Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
872/16.7JFLSB-D.L1-5
Relator: CID GERALDO
Descritores: ARRESTO
CRIMINALIDADE ECONÓMICO-FINANCEIRA
CRIMINALIDADE ORGANIZADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - O legislador português, ao lado da perda dos instrumentos e produtos do crime (art. 109.º do Código Penal) e da perda das suas vantagens (art. 111.º do mesmo diploma legal), criou um forte regime de perda ampliada ou alargada (arts. 7.º e seguintes da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro), que abrange bens que o Ministério Público não consegue relacionar com um qualquer crime concreto.
- No âmbito do combate à criminalidade organizada e económico-financeira, esta Lei estabeleceu regimes especiais em matérias como a recolha de prova, a quebra do sigilo fiscal e bancário e a perda de bens a favor do Estado.
- Existe diferença entre a perda clássica e a perda alargada que se verifica essencialmente ao nível das garantias processuais.
- Na verdade, as garantias processuais penais da perda clássica consistem na apreensão (arts. 178.º e ss. do Código de Processo Penal), na caução económica (art. 227.º do CPP) e no arresto preventivo (art. 228.º do mesmo diploma legal); enquanto que as garantias da perda alargada consistem no arresto (art. 10.º da Lei n.º 5/2002), que cessa se for prestada caução económica (art. 11.º da referida lei).
- A “titularidade” a que alude a referida Lei (art.º 7º) é idónea a compreender não apenas o direito de propriedade mas também outras formas jurídicas pelo que todos os bens de que o arguido tenha o domínio e o benefício, ou tenham sido por este transferidos para terceiro a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à sua constituição como arguido, continuam, quer para efeitos de perda quer para efeitos de arresto, a ser “bens do arguido”.
- Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita auferidos pelo arguido naquele período e, se desse confronto, resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado, uma vez que, condenado o arguido, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime do catálogo, opera a presunção (juris tantum) de origem ilícita desse valor.
- Sendo manifesta a forte indiciação da prática de crimes de corrupção passiva por parte dos arguidos, constantes do catálogo do art. 1.º, n.º 1, f) da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, e se, para além da forte indiciação de crimes constantes do catálogo, após recolha de elementos bancários e fiscais, devidamente analisados pelo Gabinete de Recuperação de Activos, foi possível concluir pela forte indiciação de desconformidade entre o que foi licitamente auferido e declarado pelos arguidos aqui visados e aquilo que possuem – o que aliás, é patente na liquidação elaborada nos termos do art. 7.º, n.º 1 e 8.º da Lei n.º 5/2002, de 11.1, pela qual se liquida o valor das vantagens decorrentes de actividades ilícitas desenvolvidas pelos arguidos, encontram-se preenchidas as apontadas especificidades  para solicitar e decretar o arresto nos termos da Lei n.° 5/2002.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

1. No âmbito do Inquérito com o nº 872/16.7JFLSB-D, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 4, o Mº Pº vem recorrer do despacho proferido pelo Mmª Juiz de Instrução Criminal de 14.09.2018 proferido no âmbito do procedimento cautelar autuado por apenso aos autos principais 872/16.7JFLSB, que considerou o pedido de arresto efectuado pelo Ministério Público no âmbito do regime previsto na Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, como manifestamente improcedente, indeferindo, nessa sequência, a petição inicial nos termos do disposto no art. 590.° do Código de Processo Penal (certamente por lapso, a Meritíssima Juiz a qua indicou a norma do Código de Processo Penal quando quereria dizer Código de Processo Civil).
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:

1. Por despacho de 14 de Setembro de 2018, a Meritíssima Juiz a quo indeferiu a pretensão do MP de se proceder ao arresto nos termos da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, no que respeita ao património dos arguidos R. , C. , A. , Q. e B. .
2. Na base da fundamentação do despacho, que considerou manifestamente improcedente a petição inicial nos termos do art. 590.° de Código de Processo Civil, encontram-se argumentos de ordem formal, a saber:
- a alegada falta de indicação do valor da providência cautelar;
- o facto de terem sido formulados pedidos de natureza diferente, para além do pedido de arresto;
- falta de alegação de factos que demonstrem o fundado receio de diminuição das garantias patrimoniais, bem como a inexistência do mesmo, uma vez que é requerido o arresto sobre contas bancárias que já estão apreendidas nos autos principais.
3. O teor do despacho recorrido, porém, revela uma interpretação do conteúdo e aplicação da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, bem como da medida de arresto que aí está prevista, que não se afigura adequada, como procurámos demonstrar na motivação do recurso e procuraremos demonstrar nas conclusões do mesmo.
Vejamos.
4. A aplicação do confisco alargado nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro está dependente, primeiramente, da verificação de dois requisitos essenciais:
i. A indiciação pela prática de um crime do catálogo constante do art. 1.º, n.º 1 dessa mesma lei;
ii.  Que o arguido possua património incongruente com o seu rendimento lícito.
5. Após verificados estes dois requisitos essenciais e primordiais, há, pois, que proceder à liquidação do valor da incongruência, sendo que o momento mais adequado para apresentação da mesma será aquando da dedução da acusação ou em data posterior, desde que ocorra até ao 30.º dia anterior à data designada para a audiência de discussão e julgamento, tudo conforme consta dos artigos 8.2, n.º 1 e 2 da Lei n,º 5/2002, de 11 de Janeiro.
6. De forma a salvaguardar a existência de bens do arguido que permitam saldar o valor da incongruência encontrado após realização da investigação patrimonial e financeira, há uma medida concretamente prevista na Lei n.º 5/2002, que se denomina de arresto, sendo certo que, apesar do nome ser comum a outras tantas medidas previstas em legislação penal e civil, este arresto assume uma dinâmica e requisitos muito próprios.
7. Com efeito, nos termos do art. 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro:
«1. Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.° 1 do art. 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2. A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário, antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o MP pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.
3. O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do art. 227.° do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4. Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal».
8. Sobre os pressupostos de aplicação deste artigo 10.º (ou deste arresto), rege unicamente o nº 3 do citado dispositivo legal, que nos diz que: «O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do art. 227º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.».
9. Ora, no âmbito dos autos principais foi proferida acusação no dia 28 de Fevereiro de 2018 contra 23 arguidos, de entre os quais R. , C. , A. , Q. e B. , pela prática de factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de corrupção passiva, nos termos dos artigos 373º, 386º e 28º, todos do Código Penal (entre outros ilícitos criminais). Em concreto:
i. ao arguido R.  foram imputados dois crimes de corrupção passiva agravados, cometidos em co-autoria material, previstos e punidos pelos artigos 373.º, n.º 1, 374.º-A, n° 2 e 3 e 386.º, n.º 1, a) e 26º, ex vi art. 202.º, b) do Código Penal; de um crime de branqueamento de capitais, previsto e punido pelo art. 368.º-A, n.° 1, 2, 3 e 6 do Código Penal praticado em em co-autoria; de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art. 6.º, n.º 1 e 4, a) e b) da Lei do Cibercrime e de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art. 382º do Código Penal, ex vi art. 386º, nº 1, a) do mesmo diploma legal;
ii. À arguida C.  foi imputado um crime de corrupção passiva agravado, cometido em co-autoria, previsto e punido pelo art. 373º, nº 1, 374º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202º, b) e 386º, nº 1, a), 26º e 28º, todos do Código Penal.
iii. Ao arguido A.  foi imputada a prática de um crime de corrupção passiva agravado cometido em co-autoria material, previsto e punido pelos artigos 373º, nº 1, 374º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202.º, b) e 386º, nº 1, a) e 26.ºdo Código Penal.
iv. Ao arguido Q. foi imputada a prática de um crime de corrupção passiva agravado, cometido em co-autoria, previsto e punido pelo art. 373º, nº 1, 374º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202º, b) e 386º, nº 1, a), 26º e 28º, todos do Código Penal.
E ao arguido B. , foi imputada a prática de um crime de corrupção passiva agravado, cometido em co-autoria, previsto e punido pelo art. 373º, nº 1, 374º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202º, b) e 386º, nº 1, a), 26º e 28º, todos do Código Penal.
10. Descreveu-se na acusação, em traços gerais, que os arguidos funcionários da Segurança Social mantinham uma actividade de criação de Números de Identificação de Segurança Social (NISS's) para indivíduos estrangeiros que se encontravam em condições irregulares no nosso país, a troco de dinheiro, actividade essa que executavam em conluio com outros cidadãos estrangeiros, que apelidámos de intermediários.
11. Dessa acusação, retira-se que foram criados mais de 5000 NISS e gerados lucros com essa actividade ilícita na ordem de quase um milhão de euros!
12. A sustentar tal acusação foi indicada prova coligida em sede de inquérito que inclui intercepções telefónicas, buscas, intercepções de e-mails pessoais e profissionais, vigilâncias, perícias aos computadores e telemóveis, testemunhas, documentação bancária e fiscal, e até, elementos probatórios que têm carácter sigiloso, de onde se extrai toda a factualidade exposta em libelo acusatório.
13. Pelo que, tal como foi dado a conhecer à Meritíssima Juiz a quo, através da liquidação que lhe foi apresentada, é manifesta a forte indiciação da prática de crimes de corrupção passiva por parte dos arguidos R. , C. , A. , Q. e B. , crime constante do catálogo do art. 1º, n.° 1, f) da lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, alicerçada na panóplia de elementos probatórios que foram recolhidos nos autos.
14. No caso dos autos, em particular, ainda importa reflectir que, para além da forte indiciação de crimes constantes do catálogo, finda a investigação patrimonial e financeira no âmbito dos autos principais, o Gabinete de Recuperação de Activos da Polícia Judiciária concluiu pela forte indiciação de desconformidade entre o que foi licitamente auferido e declarado pelos arguidos aqui visados, e aquilo que possuem.
15. De tal sorte que a existência de desconformidade patrimonial no que respeita aos arguidos R. , C. , A. , Q. e B. , se cifra num total de cerca de 801.928,41€ - veja-se que é quase um milhão de euros!
16. Pelo que, em face das referidas evidências, não houve dúvidas em requerer a aplicação do arresto nos termos da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro e não temos dúvidas de que estão verificados os pressupostos para o decretar.
17. O primeiro argumento que é lançado pela Meritíssima juiz a quo para considerar o arresto improcedente, alicerça-se na ausência de indicação de valor da providência cautelar.
18. Este tipo de argumento permite compreender que o Tribunal assumiu de antemão que ao regime do arresto da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, se aplicam as regras constantes do Código de Processo Civil (CPC), designadamente, as que dizem respeito ao procedimento cautelar especificado de arresto.
19. A razão pela qual assim entendeu nem ficou espelhada na sua argumentação, porquanto dos artigos citados no despacho recorrido — art. 391º e 392.° do CPC e artigo 10º da Lei nº 5/2002, não se retira qualquer conclusão automática de que as regras aplicáveis são as do CPC.
20. Na realidade, ficou por dizer e explicar por parte da Meritíssima Juiz a quo que, a aplicação dos artigos 391.° e 392º do CPC advinham, no seu entender, primeiro, da remissão que é feita no art. 10º, nº 4 da Lei nº 5/2002 para o regime do art. 228º do Código de Processo Penal, que diz: «Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo no Código de Processo Penal» e, em segundo lugar, da remissão que é feita no art. 228º, nº 1 do Código de Processo Penal, que refere «Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil (...)».
21. Mas nem todas as regras do processo civil são aplicáveis ao arresto da lei n.° 5/2002, designadamente, aquelas que dizem respeito ao formato do pedido.
22. Seguindo de perto António Santos Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, volume 1, página 118 e ss, verificamos que «A petição inicial constitui o acto fundamental do processo, uma vez que é através dela que alguém — o autor — solicita ao tribunal a concessão de um determinado meio de tutela da direito subjectivo invocado ou de um interesse juridicamente relevante que sustenta determinada pretensão. A jurisdição civil, exercida através das formas processuais previstas no Código de Processo Civil, funciona numa área basicamente dominada pelo direito privado. Por isso, a iniciativa dos interessados é imprescindível para colocar em funcionamento os instrumentos e mecanismos processuais criados para a justa composição dos conflitos de interesses. Não funcionando aqui o orincipio da oficialidade, o Estado, por intermédio dos tribunais, só exercerá o poder soberano de julgar e de definir o direito em concreto se houver alguma iniciativa nesse sentido por parte do autor. A petição inicial constitui, pois, nesta perspectiva, o acto processual através do qual o autor manifesta a sua vontade de obter uma decisão judicial que, com as características da coercibilidade e definitividade, ponha termo ao conflito de interesses subjacente à lide».
23. E que, o «valor processual é um factor que, indirectamente, através da forma processual idónea, influencia a distribuição e a autuação, implicando de modo directo com a liquidação da taxa de justiça inicial, com a competência do tribunal com a verificação do pressuposto processual do patrocínio judiciário e, finalmente, releva em matéria de admissibilidade ou não de recursos ordinários».
24. Ora ao regime do arresto da Lei nº 5/2002 subjazem pressupostos e filosofias próprias do processo penal, daí que o mesmo esteja inserido em legislação que regula o combate à criminalidade organizada e económico-financeira.
25. De facto, tal como assume João Conde Correia, in Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, o regime de confisco estabelecido nesta lei nasceu da necessidade que se fez sentir a nível mundial de demonstrar aos condenados pela prática de lícitos criminais que o crime não compensa - «Portugal não podia ficar indiferente a este movimento global, tantas vezes instigado por instâncias supranacionais insuspeitas e, como já vimos, sancionado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, consagrando na Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro (...) um regime de perda alargada, baseado na diferença entre o património do arguido e aquele que seria compatível com o seu rendimento lícito (...) Para explicar, politicamente, este poderoso regime especial, invocou-se inter alia que «a eficácia dos mecanismos repressivos será insuficiente se, havendo uma condenação criminal (...) o condenado puder ainda assim, conservar, no todo ou em parte, os proventos acumulados no decurso de uma carreira criminosa.».
26. Tomando de empréstimo as palavras de Hélio Rigor Rodrigues, que gentilmente nos cedeu entendimento que já propalou junto de instâncias superiores «O segmento normativo "nos termos da lei do processo civil" constante do n.° 1 do artigo 228.° do CPP não transforma o arresto preventivo previsto no Código Processo Penal na providência cautelar de arresto prevista no artigo 391.° do Código de Processo Civil. Só para quem entenda que existe identidade entre ambos os institutos será admissivel a exigência da verificação da formalidade defendida pela recorrente. Sucede que o entendimento que defenda que o arresto preventivo e a providência cautelar de arresto são idênticos é juridicamente indefensável. O arresto preventivo é uma medida de garantia «processual penal». Esta conclusão sobre a natureza processual penal do arresto não é meramente semântica. Esta certeza determina que, pese embora a remissão para os regras do processo civil, a tramitação do arresto ocorrerá no âmbito do processo penal, sujeita aos princípios e à ortodoxia próprias do processo penal. Com a referência aos "termos do processo civil" operada pelo artigo 228. º do CPP não é minimamente beliscado o princípio da suficiência penal que dispõe que a promoção da acção penal não depende de qualquer outro processo e no processo penal resolvem-se todas as questões prejudiciais que interessarem à decisão da causa. A aplicação das regras de Processo Civil existe como mecanismo subsidiário e constitui uma mera «importação» de algumas normas relativas a um procedimento já sedimentado em matéria civil, tendente a garantir a inexistência de lacunas, nos precisos termos previstos no artigo 4.° do CPP. Esta importação das normas de processo civil implica que o procedimento mantenha natureza processual penal, pois é no âmbito deste processo que o arresto preventivo será requerido, decidido e executado. É precisamente por isso que a referência aos "termos da lei da processo civil" não significa que a tramitação do arresto preventivo tenha sido remetida, sem mais, para o Código de Processo Civil. Não foi isso que o legislador disse, nem foi isso que quis dizer. A importação das normas relativas ao processo civil existe unicamente por via das semelhanças que existem relativamente aos efeitos de ambas as medidas, uma vez que quer o arresto preventivo quer a providência cautela- de arresto implicam a apreensão material da coisa e a limitação ao pleno jus utendi, fruendi et abutendi. Todavia, partir desta identidade quanto aos efeitos para justificar o tratamento indiferenciado de ambas as medidas, constitui uma solução apressada e juridicamente inconsistente. No âmbito do arresto preventivo mantém-se o critério de aplicar apenas e tão só "as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal" cfr. artigo 4.1º do CPP,
27. A tudo isto sempre se acrescentará que as normas do Código de Processo Penal são suficientes para esclarecer qual o formalismo próprio para requerer o arresto preventivo, logo, também para requerer o arresto nos termos da Lei nº 5/2002: É o próprio artigo 228º do Código de Processo Penal que diz que o arresto é decretado pelo juiz após requerimento do Ministério Público ou do lesado.
28. Quanto a este requerimento, veja-se que a letra da lei, no artigo 228º do Código de Processo Penal, o trata como tal — corno um requerimento - «o requerimento do Ministério Público ou do lesado» - dali afastando a terminologia e características típicas do direito processual civil como é a petição inicial, consagrada nos artigos 552º e ss do CPC, e, em simultâneo, harmonizando-o com a terminologia presente no Código de Processo Penal.
29. Para além disso, são as normas do Código de Processo Penal que nos dizem quais as características que deve ter este requerimento, a saber, o dispositivo 268º, nº 1, b), nº 2 e 3:
2 - «O juiz pratica os actos referidos no número anterior (designadamente, a aplicação de uma medida de garantia patrimonial) a requerimento do Ministério Público, da autoridade de polícia criminal (...)».
3 - O requerimento, quando proveniente do Ministério Público ou de autoridade de polícia criminal, não está sujeito a quaisquer formalidades».
30. Pelo que por razões de base estrutural, funcional, histórica e de princípios regentes dos diversos ramos do direito, as formalidades próprias do direito processual civil, como a exigência de redigir uma petição inicial e nela indicar o seu valor, deverão ser afastadas do requerimento de arresto da lei nº 5/2002.
31. Mas, ainda que assim não se entendesse, e se acompanhasse a Meritíssima Juiz no seu desígnio, sempre há que ponderar dois argumentos relevantes e que implicavam que a decisão recorrida fosse diversa:
O primeiro, alicerçado na constatação de que o "valor da causa" está indicado na liquidação que antecede o pedido de arresto, que a Meritíssima Juiz considerou como parte integrante da "petição inicial". Basta ler a liquidação apresentada para se perceber que "o valor que se pretende garantir com o arresto" é de 801.928,41e
Em segundo lugar, porque, entendendo-se que a ausência de indicação do valor da causa é imprescindível para a determinação do arresto nos termos da Lei nº 5/2002, o Tribunal podia e devia ter convidado o Ministério Público a indicá-lo, conforme preceitua o art. 590º, nº 1, nº 2, b) e nº 3 do CPC. Isto, claro, levando em linha de conta que não se está perante qualquer excepção peremptória ou dilatória, conforme artigos 576º a 579º do CPC. A este propósito, consulte-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6.3.2018,proferido no processo n.º 1833/17.4T8FIG.C1, cujo relator é Carlos Moreira.
32. Outro argumento aventado pela Meritíssima Juiz a quo para indeferir o pedido de arresto nos termos da Lei nº 5/2002 formulado pelo Ministério Público é o de que «ao longo do articulado, e para além do pedido de arresto formulado no último parágrafo de fls. 14 e fls. seguintes, são formulados pedidos de natureza diferente — fls. 5, ponto 20, fls. 7, ponto 35, fls. 9, ponto 50, fls. 11, ponto 64, fls. 12 v.° ponto 77».
33. Na tentativa de manter a posição de que o Ministério Público deveria apresentar uma petição inicial para solicitar a aplicação do arresto da Lei nº 5/2002, a Meritíssima juiz a quo tratou de interpretar a liquidação do valor da perda alargada, como o articulado substituto da petição inicial de arresto.
34. Daí que, como na liquidação se solicita, para cada um dos arguidos, que seja declarado perdido a favor do estado o valor encontrado como incongruente no seu património e, ademais, se solicita também que os mesmos sejam condenados a pagar tal valor, a Meritíssima Juiz a quo vem avançar que estes pedidos têm natureza diferente do pedido de arresto que lhe é formulado.
35. Na verdade, o Ministério Público apresentou, de facto, a liquidação do património dos arguidos R. , C. , A. , Q. e B.  nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1º, nº 1, f), 7º, 8º e 10º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro à «Exmo. (a) Senhor (a) Juiz de Instrução Criminal», unicamente para conhecimento, porquanto tal liquidação serve de instrumento basilar para que em seguida, tal como foi feito pelo Ministério Púbico, se justifique requerer o arresto, conforme preceituado pela Lei.
36. No fundo, todo este argumento da Meritíssima Juiz se baseia numa falácia e premissa errada que já contrariámos supra, no sentido de que: estas normas formais do Código de Processo Civil são desadequadas e inaplicáveis ao caso Sub Júdice.
37. A Meritíssima juiz de Instrução, ao decidir indeferir a aplicação do arresto com o argumento de que os pedidos da peça processual têm natureza diferente, revela ter-se debruçado sobre pedidos que são próprios da liquidação e que, como o próprio regime processual penal determina, serão para discussão numa fase subsequente àquela que nos encontramos, que é a de julgamento, com isso violando o disposto no art. 268º do Código de Processo Penal.
38. Mas, ainda que por qualquer motivo fosse de atribuir razão ao argumento da Meritíssima Juiz a quo, sempre a mesma deveria ter lançado mão, mais uma vez, da possibilidade de convidar a parte (neste caso, o Ministério Público), a aperfeiçoar o pedido.
39. No despacho recorrido, a Meritíssima Juiz a quo aponta para o falecimento da demonstração de que não há qualquer receio de dissipação do património, argumentando que alguns dos bens que se pretendem sejam arrestados, já se encontram apreendidos à ordem do processo principal.
40. Esta argumentação conduz-nos para a necessidade de explicitar duas questões, que a nosso ver, nos parecem diversas, quais sejam:
- a primeira, centrada na acepção de que para aplicação do arresto nos termos da Lei nº 5/2002 não é necessário invocar, nem demonstrar o receio de diminuição das garantias patrimoniais;
- e a segunda, que se prende com a distinção entre os regimes da apreensão e do arresto nos termos da Lei nº 5/2002, que na decisão a quo parecem ser tratados como equivalentes.
41. Fixemo-nos, primeiramente, nesta segunda questão — da distinção entre a apreensão e o arresto.
42. João Conde Correia abordou a temática na obra Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, já .citada. Inicia tal abordagem da seguinte -forma: «A apreensão não se confunde com o arresto preventivo (art. 228º do Código de Processo Penal) ou com o arresto dos bens do arguido para confisco alargado (nos termos do art. 10º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro), nem nos seus requisitos, nem nos seus objectivos, nem, mesmo, no seu âmbito. Desde logo, porque os pressupostos para a aplicação do arresto são mais apertados. Se é compreensível que as exigências da investigação ou do confisco clássico facilitem os requisitos da apreensão, já não se admite que outras necessidades da questão patrimonial, embora cada vez mais prementes, justifiquem o mesmo tratamento generoso. Depois, porque, enquanto a apreensão se dirige, essencialmente, contra os instrumento, producta ou vantagens do crime (na posse do arguido ou de terceiro), o arresto pode abranger todo o património do arguido (ainda que formalmente não esteja na sua posse ou que nada tenha a ver com o crime investigado), sendo, em princípio, muito mais agressivo para os direitos individuais. A privação do direito de dispor livremente de um determinado bem não se confunde com o privação do direito de dispor livremente de todo ou de uma parte considerável do património.».
43. Também Manuel da Costa Andrade e Maria João Antunes se debruçam sobre a apreensão enquanto garantia processual da perda de vantagens do crime em artigo publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência nº 4005, referindo, designadamente, o seguinte: «Segundo o artigo 178.g, n.º 1 do Código de Processo Penal (Código de Processo Penal) "são apreendidos os objectas que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim, todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova. Não obstante a inserção sistemática deste artigo no Título do Código de Processo Penal que tem como objecto os meios de obtenção de prova, a apreensão é também uma garantia processual da perda (do confisco) de bens (de instrumentos, de produtos e de vantagens). Neste entendimento converge a generalidade da doutrina. (...). Prevê-se neste segmento da norma um meio processual de natureza patrimonial que garante a perda de vantagens do crime. Abona decisivamente neste sentido a circunstância de as medidas de garantia patrimonial previstas no Código de Processo Penal — a caução económica e o arresto preventivo (artigos 227º e 228.1º) — se destinarem exclusivamente a garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo, de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime. Não se destinam a garantir a perda de vantagens do crime e mal se compreenderia que o ordenamento jurídico não a acautelasse processualmente
44. E, embora neste artigo não seja abordada a questão sobre a diferença entre a apreensão, o arresto preventivo do art. 228.° e o arresto da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, a verdade é que podemos desde já adiantar, com base na doutrina disponível sobre a matéria, que este último arresto pretende acautelar a confisco de um valor, que é o valor que foi encontrado como incongruente no património dos arguidos, como aliás é citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.4.2015 e no Acórdão da Relação do Porto, de 11 de Junho de 2014, proferido no processo 1653/12.2JAPRT-A.PI, relatado pelo Exmo. Desembargador, Dr. Neto de Moura.
45. Revertendo ao caso dos autos, é verdade que sob promoção do Ministério Público, foi determinada a apreensão de saldos bancários disponíveis em contas bancárias dos arguidos R, C. e B. . Contudo, tal apreensão foi requerida e, cremos, determinada, porque se demonstrou, à data (em 20 de Junho de 2017) ou seja há mais de um ano, que naquelas contas bancárias eram recebidos valores advenientes da prática criminosa que se encontrava, então, sob investigação.
46. Quando se solicitou, em Setembro de 2018, o arresto das mesmas contas bancárias, nos termos da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, para além de tantos outros bens, pretendeu-se apenas salvaguardar os valores que entretanto já terão entrado nessas contas, que porventura permitirão saldar (ou ajudar a saldar) o montante encontrado como património incongruente que estes arguidos possuem —quer seja proveniente da actividade descrita nesta acusação, quer de outras.
47. Em suma, ainda que nos autos principais já se tenha lançado mão da possibilidade de apreensão de saldos bancários na modalidade de confisco de vantagens de actividade criminosa, esta realidade não interfere, nem configura obstáculo a que nos mesmos autos, e decorrido mais de um ano, seja solicitado o arresto das contas bancárias (porventura, com novos saldos), para liquidar o valor encontrado como incongruente nos termos da Lei nº 5/2002.
48. E por fim, debrucemo-nos no último argumento lançado pela Meritíssima Juiz a quo, que convoca a ausência de invocação e demonstração do receio de diminuição das garantias patrimoniais para indeferir a pretensão de arresto.
49. Ancorando-nos na clarividência de José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho, importa referir que, apesar da redacção do novo nº 2 do artigo 10º da Lei nº 5/2002, introduzida pela Lei nº 30/2017, de 30 de Maio, mencionar que: «A todo o tempo, logo que apurado o montante do incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.», o requisito «fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais», não surge aqui como um pressuposto adicional para o decretamento do arresto, mas sim, como requisito a levar em conta caso se queira solicitar o arresto antes de efectuada a liquidação.
50. Ora leiam-se as palavras de José da Cruz Bucho, Desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães, in ob.cit., página 219 e ss: «Importa reconhecer que a nova redacção conferida ao n.º 2 do artigo 10.º não foi particularmente feliz, já que uma primeira leitura do preceito poderá inculcar a ideia de que o arresto está sempre dependente da verificação do periculum in mora, isto é, da verificação do "fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais", em aparente contradição com o estatuído no n.º 3 do mesmo preceito legal.
A questão, já colocada ao nível da 1ª instância, irá provavelmente, fazer correr muita tinta.
Afigura-se-nos, porém, que a referida contradição é meramente aparente.
Conforme parece resultar do elemento literal, lógico (racional, sistemático e histórico) e teleológico, a exigência da demonstração do periculum in mora apenas ocorre quando o arresto é requerido em momento anterior à liquidação.
Os requisitos gerais do arresto constam do nº 3 do art. 10º que se mantém inalterado: o arresto é decretado pelo juiz se existirem fortes indícios da prática do crime, "independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227º do Código de Processo Penal", o que quer dizer que o decretamento do arresto não depende da verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento do montante incongruente.
O nº 2 do mesmo preceito respeita à legitimidade para requerer o arresto (atribuída em exclusivo ao Ministério Público) e ao momento em que pode ser requerido (a todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência).
A alteração legislativa entretanto ocorrida ao nível do nº 2 daquele preceito legal consagrou expressamente a possibilidade de o Ministério Público requerer o arresto antes da liquidação.
Esta última possibilidade está, porém, condicionada à existência de periculum in mora.
A nova imposição, constante do n.º 2, deve ser entendida como uma exigência adicional, especial no confronto com a que decorre da norma geral constante do nº 3, por conseguinte, restrita ao arresto requerido antes da liquidação.».
51. De aplaudir a argumentação, demonstra-se inequivocamente que a necessidade de invocar o receio de diminuição de garantias de pagamento apenas poderá ser exigido para uma situação factual diversa daquela que se nos ocupa agora, pois está ligada umbilicalmente à discussão doutrinária sobre a aplicação de arresto antes de elaborada a liquidação, que o legislador pretendeu ver esclarecido com as novas alterações.
52. Acompanhemos, ainda, o raciocínio que Hélio Rigor Rodrigues faz sobre esta questão, na mesma obra, página 80 e ss: «Na verdade, a aplicação das medidas de garantia patrimonial está sujeita
a: Requisitos substanciais e requisitos formais e ainda, eventualmente, algumas diligências prévias. (...)
Por outro lado, poderemos ainda identificar os pressupostos substanciais específicos de aplicação das medidas de garantia patrimonial, que serão os tradicionais fumus boni iuris (mais concretamente, fumus commissi delicti ou seja, a existência de indícios da prática de crime e de que este crime gerou vantagens) e ainda, eventualmente, como veremos, o periculum in mora (aqui representado pelo perigo que faltem ou diminuam as garantias de pagamento do valor das vantagens).
O conceito de fumus boni iuris, marcadamente duilista, vem sendo sistematicamente invocado pela doutrina e jurisprudência como pressuposto do arresto e do arresto preventivo — e com razão.
Exige-se, sem dúvida, algum fumus ou aparência de direito para que possa ser decretado o arresto, mas aqui não poderá ser, em bom rigor, o bani lures, mas sim o seu contrário, ou a sua antítese.
O que verdadeiramente interessa demonstrar como condição de aplicação do arresto preventivo (no que ora nos interessa, ou seja, como garantia de confisca das vantagens) é a existência de indícios da prática do crime e das vantagens que este gerou.
Este fumus commissi delicti como pressuposto do arresto preventivo deverá assim ser concretizado nesta dupla vertente: Indícios da prática do crime e indícios que desse crime resultaram vantagens e ainda, pelo menos, do seu valor.
Par outro lado, entendemos que sempre que esteja em causa o objectivo de garantir o confisco do valor das vantagens não será exigível para aplicação do arresto, ou do arresto preventivo, a demonstração do "periculum in mora" ou seja, do receio de perda da garantia patrimonial.
Bastará que se convoquem as finalidades e fundamentos dogmáticos do confisco das vantagens do crime, e imediatamente se conclui que não será dogmaticamente sustentável a exigência relativa à demonstração do periculum in mora nos casos de arresto para o confisco das vantagens.
Se o Ministério Público demonstrar que existem fortes indícios da prática de um crime e demonstrar igualmente que esse crime gerou vantagens, não será de todo compreensível que se exija a demonstração que os arguidos se preparam para dissipar esse património para que o estado possa assegurar que esse montante, que não lhes pertence, será a final, confiscado.
Será necessário que o estado prove que existe perigo que os arguidos dissipem as vantagens do crime para que possa estabelecer um vínculo de indisponibilidade sobre essas vantagens? (...).
Todavia, mesmo que se entenda que é exigível a demonstração periculum in mora no âmbito do decretamento do arresto, haverá de reconhecer-se que este conceito será concretizado por referência ao "receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento" do valor das vantagens, tal como determina o artigo 227.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.
A concretização dos pressupostos de que "faltem" ou "diminuam" substancialmente as garantias de pagamento não suscita especiais dificuldades:
Existe receio que as garantias faltem, nomeadamente, sempre que o valor das vantagens seja superior ao valor do património do visado.
Existe receio que as garantias diminuam sempre que o visado tenha alienado ou se prepare para alienar urna parcela do seu património».
53. Terminamos as nossas conclusões com a mesma constatação de quando iniciámos: no caso sub judice estão reunidos todos os pressupostos para decretar o arresto nos termos da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, pressupostos esses que invocámos em sede própria, mas que, por errada interpretação da lei, deu origem ao despacho recorrido, que indeferiu essa pretensão.
54. Pelo que entendemos que o despacho recorrido violou os artigos 10.° da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, art. 228º do Código de Processo Penal, art. 4.° do Código de Processo Penal, artigo 268º do Código de Processo Penal e ainda, o artigo 590º do Código de Processo Civil.
Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, ser o despacho recorrido substituído por outro que providencie pela determinação do arresto dos bens dos arguidos visados na nossa promoção.

*
 Neste Tribunal a Exma Procuradora-Geral Adjunta, apôs o visto.

*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

*
2. De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Entende o recorrente, Ministério Público, que estão preenchidos os requisitos para solicitar e decretar o arresto nos termos da Lei n.° 5/2002, nestes autos, porquanto, a redacção da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro e o regime de perda alargada de bens a favor do Estado aí incluído nos artigos 7.° a 12.º-A, não comporta a interpretação que dele faz a Mmª Juiz de Instrução a quo, disso sendo claramente demonstrativo a decisão recorrida, proferida no apenso que o Tribunal apelidou de "procedimento cautelar de arresto", indeferindo, nessa sequência, a petição inicial nos termos do disposto no art. 590.° do Código de Processo Penal (por lapso, a Meritíssima Juiz a quo indicou a norma do Código de Processo Penal quando quereria dizer Código de Processo Civil).
Assim, face às conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão que importa decidir radica em saber se no caso sub judice estão reunidos todos os pressupostos para decretar o arresto nos termos da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro e, consequentemente, se o despacho que indeferiu tal pretensão, revela uma interpretação do conteúdo e aplicação da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, nque não se afigura adequada, apelidando de "procedimento cautelar de arresto", e indeferindo a petição inicial nos termos do disposto no art. 590.° do Código de Processo Civil.

*
3. Com interesse para a decisão importa ter em consideração as seguintes ocorrências processuais:
 
O inquérito 872/16.7JFLSB teve origem na participação efectuada por parte da Segurança Social dando conta que teriam sido detectados casos de inscrição na Segurança Social de cidadãos oriundos sobretudo da India, Paquistão, Nepal e Bangladesh sem que tal inscrição fosse motivada validamente ou suportada com documentos que a justificassem.
À data da denúncia, desconhecia-se a forma de actuar dos autores destas irregularidades, sendo certo que face aos elementos de prova carreados pela própria Segurança Social e remetidos aos autos, suspeitava-se que se trataria de funcionários da Segurança Social que, usando da vantagem de acesso ao sistema de informação que possuíam, procediam ao registo de cidadãos estrangeiros sem que em simultâneo abrissem processo físico, nem solicitassem comprovativos escritos da situação regular dos mesmos em Portugal. Noutros casos, suspeitava-se que procediam à atribuição de NISS já existente no sistema, pertença de outra pessoa.
Os registos irregulares ocorriam apenas para cidadãos de nacionalidade da Índia, Bangladesh, Paquistão e Nepal, razão pela qual se acreditou que os funcionários ou estavam conluiados e arquitectavam o seu trabalho ilícito todo para um fim, em conjunto com alguém que lhes fornecia as identificações dos cidadãos a regularizar junto da Segurança Social, ou então desenvolviam este tipo de inscrições de forma paralela, sem conhecimento mútuo e eram contactados directamente pelos cidadãos ou pessoa que os representasse.
Durante investigação, desencadeou-se a realização de diligências de obtenção de prova a vários níveis, desde:
- inquirição de testemunhas;
- recolha de documentação junto da Segurança Social;
- recolha de dados junto do Instituto de Informática da Segurança Social;
- solicitação e análise de contas bancárias dos visados;
- intercepções telefónicas;
- intercepções de correio electrónico profissional e pessoal; realização de análise financeira e contabilistica;
- realização de buscas e apreensões;
- constituições e interrogatórios de arguidos; expedição de decisões europeias de investigação, entre outras formas de obtenção de prova.
 Em 28 de Fevereiro de 2018 foi deduzida a acusação, descrevendo-se na mesma, a actividade que era levada a cabo por parte de funcionários da Segurança Social, em conluio com cidadãos estrangeiros "intermediários", segundo a qual procediam à inscrição de cidadãos na Segurança Social em situação irregular no país, a troco de pagamento de quantias monetárias entre 100€ a 1000€.
No cômputo desta actividade, verificou-se a criação de mais de 5000 NISS's (Números de Identificação da Segurança Social) e a obtenção de lucros superiores a um milhão de euros por parte dos envolvidos.
Foram, pois, acusados 23 arguidos, de entre os quais, R. , C. , A. , Q e B. .
Ao arguido R. foram imputados dois crimes de corrupção passiva agravados, cometidos em co-autoria material, previstos e punidos pelos artigos 373.º, n.º 1, 374.º-A, nº 2 e 3 e 386.º, n.º 1, a) e 26.º, ex vi art. 20.º, b) do Código Penal; de um crime de branqueamento de capitais, previsto e punido pelo art. 368.º-A, n.º 1, 2, 3 e 6 do Código Penal praticado em em co-autoria; de uni crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art. 5.º, n.º I. e 4, a) e b) da Lei do Cibercrime e de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art. 382.ºdo Código Penal, ex vi art. 386º, nº 1, a) do mesmo diploma legal;
À arguida C.  foi imputado um crime de corrupção passiva agravado, cometido em co-autoria, previsto e punido peio art. 373.º, n.º 1, 374º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202.º, b) e 386.º, n.º 1, a), 26.º e 28.º, todos do Código Penal.
Ao arguido A.  foi imputada a prática de um crime de corrupção passiva agravado cometido em co-autoria material, previsto e punido pelos artigos 373.º, n.º 1, 374.º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202.º, b) e 386.º, n.º 1, a) e 26.º do Código Penal.
Ao arguido Q. foi imputada a prática de um crime de corrupção passiva agravado, cometido em co-autoria, previsto e punido pelo art. 373º, n.º 1, 374.º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202.º, b) e 386.º, n.º 1, a), 26.º e 28.º, todos do Código Penal.
E ao arguido B. , foi imputada a prática de um crime de corrupção passiva agravado, cometido em co-autoria, previsto e punido pelo art. 373º, n.º 1, 374.º-A, nº 2 e 3, ex vi art. 202.º, b) e 386.º, n.º 1, a), 26.º e 28.º, todos do Código Penal.
Em paralelo com a investigação dos factos objecto do inquérito, decorreu a investigação patrimonial e financeira sobre os bens dos arguidos visados.
Na sequência da referida investigação patrimonial e financeira, que apenas findou posteriormente à data de 28 de Fevereiro de 2018, foi apurada incongruência patrimonial nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro no que respeita aos arguidos R. , C. , A. , Q. e B. .
Em face disso, o Ministério Público apresentou a liquidação patrimonial dos bens dos referidos arguidos à Meritíssima Juiz de Instrução, através de peça processual autónoma, na qual promoveu a determinação do arresto sobre bens que concretamente identificou, tudo nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, f), 7.º, 8.º e 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.
Sobre tal promoção, recaiu a decisão, nos termos e fundamentos seguintes:
« Vem o MºPº instaurar a presente providência cautelar de arresto.
Ao arresto referem-se:
O artº 391º do C.P.C que dispõe: «1 - O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor. 2 - O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.».
O artº 392º do C.P.C que diz: «1 - O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência. 2 - Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tomem provável a procedência da impugnação.».
E o art° 10° da Lei 5/2002 que estatui: «1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido. 2 - A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa. 3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime. 4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.».
Compulsada a petição inicial apresentada verifica-se que:
- não foi indicado o valor da providência cautelar;
- ao longo do articulado, e para além do pedido de arresto formulado no ultimo parágrafo de fls. 14 e fls seguintes, são formulados pedidos de natureza diferente - fls. 5, ponto 20, fls. 7, ponto 35, fls. 9, ponto 50, fls. 11, ponto 64, fls. 12 vº ponto 77;
- alguns dos bens que se pretende que sejam arrestados (quantias em depósitos bancários), encontram-se apreendidos à ordem do processo principal (NUIPC 872/16.7JFLSB),
Como resulta dos preceitos legais invocados, para que o arresto seja decretado, necessário é, além do mais:
- Que se invoque e verifique a existência de uma vantagem decorrente da actividade criminosa;
- Que haja fundado receio de diminuição das garantias patrimoniais;
- Que haja fortes indícios da prática de crime;
No caso dos autos, e ainda que se admita que a conclusão pela existência de fortes indicios da prática de crime possa inferir-se (ou não) da narração feita na acusação e dos elementos de prova que a sustentem, ficou por alegar (coarctando a possibilidade de vir a ser demonstrado) o "fundado receio de diminuição das garantias patrimoniais".
Aliás, estando já parte do património apreendido à ordem do processo principal, não se vê como poderiam os arguidos dissipá-lo, concluindo-se por conseguinte que, nessa parte, não há qualquer receio de dissipação de património.
Nesta conformidade, face:
- à ausência de indicação de valor de acção;
- à simultaneidade de pedidos, sendo que os declaração de perdimento e condenação de pagamento não são próprios deste instrumento processual;
- e à falta de alegação de factos que demonstrem um dos requisitos essenciais do pedido de arresto,
entendo os pedidos manifestamente improcedentes, e, consequentemente, ao abrigo do disposto no arte 590° n° 1 do C.P.P., indefiro a petição inicial.
Notifique».
*
É deste despacho que recorre o MºPº por entender que a redacção da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro e o regime de perda alargada de bens a favor do Estado aí incluído nos artigos 7.° a 12.º-A não comporta a interpretação que dele faz o despacho recorrido.
Para tanto alega que o ordenamento jurídico-penal nacional prevê, como mecanismos tendentes a assegurar a futura eficácia de uma decisão de confisco, a apreensão, cujo regime legal se encontra nos artigos 178.° e ss do Código de Processo Penal, a caução económica, conforme artigos 227º e ss do Código de Processo Penal, o arresto preventivo, previsto no art. 228.° do mesmo diploma legal e o arresto no âmbito da perda alargada, conforme art. 10.º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro. A par destas, há ainda que ter presente que o Código de Processo Civil regula nos artigos 391.º e ss a providência cautelar especificada denominada de arresto. Cada uma destas medidas especificas tem um regime jurídico próprio, e um âmbito de aplicação único. No âmbito dos autos sob apreciação, o Ministério Público lançou mão do mecanismo de arresto nos termos da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro referindo, ainda que, para além da forte indiciação de crimes constantes do catálogo, após recolha de elementos bancários e fiscais, devidamente analisados pelo Gabinete de Recuperação de Activos, foi possível concluir pela forte indiciação de desconformidade entre o que foi licitamente auferido e declarado pelos arguidos aqui visados e aquilo que possuem, pelo que, no entendimento do recorrente, estariam preenchidos os requisitos para solicitar e decretar o arresto nos termos da Lei n.° 5/2002, nestes autos.

Vejamos:

4. O arresto preventivo, ao abrigo do estabelecido no artigo 228º, nº 1, do CPP, é uma medida de garantia patrimonial, como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, 2ª edição, II vol., pág. 309; “um meio de garantia patrimonial inserido num processo penal – e não um arresto ‘civil’ no quadro de um processo civil com fins distintos”, como se pode ler no Ac. do Tribunal Constitucional nº 724/2014, de 28/10/2014, disponível também em www.tribunalconstitucional.pt.
Neste caso, conforme se pode concluir da leitura da fundamentação do despacho recorrido, a Ex.mª Juiz de Instrução, assumiu de antemão que ao regime do arresto da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, se aplicam as regras constantes do Código de Processo Civil (CPC), designadamente, as que dizem respeito ao procedimento cautelar especificado de arresto, seguindo o regime de perda clássica - art.ºs 110.º e 111.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código Penal, 228º do Código de Processo Penal e 391º a 393.º do Código de Processo Civil -, arrimada nas normas legais aí invocadas, desprezando o regime de perda alargada previsto na Lei 5/2002, de 11-01 (cfr. João Conde Correia, in, “ANOTAÇÃO AO ACÓRDÂO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 8 DE OUTUBRO DE 2014 -Proc. 152/12.7JLLSB-B-L1-3- O arresto preventivo dos instrumentos e dos produtos do crime” publicado na revista Julgar e acessível na internet).

Porém, nem todas as regras do processo civil são aplicáveis ao arresto da lei n.° 5/2002, designadamente, aquelas que dizem respeito ao formato do pedido.
Conforme se pode ler no ACRP de 15.4.2015 (citado pelo MºPº): “O legislador português, ao lado da perda dos instrumentos e produtos do crime (art. 109.º do Código Penal) e da perda das suas vantagens (art. 111.º do mesmo diploma legal), criou um forte regime de perda ampliada ou alargada (arts. 7.º e seguintes da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro), que abrange bens que o Ministério Público não consegue relacionar com um qualquer crime concreto.
No âmbito do combate à criminalidade organizada e económico-financeira, esta Lei estabeleceu regimes especiais em matérias como a recolha de prova, a quebra do sigilo fiscal e bancário e a perda de bens a favor do Estado.
Existe diferença entre a perda clássica e a perda alargada que se verifica essencialmente ao nível das garantias processuais. Na verdade, as garantias processuais penais da perda clássica consistem na apreensão (arts. 178.º e ss. do Código de Processo Penal), na caução económica (art. 227.º do CPP) e no arresto preventivo (art. 228.º do mesmo diploma legal); enquanto que as garantias da perda alargada consistem no arresto (art. 10.º da Lei n.º 5/2002), que cessa se for prestada caução económica (art. 11.º da referida lei) [Sobre todas estas garantias, cfr. CORREIA, João Conde, Da proibição do Confisco à Perda Alargada, INCM, 2012, p. 151 e ss].
Na Lei nº 5/2002, o legislador assumiu a preocupação de garantir a efectividade das decisões de perda, e nesse sentido, introduziu um regime especial de arresto.
Cumpre ainda ter presente a possibilidade de, no âmbito do regime prescrito nessa mesma Lei, se aplicar a medida cautelar prevista no artigo 10º, com a única e exclusiva finalidade de garantir a futura decisão de perda, independentemente de os bens arrestados possuírem algum relevo probatório.
O artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 estabelece um “catálogo” de crimes que se caracterizam, não só pelo grau de sofisticação e organização com que são praticados, mas também, e sobretudo, pela sua capacidade de gerar avultados proventos para os seus agentes. Daí a instituição de mecanismos especiais que visam facilitar a investigação e a recolha de prova e de um mecanismo sancionatório, repressivo que garanta a perda das vantagens obtidas com a actividade criminosa, tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através dessa actividade.

O arresto em causa foi solicitado nos termos previstos e permitidos pela Lei 5/2002 de 11.1.
São pressupostos do decretamento do arresto para garantia da perda alargada de bens a favor do Estado:
- a existência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1° da Lei n°5/2002, de 11 de Janeiro;
- fortes indícios da desconformidade do património do arguido, ou seja, o património apurado tem de ser incongruente com o rendimento lícito.

Sobre estes dois requisitos iniciais, como salienta o Digno Magistrado do MºPº, debruça-se João Conde Correia na obra Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, página 103 e ss, referindo-nos, em concreto que: «O primeiro requisito imprescindível à concretização do confisco alargado, previsto na Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, consiste na condenação pela prática de um dos crimes do catálogo aí referido. Se não estiver em causa um desses ilícitos, por mais grave, rentável ou vantajoso que ele seja e avultado o património acumulado pelo condenado, este mecanismo processual ablativo não poderá _ser desencadeado (...) O segundo requisito imprescindível à concretização do confisco é a existência de um património do arguido (...) Se o condenado não tem, nem teve, bens, é óbvio que o confisco alargado não se aplica. Por definição, não se pode confiscar aquilo que nunca existiu. (...) O património do condenado tem ainda de ser incongruente com o seu rendimento lícito: se ele só tem bens provenientes daquele concreto crime (sujeito às regras do confisco, previstas no Código Penal ou em legislação avulsa) ou se só tem bens compatíveis com os seus rendimentos lícitos o confisco alargado não se aplica. Não é, portanto, suficiente a existência de um património mesmo que extremamente avultado, sendo também necessário que ele seja incongruente, que exista uma desproporção entre ele e os seus rendimentos lícitos. A lei não definiu o conteúdo da expressão «rendimento lícito», sendo «legítimo considerar como aquele que resulta da sua manifestação e registo público e declaração fiscal nos termos dos regimes legais respectivamente aplicáveis».

Após verificados estes dois requisitos essenciais e primordiais, há, pois, que proceder à liquidação de tal valor, sendo que o momento mais adequado para apresentação da mesma será aquando da dedução da acusação ou em data posterior à mesma, desde que ocorra até ao 30.º dia anterior à data designada para a audiência de discussão e julgamento, tudo conforme consta dos artigos 8.º, n.2º1 e 2 da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.
De forma a salvaguardar a existência de bens do arguido que permitam saldar o valor da incongruência encontrado após realização da investigação patrimonial e financeira, há uma medida concretamente prevista na Lei n.º 5/2002, que se denomina de arresto, sendo certo que, apesar do nome ser comum a outras tantas medidas previstas em legislação penal e civil, este arresto assume uma dinâmica e requisitos muito próprios.
Nos termos do art. 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro:
1. Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2. A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.
 3. O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4. Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.
*
Assim, nos termos do citado art. 10.º, n.º 3, o arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do art. 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.3.2017, proferido no processo n.° 1420/11.0T3AVR-N-G1, relator: Fernando Chaves), não sendo, portanto, necessário haver fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento das quantias em que vier a ser condenado – neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.3.2016, proferido no âmbito do processo n.° 2376/14.3TDPRT —D.P1, relatora: Elsa Paixão, salientando que o decretamento do arresto não depende da verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento do montante incongruente «Como já referimos, nos termos do art. 10.º, n.º 3, o arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do art. 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo. Portanto, não é necessário haver fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento das quantias em que vier a ser condenado. Quer dizer, o que se exige é a existência de fortes indícios de desconformidade de património do arguido, ou seja, o património apurado tem de ser incongruente com o rendimento lícito.» e, finalmente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.3.2017, proferido no processo n.º 143/11.5JFLSB-A.L2-5, relatora: Ana Sebastião, Adjunta neste processo, que começa, na parte que ora nos interessa, por citar João Conde Correia, in Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, INCM, 2012, pág. 186 e ss «O arresto para efeitos de perda alargado constitui-se como uma garantia processual cautelar da efectivação do confisco, que é decretada pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do art. 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no art. 1.º da Lei n.º 5/2002 (art. 10.º, n.º 2 da Lei).», prosseguindo com a indicação de que «Assim, ou se verificam os requisitos do art. 227.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, caso em que o arresto pode ser decretado independentemente de existirem ou não fortes indícios da prática do crime, ou verificando-se estes, o arresto poderá ser decretado independentemente da verificação dos requisitos do art. 227º, n.° 1 do Código de Processo Penal. De exigir será, também, a existência de fortes indícios da desconformidade entre o património apurado do arguido e o seu rendimento lícito (…)».
*
O arresto para garantia da perda alargada pode ter lugar a todo o tempo, podendo ser reduzido ou ampliado posteriormente, e mantém-se até que seja proferida decisão final absolutória (artigos 10°, nº 2, e 11°, nºs 2 e 3, da Lei).
À semelhança das restantes medidas de garantia patrimonial, também o arresto para garantia da perda alargada está sujeito aos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade (cfr. sobre toda esta matéria, João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, pág.186 e segs.).
É-lhe aplicável, supletivamente, o regime geral das medidas de garantia patrimonial, por via da remissão para o regime arresto preventivo (artigo 228°, do Código de Processo Penal) prevista no nº 4 do artigo 10° da Lei.
Por sua vez, refere o artigo 7º da mesma Lei:
1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2 - Para efeitos desta lei, entende-se por património do arguido o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de actividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.

E, perante tal disposição, comungamos o entendimento expendido por Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, in Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, SMMP, 2013, pg. 93, quando referem que “entendemos que o arresto não irá incidir, neste domínio, sobre os bens que integram o tradicional direito de propriedade, mas sim sobre os bens que compõe o património do arguido tal como definido no artigo 7º, nº 2 da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro”.

A expressão “titular” é idónea a compreender não apenas o direito de propriedade mas também outras formas jurídicas.
Efetivamente, todos os bens de que o arguido tenha o domínio e o benefício, ou tenham sido por este transferidos para terceiro a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória nos cinco anos anteriores à sua constituição como arguido continuam, quer para efeitos de perda quer para efeitos de arresto, a ser “bens do arguido”.
Como diz João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, pg. 106: "Com esta formulação ampla, escolhida no intuito de alargar o conceito de património confiscável e de evitar obstáculos jurídicos à sua perda alargada, o legislador português consagrou uma noção meramente económica. Para este efeito, o património não é constituído apenas pelo conjunto dos direitos e obrigações civis com caráter pecuniário de um determinado sujeito, abrangendo todas as posições ou situações economicamente valiosas tituladas pelo condenado, mesmo que desprotegidas, não tuteladas ou até contrárias ao direito civil: inclui tudo aquilo que materialmente ainda possa ser imputado ao condenado, mesmo que, do ponto de vista formal, não lhe pertença".
E como se refere no Acórdão da Relação do Porto, de 11 de Junho de 2014, proferido no processo 1653/12.2JAPRT-A.Pl, relator: Neto de Moura “A base de partida é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no artigo 7.º numa perspectiva omnicompreensiva [Cfr. Hélio R. Rodrigues, “Perda de bens no crime de tráfico de estupefacientes”, in Revista do Ministério Público, 134.º, Abril/Junho de 2013, p. 233], de forma a abranger, não só os bens de que ele seja formalmente titular (do direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente.
Esta amplitude com que a lei define o património do arguido para este efeito tem um fito: o de minimizar a possibilidade de ocorrência de fraude, de ocultação do seu verdadeiro titular. Por isso, como assinala Jorge Godinho [“Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova”, in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, p. 1345], “visam-se aqui os bens detidos formalmente por outra pessoa, singular ou colectiva, tratando-se de provar que em todo o caso os bens pertencem à esfera jurídica do arguido”, cabendo ao Ministério Público a prova de que “apesar de a titularidade pertencer a outrem, o respectivo domínio e benefício – conceitos claramente usados em sentido económico-factual, com vista a expandir o âmbito de aplicação do confisco e a evitar o que seriam fáceis fugas ao mesmo – pertencem ao arguido”.

Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita auferidos pelo arguido naquele período.
Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado, uma vez que, condenado o arguido, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime do catálogo, opera a presunção (juris tantum) de origem ilícita desse valor.
*
Ora no caso dos autos, e tal como foi dado a conhecer à Meritíssima Juiz de Instrução a quo através da liquidação que lhe foi apresentada, é manifesta a forte indiciação da prática de crimes de corrupção passiva por parte dos arguidos R. , C. , A. , Q. e B. , constantes do catálogo do art. 1.º, n.º 1, f) da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, alicerçada na panóplia de elementos probatórios que foram recolhidos nos autos. De frisar, a este propósito, que houve lugar a intercepções telefónicas, buscas, intercepções de e-mails pessoais e profissionais, vigilâncias, foram elaboradas perícias aos computadores e telemóveis apreendidos, foram colhidos depoimentos de testemunhas e declarações de arguidos corruptores activos, analisou-se a documentação bancária e inclusivamente, foram utilizadas outras formas de obtenção de prova que têm carácter sigiloso.
Para além da forte indiciação de crimes constantes do catálogo, após recolha de elementos bancários e fiscais, devidamente analisados pelo Gabinete de Recuperação de Activos, foi possível concluir pela forte indiciação de desconformidade entre o que foi licitamente auferido e declarado pelos arguidos aqui visados e aquilo que possuem – o que aliás, é patente na liquidação elaborada nos termos do art. 7.º, n.º 1 e 8.º da Lei n.º 5/2002, de 11.1, pela qual se liquida o valor das vantagens decorrentes de actividades ilícitas desenvolvidas pelos arguidos R. , C. , A. , Q. e B. , pela quantia global de 801.928,41€. Trata-se de quase um milhão de euros!
 Assim, face a todo o exposto, no relatado contexto, encontrando-se preenchidas as apontadas especificidades  para solicitar e decretar o arresto nos termos da Lei n.° 5/2002, nestes autos, deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que providencie pela determinação do arresto dos bens dos arguidos visados nos termos solicitados pelo Ministério Publico.

*
5. Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal (5ª) deste Tribunal, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando, consequentemente, que o despacho recorrido seja substituído por outro que providencie pela determinação do arresto dos bens dos arguidos visados, nos termos solicitados.

Lisboa, 11 de Dezembro de 2018

Cid Geraldo

Ana Sebastião