviar uma carta registada, levar ou ir buscar os filhos à escola e os casos em que o trabalhador tem o dever de agir, quer resultante da sua situação familiar (na qualidade de cônjuge, pai ou filho), quer decorrente de outra natureza (convocatória fiscal ou judicial), e até de deveres de ingerência (como de conduzir ao hospital alguém que foi atropelado).
G – O que não sucede no caso em apreço.
H – O nexo causal com o trabalho quebrou-se a partir do momento em que o sinistrado fez um desvio no trajeto trabalho-casa para adquirir uma camisola do Real Madrid nas instalações da (…), algo que, manifestamente, não é uma necessidade atendível.
I – Portanto, a compra de uma camisola do Real Madrid para fazer uma surpresa ao afilhado não se consubstancia na satisfação de uma necessidade atendível.
L – Decidindo em sentido contrário, a douta sentença em crise viola o conceito de “necessidade atendível” e o artigo 9º, nºs 1, 2 e 3, da Lei nº 98/2009, de 04.09., devendo, por isso, ser revogada.
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O trabalhador contra-alegou, pedindo a improcedência da ação e concluindo:
A. As presentes alegações são o meio de reação do Autor ao Recurso de Apelação da sentença, movido pela BBB, S.A..
B. Não assiste razão à recorrente em nenhum dos argumentos que apresenta, devendo manter-se na íntegra, a sentença recorrida
C, D. Alega a Recorrente que o desvio efetuado pelo trabalhador “não se consubstancia na satisfação de uma “necessidade atendível”  e que “o intento de comprar uma camisola de futebol para o afilhado não tinha que ver com a prossecução de um real objetivo meritório, nem era, obviamente, uma obrigação imprescindível.”
E. No entanto, in casu verifica-se claramente que as necessidades da vida familiar do trabalhador tratam-se efetivamente de um objetivo meritório, e por isso atendíveis.
F. Nesse sentido o Professor JÚLIO GOMES (O Acidente de Trabalho- O acidente in itinere e a sua descaracterização, 1.ª Edição, Outubro de 2013, Coimbra Editora, pgs. 188 a 190), define como atendíveis “as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa Lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível.”
G. Observamos que têm sido consideradas como atendíveis, pela nossa jurisprudência e doutrina, as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador, situações normais da vida, que vão desde as necessidades fisiológicas a entregar uma simples carta registada.
H. A situação em análise integra-se assim na definição dada pelo Professor JÚLIO GOMES, uma necessidade de caráter “pessoal e familiar”, a qual era importante para o trabalhador e para a sua vivência familiar.
I. Pelo que o desvio do trajeto pelo trabalhador, para atender essa necessidade de caráter pessoal e familiar, não afasta a qualificação do acidente como acidente de trabalho.
J. O trabalhador trabalha em regime de turnos rotativos, pelo que não tem a liberdade e disponibilidade de organização da satisfação das suas necessidades não laborais, igual à de um trabalhador com horário fixo.
K, L. Dado a localização da loja onde o trabalhador faria a compra da prenda para o seu afilhado, ser perto do local de trabalho do mesmo, e a caminho de casa, não teria sentido que este se deslocasse posteriormente àquele local de propósito. Teve, portanto, toda a lógica fazê-lo quando saiu do seu trabalho.
M. Até porque o trabalhador iria estar com o afilhado no outro dia, pelo que aquela seria a altura mais propícia para proceder à compra.
N, O. Não é razoável pedir a um trabalhador que trabalha por turnos, que deixe de satisfazer uma necessidade da sua vida familiar, no momento mais oportuno, apenas por estar a vir do trabalho. Um trabalhador que trabalha por turnos vê a organização das suas necessidades pessoais e familiares condicionada pela coincidência dos seus tempos de não trabalho.
P. Não pode, nesta medida, o Trabalhador ser penalizado pelo facto de, após sair de mais um turno de trabalho, ter pretendido comprar uma prenda para o seu afilhado, com quem ia estar no dia seguinte, e dar-lhe a atenção e o cuidado que lhe poderia dispensar, nos complexos valores familiares que esse ato acarreta.
Q. Entender o contrário, e censurar o Trabalhador por esse facto, seria no mínimo, desprezar esse afeto e ato intimamente familiar e ignorar o sentido da lei.
R. Neste sentido, andou bem a sentença do Tribunal a quo ao decidir que:
“Será nesta perspetiva que importa valorar o facto do autor ter efetuado um desvio de cerca de dez minutos para aquisição de um presente que pretendia entregar ao afilhado. Nesta apreciação não se pode deixar de ter em consideração o comportamento normal de um trabalhador colocado na situação do autor, ou seja, com as contingências deste e decorrentes da organização da sua atividade laboral – trabalho por turnos --, e do facto que ter de percorrer uma distância entre o local de emprego e a sua residência. Quanto a este último aspeto, importa considerar que o risco de trajeto, subjacente à tutela do acidente de trabalho in itinere, é uma particularização do risco económico ou de autoridade que recai sobre o empregador e mostra-se condicionada pelas características de organização, planeamento e circulação dentro do território onde se desenvolve a atividade económica das empresas e onde vivem os sujeitos que participam nessa atividade, que a assegura com a sua prestação laboral. (…)
O trabalhador se é certo que com o trabalho logra a execução de um direito fundamental – art.º 58º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa --, certo é igualmente que a sua restante vivência, pessoal, familiar e social, é condicionada pelo horário de execução da prestação laboral – cfr., art.º 59º, nº 1, al b), do último diploma legal citado.
No caso dos autos, o autor trabalhava em regime de turnos rotativos.
Uma tal organização dos tempos de trabalho, que permite ao empregador manter a laboração 24h/24h, é objetivamente condicionadora da vivência pessoal dos trabalhadores pela mesma abrangidos e esse condicionamento não pode deixar de ser ponderado na apreciação das interrupções e desvios que sejam efetuados nos trajetos dos trabalhadores de e para o trabalho.
A organização pelo trabalhador da satisfação das suas necessidades pessoais e familiares é condicionada pela coincidência dos seus tempos de repouso – de não trabalho, de não disponibilidade da sua força de trabalho pela empregadora – com os tempos de disponibilidade dos sujeitos com tenha de interagir na satisfação dessas necessidades ou pelos tempos de funcionamento/acessibilidade dos serviços ou estruturas a que tenha de aceder para satisfação de tais necessidades.
Este condicionamento decorrente da própria organização dos tempos de trabalho determinada pela empregadora não pode ser desconhecido do organizador dos tempos de trabalho e não pode ser desconsiderado na responsabilidade da mesma em matéria de acidentes de trabalho, designadamente na tutela do acidente in itinere.
Um trabalhador cuja prestação tem lugar em regime de turnos rotativos não tem a liberdade/disponibilidade de organização da satisfação das suas necessidades não laborais igual à de um trabalhador com horário fixo, estando sujeito a uma constante e variável articulação dos seus tempos de não trabalho com a disponibilidade de terceiros ou com os horários de funcionamento de serviços aos quais careça de recorrer.
Nesta perspetiva a interrupção e/ou desvio, por um período de cerca de dez minutos, para aquisição de um bem que o autor se propunha utilizar para oferecer a um afilhado – ou seja, para utilização no contexto das suas necessidades ligadas à vida familiar/pessoal – corresponde a uma interrupção/desvio para satisfação de uma necessidade pessoal e socialmente atendível e mostra-se enquadrável na previsão do nº 3 do art.º 9º da Lei 98/2009.”(destacado e sublinhado nosso).
S. Face ao exposto, estamos perante uma necessidade de caráter pessoal e familiar, importante para o trabalhador e para a sua vivência familiar, sendo nessa medida considerada como atendível enquadrando-se na previsão do n.º 3 do art.º 9.º da Lei 98/2009 de 4 de Setembro.
T. Verificamos que não apenas estamos perante uma necessidade atendível, como se encontram preenchidos todos os requisitos para o acidente do trabalhador ser qualificado como Acidente de Trabalho In itinere.
U. O acidente ocorreu “no trajeto normalmente utilizado” de ida do local de trabalho e regresso para casa, sofrendo apenas um pequeno desvio determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nos termos do n.º 3 do art.º. 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro (L.A.T.).
V. Em segundo lugar, o acidente ocorreu durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, sofrendo apenas um pequeno desvio o qual não ultrapassaria dez minutos.
W. Resultando provado que se dirigia para casa após os desvio,
X. Neste sentido, dos factos dados como provados, resulta que o trabalhador, ia do trabalho para casa, efetuando apenas uma paragem motivada por uma necessidade atendível adveniente de uma necessidade pessoal e da vida familiar do trabalhador, pelo que não foi interrompido o nexo causal do acidente.
Y. Estando preenchidos todos os requisitos para o acidente ser qualificado como Acidente de Trabalho In Itinere.
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O MP teve vista e pronunciou-se no sentido da confirmação da sentença.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar neste recurso – considerando que o seu objeto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 635/4, 639/1 e 2, e 663, todos do Código de Processo Civil – se o acidente é descaraterizado.
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Factos provados:
1. O autor é trabalhador de (…), SA desde 18-1-2007 exercendo funções de operador de assistência em escala.
2. Em Setembro de 2015 auferia uma remuneração anual de 20 651,66€ (1 233,27€x14, 127,60€x11, 165,19€x12).
3. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº AT-633... a empregadora do autor transferira para a ré a responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de trabalho do autor com referência à remuneração anual de 20 651,66€.
4. O autor reside na Rua (…)a.
5. O autor trabalha no Aeroporto de Lisboa
6. No dia 23-9-2015 o autor saiu do seu local de trabalho pelas 16h15m/16h20m.
7. No dia 23-9-2015 o autor fraturou o pé esquerdo sendo submetido a intervenção cirúrgica para corrigir desvio no tornozelo.
8. As despesas com a operação importaram em 2 655,00€.
9. No pós-operatório o autor efetuou trinta sessões de tratamentos de fisiatria
10. Em 24-9-2015 foi participado à seguradora ré um acidente de trabalho sofrido pelo autor
11. Em Fevereiro de 2016 a ré solicitou ao autor o reembolso de 2 655,00€ de despesas hospitalares e de atos médicos recusando a sua responsabilidade pelo evento participado
12. Entre 24-9-2015 e 2-2-2016 o ISS, IP pagou ao autor a quantia de 3 596,49 € referente a prestações pecuniárias a título de subsídio por doença, bem como 200,72 € de prestação compensatória de subsídio de natal de 2015 e 67,74 € de prestação compensatória de subsídio de natal de 2016.
13. O autor trabalhava em regime de turnos rotativos com sete horários.
14. Executando a sua prestação no Terminal de Cargo da (…).
15. Nas deslocações casa/trabalho/casa o autor utiliza o EN (…) de acordo com o trânsito existente em cada altura.
16. Demorando em média cerca de 25/30 minutos em cada trajeto.
17. No dia 23-9-2015 o autor tinha o horário das 7h30m às 16h.
18. No regresso a casa passou no (…) parou na Loja (…), sita na Rua 25 de Abril.
19. O que fez para comprar uma camisola para o seu afilhado.
20. Demorando com tal desvio e aquisição cerca de dez minutos.
21. Após o que se propunha seguir para casa para permitir a utilização do veículo em que seguia pela sua mulher.
22. O casal dispõe de um único veículo, revezando-se na sua utilização.
23. Cerca das 16h30m ao sair do veículo no (…) o autor tropeçou e caiu sobre o pé esquerdo.
24. Sofrendo a fratura do pé esquerdo referida em 7.
25. Entre 24-9-21015 e 19-1-2016 o autor esteve com incapacidade temporária absoluta (ITA).
26. Entre 20-1-2016 e 13-4-2016 esteve com incapacidade temporária parcial (ITP) a 20,00%.
27. Teve alta em 13-4-2016 com sequelas determinantes de uma ipp de 2,00%
28. Com consultas médicas em 20-10-2015, 20-11-2015 e 19-1-2016, para tratamento das lesões sofridas no pé esquerdo, o autor despendeu 7,50€ em cada uma.
29. Com serviços de radiologia convencional em 20-11-2015 e 19-1-2016, para diagnóstico das lesões, despendeu 7,50€ em cada vez.
30. Em atos de enfermagem para tratamento das lesões do pé esquerdo despendeu 15,00€ em 20-10-2015.
31. Em trinta sessões de fisiatria realizadas em (…) o autor despendeu 201,50€.
32. Em consultas na (…) realizadas em 15-10-2015, 5-11-2015, 7-12-2015 e 6-1-2016 despendeu 5,00€, em cada uma delas
33. O autor deslocou-se para as consultas e tratamentos em veículo próprio.
34. Nas suas deslocações em 24-9-2015, 25-9-2015 e 6-10-2015 o autor suportou despesas de estacionamento de, respetivamente, 2,00€, 1,30€ e 1,00€.
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De Direito
A revolução industrial, com a produção em série, estando os trabalhadores confinados nos espaços físicos autónomos que são as fábricas, trouxe um aumento exponencial dos acidentes de trabalho em resultado da utilização da máquina, primeiro a vapor e depois a outras energias, no processo produtivo. Pior, os danos tenderam a tornar-se muito mais graves do que em épocas anteriores[1]. Gerou-se, assim, no séc. XIX, um sério problema social, para cuja resolução se impunha a criação dos remédios jurídicos adequados.
Num primeiro momento a reparação dos danos ficou sujeita à prova da culpa do agente, a cargo do lesado. Embora adequado às necessidades da acumulação de capital, o princípio casum sentit dominus conduziu a resultados infelizes[2], ficando os sinistrados em regra sem qualquer reparação. Efetivamente, era muito difícil a prova da culpa do empregador, não apenas pela diferença de recursos existente entre este e o trabalhador, mas também porque muitas vezes o empregador realmente não tinha qualquer culpa[3]. E também era complexo demonstrar o nexo de causalidade entre a culpa e o dano
Face à inadequação dessa responsabilidade obrigacional clássica (teoria da culpa aquiliana) no final do sec. XIX intentou-se inverter o ónus da prova, mediante o recurso à teoria da responsabilidade contratual[4]. Seria ao empregador que cabia demonstrar que não tivera qualquer culpa na produção do evento, o qual se produzira, em princípio, apenas devido à sua má organização do trabalho. Surgida na sequência das críticas de Sauzet e Sauctelette, e consagrada designadamente na Bélgica e na Suíça, não foi acolhida entre nós, revelando-se, aliás, tão insuficiente como a anterior[5].
Uma perspetiva próxima era a que fazia assentar a responsabilidade patronal numa ideia de responsabilidade extra-contratual por facto ilícito, presumindo-se em termos elidíveis a culpa do empregador, com os mesmos (escassos) resultados.
Com vista a ultrapassar as dificuldades que surgiam para obter o ressarcimento, já que o empregador provava amiúde com facilidade que nenhuma culpa tivera, ficando sem cobertura os acidentes devidos a caso fortuito ou de força maior e a negligência do sinistrado, começa a falar-se em responsabilidade objetiva ou pelo risco. Em lugar da culpa do empregador parte-se de uma relação de causa e efeito entre o acidente e a atividade laboral.
Numa visão inicial defende-se que a responsabilidade emerge do risco inerente ao exercício de toda e qualquer atividade profissional, sendo razoável que quem aufere os benefícios do labor suporte os correspondentes riscos (ubi commoda ibi incommoda; ou ubi emolumentum ibi onus). É a teoria do risco profissional.
Este entendimento foi entre nós adotado pela Lei 83, de 24.1.1913[6], que pela primeira vez estabeleceu um regime específico de reparação dos desastres no trabalho (na terminologia do diploma). 
Numa segunda perspetiva procurou acautelar-se a proteção de atos preparatórios ou consequentes à prestação do trabalho, mas com ele conexos, e os acidentes ocorridos no caminho para e do local de trabalho – os acidentes in itinere. Designada pelo risco de autoridade ou económico, aparta-se da conexão direta acidente – trabalho para se centrar na noção ampla de autoridade do empregador.  
Esta é a conceção que enformou as leis de acidentes de trabalho subsequentes[7], a saber a n.º 1942, de 27.7.36 e a n.º 2127, de 3.8.65 (quanto às Lei n.º 100/97, de 13.9.97[8], e 98/2009, de 4.9, releva a ideia do risco de trajeto).
Entretanto, a jurisprudência, designadamente em França, interpretou o art.º 1º da Lei (gaulesa) de 9.4.1898 no sentido de, progressivamente, abranger outras situações em que o trabalhador, não estando no local e no tempo de trabalho, se encontrava ainda sob a autoridade patronal, com a necessária manutenção do nexo de subordinação resultante do contrato de trabalho.
Tal era o caso dos trabalhadores enviados em missão e que eram considerados em serviço até a cumprirem integralmente, aceitando-se que nas deslocações necessárias se compreendia o regresso a casa (p. ex. os caixeiros viajantes); dos alojados pelo empregador nos estaleiros onde laboravam, considerando-se que estavam em serviço até entrarem no alojamento atribuído em termos tais que recuperassem a sua plena liberdade.
Mas também se admitiu a responsabilidade do empregador se o acidente ocorria
- nas instalações da empresa,
- num trajeto por ele imposto,
- se para chegar ao local de trabalho o sinistrado tinha de passar por um local perigoso,
- em transporte fornecido pelo empregador (ou até custeado por ele)[9].
 Tudo isto acarretou uma ampliação da noção de acidentes por motivo de trabalho e conduziu à consagração legislativa da modalidade do acidente in itinere.
Entre nós, a consagração legislativa ocorreu com a Lei n.º 2127 de 3.8.65, regulamentada pelo Decreto n.º 360/71, de 21.8, cuja Base V, n.º 2, al. b), que dispunha: “considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: (b) na ida para o local de trabalho ou no regresso deste, quando for utilizado meio de transporte fornecido pela entidade patronal, ou quando o acidente seja consequência de particular perigo do percurso normal ou de outras circunstâncias que tenham agravado o risco do mesmo percurso”.
Por seu lado, os art.º 10 e 11 do Decreto-Lei n.º 360/71 alargavam a noção aos acidentes ocorridos entre o local de trabalho e a residência habitual ou ocasional e entre qualquer um destes e os locais de pagamento da retribuição e de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente.
Certo é, todavia, que a mesma evolução jurisprudencial prévia à expressa consagração legal se verificou em Portugal[10].
A Lei 2127 veio a ser substituída pela Lei n.º 100/97, de 13.9.97, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, e esta pela Lei 98/09.
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Os acidentes in itinere têm alguma especificidade ou são meros acidentes de trabalho como qualquer outro, com a única particularidade de se dar no caminho?
O acidente in itinere caracteriza-se, precisamente, por ter lugar fora do tempo e do lugar de trabalho que carateriza o acidente de trabalho propriamente dito. Estas diferenças levam-nos a concluir que são diversas as noções de acidente de trabalho (em sentido estrito[11]) e de acidente in itinere. Tendo em comum a conexão trabalho – lesão[12], não partilham os demais elementos “tempo e local de trabalho”[13] [14]. Em suma: os acidentes in itinere são acidentes de trabalho em sentido amplo[15]: têm conexão com o trabalho e a própria lei os designa como tal[16] [17], traduzindo uma extensão da noção de acidente de trabalho (em sentido estrito, isto é, ocorridos no tempo  e no local de trabalho e relacionados com ele), abrangendo também situações que não estariam formalmente [18], compreendidos no conceito indeterminado do art.º 8, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4.9[19]. Deste modo, o acidente no percurso ocorre fora do local e do tempo de trabalho, continuando a ser relevante para o direito infortunístico pela sua relação com o trabalho, já que foi a necessidade de se deslocar por motivos laborais que expôs o trabalhador ao risco do sinistro.
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Dispõe o art.º 9.º da LAT, sob a epígrafe “extensão do conceito”, que
1 — Considera -se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar  proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de  atividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em atividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 — A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 — Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 — No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.
O sinistrado dirigia-se a casa quando o acidente teve lugar, sendo que efetuara um desvio para ir adquirir um produto.
Releva, pois, o n.º 3 deste artigo 9º, relativo a interrupções e desvios.
Cumpre ter em conta, em especial, a seguinte factualidade:
4, 5, 13. O autor reside na Rua (…), e trabalha no Aeroporto de Lisboa, em regime de turnos rotativos com sete horários.
15, 16. Nas deslocações casa/trabalho/casa o autor utiliza o EN (…) de acordo com o trânsito existente em cada altura, demorando em média cerca de 25/30 minutos em cada trajeto.
17, 6, 18, 19, 20. No dia 23-9-2015 o autor tinha o horário das 7h30m às 16h. Nesse dia saiu do seu local de trabalho pelas 16h15m/16h20m. No regresso a casa passou no (…)parou na Loja (…), sita na Rua (…), para comprar uma camisola para o seu afilhado, demorando com tal desvio e aquisição cerca de dez minutos.
21, 22, 23, 7 e 24. Após o que se propunha seguir para casa para permitir a utilização do veículo em que seguia pela sua mulher (o casal dispõe de um único veículo, revezando-se na sua utilização) quando, cerca das 16h30m ao sair do veículo no Prior Velho tropeçou e caiu sobre o pé esquerdo, sofrendo fratura do pé esquerdo.
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Sendo óbvio que inexistiu motivo de força maior ou por caso fortuito que levou o sinistrado a desviar-se do seu caminho habitual, cabe perguntar: foi devido à satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador?
Responde o Tribunal a quo que sim destarte:

Não refere o legislador o que seja “necessidade atendível”.
Atendendo a um critério de adequação social serão tais necessidades as ligadas à vida pessoal e familiar do trabalhador , necessidades que o texto legal não exige que sejam urgentes ou inadiáveis – cfr. Cons. Júlio Gomes,  O Acidente de Trabalho- O acidente in itinere e a sua descaracterização, 1.ª Edição, Outubro de 2013, Coimbra Editora, pgs. 187 e ss. – , não sendo as mesmas limitadas a meras necessidades de um qualquer tipo específico, ou seja, não sendo as mesmas meramente materiais ou de subsistência básica.
Será nesta perspetiva que importa valorar o facto do autor ter efetuado um desvio de cerca de dez minutos para aquisição de um presente que pretendia entregar ao afilhado. Nesta apreciação não se pode deixar de ter em consideração o comportamento normal de um trabalhador colocado na situação do autor, ou seja, com as contingências deste e decorrentes da organização da sua atividade laboral – trabalho por turnos --, e do facto que ter de percorrer uma distância entre o local de emprego e a sua residência. Quanto a este último aspeto, importa considerar que o risco de trajeto, subjacente à tutela do acidente de trabalho in itinere, é uma particularização do risco económico ou de autoridade que recai sobre o empregador e mostra-se condicionada pelas características de organização, planeamento e circulação dentro do território onde se desenvolve a atividade económica das empresas e onde vivem os sujeitos que participam nessa atividade, que a assegura com a sua prestação laboral.
O modelo de organização económica mostra-se dependente da facilidade de circulação não apenas de produtos/bens ou serviços, mas também de trabalhadores enquanto peça fundamental da atividade económica. Para o empregador é, para tanto, fundamental que a sua atividade seja exercida em local onde consegue a comparência da mão de obra necessária à execução da sua atividade. Se tal facilidade de acesso, na perspetiva do trabalhador, também se pode encarar como facilitadora de emprego, certo é que “enquanto ao empregador basta encontrar um local suficientemente bem servido de transportes públicos e/ou de vias de acesso, ao trabalhador o custo da distância repercute-se diariamente, em deslocações, custos de viagens, stress e perda de tempo pessoal de qualidade (seja de descanso, lúdico, convívio familiar e pessoal ou outro).” - Sérgio S Almeida in Notas Sobre Acidentes In Itinere. Qualificação e descaracterização, em PDT, II-2017, pág. 185.
O empregador tem a disponibilidade do trabalhador assegurada por via do horário de trabalho do mesmo, horário cuja determinação, ainda que condicionada pelos limites legais, é efetuada pelo empregador – cfr. art.º 212º do Código do Trabalho – em função da atividade que exerce e dos termos de exercício da mesma.
O trabalhador se é certo que com o trabalho logra a execução de um direito fundamental – art.º 58º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa --, certo é igualmente que a sua restante vivência, pessoal, familiar e social, é condicionada pelo horário de execução da prestação laboral – cfr. art.º 59º, nº 1, al b), do último diploma legal citado.
No caso dos autos, o autor trabalhava em regime de turnos rotativos. Uma tal organização dos tempos de trabalho, que permite ao empregador manter a laboração 24h/24h, é objetivamente condicionadora da vivência pessoal dos trabalhadores pela mesma abrangidos e esse condicionamento não pode deixar de ser ponderado na apreciação das interrupções e desvios que sejam efetuados nos trajetos dos trabalhadores de e para o trabalho. A organização pelo trabalhador da satisfação das suas necessidades pessoais e familiares é condicionada pela coincidência dos seus tempos de repouso – de não trabalho, de não disponibilidade da sua força de trabalho pela empregadora – com os tempos de disponibilidade dos sujeitos com tenha de interagir na satisfação dessas necessidades ou pelos tempos de funcionamen-to/acessibilidade dos serviços ou estruturas a que tenha de aceder para satisfação de tais necessidades. Este condicionamento decorrente da própria organização dos tempos de trabalho determinada pela empregadora não pode ser desconhecido do organizador dos tempos de trabalho e não pode ser desconsiderado na responsabilidade da mesma em matéria de acidentes de trabalho, designadamente na tutela do acidente in itinere. Um trabalhador cuja prestação tem lugar em regime de turnos rotativos não tem a liberdade/disponibilidade de organização da satisfação das suas necessidades não laborais igual à de um trabalhador com horário fixo, estando sujeito a uma constante e variável articulação dos seus tempos de não trabalho com a disponibilidade de terceiros ou com os horários de funcionamento de serviços aos quais careça de recorrer. Nesta perspetiva a interrupção e/ou desvio, por um período de cerca de dez minutos, para aquisição de um bem que o autor se propunha utilizar para oferecer a um afilhado – ou seja, para utilização no contexto das suas necessidades ligadas à vida familiar/pessoal – corresponde a uma interrupção/desvio para satisfação de uma necessidade pessoal e socialmente atendível e mostra-se enquadrável na previsão do nº 3 do art.º 9º da Lei 98/2009”.
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O Tribunal diz o que se reproduziu e di-lo muito bem. A R. objeta que necessidades atendíveis são apenas as imprescindíveis e inadiáveis, o que, notoriamente, mais do que fora da letra da lei (“necessidade atendível” não se compagina, muito claramente, com necessidade imprescindível ou inadiável), está totalmente fora do seu espírito, que visa o ressarcimento dos eventos danosos que o trabalhador sofre pelo simples facto de trabalhar. Estes eventos não se confundem – a letra da lei basta para o mostrar, além da evolução supra exposta – com aqueles infortúnios ocorridos no tempo e local de trabalho; são, antes, muito mais amplamente, aqueles que o trabalhador não sofreria se não fosse, passe a redundância, essa sua qualidade.
Ora, é exatamente isso o que aqui ocorre. O trabalhador, ao fazer compras naquele local e hora está, ainda, a fazê-las porque tem a sua vida organizada em função da sua atividade profissional, que lhe impõe um regresso a casa por aquela hora. Assim, o sinistrado aproveita a viagem, ou seja, a circunstância de ter de se deslocar, para adquirir um bem, sem que, com isto, esteja a abandonar o nexo que existe com o seu trabalho, como seria se efetuasse um desvio alheio à deslocação profissional (e com isto referimo-nos a uma deslocação sem sentido à luz das necessidades de viajar a que está sujeito decorrentes do seu vínculo laboral, e não a um desvio pequeno ou de todo o modo razoável - de outro modo, todos os desvios desqualificariam o acidente in itinere, violando manifestamente o n.º 3 do art.º 9º da LAT) – ou uma interrupção nos mesmos termos incompreensível.
Nem sequer colhem os exemplos referidos pela recorrente: tomar café ou mandar cartas dificilmente se diria corresponderem, numa lógica restritiva, a necessidades atendíveis.
A lógica restritiva poderia ter um exemplo, sim, na ideia de excluir a realização de compras pelo trabalhador, ideia em que não nos revemos, visto que, tratando-se de aquisição de bens essenciais, a sua exclusão equivale simplesmente a negar a proteção aos acidentes em trajeto ocorridos nessas circunstâncias: o trabalhador tem, de uma maneira ou de outra, de efetuar essas compras, não se podendo eximir a tal por lhe ser retirado o seguro – e tem-no, amiúde, devido às circunstâncias decorrentes do emprego, vg horário de saída – pelo que de qualquer modo acabará por as fazer).
Mas mais importante do que olhar para os exemplos é procurar entender o sentido da lei dos acidentes de trabalho neste segmento: abarcar os casos em que o desvio e a interrupção mantêm, com razoabilidade, conexão com a relação laboral, isto é, em que tal é compreensível atenta a situação do trabalhador.
Não há dúvida de que o desvio e a interrupção são, neste caso, razoáveis, surgindo no decurso da viagem de regresso e em termos que não fogem ao  qualquer trabalhador com bom senso poderia fazer.
A R. põe a questão ainda relativamente ao fim da interrupção e desvio, a saber, comprar uma camisola de um clube de futebol para oferecer, desiderato que na sua óptica não corresponde à satisfação de uma necessidade pessoal e socialmente atendível.
Do exposto já flui que não tem de se tratar da satisfação de necessidades básicas. Tomar café não é, cremos, salvo o caso de alguém nele viciado (o que, de todo o modo, não nos impressionaria, dado que o Direito não visa proteger vícios), satisfazer uma necessidade básica. O que importa é que também a necessidade seja compreensível, na perspetiva de alguém com bom senso, enfim, inteligível quer para um empregador quer para um trabalhador (e já agora, e salvo o devido respeito, para uma seguradora) razoáveis. Ora, adquirir uma camisola para oferecer a um afilhado é insuscetível de censura, ainda que não corresponda à satisfação de uma necessidade básica: não é um capricho ou uma conduta disparatada mas sim algo que qualquer pessoa com bom senso poderia fazer.    
De onde se conclui que o desvio e a interrupção em causa mantêm conexão, numa óptica de razoabilidade, com a situação laboral do autor, enquadrando-se, pois, na satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
Destarte, o recurso improcede.
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DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga o recurso improcedente e confirma a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
Lisboa, 05 de dezembro de 2018
Sérgio Almeida
Francisca Mendes
Celina Nóbrega

[1] Sugestivamente, Elias Gonzalez-Posada Martinez, em “El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado” (acessível in http//www.der.uva.es/trabajo.acci2.html) afirma que “o risco, a proximidade de um dano, é o trágico companheiro de viagem de todo o trabalhador”. 
[2] Sobre esta matéria vide Luís Leitão, “Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil (A Natureza Jurídica da Reparação de Danos Emergentes de Acidentes de Trabalho e a Distinção entre as Responsabilidades Obrigacional e Delitual)”, in ROA, 778.
[3] Christian Fabry, Les Accidents de Trajet – La Couverture de ce Risque en Droit Francais et en Droit Comparé, Paris, 1970, pag. 10, refere que apenas  ¼ dos acidentes se deviam a culpa do empregador.
[4] A mera existência do vínculo contratual acarretaria, à luz desta perspetiva, a existência de uma cláusula tácita de segurança. A ser assim, porém, nada impediria que o trabalhador renunciasse a ela, ou que fossem acordadas outras limitações. Cfr. Elias Gonzalez-Posada Martinez, El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado”..
[5] Cfr. Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, Jurisdição Laboral, lições ao XVI Curso Normal de Formação de Magistrados.
[6] Inspirando-se na Lei francesa de 9 de Abril de 1898, cujo art.º 1º adotou a conhecida definição de acidente de trabalho como “les accidents survenus par le fait du travail ou à lóccasion du travail”. Esta, por sua vez, foi influenciada pela legislação de Bismark, que pela primeira vez consagrou o princípio da responsabilidade pelo risco profissional.
[7] Sem prejuízo das alterações ao regime inicial da Lei 83, designadamente operadas pelo Decreto n.º 5637 de 10.5.1919, que passou a abranger as doenças profissionais. 
[8] O Código do Trabalho contém no Livro I, Título II o Capítulo V que regula a matéria dos acidentes de trabalho; e o Capítulo VI  que rege as doenças profissionais. Inspirados ainda na teoria do risco de autoridade, não se encontram em vigor por falta da regulamentação  a que alude o art.º 21, n.º 2, al. g) da Lei 99/03, de 27.8, aprovou o Código do Trabalho. Por este motivo centraremos a nossa análise no regime da Lei n.º 100/97.  
[9] Sobre o exposto cfr. Christian Fabry, op. cit., 12 e ss. 
[10] Podem-se mencionar-se várias decisões, por todas Acórdãos do STA  em pleno, de 10.7.58, 20.4.59, 13.4.67, antes de existir lei em vigor sobre os acidentes in itinere, citados por Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., Petrony, 1983, pag. 33. Por seu lado Feliciano Tomás de Resende, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., Almedina, 1988, pag. 20, afirma, referindo-se aos acidentes in itinere, que “a jurisprudência e a doutrina muito discutiram se seriam ou não abrangidos, e na hipótese afirmativa, em que termos, pela Lei n.º 1942, não obstante a ausência de disposição legal expressa”. Dessa discussão já Veiga Rodrigues, in Acidentes de Trabalho – Anotações à Lei n.º 1942, a folhas 20-21 dava conta, citando também ele diversos acórdãos. Por todos menciona-se o Acórdão de 21.10.47: “se é em obediência ao seu contrato individual de trabalho que o trabalhador se dirige da sua casa para o local de execução do trabalho e se no caminho sofre algum acidente este caracteriza-se de acidente de trabalho, porque é por ele sofrido como trabalhador e quando subordinado à empresa e, portanto, sob a autoridade desta”.
[11] Cumpre distinguir entre um sentido amplo de acidentes de trabalho, que engloba os acidentes in itinere e as próprias doenças profissionais, de um sentido estrito, que não abrange estes dois últimos.
[12] A propósito dos eventos provocados pelo próprio trabalhador, quando o resultado é previsto, e querido por ele, refere Juan Jimenez García que “a conexão trabalho – lesão rompe-se, com exceção das lesões e suicídios em que a vontade deliberada e consciente do trabalhador tenha sido alterada devido a uma doença ou lesão prévia decorrente do próprio trabalho” – La Imprudência Temeraria del Trabajador Accidentado como causa de Exoneración de la Responsabilidad Empresarial, pag.9, apud. Cristina Sanchez-Rodas Navarro, 99.
[13] A distinção entre acidentes de trabalho em sentido estrito e acidentes in itinere é comum designadamente na doutrina francesa, que em termos expositivos adota habitualmente uma classificação tripartida.
[14] Não são estas as únicas diferenças. Com efeito, o nexo de causalidade entre o trabalho e o evento é muito claro nos acidentes de trabalho, enquanto que nos acidentes in itinere há “uma ampliação do conceito etiológico ou causal” na expressão da sentença do Tribunal de Julgado Social n.º 20 de Madrid, citado por Cristina Navarro, op.cit., 47.
[15] Neste sentido cfr. também António Martin Valverde e Joaquin Garcia Murcia, Tratado Prático de Derecho del Trabajo y Seguridad Social, Aranzadi Ed., 2002, folhas 4636: “o acidente de trabalho é um acidente de trabalho impróprio, que deriva de circunstâncias concorrentes com a atividade laboral, como são as correspondentes à deslocação que deve realizar o trabalhador para cumprir a sua prestação de serviços”. 
Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado, Almedina, 2ª ed., 48, defende que o acidente in itinere é uma das formas possíveis do acidente de trabalho. 
[16] Este facto é relevante designadamente para a sua interpretação.
[17] Em sentido contrario Cristina Navarro, op. cit., 48, para quem, apesar dos pontos em comum, não se pode qualificar um como género e outro como espécie, sendo os acidentes in itinere “uma figura plenamente autónoma, dotada de perfis próprios”
[18] Dizemos não estariam porque, como é sabido, a noção de acidente in itinere foi segregada pela jurisprudência a partir exatamente da noção de acidente de trabalho, vindo mais tarde a ter consagração formal no texto da lei.
[19] Neste sentido cfr., na doutrina, Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, já citado, e Silvia Payon Marques, op. cit., pag. 7.  Na jurisprudência veja-se p.ex. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.101999, in Colectânea de Jurisprudência, S-III: “o acidente de trabalho in itinere é uma extensão do acidente de trabalho”.