Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16113/20.0T8LSB-B.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
CRÉDITO DA SOCIEDADE
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Se uma sociedade foi extinta e o respectivo crédito não foi liquidado, os sócios podem assumir a posição que aquela detinha, recorrendo à acção prevista no nº 2 do artigo 164º do CSC.
II – Tal acção está sujeita ao prazo máximo de prescrição de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade (art.º 174º, nº 3 do CSC).
III – Assim, se aquela acção foi intentada mais de 6 anos após a extinção da sociedade, o crédito que os autores pretendiam exigir dos réus na qualidade de terceiros devedores, já se encontra prescrito, pelo decurso do prazo previsto no nº 3 do artigo 174º do CSC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. P. e T., vieram, por apenso ao processo de insolvência nº 16113/20.0T8LSB,  propor a presente acção de verificação ulterior de créditos nos termos do disposto no artigo 146º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), contra MASSA INSOLVENTE DE M., LIMITADA, a insolvente, M., LIMITADA e credores da insolvência, pedindo o reconhecimento de um crédito sobre a insolvente  no valor total de € 1.890.627,52, a graduar com os demais.
Alegaram, em síntese, que foram sócios e gerentes da sociedade UVS, Ld.ª, e que na sequência da dissolução desta passaram a ocupar o seu lugar no processo executivo n.º 13676/11.4YYLSB, a correr termos no Juízo de Execução de Lisboa, detendo assim, em substituição daquela sociedade, um crédito no valor de €1.165.419,97, a que acrescem juros no montante de €725.207,55.
Regularmente citados os RR., tanto a INSOLVENTE como a MASSA INSOLVENTE deduziram a respectiva contestação, a primeira, excepcionando a caducidade do direito de acção e a ilegitimidade dos AA. e, no mais, impugnando os factos alegados (refª 30043263), e, a segunda, alegando que os AA. apenas podem reclamar créditos limitados ao seu interesse na sociedade credora da insolvente e, ainda, acompanhando a contestação apresentada pela insolvente (ref.ª 30644067).
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador-sentença que julgou improcedente as invocadas exceções de caducidade e de ilegitimidade activa e, conhecendo do mérito, julgou parcialmente procedente a acção, em resultado do que reconheceu a cada um dos AA. um crédito sobre a insolvente no valor de € 508.410,85 (quinhentos e oito mil, quatrocentos e dez euros e oitenta e cinco cêntimos), a graduar como comum, acrescido do valor dos juros vencidos e vincendos desde a data de declaração da insolvência, a graduar como subordinado.
Inconformada com esta sentença, dela interpôs recurso a sociedade, S., S.A., na qualidade de credora nos autos principais, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1º. Os presentes autos versam sobre a acção declarativa a que se referem os art.ºs 146º e segs do CIRE e 164º do CSC; nela, os Autores invocam serem detentores de um direito de crédito sobre a sociedade insolvente, face à dissolução e liquidação da «UVS, Lda.», da qual tinham sido sócios e gerentes.
2º. Da certidão permanente junta pela Massa Insolvente à sua contestação como doc. nº 1, vê-se que o registo da extinção da sociedade «UVS, Lda.» ocorreu em 2015.02.19; e a presente acção foi intentada em 2021.06.18; ou seja, entre uma data e outra, decorreram seis anos, quatro meses e dezoito dias.
3º. O nº 3 do art.º 174º do CSC, na parte que releva para o caso, estabelece que prescrevem no prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, os direitos de crédito exigíveis pelos antigos sócios contra terceiros, nos termos dos artigos 163.º e 164.º – sendo que a insolvente surge, nestes autos, como terceiro.
4º. Na anotação ao artigo 174.º, Carolina Cunha, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Volume II, 2011, citada no Acórdão da Relação do Porto de 2020.04.23 (P. nº 18901/16), parcialmente transcrita na presente alegação, afirma, com rigor, que «O facto relevante [para a contagem do prazo] é, previsivelmente, a extinção da sociedade».
5º. Tal Acórdão, também parcialmente transcrito nesta alegação, mais acrescenta, lapidarmente: «A previsão do nº 3 do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais o que tem por objecto são os direitos de crédito exigíveis pelos antigos sócios contra terceiros nos termos do artigo 164.º. A prescrição que ele regula não é, pois, a do crédito exigível pela sociedade, leia-se, o crédito social quando o seu pagamento é exigido pela sociedade (…). A prescrição regulada no preceito é a do crédito que era da sociedade mas que ela já não pode exigir por se encontrar extinta (…)».
6º. Ou seja, o legislador criou um prazo de prescrição autónomo, específico, próprio, para a situação de o crédito estar a ser exigido pelo ex-sócio após a extinção da sociedade – o que será uma das consequências de o direito societário ser um direito especial por referência ao direito civil comum regulador das pessoas colectivas em geral, com uma génese e disciplina própria, que se autonomizou das regras das pessoas colectivas previstas na lei Civil.
7º. Tendo a ora recorrente um legítimo interesse na declaração da prescrição (Cód. Civil, art.ºs 301º e 305º nº 1), afigura-se, assim, que o putativo direito invocado pelos Autores se encontra prescrito. E como tal deverá ser declarado.
8º. A epígrafe do art.º 164º do CSC é a seguinte: «Activo Superveniente»; ora, os Autores apresentam-se a intentar a cobrança de um putativo crédito que já estaria definido desde 2009.03.19 (data da acta da assembleia), ou seja, que já existia na esfera jurídica da «UVS, Lda.» quando esta foi liquidada e declarada extinta, pelo que não se trata de um «activo superveniente».
9º.Na verdade, a acção prevista no n.º 2 do art.º 164.º do CSC não pode ser intentada para cobrar créditos pré-existentes à data do registo de encerramento da dissolução, mas tão-só aos que supervenientemente surjam.
10º. Aliás: mesmo que se entenda que a «superveniência» a que o preceito se refere se poderá reportar a um activo «constatado» ou «descoberto» após o registo de encerramento da dissolução, ou seja, já existente por ocasião desta última, mas não relacionado, tal suscita-nos, nesse caso, duas constatações:
11º. sem perder de vista que dificilmente alguém, maxime, os gerentes de uma sociedade, se «esqueçam» de relacionar, no respectivo processo de insolvência, um crédito de uma quantia tão desmedida como o é o invocado (nada menos do que €1.890.627,52), «esquecimento» que atenta contra todas as regras da experiência comum,
12º. essa omissão, por parte dos gerentes da insolvente comporta um elevado potencial de lesão dos interesses dos credores, equivalendo à declaração (tácita, se se quiser) de que a sociedade não teria qualquer activo (nem passivo);
13º. e, mesmo que tal não corresponda à realidade, essa ocultação desencadeou um procedimento que culminou com a extinção do ente societário.
14º. E, tivessem os gerentes – aqui, Autores/recorridos – relacionado, como deviam, esse crédito no processo de insolvência da sociedade que administravam, seguramente que teriam obstado à respectiva declaração definitiva da respectiva insolvência.
15º. Daí a segunda constatação que essa atitude suscita: admitir-se como lícita a atitude dos Autores, por via da descrita forma de proceder, permitir-se-ia aos sócios/gerentes de uma sociedade de que fora requerida a insolvência que não relacionassem os activos, tão-só os passivos, de forma a provocar o extinção do ente societário para, posteriormente, e como pessoas singulares… reclamarem tais créditos, sem se verem obrigados a saldar o passivo societário…
16º. Antolha-se patente que o legislador não visava esse resultado quando redigiu as normas atinentes à Verificação Ulterior de Créditos e à possibilidade de cobrança de Activo Superveniente, em que o activo da sociedade, existente, é «ocultado» e não destinado a liquidar o passivo, mas antes escondido de forma sub-reptícia, informal, não declarada, de licitude duvidosa, pelos gerentes do ente societário de responsabilidade limitada, extinto pela omissão de obrigações que sobre eles impendiam – resultado esse que é jurídica, económica e socialmente perverso.
17º. Não foi para compactuar com situações como a criada pelos Autores que as aludidas normas foram pensadas e estatuídas, pelo que o acto de as sancionar (às situações) se traduziria em «premiar o infractor»…
18º. Vale dizer, pelas razões indicadas, os Autores/recorridos, ao intentarem a presente acção, estão, manifesta e clamorosamente, a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito que vieram invocar – ou seja, actuam com abuso de direito (Cód. Civil, art.º 334º), o que implica a respectiva paralisação.
19º. O que, aliás, já fora suscitado pela Ré «M., Lda.», na sua contestação (cfr. art.ºs 13º e 16º) – pelo que, igualmente por esta via, deverá a acção ser julgada improcedente.
20º. Ainda que o expendido não fosse rigoroso – e é-o – e se reconhecesse aos Autores da acção a qualidade de credores da insolvente, os respectivos créditos deveriam ser classificados como subordinados:
21º. Consoante consta da certidão permanente junta pela Ré «M., Lda.», esta era, desde 2010.10.01, conjuntamente com os Autores, detentora de uma quota na sociedade «UVS, Lda.», correspondente a 45,45% do capital social – e os Autores, a par de gerentes, detinham conjuntamente quotas correspondentes a 54,55% do mesmo capital.
22º. Donde, tal sociedade, representada pelos sócios aqui Autores, estava numa situação de especial relação com o devedor, tendo sobre ele uma relação de domínio; porquanto:
23º. Nos termos do art.º 48º do CIRE, (…).
24º. Por sua vez, o art.º 49º nº 2 al. b) do CIRE, sob a epígrafe «Pessoas especialmente relacionadas com o devedor», estatui que: (…).
25º. O referido art.º 21º do CVM estabelece que: (…).
26º. Ora, por via da qualidade de sócios maioritários da referida sociedade, os Autores detinham, directa ou indirectamente, uma influência dominante sobre a outra sócia, minoritária, a ora insolvente:
27º. como resulta do preâmbulo do DL nº 53/2004, de 18.3., transcrito na presente alegação, assim como dos Acórdãos da Relação de Lisboa de 2017.06.20 (Proc. nº 810/16) e da de Coimbra de 2010.02.02 (Proc. nº 171/07), ambos parcialmente também transcritos na presente alegação, a teleologia da classificação dos créditos como subordinados consiste na superioridade informativa dos credores face à situação do devedor relativamente aos demais credores e no conhecimento mais provável que têm quanto à situação de insolvência do devedor.
28º. Os Autores, na qualidade de co-sócios da ora insolvente, eles maioritários e gerentes da sociedade que os três integravam, tinham, nessa qualidade, uma superioridade informativa sobre a sócia minoritária, a ora insolvente.
29º. E, como refere o normativo citado na precedente 37ª conclusão, a relação de domínio existe quando uma sociedade possa exercer sobre outra, direta ou indiretamente, uma influência dominante – traduzida, no caso, desde logo, pela referida «superioridade informativa» sobre a situação económica da sociedade que gerem e a da sua sócia.
30º. O fito prosseguido pela lei (como refere o Ac. RC atrás referido) será o de «obviar a que pessoas detentoras de tal superioridade informativa, dela possam aproveitar-se para criar ou condicionar factos e situações que determine o seu assim indevido favorecimento creditício relativamente a outras que não estão na posse de tal informação».
31º. Face a essa superioridade informativa, a reconhecer-se quaisquer créditos aos Autores (o que se aventa por mera dialéctica processual), sempre os mesmos deveriam ser classificados como subordinados.
32º. Na sentença recorrida encontram-se interpretados e aplicados de forma inexacta os normativos citados nas precedentes conclusões.[1]
Não foram deduzidas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pelas Recorrentes, as questões a apreciar são as seguintes:
- prescrição do direito de crédito invocado pelos AA., por a propositura da presente acção ter excedido o prazo de cinco anos previsto pelo nº 3 do artigo 174º do Código das Sociedades Comerciais (CSC);
- caso o direito dos AA. não se considere extinto por prescrição, verificar se, ao recorrerem à presente acção, actuam com abuso de direito; e
- caso os AA. venham a ser reconhecidos como credores da insolvente, apurar se os respectivos créditos devem ser classificados como subordinados.

3. Na sentença deram-se por assentes os seguintes factos:
1) A sociedade UVS, Ld.ª, pessoa coletiva n.º, com sede…, foi constituída em 21/07/2004.
2) À data da constituição, o capital social era de €50.000,00, sendo sócios, T., detentora de uma quota no valor nominal de €40.000,00, e P., detentor de uma quota no valor nominal de €10.000,00.
3) À data, eram gerentes P. e A..
4) Em 06/12/2010, P. renunciou à gerência.
5) Por deliberação de 02/02/2009, a insolvente tornou-se sócia da sociedade UVS, Ld.ª, passando o respetivo capital social a ser representado por: i) uma quota no valor nominal de €12.500,00, detida por T.; ii) umaquota no valor nominal de €12.500,00, detida por P.; e iii) uma quota no valor nominal de € 25.000,00, detida pela insolvente.
6) Na mesma data, T. e AE. foram nomeados gerentes.
7) Em 06/12/2010 T. renunciou à gerência.
8) Foi registado pela ap. 1/20101001 o aumento de capital da sociedade UVS, Ld.ª, que passou a ser de €55.000,00, representado por: i) uma quota no valor nominal de €15.000,00, detida por T.; ii) uma quota no valor nominal de €15.000,00, detida por P.; e, iii) uma quota no valor nominal de €25.000,00, detida pela insolvente.
9) Por deliberação de 28/02/2011, P. foi novamente nomeado gerente.
10) Por decisão transitada em julgado, em 23/07/2012, foi declarada a insolvência da sociedade UVS, Ld.ª.
11) O processo de insolvência da referida sociedade foi encerrado 04/12/2013, por insuficiência da massa insolvente.
12) O encerramento da liquidação da sociedade UVS, Ld.ª foi registado em 19/02/2015 e a matrícula cancelada na mesma data.
13) Em 09/05/2011 a sociedade UVS, Ld.ª havia intentado ação executiva para pagamento de quantia certa contra a aqui insolvente M., Ld.ª, para pagamento da quantia de €991.500,00 a título de capital, e de €173.919,97, a título de juros, perfazendo o montante global de €1.165.419, 97.
14) A referida acção executiva foi tramitada sob o n.º 13676/11.4YYLSB, do Juízo de Execução (J 5) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
15) Por apenso à mencionada ação executiva, a agora insolvente deduziu oposição à execução, alegando, essencialmente, a falta de validade do título executivo.
16) No decurso da tramitação da mencionada oposição à execução, a sociedade UVS, Ld.ª, foi liquidada e extinta, tendo sido determinado o prosseguimento daqueles autos limitado ao interesse dos sócios aqui autores P. e T., tendo em conta as quotas que detinham no capital social daquela.
17) Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/05/2019, proferido nos referidos autos de oposição à execução, foi a oposição julgada integralmente improcedente.

4. Fixada a matéria de facto com interesse, cumpre agora analisar e responder às questões colocadas pela Recorrente, pela ordem supra exposta.
4.1. A Recorrente inicia as suas alegações pedindo a declaração de prescrição do “putativo direito invocado pelos Autores”. Sustenta a sua pretensão no facto de a presente acção ter sido intentada mais de seis anos após a data do registo da extinção da sociedade “UVS, Limitada” – ocorrida em 19/02/2015 – , portanto, em violação do disposto no nº 3 do artigo 174º do CSC, normativo que impõe o prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, para os antigos sócios exigirem os direitos da sociedade extinta contra terceiros, nos termos do artigo 164º do CSC.
4.1.1. Com efeito, conforme resulta do pedido que finaliza a petição inicial, pretendem os AA. o reconhecimento do seu crédito sobre a insolvente no valor total de €1.890.627,52, a graduar nos termos da lei. Alegaram, para tanto, que tal crédito dos AA. “provém de uma confissão de dívida prestada pela insolvente, constante da ata de assembleia geral de 19 de março de 2009 – acta nº 13 – [que juntaram]” (artigo 5º da petição inicial) e que se encontra “há muito vencido e reconhecido judicialmente” (artigo 6º da petição inicial). Afirmam ainda que detêm aquele crédito sobre a insolvente “em substituição da sua representada” (cfr. artigo 2º da petição inicial), a saber a sociedade “União Vinícola Scalabitana, Limitada”, de que foram sócios e gerentes.
Ora, pese embora não seja mencionada qualquer norma jurídica ao longo de todo o articulado que justificasse a reclamação do crédito “em substituição” da sociedade extinta, cremos ter sido intenção dos AA. recorrer ao disposto no artigo 164º do CSC.
Na verdade, consta do nº 1 desse preceito que “verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie”, acrescentando o nº 2 que “as acções para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelos disposto no número anterior podem ser propostas pelos liquidatários, que, para o efeito, são considerados representantes legais da generalidade dos sócios; qualquer destes pode, contudo, propor acção limitada ao seu interesse.”
Como se depreende dos artigos 162º, 163º e 164º do CSC, da liquidação das sociedades não resulta a extinção dos direitos e obrigações de que elas eram titulares. Apesar de perderem a sua personalidade jurídica e judiciária e consequentemente deixarem de existir como pessoas colectivas, as relações jurídicas de que eram titulares não se extinguem. Daí a inclusão no CSC daquelas normas que tratam, precisamente, das matérias conexas com as relações jurídicas que subsistam após a extinção da sociedade.
Assim, segundo o nº 1 do artigo 164º do CSC, pode haver bens sociais que, não tendo sido objecto das operações de liquidação e partilha (por estas não terem sido realizadas, ou, sendo realizadas, não os terem incluído), permaneçam após a extinção da sociedade numa situação indefinida que o legislador acabou por designar por “activo superveniente”. Apesar de a norma não dar uma definição de  “superveniência”, tem-se entendido como superveniente todo o activo social que posteriormente à liquidação se constata que existia e não foi objecto das operações de liquidação e partilha, independentemente das razões por que isso sucedeu.[2] Inclui-se, pois, quer o activo cuja existência só foi conhecida depois da partilha, quer o activo que, apesar de existir e ser ou dever ser conhecido, por qualquer razão não foi abrangido pelas operações de liquidação e partilha.[3] Neste sentido, para efeitos de aplicação do disposto no nº 1 do artigo 164º, concordamos com o aresto citado nas alegações  da Recorrente, de que é “irrelevante para o activo não considerado nas operações de liquidação e partilha [que] já estivesse constituído na data em que estas tiveram ou deviam ter tido lugar e mesmo que já se encontrasse reconhecido judicialmente em acção intentada pela sociedade que veio a ser extinta”.[4]
No caso dos autos, o crédito cujo reconhecimento os AA. pediram, já havia sido reclamado em acção executiva intentada pela sociedade de que eram sócios e gerentes, contra a qual foi deduzida oposição. Foi no decurso desta oposição que a dita sociedade foi liquidada e extinta, após o que foi ordenado o prosseguimento desses autos, limitado ao interesse dos sócios aqui AA., tendo em conta as quotas que detinham no capital social daquela. Essa oposição à execução acabou por se julgada integralmente improcedente, por acórdão desta Relação de 02/05/2019.
Assim sendo, quando a presente acção foi proposta, em 18/06/2021, já não estava em causa sequer a possibilidade de aplicação do artigo 162º do CSC. Na verdade, este artigo apenas dá resposta às acções pendentes à data da extinção da instância, que continuam, considerando-se a sociedade substituída pela generalidade dos sócios.[5] Para as acções instauradas posteriormente, como é o caso dos autos, aplica-se antes o já referido artigo 164º do CSC, o qual confere aos sócios legitimidade para instaurar a acção para cobrança de créditos (declarativas ou executivas), desde que limitadas ao respectivo interesse (artigo 164º, nº 2 do CSC).
Em suma, tal como se concluiu no já citado Acórdão da Relação do Porto de 23/04/2020 (proc. 18901/16.2T8PRT-A.P1), “extinta a sociedade comercial titular de um crédito sobre terceiro, não tendo este crédito sido objecto de operações de liquidação e partilha pelos sócios, depois da extinção da sociedade os ex-sócios podem coligar-se e exigir do devedor a satisfação do crédito na medida da quota-parte do interesse dos sócios coligados. Para o efeito, os ex-sócios dispõem de legitimidade para instaurarem acções judiciais para cobrança do crédito, independentemente da liquidação e sem prejuízo de isso ser feito pelo liquidatário que actuará no caso como representante legal da globalidade dos sócios.”
Certamente, foi esta a intenção dos AA. ao intentarem a presente acção. Aliás, também foi neste sentido a decisão recorrida ao reconhecer-lhes, enquanto ex-sócios, propor acção para o exercício do direito de crédito da sociedade UVS, Limitada, limitada ao seu interesse, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 164º do CSC.[6]
4.1.2. Segundo determina o nº 3 do artigo 174º do CSC, “prescrevem no prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, os direitos de crédito de terceiros contra a sociedade, exercíveis contra os antigos sócios e os exigíveis por estes contra terceiros, nos termos dos artigos 163º e 164º, se, por força de outros preceitos, não prescreverem antes do fim daquele prazo.”
Sobre esta norma, comenta CAROLINA CUNHA que “o nº 3 incide sobre o período posterior à extinção da sociedade (operada pelo registo  do encerramento da liquidação – cfr. art.º 160º, nº 2) e contempla as situações  de “passivo superveniente” (art.º 163º) e de “ativo superveniente” (art.º 164º), ou seja, a prescrição dos direitos de crédito de terceiros contra a sociedade (exercíveis, nos termos do art.º 163º, contra os antigos sócios, em sua substituição) e dos direitos da sociedade extinta, agora encabeçados nos sócios, contra terceiros. O facto relevante é, previsivelmente, a extinção da sociedade. A norma ressalva, todavia a possibilidade de os direitos em causa, por força de outros regimes (desde logo, das regras gerais do CCiv. que lhes sejam aplicáveis), prescreverem ainda antes do final do prazo de cinco anos a que submete o seu exercício.”
No caso dos autos, o direito de crédito que os AA. vieram exercer através da presente ação de verificação ulterior de créditos nos termos do artigo 146º do CIRE, pertencia à sociedade, entretanto dissolvida e liquidada, e não aos próprios sócios. Por essa razão, porque a sociedade foi extinta e o respectivo crédito não foi liquidado, os sócios podem assumir a posição que aquela detinha, recorrendo à acção prevista no nº 2 do artigo 164º do CSC. E, como já foi decidido pelo STJ, no Ac. de 30/05/2017 (proc. nº 593/14.5TBTNV.E1.S1), “as acções para cobrança de créditos, possibilitadas pelo nº 2 do art.º 164º do CSC – e, no que releva, no caso previsto na segunda parte daquele preceito, a reivindicação de tais direitos de crédito por parte dos antigos sócios, enquanto co-titulares sucessores, ficará limitada ao interesse de cada um – estarão sempre sujeitas ao prazo máximo de prescrição de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade (art.º 174º, nº 3 do mesmo Código)”.[7]
Poderá, porventura, argumentar-se que o crédito ora reclamado pelos AA. já havia sido reconhecido por título executivo, sendo, por essa razão, aplicável o artigo 311º do Código Civil, que transforma o prazo de prescrição de curto prazo no prazo de prescrição ordinário. Só que o crédito que foi confessado na acta nº 13 (cuja cópia foi junta com a petição inicial), era o crédito que pertencia à sociedade, crédito esse cujo pagamento esta reclamou na execução que requereu. Ora, o objecto da presente acção que os AA., enquanto antigos sócios daquela sociedade extinta, intentaram contra a insolvente, a massa insolvente e os credores, cinge-se aos direitos de crédito exigíveis pelos antigos sócios contra terceiros nos termos do artigo 164º. Por isso, o prazo de prescrição aplicável não é o ordinário de 20 anos, mas antes o prazo quinquenal do nº 3 do artigo 174º do CSC, uma vez que o crédito que era da sociedade – mas que ela já não pode exigir, por estar extinta – passou a poder ser exigido directamente pelos ex-sócios na qualidade de últimos beneficiários do pagamento que venha ser alcançado na partilha social.
Como se refere no citado Ac. do TRP de 23/04/2020 (proc. 18901/16.2T8PRT-A.P1), para que fosse possível a aplicação do artigo 311º do Código Civil, “seria necessário que a acção na qual vem a ser reconhecido o crédito tivesse sido instaurada já pelos ex-sócios depois da extinção da sociedade e a sentença judicial lhes reconhecesse a eles (a possibilidade de exigir) o crédito ou que outro título executivo tivesse sido obtido também pelos ex-sócios depois dessa extinção (isto é, em resultado de uma situação em que o devedor reconheça ao ex-sócio o direito de crédito).”
Não é essa, certamente, a situação tratada nos presentes autos.
Em suma, se a sociedade credora, “UVS, Limitada”, foi extinta em 19/02/2015 (encerramento da liquidação), tendo a presente acção sido intentada apenas em 18/06/2021, portanto, mais de 6 anos após a extinção da sociedade, o crédito que os AA. pretendem exigir dos ora RR., na qualidade de terceiros devedores, já se encontra prescrito, pelo decurso do prazo previsto no nº 3 do artigo 174º do CSC.
Procedem, assim, as conclusões 1ª a 7ª das alegações de recurso.
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das demais questões  colocadas pelo recurso.
5. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente, e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, julgando o crédito peticionado prescrito e, nos termos do disposto nos artigos 571º, nº 2, in fine e 576º, nº 3 ambos do CPC absolver os RR. do pedido.
Custas da acção a cargo dos AA. (artigo 527º, nº 1 do CPC).
Sem custas nesta instância.

Lisboa, 28/02/2023
Nuno Teixeira
Rosário Gonçalves
Pedro Brighton
_______________________________________________________
[1] Foram reproduzidas apenas as conclusões 13ª a 44ª, por serem as referentes ao objecto do recurso. Foram ainda eliminadas as citações de legislação, por desnecessárias.
[2] Segundo o Ac. do TRP de 13/09/2007, in www.dgsi.pt/jtrp, “o que, sob a epígrafe de “activo superveniente”, se consagra no artigo 164º, nº 1 do CSC, não é mais do que a constatação, posterior ao encerramento da liquidação e após a extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados, não se impondo que os bens sejam supervenientes no sentido literal, mas apenas que não tenham sido partilhados. Idêntico entendimento deve ser perfilhado no que concerne às acções para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no sobredito nº 1”.
[3] Para ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO/JOÃO ESPÍRITO SANTO, Anotação ao artigo 164º, Código das Sociedades Comerciais Anotado [coord. António Menezes Cordeiro), 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 660, nota 1, “…centrar a aplicação do 164º/1 num entendimento rígido da superveniência conduz ao indesejável e estranho resultado da verificação de um bem ou direito nullius, uma vez que nem a extinta sociedade nem os seus antigos sócios podem chamá-los à sua titularidade, a primeira porque não tem o necessário suporte lógico da personalidade e, os segundos, por, nessa interpretação, não estar preenchida, a previsão do 164º/1; substancialmente, e na perspectiva dos direitos da extinta sociedade, a interpretação contestada conduz à extinção desses direitos como consequência da extinção da sociedade”.
[4] Cfr. TRP, Ac. de 23/04/2020 (proc. 18901/16.2T8PRT-A.P1), publicado em www.dgsi.pt/jtrp.
[5] Cfr. CAROLINA CUNHA, Anotação ao artigo 162º, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário [coord. Jorge M. Coutinho de Abreu], Volume II, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 757.
[6] Contrariamente ao decidido no Acórdão do STJ de 17/06/2021 (proc. 18901/16.2T8PRT-A.P1.S1), que revogou o decidido no citado Acórdão da Relação do Porto de 23/04/2020, no caso dos autos os AA. não pretendiam que fosse reconhecido um crédito já reconhecido por sentença condenatória ou qualquer outro título executivo, mas antes um “crédito dos AA. (…) há muito vencido e reconhecido judicialmente” (cfr. artigo 6º da petição). Na verdade, o crédito que constava do título dado à execução, havia sido reconhecido à sociedade, não aos respectivos sócios.
[7] Já no Ac. do STJ de 12/12/2013 (proc. 1735/11.8TBBRG.G1-A.S1-A), publicado em www.dgsi.pt/jstj, se afirmava que “do que estamos a falar quando falamos, portanto, dos direitos de crédito exigíveis por antigos sócios contra terceiros é da cobrança de créditos da sociedade que estejam abrangidos – é este o nº1 do art.º 164º  –  na existência de bens não partilhados. Estes créditos, sim, estes créditos em relação aos quais se pode falar de cobrança, esses, prescrevem no prazo de cinco anos.”