Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4517/16.7T8OER.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
COMPROPRIEDADE
ADMINISTRAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I– Nos termos do artº 483º do Código Civil, a responsabilidade civil por factos ilícitos tem como requisitos : o facto voluntário ; a ilicitude ; a culpa ; o dano ; o nexo de causalidade.

II– Havendo compropriedade, à administração da coisa é aplicável o preceituado no artº 985º do Código Civil, “ex-vi” artº 1407º nº 1 do Código Civil.

III– Nos termos do artº 985º nº 1 do Código Civil, “na falta de convenção em contrário, todos os sócios têm igual poder para administrar”.

IV– Não emergindo dos autos a celebração prévia de qualquer acordo ou convenção entre os comproprietários no sentido da atribuição a qualquer um deles, ou a um terceiro, da administração do imóvel comum, qualquer deles poderia administrá-lo “uti singuli”.
Decisão Texto Parcial: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I–Relatório:

1– O A. RE instaurou a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra AE, “T. – Unipessoal, Ldª” e FL., pedindo a condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização no valor de 12.500 € (7500 € a título de danos patrimoniais e 5.000 € a título de danos não patrimoniais).

Para fundamentar tal pretensão alega, em síntese, que o A. e a R. AE são proprietários e legítimos possuidores de uma fracção sita na Rua S., nº 16 D, Lisboa e, por contrato de 1/10/2013, procederam ao arrendamento dessa mesma fracção à R. sociedade, acordando as partes, nos termos do nº 1 da 4ª Cláusula que o valor da renda é de 1.000 €, quantia a pagar por depósito bancário no IBAN/NIB que é identificado.

Mais alega que os depósitos foram sempre efectuados na referida conta, com excepção dos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2016, sabendo o A. que nesses três meses a R. AE, através da R. FL., iniciou o depósito da renda numa outra conta bancária, pertença da R. AE e a pedido desta, para a qual a referida R. não recebeu ordens expressas por parte do A., o que determinou o envio à R. AE de carta registada com aviso de recepção para regularização da situação, sob pena de resolução do contrato, carta que não foi objecto de resposta.

Alega existir uma situação conivente entre a R. AE e a R. FL., com o intuito de prejudicar o A., impedindo que este receba metade do valor da renda.

Invoca, assim, danos de natureza patrimonial traduzidos no fim da relação contratual com a R. AE, que corresponde a 6.000 € (metade do valor anual da renda), acrescidos de 1.500 € (metade do valor das rendas dos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2016), quantia que a R. AE não entregou ao A. e ainda prejuízos de ordem não patrimonial traduzidos na consternação, o desgosto, a tristeza e o sofrimento causados pela R. AE que é irmã do A. e provocou neste um estado depressivo e de vergonha que tem vindo a ser alvo, que o impedem de trabalhar de forma calma e tranquila, deixando de estar e conviver com os amigos e também pouco fala, danos esses que perfazem o valor de 5.000 €.

2–  Regularmente citados, vieram os R.R. contestar.

3– A R. AE defendeu-se por impugnação e deduziu pedido reconvencional.

Em sede de impugnação alega que o A. assumiu a posição de comproprietário da fracção em Setembro de 2013, sendo a R. já comproprietária da fracção em momento anterior, e que a relação locatária, ainda que ao abrigo de contrato diverso, remota a período anterior ao da celebração do contrato de arrendamento dos autos.

O contrato de 1/10/2013, destinou-se, assim, a formalizar a alteração de um dos senhorios e foi sempre a R. AE quem tratou com a arrendatária dos assuntos relacionados com o arrendamento mencionado.

Mais alega que, para além da fracção dos autos, existe um outro imóvel de que o A. e R. AE são comproprietários e que se encontra arrendada, pelo valor mensal de 1.250 €, quantia que era depositada na conta conjunta de A. e R., mas que a partir de 15/9/2015 o A. deu indicações à arrendatária para que o depósito das rendas fosse feito na conta da exclusiva titularidade do A., impedindo a R. de usufruir de metade, que à data da contestação, a R. contabiliza em 9.375 €.

Mais nega o conluio invocado pelo A., alegando ter-se limitado a enviar carta registada com aviso de recepção para a arrendatária, a comunicar a alteração da identificação da conta onde deveriam ser feitos os pagamentos.

Em sede reconvencional, invocando a compensação, pede que o A. seja condenado a reconhecer o crédito da R. no montante de 9.375 €; pede a condenação do R. no pagamento de 7875 €, após operar a compensação relativa aos 1.500 € que a R. tem em dívida para com o A. correspondente a metade das rendas integralmente recebidas referentes aos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2016 ;  pede ainda o pagamento dos juros de mora desde a data em que o A. se apropriou das rendas, até efectivo e integral pagamento.

4– As R.R. “T. – Unipessoal, Ldª” e FL. apresentaram contestação conjunta.

Alegam, em síntese, que em Julho de 2016 a R. sociedade recebeu uma carta registada por parte da R. AE, que, por norma, era quem aparecia pessoalmente para tratar dos assuntos relativos ao arrendamento, a solicitar que a partir do mês de Agosto o pagamento da renda fosse efectuado para outro IBAN, que indicou, o que foi atendido,

Ainda que reconheçam o recebimento da carta do A. negam qualquer acordo entre as R.R., no sentido de privar o A. da sua parte da renda.

Concluem pela improcedência da acção.

5– Realizou-se uma audiência prévia, foi proferido despacho saneador, foi enunciado o objecto do litígio e indicados os temas de prova.

6–  Seguiram os autos para julgamento, ao qual se procedeu com observância do legal formalismo.

7– Foi, posteriormente, proferida Sentença a julgar a acção improcedente, constando da sua parcela decisória :

“Nestes termos e com tais fundamentos julgo a presente acção improcedente por não provada e, em consequência,

- absolvo as R.R. do pedido.

- absolvo o A. do pedido reconvencional.

Custas a cargo do A. quanto à acção e a cargo da R quanto à reconvenção (art. 527º e 607º nº 6, ambos do CPC)”.

8– Desta decisão interpôs a R. AE recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :

(…)

9– O A. apresentou contra-alegações, onde conclui pela improcedência do recurso.

*  *  *

II–Fundamentação

a)-  A matéria de facto dada como provada na 1ª instância foi a seguinte :

1– O A. e a R. AE são comproprietários da fracção designada pela letra “B”, correspondente à Loja dois, com arrecadação no piso intermédio, com acesso, desde a via pública, pela fachada norte do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua S., nº 16-D, freguesia de …, concelho de Lisboa, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 1.., inscrita na respectiva matriz predial sob o artigo 1...

2– A R. AE e MF adquiriram por compra a fracção melhor identificada em 1., aquisição que foi objecto de inscrição predial Ap… de 1985/01/24 enquanto o A. adquiriu, a quota de 1/2 por permuta, que foi objecto de registo Ap. 2671 de 2013/11/05, sendo sujeitos passivos IF, HF e HE, contrato de permuta que data de 6/9/2013, decorrendo do contrato de permuta que o mesmo foi subscrito em 6/9/2013.

3– O A. e a R. AE procederam ao arrendamento dessa mesma fracção à R. “T. – Unipessoal, Ldª” no dia 1/10/2013.

4– Nos termos do nº 1 da 4ª Cláusula o valor da renda é de 1.000 €, quantia que tem que ser depositada no IBAN/NIB PT50…

5– Os depósitos foram sempre feitos na referida conta, com excepção dos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2016, meses em que a R. “T. – Unipessoal, Ldª”, através da R. FL., efectuou o depósito da renda numa outra conta bancária que pertence à R. AE, sem que tivesse recebido qualquer ordem do A. por carta registada com aviso de recepção.

6– Em virtude de tal facto, o A. enviou à R. “T. – Unipessoal, Ldª” carta registada com aviso de recepção, na qual escreveu, com relevância :

“(...) cumpre-me constatar que não foram pagas as rendas referentes ao mês de Setembro vencida no dia 8 de Agosto, assim como, a renda de Outubro vencida no dia 8 de Setembro, e até esta data ainda não foi regularizada a situação, e que se encontram V Exªs em mora face ao pagamento da renda relativa aos referidos meses, no montante de €2.000,00 (dois mil euros), nos termos da cláusula quarta do contrato de arrendamento entre nós assinado e por aplicação do artigo 1041º do Código Civil, venho por este meio comunicar-vos que ao montante em mora acresce 50% do mesmo, a título de indemnização, ou seja, o montante por V. Exªs devido é, neste momento de 3.000,00 (três mil euros), pelo qual têm até ao dia 30 de Setembro de 2016 para regularizar o valor devido sob pena de resolvermos o contrato com base na falta de pagamento de acordo com a cláusula Quarta do Contrato de Arrendamento e nos termos dos artigos 1083º e 1084º do C.C.”.

7– Carta essa que ainda não foi respondida pela R. “T. – Unipessoal, Ldª”, até á presente data.

8– A R. AE enviou comunicação efectuada para a R. “T. – Unipessoal, Ldª”, datada de 20/7/2016, na qual escreve :  “(...) na qualidade de V/senhoria venho por este meio solicitar a V. Exª que o pagamento da renda referente ao arrendamento da loja sita na Rua S. nº 16 D, seja efectuado por depósito num IBAN diferente do que está fixado no contrato de arrendamento.  Sendo novo IBAN : PT50…8.

9–  A R. AE remeteu ao A., que a recebeu, a carta de 23/9/2016, na qual escreve :  “Como V. Exª o bem sabe, uma vez que através do seu portal das finanças consegue verificar, as rendas relativas ao locado supra identificado encontram-se pagas na totalidade, inexistindo deste modo qualquer justificação para a interpelação que V. Exª dirigiu à arrendatária. Acontece que tal com V. Exª recebe a totalidade da renda referente à fracção da Amadora eu decidi que esta deveria ser paga directamente a mim (...)”.

10– O A. e a R. AE são comproprietários da fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente à loja sita no rés-do-chão, do prédio urbano sito na Rua …, em … freguesia …, concelho da Amadora, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial da Amadora sob o nº … e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1...

11– A fracção identificada em 10., encontra-se arrendada à Associação “B.”, pelo valor mensal de 1.250 €.

12– O valor da renda era mensalmente depositado na conta conjunta de A. e R. AE.

13– O A., a partir de Setembro de 2015, deu indicações ao arrendatário de forma a este proceder ao pagamento da renda mediante transferência para uma outra conta de sua única e exclusiva titularidade.

b)-  Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.

Perante as conclusões da alegação dos recorrentes as questões em recurso consistem em saber :

-Se existem razões para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.

-Saber se existem motivos para o pedido reconvencional proceder.

c)– De acordo com o disposto no artº 640º nº 1 do Código de Processo Civil (anterior artº 685º-B nº 1), quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar :

-Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

-Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

Há que realçar que as alterações introduzidas no Código de Processo Civil com o Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2, com o aditamento do artº 690º-A (depois artº 685º-B e actualmente artº 640º) quiseram garantir no sistema processual civil português, um duplo grau de jurisdição.

De qualquer modo, há que não esquecer que continua a vigorar entre nós o sistema da livre apreciação da prova conforme resulta do artº 607º nº 5 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “o Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.

d)– “In casu” pretende a apelante, em primeiro lugar, que se altere o Facto 13..

Consta do mesmo:

“13– O A., a partir de Setembro de 2015, deu indicações ao arrendatário de forma a este proceder ao pagamento da renda mediante transferência para uma outra conta de sua única e exclusiva titularidade”.

Defende a recorrente que, em face da prova produzida, deve acrescentar-se, “in fine”, que :  “ao que este acedeu, passando a fazer o pagamento na conta indicada”.

e)-Vejamos :

(…)

Deste modo, afigura-se-nos correcta a pretensão da recorrente em alterar o Facto 13. nos termos por si propostos.

f) Assim sendo, nesta parte julga-se o recurso procedente e, em consequência altera-se o Facto 13., supra, que passa a ter a seguinte redacção :

 “13– O A., a partir de Setembro de 2015, deu indicações ao arrendatário de forma a este proceder ao pagamento da renda mediante transferência para uma outra conta de sua única e exclusiva titularidade, ao que este acedeu, passando a fazer o pagamento na conta indicada”.

g)-  Ainda quanto à matéria de facto, entende a recorrente que se deve considerar como provado que o apelado se tem apoderado da totalidade das rendas do imóvel descrito no Facto 10.

No entanto, a prova para concluir por tal é manifestamente escassa.

Com efeito, a apontada testemunha (AC) limitou-se a afirmar que procede ao depósito da renda numa conta que lhe foi indicada pelo recorrido.  Porém, não referiu que este fizesse sua a totalidade do montante em causa.

Assim sendo, estamos “in casu” perante duas versões dos factos completamente opostas :  de um lado a da recorrente ;  do outro a do recorrido.    

 “Quis juris” ?

No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o Tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.

De qualquer modo, há que ter presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artº 414º do Código de Processo Civil, de que a “dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.  Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes (in “Impugnação”, estudo publicado em “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas”, Vol. I, 2013, pgs. 609 e 610), em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.  E mais à frente refere a mesma autora :  “O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade”.

Ora, o citado artº 414º do Código de Processo Civil enuncia duas regras :

-A dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

-A dúvida sobre o ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

A primeira regra é a consequência da consagração, no Direito Civil, das normas de distribuição do ónus da prova, que fica, em princípio, a cargo da parte a quem o facto aproveita (artºs. 342º a 345º do Código Civil) :  A dúvida sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto, pelo que resulta em desvantagem para a parte que tinha o ónus de o provar.

A segunda regra constitui também um enunciado de direito material, aliás também parcialmente constante do artº 342º nº 3 do Código Civil :  É a análise das normas de direito substantivo que, além do mais, permite distinguir o facto constitutivo dos demais, estabelecendo aquele normativa que, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (cf. Lebre de Freitas, in “Código do Processo Civil Anotado”, Vol. 2, pg. 402).

Ora no caso “sub judice” defende a recorrente que o recorrido se tem apoderado da totalidade das rendas mensais respeitantes ao imóvel mencionado no Facto 10..

Por força do artº 342º nº 1 do Código Civil, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

E o apontado facto é, manifestamente, um facto constitutivo do direito da recorrente.

“In casu”, em face da prova produzida (e acima analisada), subsistindo algumas dúvidas sobre o facto de que o recorrido se tem apoderado das quantias em causa, a dúvida terá que se resolver contra a parte a quem o facto aproveita, ou seja, contra a recorrente.

Motivo pelo qual, não poderemos considerar como provado que o apelado se tem apoderado da totalidade das rendas do imóvel descrito no Facto 10..

Assim sendo, nesta parte o recurso improcede.

h)É, pois, com base na factualidade fixada pelo Tribunal “a quo”, com as alterações acima apontadas, que importa doravante trabalhar no âmbito da análise das restantes questões trazidas em sede de recurso.

i)Vejamos as questões de Direito suscitadas.

Existirá responsabilidade do recorrido, pela prática de factos ilícitos ?

Nos termos do artº 483º do Código Civil, a responsabilidade civil por factos ilícitos tem como requisitos :  o facto voluntário ; a ilicitude ;  a culpa ;  o dano ;  o nexo de causalidade.

Como refere Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pg. 537), “facto voluntário significa, apenas (...) facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade.

Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou omissão ;  não é necessária uma conduta predeterminada, uma acção ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista).  Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas”.

Por outro lado, salienta Capelo de Sousa (in “O Direito Geral de Personalidade, 1995, pg. 435) “há-de tal facto voluntário, revestir um carácter de ilicitude, de contrariedade por parte do lesante com os comandos que lhe são impostos pela ordem jurídica, ou seja, a infracção de deveres jurídicos, quer de abstenção, quer, em determinados, de acção.  Violando o seu dever de abstenção face à personalidade física ou moral de outrem, o lesante pratica um facto positivo ou uma acção ilícita.

Desrespeitando o seu dever de acção para com a mesma personalidade (…), o lesante pratica um facto negativo ou uma omissão ilícita.  No direito civil a que nos atemos, mormente no campo das relações de personalidade, o dever jurídico emerge quer da necessidade de respeitar um contraposto direito de personalidade alheio, como da obrigatoriedade de cumprimento da lei que proteja interesses alheios de personalidade, embora não outorgue direitos subjectivos a tais interessados”.

j)- Conforme resulta da matéria dada como provada, recorrente e recorrido são comproprietários (proprietários em comum e sem determinação de parte ou direito), do prédio descrito no Facto  10..

Como é sabido, havendo compropriedade, à administração da coisa é aplicável o preceituado no artº 985º do Código Civil, “ex-vi” artº 1407º nº 1 do Código Civil.

Dispõe o referido artº 985º nº 1 do Código Civil que “na falta de convenção em contrário, todos os sócios (neste caso comproprietários) têm igual poder para administrar”.

No caso em apreço não emerge dos autos a celebração prévia de qualquer acordo ou convenção entre os comproprietários no sentido da atribuição a qualquer um deles, ou a um terceiro, da administração do imóvel comum, pelo que qualquer deles poderia administrá-lo “uti singuli”.

Ora, o facto de o recorrido ter dado indicações à arrendatária para proceder ao pagamento da renda mediante transferência para uma conta de sua única e exclusiva titularidade, só por si, não se enquadra no conceito da ilicitude mencionada no artº 483º, por duas ordens de razões :  Por um lado, não está provado que o recorrido se apoderou da totalidade das referidas verbas. Por outro lado, não está demonstrada a existência de um eventual acordo entre o apelado e a arrendatária, no sentido de impedirem a recorrente de receber metade do valor das rendas.

k)- E como bem se assinala na Sentença recorrida, a recorrente sempre poderá fazer valer a sua pretensão de receber as quantias que alega (sendo certo que terá de fazer a devida e necessária prova de que delas é credora e que é o recorrido quem tem procedido à administração do imóvel).

Com efeito, constitui princípio geral de direito o de que quem administra bens ou interesses (total ou parcialmente) alheios se encontra obrigado a prestar contas da sua administração aos titulares respectivos, direito cuja concretização prática possui correspondência adjectiva no Livro V, Título X, Capítulo I, do Código de Processo Civil (artºs. 941º a 947º), sendo objecto da prestação de contas “o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se” (artº 941º do Código de Processo Civil).

Não se vê, assim, que assista razão à recorrente na sua pretensão deduzida nestes autos.

l)- Deste modo, conclui-se que a apelação deduzida não merece provimento, sendo de manter a decisão recorrida.

m)  Sumário :

I-  Nos termos do artº 483º do Código Civil, a responsabilidade civil por factos ilícitos tem como requisitos :  o facto voluntário ;  a ilicitude ;  a culpa ;  o dano ;  o nexo de causalidade.

II-  Havendo compropriedade, à administração da coisa é aplicável o preceituado no artº 985º do Código Civil, “ex-vi” artº 1407º nº 1 do Código Civil.

III-  Nos termos do artº 985º nº 1 do Código Civil, “na falta de convenção em contrário, todos os sócios têm igual poder para administrar”.

IV-  Não emergindo dos autos a celebração prévia de qualquer acordo ou convenção entre os comproprietários no sentido da atribuição a qualquer um deles, ou a um terceiro, da administração do imóvel comum, qualquer deles poderia administrá-lo “uti singuli”.

*  *  *

III–Decisão

Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em :

- Alterar a matéria de facto conforme acima fica dito.

- Negar provimento ao recurso confirmando na íntegra a decisão recorrida.

Custas:  Pela recorrente (artº 527º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 9 de Setembro de 2019

(Pedro Brighton)

(Teresa Sousa Henriques)

(Isabel Fonseca)

Decisão Texto Integral: