Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2063/18.3T9ALM.L1-9
Relator: PAULA PENHA
Descritores: PESSOA COLECTIVA
CRIME DE OFENSA A PESSOA COLECTIVA
ELEMENTOS DO TIPO LEGAL DE CRIME
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- A tutela da honra está consagrada na nossa Constituição da República Portuguesa, nomeadamente nos seus art.ºs 25º, nº 1 e 26º, nº 1. E, por força do seu art.º 12º, n.ºs 1 e 2, tal direito fundamental é universal em termos de destinatários e é amplíssimo, pois abrange quaisquer entidades coletivas, mesmo que sem personalidade jurídica.
Mas, sendo as pessoas coletivas entes abstractos a tutela penal da sua honra exigiu um normativo especial (com estrutura complexa ou pluridimensional) que foi, precisamente, o art.º 187º do CP que, por sua vez, contém remissão expressa para os preceitos da tutela da honra das pessoas humanas, os quais lhe são aplicáveis “..correspondentemente..” , isto é, com as necessárias adaptações, precisamente, tendo em conta a distinta natureza dos seus destinatários;

II- A honra das pessoas colectivas só pode ter uma dimensão objectiva/exterior/traduzida na ideia que os outros fazem dela, merecendo deles e sendo portadora de bom nome. Este bom nome tanto pode ser prestígio, credibilidade  e confiança decorrentes das suas qualidades inerentes à actividade desenvolvida e/ou do comportamento dos seus membros ou órgãos, se mostre cumpridora, diligente séria, fidedigna e tenha notoriedade no domínio da respectiva actividade social e/ou obtenha respeito das suas congéneres e/ou da comunidade em que se insere e/ou tenha prestígio sócio-económico decorrente das suas qualidades e capacidades económico-financeiras;


III – Ao crime de ofensa (à honra) de uma pessoa coletiva, é correspondentemente aplicável o disposto quanto o crime de difamação por meio de expressão quer verbal quer escrito ou por qualquer outro meio de expressão, previsto nos art.ºs 180º e 182º , por força da remissão expressa do nº 2, al. a) do art.º 187º para o art.º 183º que, expressa e precisamente, se reporta aos crimes previstos nos art.ºs 180º a 182º inclusive.
O legislador não fez menção expressa no art.º 187º, nº 2, para os art.ºs 180º, 181º e 182º pela, simples e óbvia, razão de que todos e cada um destes três artigos já constam dessa remissão/correspondente aplicação às pessoas coletivas, na medida em que o remetido art.º 183º se reporta, única e exclusivamente, aos crimes previstos nos art.ºs 180º, 181º e 182º. Sendo que este art.º 182º, conforme indica o seu título e o seu teor, contém uma norma de equiparação, ampliando as margens de punibilidade;

IV – A tutela, ou não, da honra e do bom nome de uma pessoa coletiva pressupõe que, perante cada caso concreto, se atente sempre, quer à essência desse direito, quer ao quadro de actividade e ao fim prosseguido por essa pessoa colectiva, como também à colidente liberdade de expressão e comunicação do agente. A entidade colectiva goza desse direito fundamental se e na medida em que a essência dela for compatível com esse direito e vice-versa. Caso contrário, uma indiscriminada/generalizada incriminação da difamação ou injúria ou ofensa a pessoa colectiva serviria, na prática, como um atentado contra os direitos (também fundamentais nos termos do art.º 37º da CRP e do art.11º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) da liberdade de expressão e de informação, basilares num Estado de Direito Democrático. Por isso mesmo, podendo haver colisão de direitos fundamentais (nomeada e concretamente, direito à honra de uma pessoa colectiva versus direito à liberdade de expressão de um cidadão individual) a aferição do direito à honra de uma pessoa colectiva e respectiva tutela e sua violação, ou não, tem (sempre) de ser feita perante cada caso concreto – independentemente de se tratar de um ataque/uma ofensa em termos verbais, escritos, gestuais ou por qualquer meio de expressão;

V – Sendo a pessoa colectiva uma instituição bancária existente e em funcionamento no nosso mercado financeiro, a imputação de práticas criminosas de burla e furto a clientes feita por escrito pelo arguido, relativamente à assistente, é apta/idónea/susceptível de atentar contra a imagem, notoriedade, credibilidade, confiança, prestígio, credibilidade desta instituição bancária.
O direito à sua imagem e ao seu bom nome está interligado, obviamente, com o seu quadro de actividade/sua essência e vice-versa – uma instituição bancária quer-se que seja e se mostre, séria, fidedigna, cumpridora e de confiança aquando e por causa da sua actividade – enquanto dimensão exterior (de reputação, prestígio, credibilidade, confiança) que os outros dela têm, quer clientes, quer ex-clientes, quer potenciais clientes, quer público em geral, quer suas congéneres, quer comunidade onde se insere a nível local e a nível nacional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
 
RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Almada – J1 (em 9/5/2022) foi proferida e depositada sentença a absolver o arguido, …………………., pela prática de um crime de ofensa à pessoa colectiva (previsto e punível pelos arts. 187º, nºs 1 e 2, al. a), e 183º, nº 1, al. a), todos do Código Penal).
*
Inconformada com esta sentença, a assistente, Caixa Económica Montepio Geral, S.A., interpôs o presente recurso (em 2/6/2022), pedindo que seja revogada a decisão recorrida, substituindo-a por decisão que condene o recorrido pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa a pessoa colectiva (previsto e punível pelos art.ºs. 187º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 183º, nº 1, al. a), todos do Código Penal). Tendo formulado, no termo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):  
« 1. O Tribunal de primeira instância, considerou provado que o arguido, sem qualquer fundamento, com o único propósito de prejudicar a CEMG, por via da imputação de factos que não correspondem à verdade, através de disseminação anónima, espalhou panfletos de cor amarela fluorescente, com caracteres a maiúsculas, de cor preta e a negrito, reproduzindo os dizeres “BURLA DO MONTEPIO GERAL FURTA E VENDE À REVELIA DE CLIENTE EM 2012 OURO E PEDRAS PRECIOSAS AVALIADAS EM 2002 EM CERCA DE UM MILHÃO DE EUROS", em quatro balcões do Banco Montepio, nas suas instalações e imediações (halls de acesso multibanco, via pública, pára-brisas de veículos estacionados nas imediações dos balcões…),
2. Recorre a CEMG da decisão proferida, em matéria de direito, que entendeu que tal comportamento não tem dignidade penal:
a. na medida em que, o art.º 187.º, n.º 2 do CP ao não remeter para o artigo 182.º (imputação por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão), afasta a ofensa de entidade abstrata, cometida por escrito, gesto ou imagem,
b. mais considerando que outra interpretação violaria o princípio da legalidade.                                                                   
3. O artigo 187.º do CP estabelece como elementos do tipo os atos de “afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança” de pessoa coletiva
4. Ao longo do tempo, parecem ter-se sedimentado algumas divergências quanto à extensão do tipo incriminador que não encontram amparo, desde logo, no significado das palavras “afirmar” e “propalar”, expressamente previstas na lei.
5. Conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:   
a. A propósito do significado da palavra afirmar
i. Estabelecer, fixar, consolidar < a. os termos de um contrato>
ii. Declarar com firmeza, sustentar asseverar < o ónus da prova cabe a quem afirma>
iii. Atestar <o atestado afirma que a joia é antiga>
b. A propósito do significado da palavra propalar, i. tornar público, divulgar, reiterar
ii. espalhar, propagar,
iii. Sin/versinonímia de divulgar
c. A propósito da palavra divulgar,
i. tornar público, propagar, publicar < d. o teor de documento.
6. Donde resulta que, o ato de afirmar ou propalar comporta meio de atuação verbal, quer escrito.
7. Uma das mais nobres funções do legislador é a de introduzir segurança no discurso incriminador, pelo que se a intenção do legislador fosse a de não criminalizar ofensa de entidade abstrata (no caso pessoa coletiva) cometida por escrito, não teria incluído no tipo (187.º do CP) expressões cujo significado importa o ato de divulgação escrita.
8. Motivo pelo qual não existe remissão do art.º 187.º do CP, para o art.º 182.º, porque absolutamente desnecessária e injustificada.
9. Como ensina Maia Gonçalves, no caso do art.º 187.º, não teria cabimento uma remissão para o art.º 182.º do CP: “Este artigo afigura-se desnecessário, porque os anteriores, relativos à difamação e injúria, são crimes de realização livre, que não particularizam qualquer tipo meio de execução do crime”
10. Assiste-lhe razão, pois, à redação dos art.ºs 180.º (“Quem dirigindo-se a terceiro …”) e 181.º (“Quem injuriar outra pessoa…”), subjaz a oralidade.
11. Se o legislador, nestes casos (180.º e 181.º), não tivesse acautelado a remissão para o art.º 182.º do CP, aí sim, a incriminação da injuria e difamação ficaria limitada a expressões proferidas verbalmente, atento o principio da tipicidade e legalidade.
12. Situação que, manifestamente, não ocorre com o art.º 187.º, cuja redação que salvaguardou expressões como “afirmar” e “propalar”, sinónimo de “divulgar”, “tornar público”, “propagar”, “espalhar”, “difundir” – o que tanto pode ser feito de forma verbal, como de forma escrita.
13. Não podendo deixar de se entender - recorra-se à etimologia, ou à semântica - por manifesto, que na teleologia do art.º 187.º está incluída ofensa a pessoa coletiva verbalizada, ou redigida.
14. Entendimento contrário, esvaziaria praticamente o âmbito de aplicação do art.º 187.º do CP, retirando-lhe o seu principal efeito útil, posto que, a esmagadora maioria das ofensas a pessoas coletivas ocorre, exatamente, através da “palavra escrita”.
15. Cabendo sublinhar que, frequentemente, a “palavra escrita” configura um meio de divulgação, bem mais potenciador de efeito ofensivo, do que a “palavra dita” porque, tantas vezes:
a. Acessível a mais destinatários,
b. Facilita o anonimato (como tentou o arguido no caso destes autos), em consequência, o sentimento de impunidade e, nessa medida, a propagação de fatos inverídicos, com o propósito de prejudicar,
c. Se materializa num documento, ou suporte,
i. Que perdura e,
ii. Não raramente torna impossível ao ofendido impedir a sua (re)divulgação.
16. Não foi, certamente, intenção do legislador criminalizar o menos (palavra dita), para permitir o mais (palavra escrita)
17. Justamente, neste sentido tem vindo a decidir a nossa jurisprudência, conforme a título meramente exemplificativo indicamos: Ac. Tribunal da Relação do Porto Proc. 4213/12.4TDPRT.P1, DATA 02-10-2013, FONTE DGSI; Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. 7106/14.7TDLSB.L1-5, DATA: 05/04/2016, FONTE: DGSI; Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. 95/15.2PEPDL.L1-3, DATA: 05/07/2017, FONTE: DGSI; Ac. Tribunal da Relação do Porto, Proc. 454/14.8TABRG.P2, DATA: 03/08/2017, FONTE: DGSI; Ac. Tribunal da Relação do Porto, Proc. 2270/17.6T9VFR.P1, DATA: 18/03/2020, FONTE: DGSI, Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, PROC 2464/19.0T9LSB.L2-5, DATA: 16-03-2021, FONTE: DGSI.
Sem conceder,
18. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 187.º: “O crime de ofensa a pessoa coletiva está numa relação de especialidade com o crime de ofensa à reputação económica da pessoa coletiva (art.º 41.º DL n.º 28/84 de 20.1, ver a anotação do art.º 183.º)”
19. O que, como ensina o Prof. Faria Costa, encontra plena justificação no seguinte facto: “A credibilidade de uma instituição afere-se pelo comportamento cumpridor, diligente e pontual, mas sobretudo pela sua conduta séria e parcial revelada na actuação dos seus órgãos e membros; sendo o prestígio demonstrado pela imposição da pessoa colectiva no seu domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve; mostrando-se uma instituição digna de confiança “quando pela sua génese e actuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar”
20. Deste modo, a capacidade ou idoneidade de ofensa da credibilidade, do prestígio ou da confiança da pessoa coletiva, para efeito do art.º 187.º e 183.º do CP, deve ser aferida de acordo com o critério objetivo da compreensão e perceção do normal homem comum.
21. De acordo com previsão expressa da lei, ao artigo 187.º n.º 2 CP, é correspondentemente aplicável o disposto no art.º 183.º do CP.
22. E como refere o próprio Dr. Paulo Pinto de Albuquerque, em comentário ao artigo 183.º do CP:“Os graffiti, o correio e as redes de telecomunicações (telefone, telemóvel, telégrafo) não são "meios de comunicação social", mas são um meio de "publicidade", para os efeitos do n.º 1, al. a).”
Ou seja,
23. O art.º 183.º, n.º 1, al. a) prevê um conceito alargado do que são “meios de divulgação”,
24. Precisamente, com o objetivo de melhor proteger o bem jurídico alvo de tutela penal, a imagem real que os “outros” têm da pessoa coletiva (nos dizeres do Prof Faria Costa),
25. Sendo que o próprio, Dr. Paulo Pinto de Albuquerque, estende o conceito de meios de divulgação à “palavra escrita” para efeito de interpretação do art.º 183.º, n.º 1, al. a) do CP, expressamente aplicável ao art.º 187.º do CP,
26. O que se compreende, porque tais meios são facilitadores da violação da norma:
a. Por permitirem fazer chegar a mensagem capaz de ofender a credibilidade, prestígio, confiança da pessoa coletiva,
b. Ao cidadão comum,
c. De modo a facilmente ser percebida,
d. Assim ofendendo o bem jurídico que se visa proteger,
e. Preenchendo o tipo incriminador.
27. Tal como aconteceu nos autos,
28. Era impossível uns panfletos amarelos fluorescentes, e os seus dizeres, passarem despercebidos (vd fls 4 dos autos) aos transeuntes que circulavam na via pública, aos utentes das máquinas multibancos, aos Srs. proprietários de veículos, aos funcionários e clientes do banco, dado que se encontravam espalhados pelos balcões e suas imediações.
29. Pelo que até em face da remissão prevista para o art.º 183.º do CPP, designadamente n.º 1, al. a) e a interpretação que é dada ao conceito de meio de divulgação, não faria qualquer sentido excluir do tipo incriminador do art.º 187.º a palavra escrita.
30. A este propósito convirá apenas salientar, que:
a. A acusação particular mencionou expressamente que a conduta ilícita, praticada pelo acusado, preenchia o artigo 187.º, n.º 2 al. a) do CP e 183.º n.º 1 a) e b) do CP e,
b. A decisão instrutória pronunciou o arguido pela prática como autor material, e na forma consumada, de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 187.º, n.º 1 e 2 al. a) e 183.º, n.º 1, al. a) do CP.
31. Teve o arguido oportunidade de se defender da acusação apresentada.
32. Não tendo havido alteração substancial, ou não substancial, efetuada no despacho de pronúncia.
33. Em face do exposto, a recorrente:
a. Entende que o preenchimento do tipo legal de crime p. e p. no art.º 187.º do CP, ocorre por meio de escrito, no qual o agente comunique ou divulgue factos inverídicos idóneos a ferir a credibilidade, o prestígio ou a confiança, devidos a pessoa coletiva,
b. Não estando, no caso concreto, em causa a violação do art.º 29.º, n.º 3 da CRP, e do princípio da legalidade conforme propugnado na sentença recorrida – uma vez que a letra do art.º 187.º o CP, à data da prática dos factos, expressamente previa e punia, como continua a prever e punir, o comportamento do arguido.
34. Não se sufragando a doutrina e a jurisprudência citadas na decisão recorrida, divergindo do entendimento ali preconizado,
35. A distribuição dos panfletos, pelo arguido, sem qualquer fundamento, com o único propósito de prejudicar a CEMG, por via da imputação de factos que não correspondem à verdade, com a divulgação de teor melhor descrito nos autos, nas imediações e instalações dos quatro balcões da recorrente, conforme factos provados, preenche de forma clara e cristalina o crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 187.º, n.º 1 e 2 al. a) e 183.º, n.º 1, al. a) do CP.»
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Notificado da interposição do recurso, o Ministério Público apresentou a respectiva resposta, considerando ser de negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida, tudo nos termos constantes sob a refª. 83965 e aqui dados por reproduzidos.

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O arguido veio, por um lado, interpor recurso subordinado e, por outro lado, responder no sentido de ser mantida a sua absolvição, tudo nos termos constantes sob a refª. 43090204 e aqui dados por reproduzidos.

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A assistente veio pronunciar-se relativamente a esse recurso subordinado, alegando que, para além de não lhe assistir razão, não é legalmente admissível, tudo nos termos constantes sob a refª. 43213943 e aqui dados por reproduzidos. 
                                                                                                                                                      
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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de acompanhar a argumentação da Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tudo nos termos constantes sob a refª. 18971048 e aqui dados por reproduzidos.

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Cumprido o disposto no art.º 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, a assistente veio responder ao sobredito parecer, refutando-o nos termos constantes sob a refª. 602135 e aqui dados por reproduzidos.

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Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

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Questão prévia: O recurso subordinado que o arguido veio apresentar (sob a refª. 33395104 - aquando da sua resposta ao recurso apresentado pela assistente) – não obstante, não tenha sido alvo de qualquer despacho por parte do Tribunal de 1ª instância, não se reenvia ao mesmo para esse efeito, por uma questão de economia e celeridade processual, dado que – não é admissível legalmente tal recurso, ficando prejudicado o seu conhecimento, por inexistência de qualquer pedido de indemnização civil no processo em apreço e que o art.º 404º, nº 1, do Código de Processo Penal pressupõe sempre que exista para o efeito.
O legislador confinou, expressamente, a possibilidade de interposição de recurso subordinado, apenas e tão só, quando haja, em processo penal, uma questão cível/pedido de indemnização civil (nos termos dos art.ºs 71º e segs. daquele diploma), o que não há no caso em apreço – cfr. a este propósito a anotação do Exmº Juiz Conselheiro Pereira Madeira, nas págs. 1268-1269, da 3ª edição revista do “Código de Processo Penal Comentado”.
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Importa apreciar e decidir o recurso apresentado pela assistente.

FUNDAMENTAÇÃO

Âmbito do recurso e questões a decidir.
Dispõe o art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal que «a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido».
O objeto do recurso define-se, pois, pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como pacificamente decorre da doutrina, destacando-se os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques no “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª ed., Vol. II, pág. 801 e Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 335 e da jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e com os acórdãos do STJ de 12.09.2007 no proc. n.º 07P2583 e de 29.01.2015 no proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1 ambos em www.dgsi.pt.
No caso em apreço, a questão central a apreciar é:
Saber se o arguido cometeu, ou não, o crime de ofensa à pessoa colectiva (previsto e punível pelos artºs. 187º, nºs 1 e 2, al. a), e 183º, nº 1, al. a), do Código Penal, pelo qual fora pronunciado na forma consumada e em autoria material).
O Tribunal de 1ª instância considerou que não, argumentando que, a propósito das pessoas coletivas, não havendo remissão do art.º 187º, nº 2, do Código Penal (doravante com a abreviatura CP) para o art.º 182º do CP, falta tipicidade da acção do arguido e o princípio constitucional da legalidade impõe concluir que o comportamento do arguido não tem dignidade penal.
A assistente veio discordar, argumentando (à semelhança do que já havia sido consignado na sua acusação particular à qual o Ministério Público havia aderido e, também, na decisão de pronúncia) que tal comportamento configura a prática pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, do pronunciado crime.
Afigura-se-nos que assiste razão à assistente.
Vejamos o que diz o Código Penal a este respeito (sendo desnecessária a menção de CP).
No Livro II (“Parte Especial”) deste Código há o Título I (“Dos Crimes Contra as Pessoas”) cujo Capítulo VI (“Dos Crimes Contra a Honra”) inclui os seguintes artigos: 
«Artigo 187.º - Ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva
1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto:
a) No artigo 183.º; e
b) Nos nºs 1 e 2 do artigo 186.º»;

«Artigo 183.º - Publicidade e calúnia
1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:
a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,
b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;
as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.»;

«Artigo 180º - Difamação
1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 - A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.»;

«Artigo 182.º - Equiparação
À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão

Apreciando (conjugadamente) o teor literal destes normativos, constata-se que, a propósito do crime de ofensa (à honra) de uma pessoa coletiva, é correspondentemente aplicável o disposto quanto o crime de difamação por meio de expressão quer verbal quer escrito ou por qualquer outro meio de expressão, previsto nos art.ºs 180º e 182º, por força da remissão expressa do nº 2, al. a) do art.º 187º para o art.º 183º que, expressa e precisamente, se reporta aos crimes previstos nos art.ºs 180º a 182º inclusive.
O legislador não fez menção expressa no art.º 187º, nº 2, para os art.ºs 180º, 181º e 182º pela, simples e óbvia, razão de que todos e cada um destes três artigos já constam dessa remissão/correspondente aplicação às pessoas coletivas, na medida em que o remetido art.º 183º se reporta, única e exclusivamente, aos crimes previstos nos art.ºs 180º, 181º e 182º.
Sendo que este art.ºs 182º, conforme indica o seu título e o seu teor, contém uma norma de equiparação, ampliando as margens de punibilidade ou (conforme ensina José Francisco de Faria Costa, no Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra Editora, 1999, pág. 639): contém uma norma sobre norma, que não pode ser concebida como específica e típica norma incriminadora.
Por isso – salvo o devido respeito –, não perfilhamos o entendimento da Exmª. Juiz a quo e do arguido (e também de alguma jurisprudência minoritária dos Tribunais superiores, tal como do acórdão do TRP, de 23-05-2012, no processo 1429/09.4PIPRT.P1 e de alguma doutrina minoritária, tal como de Paulo Pinto de Albuquerque no “Comentário ao Código Penal”, 4ª edição actualizada, pág. 806, item 9) em quererem excluir a possibilidade de aplicação às pessoas colectivas do disposto no art.º 182º, por este não constar da remissão do art.º 187º, nº 2, al. a).
Então, nesta alínea (em lugar de constar a remissão, em bloco, para o disposto no art.º 183º) teria de constar a reprodução de (apenas) alguns dos dizeres do art.º 183º ou, então, teria de constar (apenas) a menção de agravação das penas para o caso de a ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva ter lugar nos termos descritos nas als. a) e b) do nº 1 e nº 2 do art.º 183º - o que não sucede.

A tutela da honra está consagrada na nossa Constituição da República Portuguesa (doravante com a abreviatura CRP), nomeadamente nos seus art.ºs 25º, nº 1 e 26º, nº 1.
E, por força do seu art.º 12º, nºs 1 e 2, tal direito fundamental é universal em termos de destinatários e é amplíssimo, pois abrange quaisquer entidades coletivas, mesmo que sem personalidade jurídica – cfr. Gomes Canotilho em “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, Almedina, 2003, pág. 420.
Mas, sendo as pessoas coletivas entes abstractos – previstos nos art.ºs 157º a 201º-A do Código Civil – (e não pessoas humanas) a tutela penal das pessoas coletivas e, em especial, da sua honra (que é a parte em apreço neste recurso), exigiu um normativo especial que foi, precisamente, o art.º 187º do CP que, por sua vez, contém remissão expressa para os preceitos da tutela da honra das pessoas humanas, os quais lhe são aplicáveis “..correspondentemente..”, isto é, com as necessárias adaptações, precisamente, tendo em conta a distinta natureza dos seus destinatários.
Sendo as pessoas colectivas entidades abstractas ou pessoas meramente jurídicas – naturalmente, distintas das pessoas humanas –, é óbvio que a tutela penal da honra (quer pelo legislador, quer pelo julgador, quer pelo jurista) terá de atentar à respectiva natureza do seu destinatário:
A honra das pessoas humanas pode ter uma dimensão subjectiva/interior/inerente à auto-estima e dignidade da pessoa humana (exclusiva de um ser humano ou inseparável da sua personalidade singular) e uma dimensão objectiva/exterior/inerente à ideia que os outros fazem dela, à sua reputação ou consideração social;
A honra das pessoas colectivas pode ter uma dimensão objectiva/exterior/traduzida na ideia que os outros fazem dela, merecendo deles e sendo portadora de bom nome.
Este bom nome tanto pode ser prestígio / credibilidade /confiança decorrentes das suas qualidades inerentes à actividade desenvolvida e/ou do comportamento dos seus membros ou órgãos, se mostre cumpridora, diligente séria, fidedigna e tenha notoriedade no domínio da respectiva actividade social e/ou obtenha respeito das suas congéneres e/ou da comunidade em que se insere  e/ou tenha prestígio sócio-económico decorrente das suas qualidades e capacidades económico-financeiras.
Daí o legislador ordinário ter estabelecido uma incriminação autónoma a propósito da ofensa ao bom nome/honra das pessoas coletivas, através do art.º 187º, nº 1, do CP, sem prejuízo da aplicação a estas do regime (quer matricial da ofensa à honra relativa às pessoas humanas quer da norma de equiparação quer da norma de agravação) contido nos art.ºs 180º a 183º e 186º, nºs 1 e 2, do CP (respectivamente), mas cuja aplicação deste regime a estas é feita com as necessárias adaptações (tendo em conta a natureza não humana das pessoas colectivas com uma honra estritamente objectiva/exterior).
Em suma, o direito à honra/bom nome das pessoas colectivas e respectiva tutela (quer constitucional, quer cível, quer penal) cinge-se a esta dimensão objectiva/exterior/dimensão relacional da honra.
E a tutela, ou não, da honra/bom nome de uma pessoa coletiva (alegadamente ofendida) pressupõe que, perante cada caso concreto, se atente sempre:
. quer à essência desse direito; (e)
. quer ao quadro de actividade e/ou fim prosseguido por essa pessoa colectiva;
. quer à colidente liberdade de expressão e/ou comunicação do agente (alegadamente agressor) – a este propósito cfr. o acórdão do STJ de 8/3/2007 no processo nº 07B566 e o acórdão do Tribunal Constitucional nº 292/2008, de 29/5/2009, disponíveis na internet.
Fazendo minhas as sábias palavras de Gomes Canotilho (em “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, Almedina, 2003, pág. 421): A entidade colectiva goza de determinado direito fundamental se e na medida em que a essência dela for compatível com esse direito e vice-versa.
Caso contrário, uma indiscriminada/generalizada incriminação da difamação ou injúria ou ofensa (a pessoa colectiva) serviria, na prática, como um atentado contra os direitos (também fundamentais nos termos do art.º 37º da CRP e do art.º 11º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) da liberdade de expressão e de informação, basilares num Estado de Direito Democrático – conforme tão bem salienta o Comentário Geral nº 34, de 12/9/2011, do Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas, no ponto 13, acessível na internet. 
Por isso mesmo, podendo haver colisão de direitos fundamentais (nomeada e concretamente, direito à honra de uma pessoa colectiva versus direito à liberdade de expressão de um cidadão individual) a aferição do direito à honra de uma pessoa colectiva e respectiva tutela e sua violação, ou não, tem (sempre) de ser feita perante cada caso concreto – independentemente de se tratar de um ataque/uma ofensa em termos verbais, escritos, gestuais ou por qualquer meio de expressão.
Aliás, parece-nos óbvio que reduzir a ofensa (constante da previsão do art.º 187º do CP), apenas, às afirmações ou propalações, meramente, verbais seria esvaziar, em parte, a razão de ser e utilidade deste normativo, uma vez que é notório e público a grande maioria de tais ofensas ocorrerem através de meios de expressão não verbais, tais como e principalmente, pela forma escrita.
Não se perfilhando o entendimento ou interpretação restritiva desta incriminação legal e, muito menos, como uma (alegada) solução de transição tendente a uma (alegada) futura descriminalização total da ofensa à honra de pessoa coletiva, num (alegado) movimento tendente à exclusiva protecção jus-civilista – cfr. a este propósito Renato Lopes Militão (em “Sobre a tutela penal da honra das entidades coletivas”, Revista Julgar, Online, Março de 2016, págs. 20-21 e 41) que faz uma resenha desse alegado movimento.  
   
Na parte com interesse para o caso em apreço [e seguindo os ensinamentos doutrinais de Figueiredo Dias (em “Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, 1993, Ministério da Justiça, Lisboa: Reis dos Livros, págs. 279 e 504), Renato Lopes Militão (em “Sobre a tutela penal da honra das entidades coletivas”, Revista Julgar, Online, Março de 2016), Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário ao Código Penal”, 4ª edição actualizada, págs.805-807) e José Francisco de Faria Costa (em “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 639 e segs. e 674 e segs.] vejamos o crime de ofensa a pessoa coletiva nos termos da previsão conjugada dos art.ºs 187º, nº 1 e nº 2, al. a), 183º, nº 1, al. a), 180º, nº 1, e 182º do CP:
Este tipo legal crime (com estrutura complexa ou pluridimensional) tem os seguintes elementos constitutivos/requisitos cumulativos (na parte com interesse para o caso em apreço:
- o agente/arguido, dirigindo-se a terceiro que não a pessoa coletiva visada, com ou sem a presença desta;
- afirmar/declarar ou propalar/espalhar/divulgar verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio de expressão;
- de uma forma e em circunstâncias que facilitam a sua divulgação = com maior publicidade, alargando o impacto nocivo da ofensa e, por isso, sendo uma agravante da respectiva punição elevada em um terço nos respectivos limites abstractos;
- factos inverídicos a propósito daquela pessoa coletiva visada = não bastando para tal que sejam meros juízos de valor (por serem meras apreciações subjectivas com reduzido potencial ofensivo destituído de relevo penal). Têm de ser factos não verídicos e esta noção de inveracidade é ampla por forma a abranger a falsidade propriamente dita (enquanto facto contrário à realidade) e, também, as chamadas “meias verdades”;
- sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar como verdadeiros = não sendo necessário que o agente tenha conhecimento efectivo da sua inveracidade;
- tais factos sejam idóneos/capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a essa pessoa colectiva = sendo esta aptidão apreciada, à luz da compreensão de um homem comum e face às concretas circunstâncias. Sendo, por isso, um crime de perigo abstracto-concreto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e um crime de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção), independentemente de causar, ou não um resultado efectivamente ofensivo;
- essa pessoa colectiva não esteja extinta = nomeadamente por dissolução ou outro meio de extinção desse ente abstracto;  
- e (como requisito subjectivo) que tal actuação do agente/arguido seja dolosa = em qualquer uma das modalidades do dolo previstas no art.º 14º do CP.
 
Também neste sentido tem alinhado a maioria da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, sendo de destacar, a título de exemplo os acórdãos do TRC de 12/5/2010 (no processo nº 88/08.6TATBU.C1), TRL de 17/5/2017 (no processo nº 95/15.2PEPDL.L1-2) e de 16/3/2021 (no processo nº 2464/19.0T9LSB.L2-5), TRE de 8/3/2018 (no processo nº 195/16.1PAESP.E1), TRP de 18/3/2020 (no processo nº 2270/17.6T9VFR.P1) e TRG de 21/3/2022 (no processo nº 2411/19.9T9VCT.G1).    
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Sendo de salientar que – não obstante a questão a decidir estivesse cingida à sobredita e apreciada matéria de direito –  sem que tivesse sido questionado (quer pela recorrente quer pelo recorrido) que: O Tribunal de 1ª instância considerara como facto não provado que: “B. O arguido agiu sabendo que a sua conduta era punida por lei” ; E considerara tal: “..por não ter sido produzida prova”.
Oficiosamente, este Tribunal superior considera que tal constitui um vício do texto da decisão recorrida, mais concretamente:
 Um erro notório na apreciação da prova, susceptível de ser sanado oficiosamente, nos termos do art.º 410º, nº 2, al. c), em conjugação à contrário do art.º 426º ambos do Código de Processo Penal (doravante com a abreviatura CPP).
Vejamos (na parte que agora releva) o «Artigo 410.º - Fundamentos do recurso
(…) 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova. (…)»
A propósito do nº 2 deste artigo tem sido pacífico o entendimento (da doutrina e da jurisprudência) no sentido de considerarem que a apreciação de qualquer um destes vícios não implica qualquer sindicância à prova produzida no tribunal de 1ª instância – estando excluída qualquer tarefa de valoração da prova produzida em audiência ou fora dela, tal como a valoração de depoimentos gravados, de documentos ou outro tipo de provas –. Apenas envolve o texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo. Em face do teor do texto da decisão, apenas as regras de experiência comum podem, se necessário, servir de critério de aferição da existência, ou não, de qualquer um de tais vícios.
Sendo de salientar o retrato feito no Acórdão do STJ de 15/12/2011 do relator Raúl Borges no processo 17/09.0TELSB.L1.S1 em www.dgsi): “(...)Os vícios do art.º 410º, nº 2, do CPP, são vícios da lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei (…)  vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável e do erro notório na apreciação da prova (..) O objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento”.
Também sendo de salientar os seguintes ensinamentos doutrinais feitos por Simas Santos e Leal Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6ª edição, págs. 69 e segs.), por Simas Santos e Leal Henriques (“Código de Processo Penal Anotado” volume II, 2ª edição, págs. 739 e segs) e por Pereira Madeira (“Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista, págs. 1290 e segs) a propósito do seguinte vício constante daquela alínea c):
O erro notório na apreciação da prova ocorre quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum de um homem médio ou sopesado à luz das regras de experiência comum, ressalte e de forma evidente/ostensiva/sem margem para dúvidas que a prova foi erroneamente apreciada, por a factualidade aí exarada ser arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum ou por assentar na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis” e que tal fique demonstrado pelo tribunal “ad quem”.
Ora, regressando ao caso em apreço, apesar de o arguido não ter querido prestar declarações e de o Tribunal de 1ª instância não ter obtido a sua versão dos factos, a verdade é que, mesmo assim, esse Tribunal considerou – através da prova indirecta, conforme explicitou na motivação da sua decisão – provada a demais factualidade no tocante ou a propósito dos demais elementos subjectivo do tipo.
Mais concretamente, esse Tribunal considerou provada a factualidade constante dos itens 14 e 16 dos factos provados, a saber:
«14. A actuação do arguido, sem qualquer fundamento, teve como único propósito prejudicar a imagem da CEMG.
16. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de denegrir a imagem da CEMG
Ora – independentemente de o Tribunal de 1ª instância, aquando da subsunção ao direito aplicável, ter vindo a considerar a expressão escrita como não abrangida pelo tipo legal em apreço, concluindo pela falta de dignidade penal da actuação do arguido  – , a verdade é que, segundo consta da motivação da sua decisão, foi produzida prova indirecta nos autos no sentido de que o arguido, de forma livre, voluntária e consciente (espalhou panfletos anónimos, contendo aqueles dizeres contra a assistente) com o único propósito de denegrir/prejudicar a imagem desta. E, também, constando dessa mesma motivação que, aquando da prática dos factos (para além dos folhetos por si espalhados serem anónimos), o arguido envergava um kispo com capuz que impedia a visualização do seu rosto e cuja identidade foi apurada através da aí descrita prova indirecta (que não foi posta em causa).
Significa isto que o arguido – não se tendo identificado nesses panfletos como autor dos mesmos e tão pouco se tendo identificado aquando da disseminação dos panfletos por si levada a cabo, naquela ocasião, ocultando a sua identidade – tinha consciência da falta de licitude ou possível punibilidade dessa sua conduta que visava, unicamente, prejudicar a imagem da assistente através da imputação que estava a fazer-lhe, perante terceiros, de factos que sabia serem inverídicos.
Em suma, o elemento subjetivo do ilícito em apreço – a atuação dolosa do arguido com vontade e conhecimento ou consciência da, pelo menos, possível ilicitude da sua conduta –, extrai-se, sem qualquer sombra de dúvida, da demais conduta objetivamente adoptada pelo arguido e da demais factualidade dada como provada pela Exmª Juiz a quo.
Pois, sendo um facto respeitante à vida interior do agente/arguido, quando não haja confissão do arguido ou sequer declarações por parte deste (como sucedeu no caso em apreço em que o arguido se remeteu ao silêncio) a demonstração deste elemento emocional (integrante do elemento subjectivo do tipo) pode ser feita através da prova de factos objectivos, nomeadamente dos que preenchem o tipo objectivo, conjugados com presunções naturais, com as regras da experiência (tal como sucedeu no caso em apreço relativamente aos demais elementos volitivo e intelectual do dolo do arguido) .
Sendo ostensivo ou notório que [face quer à análise global do texto da decisão em apreço por si só, quer à análise desta conjugada com o senso comum de um homem médio ou com as regras de experiência comum] foi uma decisão contrária à lógica ou à normalidade das coisas ter o Tribunal de 1ª instância considerado como não provado tal facto (relativo ao elemento emocional do arguido).
Por isso, este facto que – podia e devia ter sido dado como provado e só não o foi pelo sobredito erro notório do Tribunal recorrido –, agora e oficiosamente, sanando-se tal, retira-se do elenco dos factos não provados e adita-se à factualidade provada, da qual passará a constar da seguinte forma:
«16 -A. O arguido agiu sabendo que a sua conduta era punida por lei».
                                                                                                 
Assim havendo a totalidade dos elementos subjectivos do dolo.
Como sabemos nos crimes dolosos (qualquer que seja a modalidade do dolo nos termos do art.º 14º do CP), a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe que estejam presentes os seus três elementos: o elemento intelectual, o elemento volitivo e o elemento emocional. 
Isto é, pressupõe sempre que haja por parte do agente/arguido o conhecimento e a vontade de realização de um tipo legal de crime e tendo a consciência ou sabendo da ilicitude dessa conduta, actua com vista a realizar esse tipo de crime (dolo directo) ou prevendo tal como consequência necessária da sua conduta nem por isso aja de outro modo (dolo directo) ou prevendo tal como consequência possível da sua conduta, se conforme tal possibilidade e nem por isso aja de outro modo.
Em suma, a consciência ética do agente tem de estar suficientemente orientada para o desvalor da ilicitude da sua actuação – cfr. a este propósito o Figueiredo Dias em “Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa”, Jornadas de Direito Criminal, Edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 72 e 73, e o acórdão do TRP de 15/11/2017 no processo nº 1397/16.6T9PVZ.P1 publicado na internet.
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Posto isto e tendo em conta toda esta factualidade provada, impõe-se subsumi-la ao respectivo direito aplicável, mais concretamente aos sobreditos normativos legais contidos nos art.ºs 187º, nº 1 e nº 2, al. a), 183º, nº 1, al. a) e 182º do CP.
Sendo indiscutível que o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, este crime pelo qual fora pronunciado nos autos. Pois, perante todo este quadro fáctico:
- o arguido (…………), dirigindo-se a terceiros que não a pessoa coletiva visada (Caixa Económica Montepio Geral, S.A.), sem a presença desta;
- entre o dia 18/1/2018 (após o encerramento dos balcões bancários) e antes das 8 horas do dia 19/1/2018 (hora de abertura dos balcões bancários),  espalhou panfletos por vários locais (quer nos halls de acesso às máquinas de multibanco existentes em 4 balcões dessa instituição bancária, balcões esses com terminais multibanco e terminais “Chave 24” que permitem a realização de operações bancárias 24 horas; quer nas imediações desses balcões (designadamente na via pública e em pára-brisas de veículos estacionados junto a dois desses balcões). Tendo-se deparado com tais panfletos quer os colaboradores dessa instituição, quer vários cidadãos que ali se deslocaram e/ou quer vários cidadãos que ali circularam;
- panfletos de cor amarela fluorescente, com caracteres maiúsculas, de cor preta e a negrito, reproduzindo os seguintes dizeres: “BURLA DO MONTEPIO GERAL FURTA E VENDE À REVELIA DE CLIENTE EM 2012 OURO E PEDRAS PRECIOSAS AVALIADAS EM 2002 EM CERCA DE UM MILHÃO DE EUROS”;
- com esta actuação, o arguido propalou/espalhou/divulgou tais dizeres escritos de uma forma e em circunstâncias que facilitaram a sua divulgação, nos termos supra-descritos;
- contendo a imputação de factos inverídicos a propósito dessa instituição bancária;
- sem o arguido ter fundamento para, em boa-fé, reputar como verdadeiros tais factos e tendo como único propósito prejudicar a imagem dessa instituição bancária;
- sendo tal actuação do arguido idónea/capaz/apta a ofender a credibilidade/o prestígio/a imagem dessa existente instituição bancária;
- e tendo o arguido agido de forma livre, voluntária, consciente, com o único propósito de denegrir a imagem dessa instituição bancária, sabendo que tal conduta era punida por lei.
Não podendo deixar de salientar-se que tal (actuação do arguido com) imputação de práticas criminosas de burla e furto por parte desta pessoa coletiva (aqui assistente), sendo ela uma instituição bancária existente e em funcionamento no nosso mercado financeiro, obviamente que tal actuação do arguido é apta/idónea/susceptível de atentar contra a imagem, notoriedade, credibilidade, confiança, prestígio, credibilidade desta instituição bancária.
Um banco/uma instituição bancária é por definição (pública e notória) uma instituição financeira especializada: em intermediar o dinheiro entre poupadores e aqueles que precisem de empréstimos de dinheiro; em fazer investimentos; em guardar dinheiro; em guardar ouro, pedras preciosas ou outros bens móveis cuja custódia lhe seja solicitada por clientes, nomeadamente para serem guardados em cofres do banco.
Ora, atento o quadro de actividade e/ou o fim prosseguido por uma entidade bancária como esta (a assistente), o direito à sua imagem/ao seu bom nome está interligado, obviamente, com aquela sua essência e vice-versa – uma instituição bancária quer-se (que seja e se mostre) séria, fidedigna, cumpridora e de confiança (com bom nome) aquando e por causa da sua actividade. E, nesta medida, merece a pretendida tutela penal ao seu bom nome, se e quando (como foi no caso em apreço) se lhe imputa a prática de burla a cliente, através de furto e venda de pedras preciosas, à revelia de cliente.
Em suma (tal actuação do arguido é susceptível de) atentar contra o bom nome ou a honra desta instituição bancária (aqui assistente), enquanto dimensão exterior (de reputação, prestígio, credibilidade, confiança) que os outros dela têm – quer clientes, quer ex-clientes, quer potenciais clientes, quer público em geral, quer suas congéneres, quer comunidade onde se insere a nível local e a nível nacional.
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Chegados aqui, resta-nos uma outra questão que (apesar de não ter sido suscitada por nenhuma das partes), oficiosamente, importa suscitar que é:
A insuficiência da matéria de facto provada a propósito das condições de vida do arguido, nomeadamente sócio-económicas, bem como da personalidade do arguido, e que se nos afigura imprescindível para efeitos da escolha da pena e determinação da sua medida, à luz do disposto nos arts. 70º e 71º do CP, no caso concreto.
Ora, esta insuficiência constitui um vício de que enferma o texto da decisão da 1ª instância, nos termos do art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP.
Seguindo os ensinamentos doutrinais feitos por Simas Santos e Leal Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6ª edição, págs. 69 e segs.), por Simas Santos e Leal Henriques (“Código de Processo Penal Anotado” volume II, 2ª edição, págs. 739 e segs) e por Pereira Madeira (“Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista, págs. 1290 e segs):
A insuficiência da matéria de facto para a decisão ocorre quando, na exposição da matéria de facto, exarada no texto da decisão, se constata a ausência de elementos de informação (que podendo e devendo ter sido obtidos e julgados provados ou não provados, são necessários para alicerçar a decisão) e que o défice factual da matéria apurada impeça a aplicação do direito à situação da vida submetida à apreciação do Juiz, por a matéria de facto apurada, no seu conjunto, ser incapaz de suportar aquela decisão;
Estando afastado este vício (de insuficiência) se os factos pertinentes relativos ao objecto do processo (neste caso, a matéria relativa à situação pessoal e económica e à personalidade do arguido) forem indagados/averiguados pelo tribunal e obtiverem resposta do tribunal – independentemente dessa indagação ter tido êxito ou não, consoante  a perspectiva de cada uma das partes, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados.
Ora, voltando ao caso em apreço, a propósito das condições de vida do arguido, não há (na decisão do Tribunal de 1ª instância) qualquer menção constante quer da matéria de facto provada, quer da matéria de facto não provada.
E o Tribunal de 1ª instância, aquando da motivação, referira que: “O arguido não pretendeu prestar declarações, nos termos do disposto no artigo 343.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pelo que o Tribunal não pode contar com a sua versão para o apuramento dos factos, nem das suas condições socioeconómicas”.
Acontece que – salvo o devido respeito –, esse Tribunal podia ter obtido informação sobre as condições sócio-económicas do arguido e a sua personalidade, através de outros meios probatórios que podia e devia ter solicitado para o efeito – nomeada e respectivamente, solicitar informação à Segurança Social e/ou às Finanças sobre os seus rendimentos e do seu agregado familiar, seus encargos incluindo do agregado familiar e demais despesas relevantes para efeitos do cômputo da respectiva punição e solicitar relatório social aos Serviços de Reinserção Social.
Por isso e face ao disposto no art.º 410º, nº 2, al. a), e 426º, nº 1, do CPP, impõe-se reenviar este processo à 1ª instância para, novo julgamento por outro Tribunal (nos termos do disposto nos art.ºs 426º-A e 40º do CPP), com vista à indagação das concretas condições sócio-económicas do arguido e demais condições de vida, bem como da sua personalidade – nomeadamente, através das sobreditas informações documentais, sem prejuízo de o arguido poder vir a querer prestar declarações para esse efeito –, seguida da fixação da respectiva factualidade relevante para efeitos da sanção a aplicar e, por último, da aplicação da respectiva sanção e com as inerentes consequências legais.
           
DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos sobreditos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal desta Relação em:
A - Não conhecer o recurso subordinado que o arguido (………) formulou, não sendo parte civil nos autos penais em apreço;
B - Julgar procedente o recurso apresentado pela assistente (Caixa Económica Montepio Geral, S.A.) e face à demais apreciação oficiosa:
I – Aditar à factualidade provada (retirando-o do elenco dos factos não provados), o seguinte facto:
«16-A. O arguido agiu sabendo que a sua conduta era punida por lei»;

II – Revogar a decisão recorrida (na parte absolutória) que deverá ser substituída por outra que, face a toda a factualidade já dada como provada, considere que o arguido (………) cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime pela qual fora pronunciado (previsto e punível pelos art.ºs 187º, nº 1 e nº 2, al. a), e 183º, nº 1, al. a), do CP);
III – No mais, ordena-se o reenvio do processo à 1ª instância para novo julgamento a efectuar por outro tribunal, nos termos do art.º 40 al. c) , 426º e 426º A , todos do CPP, no tocante à indagação das concretas condições sócio-económicas do arguido e demais condições de vida, bem como da sua personalidade, seguida de fixação da respectiva factualidade relevante e da respectiva sanção correspondente a tal condenação com as demais consequências legais.
                                                   
C – Custas a cargo do arguido, fixando em 3 UCs a taxa de justiça – art.º 513º, nº 1, 2ª parte, do CPP e art.º 8º, nº 9, do RCP e sua anexa Tabela III.
                                                                                            

Lisboa, 15 de Dezembro de 2022 
Paula de Sousa Novais Penha
Carlos da Cunha Coutinho
Raquel Correia de Lima