Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19525/17.2T8LSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O depoimento de testemunhas e as declarações de parte (ressalvada, quanto à parte, eventual confissão, que terá força probatória plena, se reduzida a escrito), são livremente apreciados pelo julgador, o que significa que o juiz apreciará esses meios de prova de acordo com a sua livre convicção, à luz da experiência normal das coisas e da conjugação com outros meios de prova que existam, de tudo devendo fazer uma análise crítica, que deverá verter na fundamentação da decisão de facto.
II. O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 505.º e 570.º do CC deve ser interpretado, em termos atualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.
III. Deverá excluir-se totalmente o direito a indemnização ao peão, maior de idade, que atravessa subitamente, em corrida, uma rua, cerca de 5 metros após uma passadeira de peões, de molde a não ser possível evitar a colisão com automóvel ligeiro que circulava a velocidade não superior a 40 km/hora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 25.10.2017 Elisabete instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra V – Companhia de Seguros, S.A. e José.
A A. alegou, em síntese, que no dia 02.10.2015, pelas 20h 05m, quando atravessava a Alameda dos Oceanos, no Parque das Nações, em Lisboa, foi alvo de atropelamento por um veículo ligeiro que pertencia e era conduzido pelo R. José (…). O acidente ocorreu por culpa do condutor, que se aproximou de uma passadeira de peões sem abrandar a velocidade, conduzindo desatento e com imperícia. Em consequência do acidente a A. sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, que descreveu. O 2.º R. havia transferido a responsabilidade civil emergente do aludido veículo para a seguradora, ora 1.ª R..
A A. concluiu pedindo que a R. seguradora fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 15 000,00, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 8 255,36, a título de danos patrimoniais e, ainda, em indemnização a liquidar em execução de sentença, relativamente aos danos morais e patrimoniais que eventualmente viessem a ser apurados.
A R. seguradora contestou, impugnando a descrição do acidente efetuada pela A., alegando que o sinistro ocorrera por culpa exclusiva da A., que atravessara a via subitamente, em corrida, a cerca de 4,80m da passadeira de peões, sem atentar na aproximação do veículo conduzido pelo 2.º R., que circulava a velocidade não superior a 40 km/hora e nada pôde fazer para evitar a colisão. Mais alegou que o acidente foi também, do lado da A., um sinistro laboral, tendo a A. sido ressarcida pela respetiva seguradora. No mais, a R. impugnou os danos invocados pela A., por desconhecimento.
A R. concluiu pela sua absolvição do pedido.
O 2.º R. contestou e reconviu, concluindo pela sua ilegitimidade processual, a sua absolvição do pedido e a condenação da A. no pagamento da quantia de € 294,22, a título de indemnização de danos patrimoniais.
Houve réplica.
Em audiência prévia, foi julgada procedente a exceção de ilegitimidade processual do 2.º R., que consequentemente foi absolvido da instância. Julgou-se prejudicado o pedido reconvencional deduzido. Mais se julgou inadmissível o pedido genérico que havia sido deduzido pela A. e, consequentemente, absolveu-se a R. da instância, quanto a ele. Identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final e em 17.02.2020 foi proferida sentença, em que se julgou a ação improcedente e, em consequência, se absolveu a R. do pedido.
A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1.º O presente recurso é interposto da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz 4, que considerou a acção interposta pela A, ora recorrente, improcedente, absolvendo a 2ª R do pedido.
2.º O tribunal a quo deu como provado os factos constantes dos pontos 1º a 5º da douta sentença recorrida isto é que: ”no dia 2.10.2015 o veículo automóvel…após transpor a passadeira de peões e a cerca de 4,80 metros desta, ocorreu o aparecimento da A, na via, que de forma repentina e em passo de corrida, invadiu a fila de trânsito…que …o condutor nada pôde fazer para evitar o peão, tendo-o colhido…, na sequência do atropelamento a A foi transportada para o hospital…sofreu traumatismo craneano…
3.º Considerou ainda que a culpa do acidente deve recair sobre a A que, não só iniciou a travessia fora do local apropriado para os peões como violou os deveres impostos pelo CE, decisão com a qual a recorrente não se conforma, senão vejamos:
4.º Entende a Recorrente que o tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação do depoimento das testemunhas, porquanto fundamenta a sua decisão no facto das testemunhas terem referido que a A atravessou a correr, fora da passadeira e que o automóvel atropelante circulava a cerca de 30/40 km, e da testemunha João (…) que elaborou o auto com base das declarações prestadas por aquelas testemunhas em audiência, que por serem demasiado coincidentes, levantam dúvidas sobre a sua veracidade.
5.º Não se pode aceitar que tendo o condutor uma distância de cerca de 5 metros de via para percorrer e a uma velocidade inferior a 40km/h, não tenha conseguido evitar o atropelamento da A.
6.º Não vale dizer que a A, surgiu na via, de forma repentina, pois o condutor antes de embater na A, teve que percorrer cerca de 5 metros, o que significa que o atropelamento se deu porque o condutor não reduziu a velocidade por forma a parar o veículo o espaço livre á sua frente, caso surgisse, como surgiu, um obstáculo na via. Daí a sua responsabilidade no atropelamento, ao contrário da decisão recorrida.
7.º Fazendo uma apreciação correcta das provas produzidas em audiência de julgamento e da documentação constante dos autos, o tribunal a quo, não podia deixar de condenar a R, nos termos peticionados, pois não restam dúvidas de que o condutor do veículo infringiu as normas legais que regulam os limites de velocidade e a regra de que o condutor deve praticar uma condução, seguindo o critério de velocidade excessiva que lhe permite fazer parar o veículo no espaço livre à sua frente, de forma a evitar qualquer obstáculo, sem causar perigo para si e para os outros que circulam na via.
8.º Assim, considera a recorrente que o condutor ao não reduzir a velocidade na aproximação de uma travessia de peões, num local muito movimentado, com pouca luminosidade, violou os deveres de cuidado impostos legalmente, o que levou ao atropelamento da A e que, tendo transferido a sua responsabilidade dos danos causados no âmbito do seguro automóvel para a 2ªR, seria esta responsabilizado, independentemente da culpa, mas sim, pelo risco de circulação automóvel.
9.º Assim, o Tribunal a quo julgou mal a matéria de facto constante dos pontos 1 e 2 dos factos provados, ao considerar que a A apareceu repentinamente e em passo de corrida, e que o condutor nada pôde fazer para evitar o peão, quando deveria considerar provado que o condutor praticava uma condução descuidada, circulando a uma velocidade excessiva, que tendo em conta as condições do local, não pode parar no espaço livre sem embater na A.
10.º Não se entende como se pode dar como provado que a A, atravessou a via em passo de corrida e fora da passadeira, baseado em depoimentos pouco credíveis e demasiado coincidentes das testemunhas apresentadas pela R.
11.º É por demais evidente que, num acidente rodoviário, tudo acontece em fracção de segundos, e, a não ser que haja concertação entre os depoimentos, os relatos dos acontecimentos sejam todos iguais, como acontece no presente caso. Senão vejamos:
12.º A testemunha Vanessa (…), quando perguntado se assistiu ao atropelamento, disse:… sim…estávamos na rotunda, seguíamos em frente, na Alameda dos Oceanos,…íamos a caminhar…estávamos as três juntas…vimos a senhora a atravessar…saiu do meios dos prédios e passou a correr…devido à falta de visibilidade…a senhora atravessou fora da passadeira…ia de escuro, o que não facilitou a visibilidade para o senhor (referindo-se ao condutor)ao minuto 48;53)…correu direito, sempre em frente, não foi na diagonal…sempre em frente… perguntado onde estavam e se havia alguma passadeira e a que distância, disse…2/3 metros da passadeira…depois da passadeira,… ouvimos um estrondo…foi tudo tão rápido…”só ouvimos o barulho do atropelamento…só vimos a senhora depois do atropelamento…tenho a percepção de que vinha a correr…, perguntado a que velocidade vinha o veículo atropelante, disse 30/40Km/.(Cd1aos00h:44m:41s a 00h:56m:06s).
13º. A testemunha Débora (…), perguntado disse:…sei que já era de noite…começamos a atravessar, fora da passadeira…e vimos uma senhora a atravessar, a correr… e depois deu-se o acidente…sim, estávamos paradas…foi quando a senhora passou por nós…vinha a correr…deu-me a sensação que ela embateu no veículo…perguntado sobre que velocidade circulava o veículo atropelante, disse: vinha dentro das normas, não vinha mais de 30K…perguntado sobre a passadeira, disse:…existe uma passadeira antes do veículo…existe iluminação pública….mas com as árvores ofusca um pouco…perguntado sobre o vestuário da vítima, disse:…roupa escura…(CD1 aos01h:08m:29s a 01h:23m:28s).
14º. A testemunha João (…), agente da BT, que elaborou o auto e que fez o croqui do acidente, quando perguntado qual a posição do peão em relação ao veículo atropelante, disse: consta do croqui…não mediu as distâncias…o veículo estaria ligeiramente à frente da passadeira (ao minuto02:24s) e o peão terá ficado ligeiramente atrás no sentido da marcha do veículo…alguns metros…conforme as testemunhas disseram…perguntado sobre a vítima, disse: a vítima penso que já estava na ambulância, mas haveria uma marca de sangue junto ao lancil (03:17s)…penso que é o que consta do croqui…não estava consciente…perguntado se as testemunhas estavam nalgum dos carros, disse: não, eram peões…perguntado disse: sim, falei com as pessoas e foi dessa forma que elaborei o croqui…o peão estava em estado bastante grave… perguntado de o peão estava vestido de escuro, disse: não me apercebi. Perguntado se verificou elementos objectivos…que lhe permitisse concluir que o peão atravessou fora da passadeira, disse:…trata-se de um testemunho…indicação das testemunhas…pela posição final do veículo indica que o atropelamento teria sido fora da passadeira…(CD 1aos00:00m:01s a 00:12m:02s).
15º. A testemunha, José (…), condutor do veículo sinistrado, quando perguntado disse:…vinha acompanhado de uma outra pessoa…vínhamos em condução normal…está nos autos mais ou menos a velocidade que ia…mais ou menos 40/50Km…já era de noite…a iluminação ali não é assim das melhores…e de repente o que vejo…vejo um vulto a atravessar em frente (16:30) ao carro, vindo do nada e…e pronto…embateu no carro (16:38)…(CD1 aos 00:12m:02s a 00:31m:32s).
16º. A testemunha, Paula (…), que vinha ao lado do condutor, disse: não vi nada…senti uma pancada no carro (ao minuto 34:24)… o para-brisas do meu lado veio para dentro…a percepção é que estava escuro…, realmente vi um vulto que vinha a correr na diagonal…em relação ao local, disse, nunca atropelei ninguém porque nunca apanhei ninguém a atravessar fora da passadeira…CD1 aos (00:31m:32s a 00:44m:41s)
17º. Quanto ao depoimento do marido da A, Alcino (…), embora não tenha presenciado o acidente, descreveu em pormenor o estado da vítima à chegada ao hospital, disse: …estava cheios de sangue…em coma…esteve 3 meses no hospital…deixou de andar…sofreu lesões na cabeça…foi operada…antes não tinha esses problemas…perguntado se recebeu alguma indemnização da companhia de seguros…disse:…só os tratamentos só daquela vez…(referindo-se ao seguro de acidente de trabalho) e o sofrimento vivido durante o período de internamento. (CD1 aos 00:00m:01s a 00:11m:59s).
18.º Considera a A, ora recorrente que o Tribunal, a quo fez uma incorrecta apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, levando a uma menos acertada aplicação da lei.
19.º Também foram incorrectamente julgados os pontos 1º a 5º dos factos não provados que deveriam constar da matéria de facto provada, pois baseados nas declarações de parte da A, e da testemunha Alcindo (…), que descreveram as circunstâncias em que ocorreu o acidente e os danos sofridos em consequência do mesmo, pela A, que deveriam ser valorizadas pelo Tribunal a quo, o não aconteceu.
20.º Se o veículo atropelante circulasse a menos de 40/50km/h, o embate não teria acontecido, sendo que deveria/deve ser considerado provado que o condutor efectuava uma condução descuidada, até porque o mesmo confessou que nem sequer viu o peão.
21.º Por outro lado a decisão recorrida carece de fundamento legal, o que acarreta a sua nulidade, uma vez que não se encontra demonstrada que o facto de o peão ter atravessado a 50 [5] metros da passadeira, tenha contribuído para o embate.
22.º Foram violados os artºs artºs 24º, 25º e 103º do CE, 483º/1, 503º/1 do CCivil e artº 615º do CPC.
A apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada e a R. seguradora fosse condenada, nos termos peticionados.
A R. seguradora contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
I. A Recorrente não propugna que certas respostas deveriam ter ido num sentido diferente, antes se limitando a concluir que o Tribunal deveria ter retirado diferentes ilações da prova produzida;
II. Assim, limitou-se a Recorrente a esgrimir argumentos genéricos que colocam tão-somente em causa a convicção – insindicável- do Tribunal a quo, no que nos parece uma censurável tentativa de ficcionar um ataque à matéria de facto dada como provada.
III. Não se pode, apontar à douta sentença qualquer erro notório na apreciação da matéria de facto, no sentido de que qualquer pessoa comum se poderia facilmente aperceber dele.
IV. O recurso interposto pela Recorrente é desprovido de requisitos essenciais à admissibilidade da sua apreciação, pelo que não deverá ser admitido.
V. As afirmações e considerações tecidas pela recorrente quanto á credibilidade das testemunhas e valoração dos seus depoimentos e restantes meios de prova, mais não são que meras suposições, totalmente desprovidas de fundamento e cujo único propósito redunda na justificação de uma pretensão que, como bem decidiu o Tribunal a quo, carece de sustento jurídico-factual.
VI. Ainda que assim não fosse, não logrou a recorrida fazer qualquer prova dos danos sofridos, pelo que sempre improcederia a sua pretensão.
VII. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exªas suprirão, deve ser negado provimento aso recurso interposto pela recorrente, por improceder IN TOTUM, assim se fazendo Justiça!
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões a apreciar neste recurso são as seguintes: impugnação da matéria de facto; responsabilidade dos intervenientes no acidente.
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte
Matéria de facto
1. No dia 2.10.2015 o veículo automóvel de matrícula …XX… circulava no sentido Norte-Sul, pela via central, na fila de trânsito mais à direita atento o seu sentido de trânsito, a uma velocidade não superior a 40 quilómetros por hora quando, após transpor a passadeira de peões e a cerca de 4,80 metros desta, ocorreu o aparecimento da A. na via, que de forma repentina, e em passo de corrida, invadiu a fila de trânsito pela qual circulava o XX, cortando-lhe a linha de marcha.
2. Em face do aparecimento da A. na via a uma distância do XX não superior a 5 metros o condutor nada pôde fazer para evitar o peão, tendo-o colhido com a frente do XX.
3. Na sequência do atropelamento a A. foi transportada de ambulância para o Hospital de São José, onde ficou internada desde o dia 02.10.2015, no hospital de S. José, depois transferida para o Hospital Curry Cabral, até o dia 09.12.2015, em consequência dos ferimentos sofridos, traumatismo craniano, vários hematomas e arranhões na cabeça e nas costas, deslocamento da retina do olho direito, com perda de visão, após o que, devido às lesões sofridas, prosseguiu com os tratamentos de consulta externa ambulatória, até o dia 25.05. 2016.
4. O veículo automóvel de matrícula …- XX era propriedade do referido condutor José (…).
5. Através de acordo titulado pela apólice nº (…) foi transferida para a R. a responsabilidade emergente da circulação desse veículo.
Na sentença enunciaram-se os seguintes
Factos não provados
1.º Ao aproximar-se de uma travessia de peões o condutor do veículo de matrícula …XX, não reduziu a velocidade, mantendo a sua marcha.
2.º A A. sofreu, em consequência do acidente, as lesões supra descritas, estando desde a data do acidente sem poder trabalhar, pois tem grande dificuldade em manter o equilíbrio e necessita de auxílio para caminhar.
3.º Tem estado de baixa médica desde a data do acidente, mantendo-se em tratamento na consulta externa ambulatória.
4.º A A. era trabalhadora doméstica numa casa particular aquando do acidente e auferia um rendimento mensal de €458,63, e deixou de ganhar, até presente data, €8.255,36.
5.º A A. teve despesas médicas desde o dia 09.12.2015 até o dia 25.05.2016 data da alta definitiva, com os tratamentos realizados em consequência do acidente, nomeadamente consultas de neurocirurgia, oftalmologia, fisioterapia, despesas de transporte e medicamentos, devido às lesões sofridas, cujas sequelas a A ainda padece, no montante de cerca de €1100,00 euros.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC).
In casu, a apelante questiona os factos dados como provados sob os n.ºs 1 e 2, e entende que deveriam ter sido dados como provados os factos não provados 1.º a 5.º. Quanto aos factos provados sob os n.ºs 1 e 2 e o facto não provado 1.º, que dizem respeito às circunstâncias do acidente, a apelante descredibiliza o depoimento das testemunhas Vanessa (…), Débora (…), Paula (…) e José (…), cujos relatos dos acontecimentos seriam “demasiado coincidentes”, tendo servido de base ao auto da ocorrência elaborado pela testemunha João (…). Por outro lado, valoriza as declarações de parte da A.. No que concerne aos factos não provados sob os n.º 2 a 5, respeitantes aos danos sofridos pela A./apelante, a apelante sustenta a sua prova nas suas declarações e nas da testemunha Alcindo (…).
Vejamos.
A prova apontada pela apelante, depoimento de testemunhas e declarações de parte (ressalvada, quanto à parte, eventual confissão, que terá força probatória plena, se reduzida a escrito – artigos 358.º n.º 1 do CC, 463.º n.º 1 e 466.º n.º 3 do CPC), é livremente apreciada pelo julgador (artigos 396.º do Código Civil e 466.º n.º 3 do CPC).
Significa isto que o juiz apreciará esses meios de prova de acordo com a sua livre convicção, à luz da experiência normal das coisas e da conjugação com outros meios de prova que existam, de tudo devendo fazer uma análise crítica, que deverá verter na fundamentação da decisão de facto (art.º 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC).
Ouvidos os depoimentos prestados na audiência final, não vislumbramos razões para alterar a decisão de facto proferida sobre os factos impugnados.
Quanto às circunstâncias do acidente (factos provados 1 e 2, facto não provado 1.º), constata-se que:
a) A A., nas declarações de parte, emitiu um depoimento muito parco em pormenores:
Juíza: “A senhora lembra-se do acidente na altura? Não tem memória do acidente?
A.: “O que eu lembro é que entrei na passadeira, o resto, olhe…”
Juíza: “A senhora diz que entrou na passadeira e foi o carro que não parou?
A.: “Sim, passei dentro da passadeira. Eu nunca passo fora da passadeira, nunca.
Juíza: “E passou dentro da passadeira, portanto a senhora atravessou ali na passadeira, e a senhora vinha num passo normal, vinha a correr…”
A.: “Não, eu não passei a correr. Nunca eu passei na passadeira a correr, nunca.
Juíza: “Então, na altura, quando é que se apercebeu do carro? Depois o carro bateu-lhe, não foi ?
A.: “Olhe, na verdade, eu passei na passadeira, o carro bateu”.
Juíza: “O carro bateu enquanto a senhora ainda estava na passadeira?
A.: “Sim, eu, praticamente, pronto, eu morri.”
b) A testemunha João (…), agente da PSP que tomou conta da ocorrência, deslocando-se ao local logo após o sinistro, e que elaborou o relatório técnico que consta a fls 66 a 91 dos autos (doc. n.º 5 junto com a contestação da R. seguradora), assim como a participação do acidente que consta a fls 26 a 35 dos autos (doc. n.º 2 junto com a contestação da seguradora) não se limitou, na audiência, a reproduzir o que lhe disseram as testemunhas, mas transmitiu também o que deduziu da sua observação do local e do posicionamento da vítima e da viatura:
Não havia vestígios de travagem, ou derrapagem. A velocidade que o animava não permitia que deixasse rasto.” Afirmou que a posição final do veículo e do peão indicava que o atropelamento foi posterior à passadeira. Se o atropelamento tivesse sido sobre a passadeira, para o corpo ficar caído onde ficou, o veículo teria de circular mais depressa e, por isso, teria de ter parado mais à frente.
c) A testemunha José (…), o condutor atropelante, disse que ia em condução “normal”, “40 km, 50 km”, já era de noite, a iluminação no local não era das melhores, “vejo de repente um vulto a atravessar em frente ao carro, vindo do nada, e pronto, e bateu no carro.” Disse que no local há várias passadeiras de peões. “Tinha passado uma [o veículo], e depois uns metros à frente… é quando ela aparece a atravessar a correr.” “Ela não me aparece ao longe, aparece mesmo em cima do carro.” Afirmou que a A. ia apanhar o autocarro, cuja paragem era ali perto. “Apareceu tipo um foguete. Não era só um passo acelerado.” “Foi ali mesmo em cima.”
d) A testemunha Paula (…), que seguia na viatura, ao lado do condutor, afirmou que o atropelamento se deu perto da Caixa Geral de Depósitos, já depois da passadeira. “Íamos no sentido norte, para o Vasco da Gama, passámos a passadeira, ali na Caixa Geral de Depósitos há também uma paragem de autocarro, foi aí que o atropelamento se deu.” “Olhe eu não vi nada. Eu aquilo que senti foi uma pancada no carro, o para-brisas do meu lado veio para dentro e eu não vi. O Zé (…) para de imediato, ia a 40, aquilo tem uma travagem mínima.” “O que eu disse foi: foi um cão, foi uma pessoa?” Inquirida acerca das condições de luz do local, descreveu o facto de os candeeiros, na altura, ficarem acima das copas das muitas árvores que existem no local, fazendo sombras. E acrescentou: “Eu realmente vi um vulto que vinha a correr na diagonal, mas vinha do lado do Tejo, aquilo tem quatro vias”. “Aquilo que eu vi foi: no passeio da faixa central, fora da estrada, três senhoras, que aguardavam atravessar. E depois algo escuro, passou por elas. E depois não vi nada, e depois senti…”
Perguntada pela advogada da seguradora se, quando viu o vulto, não avisou o condutor, respondeu: “Aquilo são quatro vias, aquilo que eu vi foi no outro extremo. Não era expectável que fosse atravessar as vias todas.”
Advogada: “Portanto não teve concretamente a perceção de que esse vulto se iria atravessar em frente do…”
Testemunha: “De todo.”
Disse que não sabia o que era o vulto. Após o embate, a primeira coisa que pensou é que “foi um cão.” “A primeira coisa que disse ao Zé foi “foi um cão, foi uma pessoa?’”. “Ele abriu a porta e disse, “é uma pessoa”. “Era uma senhora de cor”.
Perguntada sobre o vestuário da senhora, disse ter a perceção de que “a senhora estava de escuro e talvez umas sapatilhas azuis”.
Ambas as testemunhas disseram que a senhora veio do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo, tendo batido com a cabeça no para-brisas, do lado do passageiro, e caído para a direita, para o lado do passeio.
e) As três testemunhas mais relevantes, por nada terem a ver com qualquer das partes, nem com o condutor, são as testemunhas Vanessa (…), Inês (…) e Débora (…).
Contrariamente ao afirmado pela apelante, não nos pareceu que os seus depoimentos enfermassem de parcialidade ou falta de genuinidade.
Estas testemunhas encontravam-se perto do local onde o acidente ocorreu, aguardando que o carro ora em causa passasse. Assistiram ao acidente e foram inquiridas, no local, pelo agente da PSP que tomou conta da ocorrência. O caráter inusitado e dramático daquilo a que assistiram e o próprio facto de, na altura, terem tido de fazer uma reconstituição da sua perceção dos acontecimentos, para testemunharem perante aquele agente, certamente que contribuíram para, decorridos cinco anos após o acidente, ainda mantivessem relativamente intacta a memória do ocorrido, pelo menos no que concerne ao essencial (sobre as questões da falibilidade da memória das testemunhas e da sua imparcialidade, vide, em versão sintética, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, pp. 238 a 250; de forma desenvolvida, do mesmo autor, Prova Testemunhal, 2.ª edição, 2020).
Todas afirmaram que eram colegas de trabalho e na ocasião iam jantar as três. Haviam estacionado o seu carro nas proximidades e deslocavam-se, a pé, para o local do restaurante, caminhando pela Alameda dos Oceanos. Seguiam na direção oposta àquela em que vinha o veículo em questão, provenientes do lado do rio, atravessando as várias faixas de rodagem que existem na Alameda dos Oceanos.
Disse a testemunha Vanessa:
Nós vimos a senhora atravessou, saiu do meio dos prédios, do lado onde nós estávamos, no passeio, e atravessou.”
Advogada da seguradora: “Passou…”
Testemunha: “A correr.”
Advogada: “Por vocês?
Testemunha: “Sim, à nossa frente. Nós estávamos a ir, ela passou à nossa frente, saiu dos prédios, no qual saiu a correr do meio dos prédios, fora da passadeira, infelizmente, então, como ela estava de escuro, o que também não facilitou, devido à falta de visibilidade do local, que lá também não tem visibilidade, também não facilita. A senhora atravessou fora da passadeira e a correr. E também vinha de escuro, não facilitou a visibilidade para o senhor.
Advogada: “A senhora atravessou, a correr, as várias vias de trânsito?
Testemunha: “Exato.”
Advogada: “Passou pelas senhoras, atravessou a paralela…”
Testemunha: “A faixa do meio, onde tem as árvores, a iluminação…”
Perguntada acerca do posicionamento do trajeto da A., em relação à rua, a testemunha disse que “correu direito”, “perpendicular à estrada”, “saiu dos prédios e foi sempre em frente, numa linha reta.”
A advogada perguntou a que distância a senhora estaria da passadeira, quando foi atropelada:
Testemunha: “Do sítio onde nós estávamos, devia estar uns três metros, também não estávamos muito junto.” Reiterou que o atropelamento se deu depois da passadeira. O veículo já tinha passado a passadeira.
Advogada: “Tem ideia da velocidade a que circulava o veículo?
Testemunha: “Visto cá de fora, devia ir a uns 30, 40 km, não mais.” Confirmou que o veículo circulava devagar.
Advogada: “Se circulava devagar, porque é que não conseguiu imobilizar-se, sem atropelar o peão?
Testemunha: “Porque a senhora passou de repente, não há hipótese, quando alguém passa a correr, de nós termos essa perceção, ainda para mais quando era de noite, e também estava de escuro, não facilitou, não havia qualquer hipótese de isso não suceder.
A testemunha Inês disse que estavam no separador central, afastadas de qualquer passadeira, a aguardar que o carro (o que veio a atropelar a senhora), passasse.
Nós vimos que vinha um carro, até vinha relativamente devagar, pronto, mas vinha um carro, era de noite, também não sabíamos prever, e também não estávamos na passadeira, portanto, aguardávamos que não tivesse carro nenhum, para passar.” “Estávamos a aguardar que o carro passasse, quando muito próximo de nós só ouvimos um grande estrondo, não percebemos à primeira, foi tudo muito rápido, percebemos um vulto já quase a fazer cambalhota em cima do carro e a ficar estendido, depois, no outro lado, o carro parou. O carro para a marcha, parou logo, tanto que ficou à nossa frente.”
Advogada da seguradora: “Descreve a cambalhota…Antes disso, não viu o peão, não sabe de onde é que ele veio…?”
Testemunha: “Nós temos noção de ver, ou seja, como se fosse um vulto a correr de trás de nós…ou seja, vinha da zona de trás, já da outra faixa, não vinha do separador central, se não nós teríamos visto. Só vimos o vulto literalmente já a voar para cima do carro, e não o carro a bater, porque o que nos deu a sensação é que a pessoa é que foi contra o carro. Deu a sensação de que ia a correr, não sei se não viu o carro, ou achou que conseguia passar antes… O vulto veio da nossa direita. Vinha muito rápido, a correr.”
Advogada da A.: “A senhora diz que foi tudo muito rápido, como é que consegue afirmar que a senhora vinha a correr?”.
Testemunha: “Não estou a afirmar, atenção, na minha perspetiva deve vir a correr, porque a atravessar devagar, não vinha, porque senão nós teríamos visto, nós estávamos a olhar para o carro, portanto, se uma pessoa fosse atravessar a andar, eu teria pelo menos conseguido ver que era uma pessoa, e teria visto que vinha a andar… daí eu tirar a minha opinião de que provavelmente vinha a correr, porque da maneira que veio de trás de nós e o tempo em que se lançou em cima do carro, é impossível, no meu ponto de vista, atenção, que viesse a andar.
Advogada da A.: “Portanto, só se apercebeu que houve um atropelamento quando ouviu o barulho, não viu a senhora em momento nenhum”.
Testemunha: “Nós não a vimos, nós vimos o vulto, a passar muito rápido por nós e já só vimos mesmo o atropelamento.
Testemunha Débora:
Começámos a atravessar aquela avenida, que tem algumas faixas. Começámos a atravessar, fora da passadeira, e vimos uma senhora a atravessar a correr. E quando reparámos, pronto, deu-se o acidente. O carro bateu-lhe.”
Advogada da seguradora: “E quando se aperceberam… mas as senhoras estavam paradas, nesse lancil?
Testemunha: “Sim, estávamos paradas, porque vimos o carro, e não atravessámos.
Advogada: “Portanto, as senhoras estavam a aguardar que o veículo, que veio a atropelar, passasse.
Testemunha: “Sim, foi quando essa senhora passou por nós a correr e deu-se o acidente.
Advogada: “E vinha de aonde? Qual é a perceção que tem e que caminho, que descrição é que o peão fez na estrada, que caminho fez?
Testemunha: “É assim, nós vínhamos mais ou menos, neste caso vínhamos a cortar mato, desde o carro…por exemplo, vínhamos assim…”
Advogada: “Um bocadinho na diagonal, é isso?
Testemunha: “Sim, exatamente. A senhora passou por nós.”
Advogada: “E o peão também viria a correr na diagonal?
Testemunha: “Não, ela vinha a correr de trás de nós, porque nós estacionámos o carro e deu a sensação de ela vir de um dos prédios que estavam na zona, onde deixámos o carro.”
Advogada: “Mas quando viram a senhora a correr, já estavam paradas no lancil a aguardar que este carro passasse…certo?
Testemunha: “Sim.”
Advogada: “E do que é que se apercebeu? O que é que viu?
Testemunha: “Pronto, eu vi a senhora a correr, deu-me a sensação de ela embater no veículo, pela minha perspetiva ele nunca chegou a ver de frente, penso que bateu logo com uma das pernas e pronto, projetou logo para cima, e quando nós vimos já ela estava no outro passeio.”
Advogada: “A senhora, não sei se conduz…”
Testemunha: “Conduzo”.
Advogada: “Tem a perceção da velocidade a que o veículo viria?
Testemunha: “Vinha dentro das normas, a velocidade. Não viria a mais de trinta, na minha perspetiva.”
Advogada: “A perceção que teve é que vinha bastante devagar…”
Testemunha: “Devagar, sim, até porque…antes, teria uma passadeira.”
Afirmou que antes do local do atropelamento, no sentido do automóvel, havia uma passadeira, que o veículo já passara aquando do acidente.
f) Sobre a questão da roupa usada pela vítima à data do acidente, a testemunha Vanessa, conforme supratranscrito, afirmou espontaneamente que a vítima vestia de escuro. A testemunha Inês, perguntada pela advogada da seguradora se se recordava como o peão estava vestido, afirmou não se recordar: “Quando vimos a pessoa, já estava deitada, havia sangue.”. A testemunha Débora, após ser inquirida acerca disso pela advogada da seguradora (“E tem ideia de que tipo de vestuário é que o peão envergava?”), respondeu, simplesmente, “roupa escura”. A testemunha João (…) (o agente da PSP), perguntado acerca da cor da roupa do peão, afirmou que não se apercebeu desse pormenor, pois o peão estava a ser assistido nessa altura. Também as testemunhas José (…) e Paula (…) disseram parecer-lhes que a vítima levava roupa escura.
Embora possa sempre haver alguma contaminação nas recordações das testemunhas, nomeadamente quando têm a possibilidade de trocar impressões acerca dos factos sobre os quais irão depor, cremos que, no essencial, os depoimentos das referidas três testemunhas transmitem uma visão suficientemente objetiva e clara acerca do que sucedeu, a qual, conjugada com o levantamento efetuado pela testemunha João (…) (agente da PSP) do local e do posicionamento do veículo e da vítima (croquis constante a fls 30 e 31 dos autos - doc. n.º 2 junto com a contestação da R. - e relatório técnico que constitui o doc. 5 junto com a contestação da R.), permite considerar acertada a decisão de facto quanto à matéria impugnada. A única prova apontada pela apelante para contrariar tais factos são, afinal, as suas declarações, produzidas na audiência final, as quais, de tão lacónicas e desprovidas de pormenores, incutem pouca credibilidade (sobre o laconismo como indicador da mentira, vide Luís Filipe de Sousa, Prova Testemunhal, ob. cit., máxime pp. 133 e 134), para além de serem contrariadas por todos os outros meios de prova produzidos. Aliás, se bem atentarmos na petição inicial, nela a A. não afirma que iniciara a travessia da via por cima da passadeira de peões.
No que concerne aos factos não provados 2.º a 5.º, respeitantes aos danos sofridos pela A./apelante, os depoimentos da A. e da testemunha Alcindo (…), seu marido, não foram de molde a ir-se mais além do que está provado sob o n.º 3. Com efeito, ambos os depoentes declararam que a A. está a trabalhar desde que teve alta, que nunca deixou de receber o valor correspondente ao seu salário (enquanto não trabalhou, metade era pago pela seguradora, metade pelos patrões), e nada souberam concretizar em termos de despesas de saúde decorrentes do acidente.
A impugnação da matéria de facto é, pois, improcedente.
Segunda questão (responsabilidade dos intervenientes no acidente)
Resulta dos factos provados que a A. atravessou a rua sem se certificar de que o podia fazer sem perigo de acidente, e fora da passadeira para peões que se encontrava nas proximidades, a cerca de cinco metros de distância. Violou, pois, duplamente, o Código da Estrada (art.º 101.º, n.ºs 1 e 3).
Por sua vez, o condutor do veículo circulava a velocidade que, embora não se tenha provado qual era ao certo, não excedia os 40 km/hora, pelo que se encontrava dentro dos limites legais (art.º 27.º n.º 1 do CE), sendo certo que, tendo o sinistro ocorrido já após o veículo ter ultrapassado a passadeira de peões, não se provou, contrariamente ao alegado pela A., que “[ao] aproximar-se de uma travessia de peões o condutor do veículo de matrícula 48-86-XX, não reduziu a velocidade, mantendo a sua marcha” (facto não provado 1.º).
Não se provou, assim, que o dito condutor tenha violado as regras dos artigos 24.º, 25.º, 27.º, 103.º n.º 2 do Código da Estrada.
Pelo contrário, provou-se que quando o dito condutor seguia na fila de trânsito mais à direita atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade não superior a 40 quilómetros por hora, após transpor a passadeira de peões e a cerca de 4,80 metros desta, ocorreu o aparecimento da A. na via, que de forma repentina, e em passo de corrida, invadiu a fila de trânsito pela qual circulava o veículo, cortando-lhe a linha de marcha. Em face do aparecimento da A. na via a uma distância do veículo não superior a 5 metros o condutor nada pôde fazer para evitar o peão, tendo-o colhido com a frente do automóvel.
Por isso, como bem se ajuizou na sentença recorrida, não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil da R., expressamente invocada pela A. (responsabilidade do condutor do veículo segurado, a título de culpa – art.º 483.º do Código Civil).
E quanto à eventual responsabilidade da R., emergente do disposto no artigo 503.º do Código Civil (responsabilidade do segurado pelo risco)?
O tribunal a quo também a arredou, ao abrigo do art.º 505.º do Código Civil:
Porém, e por força do disposto no artigo 505º, do Cód. Civil, esse proprietário (e em virtude de contrato de seguro a Ré) não responde pelos danos sofridos pela Autora por a responsabilidade pelo risco ter sido excluída pela culpa do Autora, à qual é de imputar como já se referiu a ocorrência desse acidente.”
O art.º 505.º, recorde-se, tem a seguinte redação:
Exclusão da responsabilidade
Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
É sabido que, na linha da lição do Prof. Antunes Varela (cfr., v.g., Das Obrigações em geral, vol. I, 8.ª edição, Almedina, pp. 687 a 694), por muito tempo a jurisprudência (v.g., acórdãos do STJ, de 12.4.2006, processo 06A701; 06.11.2008, 08B3331) considerou que o art.º 505.º do CC excluía a responsabilidade objetiva do detentor do veículo quando o acidente fosse devido a facto da vítima, culposo ou não (para além das outras duas situações previstas no preceito – acidente imputável a terceiro ou resultante de causa de força maior, estranha ao funcionamento do veículo, de que aqui não cuidamos), não sendo admissível concurso do risco com a culpa ou, simplesmente, com a imputação causal do acidente ao lesado. Para essa tese, que se pode de qualificar de “clássica” ou “tradicional”, o art.º 505.º ocupa-se de uma simples questão de causalidade. A verificação de qualquer das situações apontadas no art.º 505.º “quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano. Qualquer dessas causas exclui assim a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, porque o dano deixa de ser um efeito adequado do risco do veículo” (A. Varela, ob. cit. p. 687). “Para a exacta compreensão do preceito, importa considerar que não é um problema de culpa que está em causa no artigo 505.º, pois não se trata de saber se o lesado é responsável pelos danos provenientes de facto (ilícito) que haja praticado. Trata-se apenas de um problema de causalidade, que consiste em saber quando é que os danos verificados no acidente não devem ser juridicamente considerados como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima.” (A. Varela, ob. cit., p. 692).
Ou, nas palavras lapidares do STJ: “Culpa e risco são valores tão distintos, tão inconciliáveis, que só por mero exercício de ficção poderia fazê-los concorrer e estabelecer proporções de ambos. No âmbito da responsabilidade objectiva, ou sem culpa, a culpa da vítima afasta a razão de ser e a lógica do risco. É o que claramente resulta do artigo 505.º do Código Civil.” (acórdão de 18.4.2006, supracitado).
A exclusão da responsabilidade pelo risco nas situações referidas no art.º 505.º justificar-se-ia por uma questão de justiça: “sendo já bastante severa a responsabilidade lançada sobre o detentor do veículo, não se afigura razoável sobrecarregá-la ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação ou a quem deliberadamente o provocou” (A. Varela, ob. cit. p. 689).
Antunes Varela acaba, porém, por inserir na obra citada uma nota que introduz alguma perturbação (nota 2, p. 689):
Não basta, todavia, provar que houve culpa da vítima no acidente, para que se possa considerar excluída a responsabilidade do condutor ou do detentor, visto que, ao lado da culpa daquela, pode existir culpa destes. Assim, a responsabilidade só poderá considerar-se definitivamente excluída, quando se provar que houve culpa do lesado e não houve culpa do condutor ou do detentor. É nesse sentido que algumas legislações e alguns autores afirmam que a responsabilidade do proprietário e do condutor do veículo é excluída quando a culpa do lesado for a única causa do acidente, ou quando este for unicamente devido a culpa do lesado.” (itálico do autor, negrito nosso).
Aparentemente, Antunes Varela admite que a responsabilidade (pelo risco) do detentor do veículo não é afastada quando, não se provando embora a culpa do condutor ou do detentor, também não se prove que não houve culpa do condutor ou do detentor. Ora, a ser assim, se a vítima concorreu culposamente para o acidente, a responsabilidade não deverá nem ser assumida exclusivamente pelo detentor, nem ser exclusivamente imputada à vítima – o que desemboca numa situação de concorrência entre culpa da vítima e responsabilidade pelo risco do detentor (pois não se provou a culpa deste ou do condutor).
Seja como for, como se dá nota na jurisprudência que veio a sufragar uma interpretação atualista do art.º 505.º do CC, e para a qual se remete, desde cedo vozes se levantaram, na doutrina, contra esta inadmissibilidade de concorrência entre culpa e risco, no âmbito da sinistralidade rodoviária. Desde logo, Vaz Serra, mas também, posteriormente, Jorge Sinde Monteiro, Calvão da Silva, Brandão Proença, e o Juiz Desembargador Américo Marcelino.
Na jurisprudência, o acórdão do STJ, de 04.10.2007, processo 07B1710, foi talvez o primeiro que se afastou do aludido paradigma clássico.
Aí se aceitou “ponderar a justeza da crítica, que à corrente tradicional tem sido dirigida, de conglobar, na dimensão exoneratória da norma do art. 505º, tratando-as da mesma forma, situações as mais díspares, como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios, uniformizando, assim, “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação”, “desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária”, e conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes.
Aí também se refere, como contexto a considerar, o sucessivo alargamento da responsabilidade civil objetiva a diversos setores, onde se admite a responsabilização pelo risco conjugadamente com a culpa do lesado (responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos, responsabilidade civil decorrente da utilização de aeronaves, de embarcações de recreio, da produção e distribuição de energia elétrica, e, de há muito, nos acidentes de trabalho).
Também aí se aponta o direito comunitário e a jurisprudência comunitária, em sede de sinistralidade rodoviária, dos quais emanaria a obrigação de se reconhecer às vítimas de acidentes de viação uma maior proteção.
Assim, no aludido acórdão, cujo objeto era uma colisão entre um automóvel que circulava numa estrada com prioridade e uma criança de 10 anos de idade que seguia numa bicicleta e desrespeitara essa prioridade, entrando na aludida estrada e sendo embatida pela viatura, cuja condutora tinha apenas seis meses de experiência de condução (o que, considerou-se, potenciara a perigosidade inerente ao próprio veículo), reduziu-se, com recurso ainda à norma de repartição do dano prevista no art.º 570.º n.º 1 do CC, a indemnização devida à criança, em 60%.
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), chamado a apreciar, em reenvio prejudicial, a compatibilidade do direito português sobre a responsabilidade civil rodoviária com o direito comunitário e com a jurisprudência comunitária, terá ficado um pouco aquém das expetativas expostas no aludido acórdão do STJ, de 04.10.2007 (Caso Ambrósio Lavrador e Ferreira Bonifácio, processo C-409/09, acórdão de 09.6.2011).
Com efeito, no caso de uma criança que fora colhida mortalmente, sem culpa do condutor, por um automóvel, quando a criança seguia em contramão numa bicicleta, o STJ pediu ao TJUE que respondesse à seguinte questão:
O disposto no [a]rtigo 1.° da [Terceira Directiva] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o direito civil português, designadamente através dos artigos 503.°, n.° 1, 504.°, 505.° e 570.° do Código Civil, em caso de acidente de viação, como o verificado nas circunstâncias de tempo[,] modo e lugar do presente caso concreto[,] recuse ou limite o direito à indemnização ao menor, também ele vítima do acidente, pela simples razão de ao mesmo[…] ser atribuída parte ou mesmo a exclusividade na produção dos danos?»
O TJUE, após ponderar que:
29. Como o Tribunal de Justiça já precisou, as referidas directivas [Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade («Primeira Directiva»); Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis («Segunda Directiva»), e Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis («Terceira Directiva»)] ficariam privadas desse efeito [“efeito útil”] se, apenas com fundamento na contribuição da vítima para a produção do dano, uma regulamentação nacional, definida com base em critérios gerais e abstractos, recusasse à vítima o direito de ser indemnizada pelo seguro automóvel obrigatório ou limitasse esse direito de modo desproporcionado (v., neste sentido, acórdão Candolin, já referido, n.° 29). Por conseguinte, só em circunstâncias excepcionais, com base numa apreciação individual, a extensão da indemnização da vítima poderá ser limitada (acórdão Candolin, já referido, n.° 30);
31. Há que salientar que, no litígio no processo principal, diferentemente das circunstâncias que deram origem aos acórdãos, já referidos, Candolin e Farrell, o direito à indemnização das vítimas do acidente é afectado não devido a uma limitação da cobertura da responsabilidade civil pelo seguro operado por disposições em matéria de seguro, mas devido a uma limitação da responsabilidade civil do condutor segurado, por força do regime de responsabilidade civil aplicável”;
32. A este respeito, resulta da decisão de reenvio que os artigos 503.° e 504.° do Código Civil português prevêem uma responsabilidade objectiva em caso de acidente de viação, mas que, em conformidade com o artigo 505.° deste código, a responsabilidade pelo risco prevista no artigo 503.°, n.° 1, do referido código é excluída quando o acidente for imputável à vítima. Além disso, quando um facto culposo da vítima tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos, o artigo 570.° do Código Civil português prevê que, com base na gravidade desse facto, a referida pessoa pode ser total ou parcialmente privada de indemnização”;
33. Por outras palavras, a legislação nacional aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo, quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima. Além disso, caso a vítima, por facto que lhe seja imputável, tenha concorrido para a produção do dano ou para o seu agravamento, a indemnização desta, nos termos dessa legislação, é afectada numa medida proporcional ao grau de gravidade desse facto”; [negrito nosso]
“34. Contrariamente aos contextos jurídicos que deram origem aos acórdãos, já referidos, Candolin e Farrell, a mencionada legislação não tem assim por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito, no caso concreto, o direito dos pais de um menor que faleceu, quando circulava numa bicicleta, em resultado de uma colisão com um veículo automóvel, de ser indemnizada pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil do condutor do veículo envolvido no acidente. Não afecta assim a garantia, prevista pelo direito da União, de que a responsabilidade civil, determinada segundo o direito nacional aplicável, seja coberta por um seguro conforme com as três directivas acima mencionadas (v. acórdão Carvalho Ferreira Santos, já referido, n.os 43 e 44)”; [negrito nosso]
Terminou por concluir (o TJUE) que
35. Em face das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que a Primeira, Segunda e Terceira Directivas devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.
No caso nacional que justificou o mencionado reenvio prejudicial para o TJUE, o STJ, por acórdão proferido em 05.6.2012 (processo 100/10.9YFLS), acabou por imputar à bicicleta uma proporção de 40% e ao automóvel uma proporção de 60%, no eclodir do acidente e respetivos danos. Para tal, após se ajuizar que não era compatível com o direito comunitário uma interpretação do art.º 505.º do CC pela qual a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano exclua a responsabilidade pelo risco, considerou-se que, relativamente a uma criança com seis anos de idade, que passeia numa bicicleta, não se pode falar em culpa, não havendo, como decorre dos artigos 488.º n.ºs 1 e 2 do CC, nexo de imputação culposa ao menor, atenta a sua idade. Por outro lado, nos autos não fora alegada a existência de culpa in vigilando, pelo que esta não poderia ser considerada. Finalmente, ajuizou-se que era aplicável ao caso a norma de repartição do risco prevista no art.º 506.º do CC e levou-se em consideração a perigosidade própria de um veículo que circula numa povoação e a perigosidade de uma bicicleta que era conduzida pela forma descuidada descrita no acórdão.
Fazendo-se eco da possibilidade de responsabilização pelo risco em caso de acidente para o qual contribuiu decisivamente facto não culposo respeitante à vítima, veja-se o caso julgado pelo STJ, no acórdão proferido em 19.3.2019 (processo 5173/15.5T8BRG.G1.S1). Uma senhora, que acabara de sair de um autocarro e já estava em cima do passeio, desequilibrou-se no preciso momento em que o veículo retomava a sua marcha, caindo e sendo atropelada numa perna. O STJ entendeu que “[t]endo sido provado que o acidente foi causado pela conduta da A. lesada, sem que se possa invocar ter a mesma qualquer modo de a controlar, por se tratar de um acto involuntário (…) o juízo de adequação e proporcionalidade não deve excluir a responsabilidade do detentor efectivo do veículo pelos riscos próprios do mesmo; e portanto não é de excluir a responsabilidade da R. seguradora para quem tal responsabilidade fora transferida”. Considerou-se que “[o] risco de circulação do veículo, máxime sendo um veículo pesado, contribuiu sobremaneira para o dano”. De tudo resultou a não redução do valor indemnizatório a fixar a favor da vítima.
Também se considerou ter havido responsabilidade concorrente pelo risco e por culpa do lesado, no caso de uma criança de 12 anos de idade, que acabara de sair de um autocarro de passageiros e tentara atravessar a estrada em corrida, passando pela frente do autocarro, e voltara atrás, sendo atropelada por automóvel que circulava a cerca de 40 km/hora. Ao abrigo do art.º 570.º do CC, reduziu-se a indemnização devida em 60% (STJ, acórdão de 28.3.2019, processo 954/13.7TBPMS.C1.S1).
Também aplicando a referida interpretação atualista dos artigos 505.º e 570.º do CC, propugnando a concorrência entre risco do veículo lesante e culpa do lesado, o STJ, em acórdão proferido em 24.9.2020 (processo 9/14.7T8CPV.P2.S1), imputou, na eclosão do acidente e seus danos, 60% à culpa do lesado e 40% ao risco do veículo, num caso em que um peão idoso foi atropelado quando, circulando inicialmente por uma estreita berma da estrada, começou a caminhar pela estrada, junto à berma, de costas para um automóvel cujo condutor, momentaneamente encadeado pelo Sol, não o viu e não conseguiu evitar o atropelamento. Entendeu-se que a conduta do peão, embora censurável, “…configura-se como desatenção decorrente da quotidiana convivência com a fonte de perigo do que uma deliberada exposição a um risco grave, justificante da total exclusão da eventualmente concomitante responsabilidade pelo risco.
Sobre esta matéria, revemo-nos nas seguintes considerações, constantes no acórdão do STJ, de 01.6.2017, processo 1112/15.1T8VCT.G1.S1:
No nosso entendimento, o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.
Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas.”
Embora sem se furtar à referida perspetiva atualista do art.º 505.º do CC, o STJ considerou que era de imputar exclusivamente à vítima as consequências do sinistro, com o consequente arredamento da responsabilidade pelo risco do detentor do veículo, nos seguintes casos:
a) Peão atravessou rua à saída de um túnel rodoviário (túnel do Campo Grande, em Lisboa) e foi atropelado por um motociclo que saía do túnel. Não havia passadeira para peões a menos de 50 metros. O peão surgiu subitamente, não havendo hipótese de evitar o embate, dada a proximidade (acórdão de 20.01.2009, processo 08A3807);
b) Criança de 4 anos surge de entre dois veículos estacionados, sendo atropelada por veículo que passava a não mais de 20 km/hora (acórdão de 17.5.2012, processo 1272/04.7TBGDM.P1.S1);
c) Velocípede, conduzido por maior, vindo de um caminho de terra, irrompe súbita e inesperadamente da direita, entrando na estrada onde seguia um veículo automóvel que seguia a velocidade próxima dos 50 km/hora (acórdão de 05.11.2013, processo 8/10.8TBTNV.C1.S1);
d) Numa localidade, criança de um ano coloca-se à frente de uma carrinha Ford Transit, que tinha parado para recolher uma outra criança, e é atropelada porque a carrinha iniciou a marcha sem que o condutor se pudesse aperceber da sua presença, dada a pouca altura da criança (deu-se como provada culpa in vigilando da avó da criança) (acórdão de 01.6.2017, processo 1112/15.1T8VCT,G1.S1, supracitrado);
e) Criança de 10 anos atravessa rua a correr, surgindo inopinadamente de entre dois autocarros que se encontravam parados, sendo colhida por automóvel que passava na altura (acórdão de 14.12.2017, processo 511/14.0T8GRD.D1.S1);
f) Peão, maior, atravessa fora da passadeira, que se encontrava a 24 metros de distância, quando se encontravam os semáforos com a luz verde para o automóvel que o atropelou (acórdão de 11.01.2018, processo 5705/12.0TBMTS.P1.S1);
g) Criança de 10 anos sai de trás de carro para atravessar rua, três metros antes de uma passadeira de peões, sem atentar em carro que vinha em sentido contrário e que a atropelou nesse exato momento (acórdão de 27.6.2019, processo 589/14.7T8PVZ.P1.S1);
h) Senhora atravessa estrada em que o trânsito era intenso, processando-se em “para – arranca”, incluindo veículos pesados, fora da passadeira de peões, que existia a 20 metros, sendo atropelada por semi-reboque que reiniciara a sua marcha, circulando a 5/10 km/hora, não tendo o motorista se apercebido da presença do peão, que tinha baixa estatura (acórdão de 17.10.2019, processo 15385/15.6T8LRS.L1.S1).
Na doutrina, apontam-se, como exemplos de afastamento da responsabilidade pelo risco, por o acidente resultar unicamente do comportamento do próprio lesado, o peão que atravessa a rua a correr fora da passadeira ou quando o semáforo está vermelho para ele, o indivíduo que se aproxima imprevidentemente de um carro em chamas, o passageiro que salta do veículo em andamento (cfr. Raul Guichard, em anotação ao art.º 505.º, em Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 414).
Revertendo ao caso destes autos, considera-se, por tudo o já cima exposto, que a conduta da A., gravemente culposa, foi a única causa relevante do acidente, devendo excluir-se totalmente o direito a indemnização (artigos 505.º e 570.º n.º 1 do CC).
Resta referir que, contrariamente ao mencionado na conclusão 21.ª da apelação, não se vislumbra que a sentença recorrida enferme de qualquer nulidade por falta de fundamentação. O juiz a quo conheceu de todas as questões que lhe cabia conhecer, enunciou as razões de facto e de direito que basearam o julgado, e proferiu a respetiva decisão, cumprindo o disposto nos artigos 607.º e 608.º do CPC.
A apelação é, pois, improcedente, devendo manter-se a sentença recorrida.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 14.01.2021
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins