Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1585/10.9TCLRS-A.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: EXAME À ASSINATURA
REQUISIÇÃO DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: -É admissível o exame à assinatura aposta pelo testador em testamento público com fundamento em falsidade do documento consistente em se ter atestado a presença do testador quando o mesmo, alegadamente, não compareceu no notário para a outorga de qualquer testamento.
-Não obsta à realização do exame o facto do testador ter falecido, não devendo o tribunal antecipar-se ao juízo de possibilidade de realização que, em face dos documentos que sejam produzidos, os peritos vierem a emitir.
-O pedido de informações documentais a solicitar pelo tribunal, carece de prévia alegação justificada da dificuldade da parte em as obter.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.Relatório:


M..., nos autos m.id., veio intentar a presente acção declarativa com processo ordinário contra M... e M..., ambos também nos autos m.id., peticionando a condenação destes no pagamento do montante actualizado do legado deixado à Autora por T..., legado que lhe não foi entregue, e cujo montante mínimo estima em €182.798,93, sem prejuízo da avaliação do imóvel a ser objecto de perícia, montante acrescido de juros.

Alegou em síntese que T... fez testamento público, no qual, por conta da quota disponível, lhe legou um prédio urbano, composto de lojas, 1º andar, sótão e logradouro, em Campo de Ourique, e a quantia de seis milhões de escudos. O testador faleceu em 1998. O cabeça-de-casal da herança prestou falsas declarações, no sentido de não haver testamento, pretendendo pois os RR., em violação do testamento que conheciam, sonegarem os bens legados à Autora, e assim obtendo um enriquecimento sem causa. Para tanto, realizaram a habilitação e de imediato, e de má-fé, procederam à venda do imóvel, por vinte e seis milhões de escudos, montante esse, mínimo, que devem pagar à Autora, com juros vencidos e vincendos.

Requereu a realização de peritagem ao valor do imóvel.

Os RR. contestaram, excepcionando peremptoriamente a falsidade do testamento, desde logo pela dissemelhança da assinatura do testador nele constante, por comparação com as assinaturas constantes em fotocópias do Bilhete de Identidade, número de contribuinte e passaporte, como por não cabal identificação das testemunhas (cujo processo de identificação não resulta do documento), testemunhas essas que aliás afirmam a falsidade das suas assinaturas e que nunca compareceram ou estiveram presentes no cartório onde o testamento supostamente foi realizado. Por outro lado, não consta do documento qualquer averbamento do falecimento do testador, o que demonstra que a Autora o tinha em seu poder desde a data nele aposta, em que o testador ainda era vivo, sendo que só a este o testamento podia ter sido entregue.

No sentido da prova da falsidade, requereram a audição da notária, das testemunhas indicadas no testamento, o exame à letra e assinatura destas, e a acareação entre as testemunhas e a notária.

Mais invocaram a nulidade da disposição testamentária, por ter sido realizada no auge duma relação de adultério entre o testador, então divorciado, e a A., então casada. Invocaram ainda a caducidade, quer do direito de aceitar a herança, quer da acção de petição da herança, por terem decorrido dez anos sobre o conhecimento da A. quer de ter sido contemplada no testamento, quer do óbito, visto que detinha o testamento, e de resto tinha conta bancária conjunta com o testador e amigos comuns. À cautela, invocaram a redução da liberalidade, por o seu valor ser muito superior à quota disponível, sendo aliás que à data do óbito, a conta conjunta da Autora com o falecido apresentava saldo positivo. Impugnaram diversa matéria factual constante da petição inicial e finalmente pediram a condenação da A. como litigante de má-fé.

Replicou a Autora, respondendo a todas as excepções, e em particular reiterando a validade do testamento, e requerendo que as assinaturas das testemunhas sejam submetidas a perícia grafológica pela polícia científica, para posterior procedimento criminal caso as testemunhas venham a cometer perjúrio ou prestar falsas declarações em sede de julgamento. Requereu ainda que se oficiasse ao Banco de Portugal no sentido de todas as entidades bancárias a operar à data do óbito informarem de todos os créditos do falecido, e pediu a avaliação de todos os bens imóveis constantes da relação de bens. Mais requereu a condenação dos RR. como litigantes de má-fé.

Notificados nos termos do artº 5º, nº 4 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, vieram os RR. requerer, para além dos documentos já juntos, a seguinte prova documental:

A-tendo em conta o 5º parágrafo da carta datada de 24.3.1999, junta como doc. nº 6 à contestação, que o tribunal oficie ao Millenium BCP (que absorveu o extinto BPSM) para que este esclareça, se possível documentalmente, a data em que informou a A. do falecimento do 2º titular da conta (o testador), e bem assim que forneça aos autos os extractos da referida conta desde inícios de 1995 até finais de 1998 e informe em que data foi essa conta encerrada e por quem, tendo em conta a alegação da A. sobre a data em que tomou conhecimento do óbito.
B-requerem a junção aos autos dum documento que só agora foi possível localizar, para ilidir a data em que a A. diz ter tido conhecimento do óbito, que é uma carta do BSPM de 10.4.2001, enviada ao 1º R., sobre dívida contraída pela testemunha H..., filha da A., e consequentemente requerem que o tribunal notifique o Banco para informar: a que se refere o processo nele identificado; os nomes dos titulares da dívida; qual o título subjacente ao mesmo; se todos os devedores foram notificados do incumprimento; em que datas e por que meios foram notificados para procederem à regularização extrajudicial da dívida; se a mesma foi paga, em que data e por qual dos titulares.
C-Mais requerem que o tribunal oficie à Autoridade Tributária para informar se a A. esteve ou está colectada por alguma actividade profissional e, em caso afirmativo, qual a actividade o período da mesma, tendo em conta o que vem alegado no artigo 1º da PI e tratar-se de informação sigilosa.
Pronunciando-se sobre o requerimento probatório dos RR, a Autora veio opor-se à realização de perícia grafológica pedida, pois que se os RR. queriam atacar a falsidade de documento autêntico teriam que chamar a entidade documentadora mediante intervenção principal provocada, o que não fizeram, e por outro lado, a perícia grafológica não pode fazer-se ao de cujus, acrescendo que a perícia só pode fazer-se com base em documentos originais. Quanto à prova documental, e relativamente à obtenção de informações bancárias de uma conta por si titulada, a Autora não dá a respectiva autorização. Quanto aos outros elementos probatórios requeridos pelos RR. em II-A, podiam os mesmos ter si por si obtidos, não devendo o tribunal substituir-se-lhes. Quanto à carta dirigida ao 1º R. em 2001, a mesma não ilide o alegado no artigo 7º da PI (data do conhecimento pela A. do óbito), pelo que deve ser desentranhada. A prova requerida em II-B deve ser indeferida por ser alheia ao objecto dos autos. Deve ser rejeitado o pedido de informações à Autoridade Tributária sobre a A., por sigilosa e por não ter relevância para os autos.

Foi então proferido despacho sobre os requerimentos probatórios que, relativamente aos RR. tem o seguinte teor:

Fls. 203-204 – RR:
Admito o rol de testemunhas apresentado pelos RR. (10).
Admito a junção aos autos dos documentos juntos.
Admito a junção aos autos dos documentos juntos pelos RR, excepto o que foi junto a fls. 205.
I Perícia
A perícia requerida pelos RR. relativamente à assinatura do testador, T..., não é admissível, não só por se tratar de documento autêntico (artº 363º nº 2 do CC) que tem força probatória plena (artºs 371º nº 1 e 372º do CC) como pelo facto do referido testador ter falecido, uma vez que a perícia à letra é feito pelo confronto da assinatura do visado, com aquele que se quer analisar.
Termos em que se indefere a perícia requerida pelos RR.
II Documentos
O requerido pelos RR. em A) e B) junto do BCP afigura-se irrelevante para os autos, pois o conhecimento pela A. da data do óbito não constitui facto essencial. Por outro lado, os documentos aludidos em B) estão ao alcance dos RR. e não foi demonstrada qualquer dificuldade em obtê-los (artº 266º nº 4, actual artº 7º, nº 4 CPC)
O requerido em C) não tem qualquer relevância para os autos, por não dizer respeito ao objecto do processo.
O documento junto pelos RR. a fls. 205 não tem qualquer relação como o processo, pelo que não admito a sua junção aos autos.
Termos em que se indefere a prova documental requerida pelos RR. e determino o desentranhamento e devolução do documento junto a fls. 205. (…)”

Inconformados, interpuseram os RR. o presente recurso, formulando a final as seguintes conclusões:

A)O presente recurso vem interposto do despacho que recaiu sobre os requerimentos probatórios apresentados pelos RR. na sequência da notificação para os termos do art. 5º do nº4 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, de fls. 203-204, o qual não admitiu a perícia relativamente à assinatura do testador T..., por entender tratar-se de documento autêntico (art. 363º nº 2 do CC) com força probatória plena (arts. 371º nº 1 e 372º do CC) e por a perícia dever ser feita pelo confronto da assinatura do visado e aquele ter já falecido, e,
B)Que a prova documental requerida pelos RR junto do BCP era irrelevante para os autos, uma vez que o conhecimento pela A. da data do óbito não constitui facto essencial e os documentos estarem ao alcance dos RR e não ter sido demonstrada qualquer dificuldade em obtê-los (art. 266º nº 4, actual art. 7º nº 4 do CPC) e,
C)Não ter qualquer relevância para os autos, por não dizer respeito ao objecto do processo, sendo que não foi admitida a junção do documento de fls. 205 por não ter qualquer relação com o processo e ordenado o seu desentranhamento.
D)Ora os RR. reiteraram o teor da prova já requerida nos autos, na sequência da notificação que lhes foi feita, requerendo não só a perícia grafológica (…) do documento junto pela A. como doc. nº 1 - testamento - das assinaturas quer do testador (…) quer das testemunhas (…) nele identificadas, tendente a apurar se tais assinaturas foram feitas pelos punhos de cada um deles, e, no que se refere ao falecido, que o tribunal solicitasse junto dos SIC cópia de todos os pedidos de emissão de bilhete de identidade por parte deste, junto da AT cópia de emissão do nº de contribuinte e junto da entidade respectiva, cópia do pedido de passaporte, sem embargo dos RR. virem a entregar documentos originais donde constasse a assinatura do testador, remetendo para os documentos juntos com a contestação sob  os nº 1, 2, 3 e 4 , uma vez que todas estas assinaturas apresentavam dissemelhanças manifestas.
E)De igual modo, na réplica (artº 17º) a A. requereu a perícia grafológica das assinaturas constantes de tal documento.
F)O tribunal “a quo” limitou-se a não admitir a perícia à assinatura do testador sendo omisso no que tange à perícia requerida, quer pelos RR. quer pela A., às assinaturas das testemunhas (…) o que constitui uma nulidade nos termos do artº 615º nº 1 d) do CPC.
G)Acresce que a recusa injustificada de realização de diligências que se revelem importantes para a justa composição do litígio é passível de ser sindicada em via de recurso (Ac.RP in processo 0854037 de 20.10.2008, sendo certo que a perícia requerida exige conhecimento especiais que não estão ao alcance do julgador (Ac.RP, procº 8354/11.7TBMAI-A-P1, de 21.05.2013 e Ac.RL procº 363/10.0TVLSB-A.L1-6 de 14.11.2013) podendo a mesma ser levada a cabo com base na análise de uma fotocópia (Ac. RP processo 8027/09.0TBVNG-A.P1 de 11.4.2013).
H)Na verdade “A assinatura de um documento, ainda que autêntico, faz fé até prova da sua falsidade – Ac. STJ procº 44768/09.9YIPRT.P1.S1 de 2.5.2012” e sendo a perícia grafológica a única prova admissível tendente a lograr provar a falsidade ou não das assinaturas constantes do documento sobre o qual se baseia o pedido da A. e se se comprovar que as assinaturas nele apostas são falsas, tal documento ainda que autêntico, deixa de fazer fé. Acresce que no caso das testemunhas instrumentárias a falsidade das suas assinatura equivalerá a falta de assinatura, determinando a nulidade do acto nos termos da al. d) do nº 1 do artº 70º do Código do Notariado.
I)Os factos abrangidos pela força probatória de um documento autêntico ficam por ele plenamente provados (e esta prova plena só é elidível mediante a arguição e prova da falsidade – artº 372º nº 1 do CC) falsidade que pode ser invocada relativamente a quaisquer declarações produzidas perante o documentador ou a documentos que lhe sejam apresentados (Ac. STJ processo nº 1588/06.8TCLRS.L1.S1 de 2.5.2012).
J)O tribunal “a quo” ao rejeitar a requerida perícia violou o disposto no artº 6º do CPC, não garantido a justa composição do litígio, pois que, a prova, para tal necessária, foi denegada pelo despacho sob recurso.
L)O mesmo sucede com o indeferimento da prova documental requerida pelos RR. quer no que concerne às diligências a efectuar junto do BCP para apuramento da data em que a A. teve conhecimento da abertura da sucessão, tendo em conta o 5º parágrafo da carta datada de 24 de Março de 1999, junta pelos RR como doc nº 6 à contestação e contraprova do alegado pela A. no artº 7º da PI, tanto mais que os RR. invocaram, em sede de contestação, a caducidade do direito de aceitação da herança, decorridos que sejam 10 anos, contados a partir do conhecimento, por parte do herdeiro testamentário, quer do facto de ter sido contemplado pelo de cujus, quer do conhecimento do óbito, nos termos dos arts. 2050º nº 1 e 2059º nº 1 do C.Civil, excepções que são de conhecimento oficioso.
M)Que a A. teve conhecimento, logo em 1995, da sua qualidade de “herdeira testamentária” já se encontra provados nos autos, pela junção do documento nº1 à petição inicial – testamento – do qual não consta o averbamento do óbito do de cujus.
N)Recusou o Tribunal “a quo” apurar junto da AT qual a actividade e o período da mesma tendo “..o convívio laboral…”  invocado pela A. no artº 1º da petição inicial, prova que também está vedada aos RR. obter, dado tratar-se de informações sigilosas, não disponíveis a terceiros.
O)Recusou o Tribunal “a quo” a junção aos autos do doc. de fls. 205 entendendo, nesta fase, que o mesmo não tem qualquer relação com o processo, não ignorando que todos os articulados desta acção, entrada em Março de 2010, terminaram muito antes das alterações legislativas da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho, pelo que, para além do mais, o dever de colaboração do tribunal para com as partes é também o dever de auxiliar estas na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos.  A prova da data do conhecimento por parte da A., da data em que ocorreu o óbito do “testador” é um facto essencial para que o Tribunal “a quo” possa decidir as excepções invocadas pelos RR. é determinante para a descoberta da verdade, nos termos do nº 3 do ex- artº 264º do CPC, actual artº 5º, ex-artº 265º, actual 411º (parcialmente) e ex- artº 515º, actual artº 413º do CPC, 411º e 418º do CPC.
Q)Só de posse de todos os elementos requeridos pelos RR., se obterá o apuramento da verdade, nestes autos, o que conduzirá à justa composição do litígio que nos ocupa.
Não o tendo feito, o tribunal “a quo” estará a violar o princípio da cooperação resultante do nº 1 do artº 7º (ex- artº 266º) do CPC.
Concedendo provimento ao recurso, tendo em conta as nulidades invocadas (nº 1 al. d) do artº 615º do CPC) e a violação das normas identificadas (artº 5º, 6º, 7º nº 1, artº 411º e 413º, 418º, 432º, 436º, 475º e 482º do CPC e nº 2 do artº 370º e nº 2 do artº 372º do CC) e consequentemente revogado o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro que admita a perícia e a prova documental requerida a fls. 203 e 204 bem como a junção do documento de fls. 205.

Contra-alegou a A. formulado a final as seguintes conclusões.
1.O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação transitando em julgado as questões nelas não contidas.
2.Os RR suscitaram o incidente da falsidade de um testamento público lavrado no 21º Cartório Notarial pela Notária Drª Lídia Pereira Nunes de Menezes.
3.-Requereram a realização de exame à letra e assinatura das testemunhas instrumentárias constantes desse documento alegando que as suas assinaturas, bem como a do testador, tinham sido falsificadas.
4.-Daqui se retira que “em qualquer das duas variantes destacadas no nº 2 do art. o vício da falsidade procede de um acto imputável ao próprio funcionário documentador” (RLJ, 108º - 135).
5.-Com tanto se demonstrando ser obrigatório que a acção deva ser proposta também contra o Notário ou seja, que no incidente de falsidade deveria ser provocada a intervenção principal ao lado da A. da Notária do 21º Cartório Notarial Drª Lídia Pereira Nunes de Menezes.
6.-O que não ocorreu.
7.-Pondo em causa a idoneidade da Notária (…) sem que a chamassem à demanda como é de Lei.
8.-Por este facto deve ser negado provimento ao presente recurso.
9.-Nas suas conclusões, os RR delimitaram o âmbito do recurso nas alíneas A) B) e C) o que vale por dizer que limitaram expressamente a não admissão à perícia grafológica relativamente à assinatura do testador T... (Conclusão A), à prova documental requerida pelos RR junto do BCP (Conclusão B) e à não admissão da junção do documento de fls. 205 (Conclusão C).
10.-Não poderá a recorrida deixar de sublinhar que em nenhuma das conclusões do recurso foi invocado um único vício que resultasse da decisão ora recorrida com excepção da violação do disposto no artº 6º do CPC, alegando na alínea J) das mesmas.
11.-Fazendo antes um arrazoado no pedido em que os RR invocam genericamente nulidades e violação de normas – sem que se perceba a que nulidade ou violação de normas pudessem ser subsumidas as decisões da Meritíssima Juiz do tribunal a quo – em violação do artº 637º nº 2 do CPC, uma vez que é nas concussões (e não no pedido que deve ser indicado o fundamento específico de recorribilidade).
12.-Pelo que não deve ser dado provimento ao recurso.
13.-Sabe-se que o vício da falsidade a que se alude no art. 372º do C.Civil tem, inevitavelmente, que proceder de um acto imputável ao próprio funcionário documentador, que poderá consistir na composição ou adulteração do documento, com o intuito de representar um facto que na realidade não se verificou.
14.-No presente caso não foi impugnada a força probatória formal do documento (saber se ele provém da entidade a quem é atribuído), mas sim a sua força probatória material (saber em que medida os actos nele referidos e os facos nele mencionados correspondem à realidade). (AC. STJ de 9.2.2006 [Araújo Barros] – processo 05B3177 in www.gde.mj.pt).
15.-Se os RR pretendiam atacar a falsidade do documento autêntico teriam que chamar a entidade documentadora com intervenção principal provocada (art. 325º nº 1 do Código de Processo Civil).
16.-O que não fizeram.
17.-Por outro lado, a perícia grafológica já não poderia ser realizada relativamente ao “de cujus”.
18.-A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo debruçou-se e conheceu da prova pericial requerida no seu todo dado que tratando-se de documento autentico e não tendo os RR suscitado a intervenção principal provocada da autoridade documentadora, o documento tem força probatória plena, sendo inútil a perícia grafológica das testemunhas instrumentárias cujos BI foram juntos aos autos pelos RR neles se constatando a exacta semelhança das assinaturas neles apostas com as assinaturas constantes do testamento.
19.-No seu requerimento probatório os RR. requereram três provas documentais, a saber (…)
20.-Quanto ao requerido em A. os RR pretendiam obter informações bancárias sobre uma conta titulada pela A. não tendo esta dado a sua autorização.
21.-Quanto aos restantes elementos probatórios requeridos A) os RR poderiam ter obtido junto da entidade bancária caso tivessem remetido à mesma “a certidão das finanças comprovativa de que as verbas existentes no banco à data do óbito haviam sido relacionadas no processo de habilitação e pago o respectivo imposto sucessório”.
22.-O que não fizeram.
23.-Não podendo, no requerimento probatório, requerer que o Digno Tribunal obtivesse prova que a parte pudesse ter junto.
24.-Quanto ao requerido pelos RR em A) e B) a Meritíssima Juiz do tribunal a quo decidiu e bem que as provas requeridas seriam “irrelevantes para os autos pois o conhecimento pela A. da data do óbito do falecido não constituía facto essencial”
25.-Por outro lado, os documentos aludidos em B estão ao alcance dos RR e não foi demonstrada qualquer dificuldade em obtê-los (art. 266º nº 4, actual artº 7º nº 4 do CPC)”
26.-Indeferindo também a junção do documento que faz fls. 205 e que foi junto como Doc. 1 ao requerimento probatório dos RR, ordenando o seu desentranhamento por não ter qualquer relação com o processo.
27.-À prova requerida pelos RR – C) Documental (ofício à AT para informação da colecta da A. por alguma actividade profissional) – a A. alegou que tal informação, além de sigilosa, não tinha qualquer relevância para o apuramento dos factos em questão dado que o legado se deveu a uma relação de amizade por mais de 10 anos com o falecido na sequência de um convívio laboral, tendo os RR. afirmado que a A. tinha tido um relacionamento amoroso com o falecido.
28.-A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo decidiu, e bem que o requerido em C) não tinha efectivamente qualquer relevância para os autos por não dizer respeito ao objecto do processo.
29.-A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo teve o cuidado de não só justificar fundamentadamente a não admissão de algumas provas requeridas pelos RR como ainda revela um extremo cuidado na análise de todas as peças processuais e do objecto do processo, não padecendo a decisão ora recorrida de qualquer dos vícios invocados e muito menos o da violação do princípio da cooperação que resulta do nº 2 do artº 7º do CPC.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II.-Direito.

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, as questões a decidir são:
-a nulidade do despacho por omissão, nos termos do artigo 615º nº 1 d) do CPC;
-a admissibilidade do exame grafológico à assinatura do testador;
-a admissibilidade da prova a solicitar pelo tribunal ao Millenium BCP;
-a admissibilidade do documento nº 1 junto pelos RR com o seu requerimento probatório.

III.-Matéria de facto.
A constante do relatório que antecede.

IV.-Apreciação.

1ª questão:
A decisão recorrida não se pronunciou sobre a perícia requerida, de resto por ambas as partes, às assinaturas das testemunhas no testamento. Vem por isso invocada a nulidade por omissão, nos termos do artigo 615º nº 1 d) do CPC.
De facto, os termos do despacho não são claros: se não admite “relativamente” à assinatura do testador, parece que implicitamente admite quanto às assinaturas das testemunhas. Não havendo porém menção expressa dessa admissão, e devendo entender-se, tão mais por razões de economia processual, que o despacho que se pronuncia sobre os meios de prova requeridos pelas partes é o momento processual para a apreciação de todas as provas até aí requeridas, ocorre então a mencionada nulidade por omissão de pronúncia.
Na procedência desta questão, e estando nos autos todos os elementos necessários para o conhecimento da perícia requerida e tendo as partes tido oportunidade de se pronunciarem no recurso e nas contra-alegações, entendemos que nada obsta a que, em consequência da procedência da nulidade, se determine a admissibilidade da perícia requerida às assinaturas das testemunhas, enquanto meio de prova absolutamente pertinente para a demonstração da falsidade do testamento, como melhor se verá na questão seguinte, e na medida ainda em que a simples acareação da notária com as testemunhas pode, sem essa demonstração, ser insuficiente.
Procede pois esta questão.

2ª questão:
O exame grafológico à assinatura do testador foi recusado com base quer na qualidade de documento autêntico do testamento e por isso na sua força probatória plena, quer com base na impossibilidade de realização, por o testador já ter falecido.
Resumindo a contestação, os RR. entendem, não que o testamento não tenha sido feito no 21º Cartório Notarial pela Notária Lídia Menezes, mas que as testemunhas não compareceram nesse cartório e portanto as suas assinaturas foram falsificadas (objecto aliás da pretendida acareação entre a notária e as testemunhas também aqui oferecidas nessa qualidade) e o mesmo se passa, ainda que os RR. não tenham a pessoa do testador para o afirmar, relativamente a este. Também a sua assinatura é falsa, porque o mesmo não fez, muito suspeitam os RR., nenhum testamento a favor da A., ou mais concretamente, porque o seu falecido pai não esteve também presente no cartório.
Deste modo, há falsidade na afirmação da presença de tais pessoas no cartório, para a realização do testamento e portanto também para a declaração testamentária que o testador teria feito. Portanto, esta presença e a suposta declaração, enquanto facto resultante da observação ou percepção directa do funcionário documentador, e por ele atestada, não correspondem à verdade.
Nos termos portanto em que a contestação vem formulada, está fora de dúvida que o testamento em causa é um documento autêntico – artigo 369º do Código Civil – cuja força probatória plena incide sobre os factos nele atestados com base as percepções da entidade documentadora – artigo 371º, nº 1 do Código Civil. Por isso, essa força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade – artigo 372º nº 1 e nº 2 do Código Civil: “O documento é falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou (…)”.

Os RR. arguiram a falsidade do documento por via de excepção, na sua contestação, requerendo para tanto, que o tribunal procedesse à audição da notária, à realização de exame à letra e assinatura das testemunhas (mais tarde também do testador) e que procedesse à acareação entre a notária e as testemunhas identificadas como tendo assinado o testamento. 

Nas contra-alegações, a A., invoca a inadmissibilidade da prova pericial à assinatura do testador porque os RR. não deduziram a intervenção principal provocada da notária, sem porém adiantar qualquer razão para justificar este argumento.
Não cremos que lhe assista razão: a intervenção principal provocada pressupõe uma situação de litisconsórcio voluntário ou necessário – artigos 311º e 316º do CPC – uma pertença do interveniente à relação material controvertida, em termos tais que se pudesse associar ao interesse de qualquer uma das partes. Não é manifestamente o caso, nunca a notária estaria ao lado da A. a reclamar parte do legado, ou do lado dos RR. a reclamar que não teria de entregar o legado, legado esse ao qual ela é absolutamente alheia. Poderia a notária ser convocada a participar na acção – artigo 321º do CPC – para ser convencida dos factos que determinariam um direito de regresso de uma das partes contra ela? Trata-se apenas de saber se o testamento é falso ou verdadeiro: se for falso, os RR. não serão condenados e a A. nada, sob o ponto de vista jurídico, perderá, porque nada, afinal, tinha direito a receber – donde, a A. não pode arrogar-se nenhum direito de regresso contra a notária. Se for verdadeiro, não podem os RR. arrogar-se nenhum direito contra a notária, porque o responsável da “diminuição” da sua herança é afinal o testador.
Donde, na verdade, trata-se apenas de saber se o testamento é verdadeiro ou falso para o que a lei processual prevê o incidente de falsidade – actualmente, artigo 446º do CPC – mas não qualquer incidente de intervenção de terceiros.
Os RR. não se referiram expressamente a um incidente de falsidade, mas os termos do processamento deste são absolutamente compatíveis com o processamento da excepção através da qual os RR. invocaram a falsidade do testamento, nada obstando a que se proceda no sentido da demonstração dessa falsidade. Na verdade, a arguição pode ter lugar na contestação, ao que se segue resposta – artigo 448º do CPC – negação de seguimento se a arguição for manifestamente improcedente ou dilatória ou se o documento não tiver influência na decisão – o que não obriga à emissão de juízo se tais razões não se verificarem – e instrução e julgamento, sendo que a matéria do incidente é considerada nos temas da prova e a produção de prova e decisão são conjuntas com as da causa – artigo 449º do CPC. 
Resta então saber se a prova pericial indeferida teria de o ser, por não se poder comparar a assinatura atribuída ao testador no testamento, senão com assinaturas que o mesmo viesse a fazer para o exame.
Salvo o devido respeito, a assinatura que o testador haja feito nos requerimentos de bilhete de identidade sucessivamente renovado, no requerimento de atribuição de número de contribuinte ou nos requerimentos de atribuição de passaporte, a assinatura que conste dos bilhetes de identidade originais ou do passaporte, será original, tanto mais quanto essa originalidade não for posta em causa: - é a assinatura efectivamente aposta em outros documentos, ao lado da assinatura aposta no original do testamento, que poderá levar a um juízo comparativo, tão mais apurado quanto mais numerosos forem os documentos.
Por outro lado, mesmo que o tribunal apenas logre obter das instituições fotocópias de documentos – e sem prejuízo da junção de mais documentos protestada pelos RR. – é aos peritos que incumbe, na sua estrita competência pericial, e perante os documentos que lhes forem apresentados, afirmar se o exame é ou não é possível. Não cumpre assim ao tribunal antecipar-se a este juízo, e indeferir a perícia requerida com base numa presunção de impossibilidade.
Nestes termos, procede o recurso nesta questão.

3ª questão
Os RR. requereram ao tribunal que este notificasse o Banco para esclarecer, se possível documentalmente, a data em que informou a A. do falecimento do 2º titular da conta (o testador), e bem assim que forneça aos autos os extractos da referida conta desde inícios de 1995 até finais de 1998 e informe em que data foi essa conta encerrada e por quem, tendo em conta a alegação da A. sobre a data em que tomou conhecimento do óbito.
Reitere-se, esta prova visa apurar a data em que a A. teve conhecimento do óbito, e por isso, como é manifesto, é totalmente irrelevante a obtenção dos extractos bancários da conta no período mencionado. Saber se o Banco comunicou à A. o falecimento do testador, e saber se a conta foi encerrada e por quem, já atinge ou tem a potencialidade de atingir o alvo pretendido: saber a data em que a A. teve conhecimento do óbito.
O tribunal não admitiu esta prova por entender que a data do conhecimento do óbito não era um facto essencial.
Se os RR excepcionaram a caducidade do direito de aceitação da herança – artigo 2059º do Código Civil – e por inerência, do direito de peticionar a herança – artigo 2075º nº 2, parte final, do Código Civil – se o sucessível tem 10 anos para aceitar a herança, a partir do momento em que a ela seja chamado, e se o chamamento ocorre após a abertura da sucessão e esta se dá no momento da morte – artigos 2032º e 2031º ambos do Código Civil – então se, no caso dos autos, é controvertido que os RR tivessem conhecimento da existência do testamento que instituía um legado a favor da Autora, não lhes podendo ser imputada, se não tivessem conhecimento, nenhuma falta de comunicação à A., ao mesmo tempo que não é controvertido que a A. tivesse o testamento em seu poder, isto é, não é controvertido que a A. soubesse que era legatária, deve considerar-se essencial, nesta fase processual, que o momento do conhecimento, pela A., da morte do testador, seja o termo inicial da contagem do prazo de caducidade.
Simplesmente, embora o despacho se refira à não alegação e demonstração de dificuldade de obtenção de documentos no que toca à informação a solicitar sobre a dívida da filha da A. (B do requerimento probatório dos RR), a verdade é que o mesmo se pode dizer de A do mesmo requerimento, isto é, destas informações que agora apreciamos.
Com efeito, nos termos do artigo 266º nº 4 do CPC na versão em vigor à data do requerimento probatório – e actualmente previstos no artigo 7º nº 4 do CPC – o juiz deve promover a remoção do obstáculo que a parte tenha na obtenção de informação que condicione o eficaz cumprimento de ónus processual, neste caso probatório, sempre que a parte alegue justificadamente dificuldade séria na obtenção dessa informação. Ora, não houve qualquer alegação de dificuldade séria, e muito menos justificada, na exacta medida em que, sendo a conta conjunta, os RR., como herdeiros habilitados do co-titular, podiam ter acesso à informação bancária pretendida.
Nestes termos, e quanto a esta questão, improcede o recurso.

4ª questão
Relativamente ao documento não admitido e mandado desentranhar, constituído por uma carta do Banco Pinto e Sotto Mayor, datada de 10-4-2001, e mandada ao Réu, relativa a um processo de dívida contraída pela testemunha arrolada pela A. e que é filha desta, e relativamente ao qual os RR. pretendem que o tribunal notifique o Banco para informar nos autos a que se refere tal processo, quais os nomes dos titulares da dívida, qual o título subjacente ao mesmo, se todos os devedores foram notificados do incumprimento, em que datas e por que meios foram os mesmos notificados para procederem à regularização extrajudicial da dívida, e se a mesma foi paga, em que data e por qual dos titulares.  
Pugnam os RR. pela relevância do documento e das informações que relativamente a ele pretendem, como forma de ilidir o conhecimento recente do óbito do testador, alegado pela A., em vista da excepção de caducidade com que se defenderam.
Salvo o devido respeito, não se entende como é que o documento e informações podem levar à prova do conhecimento, da data de conhecimento pela A., do óbito do testador: mesmo que o falecido tivesse tido intervenção no negócio, tivesse sido notificado do incumprimento e para regularizar, mesmo que tivesse pago, isso naturalmente implicaria que não teria, a essas datas, falecido ainda. Pelo contrário, se tivesse já falecido, então que tivesse sido a A. a ter intervenção no negócio, ou a ser notificada ou a ter pago, isso significaria que ela sabia que o testador tinha falecido? Não nos parece haver aqui qualquer relação necessária, não sendo obviamente necessário que os titulares duma conta conjunta mantenham o contacto entre si, e que as comunicações que o Banco lhes faça necessariamente impliquem que os titulares voltem a entrar em contacto.
Portanto, com o devido respeito, o documento em causa reporta-se a um facto que não tem ligação com a relação material controvertida, nem ela se encontra nas informações pretendidas obter do Banco. Trata-se pois de uma prova manifestamente irrelevante, o que autoriza a decisão tomada, em excepção a um princípio geral de não interferência na liberdade de defesa das partes, assim improcedendo o recurso quanto a esta questão.

Concluindo.

Procede o recurso quanto à primeira questão, determinando-se a admissibilidade da perícia às assinaturas das testemunhas presenciais constantes do testamento, e procede ainda o recurso quanto à segunda questão, impondo-se revogar a decisão recorrida na parte em que indeferiu a perícia requerida pelos RR. relativamente à assinatura do testador, T..., devendo tal decisão ser substituída por despacho que a admita e ordene os correspondentes ulteriores termos processuais, de realização da perícia quer à assinatura do testador quer às assinaturas das testemunhas presenciais constantes do testamento.
Tendo ambas as partes decaído parcialmente, a percentagem de condenação em custas é fixada em ½ para cada uma das partes – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC. 

V.Decisão.

Nos termos expostos, acordam julgar parcialmente procedente o recurso e em consequência determinar a admissibilidade da perícia requerida às assinaturas das testemunhas presenciais constantes do testamento e revogar a decisão recorrida na parte em que indeferiu a perícia requerida pelos RR. relativamente à assinatura do testador, T..., ordenando a sua substituição por despacho que a admita e ordene, quanto à totalidade da perícia requerida, os correspondentes ulteriores termos processuais.
Custas por ambas as partes, na proporção de ½ para cada parte.
Registe e notifique.



Lisboa, 13 de Outubro de 2016

Eduardo Petersen Silva
Maria Manuela Gomes
Fátima Galante
Decisão Texto Integral: