Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9613/2007-3
Relator: CONCEIÇÃO GONÇALVES
Descritores: DIFAMAÇÃO
TESTEMUNHA
ELEMENTO SUBJECTIVO
DOLO
ILICITUDE
PROVA DA VERDADE DOS FACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A testemunha quando é chamada a depor cumpre um dever que é imposto por lei, pois, em princípio, não se pode recusar a depor, e tem a obrigação de falar com verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho, previsto no artº 360º do Código Penal.
II- Depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados à pessoa visada sejam em si difamatórios, nunca lhe poderá ser imputado o crime de difamação, estando neste caso afastado o dolo em qualquer das suas modalidades e afastada a ilicitude da sua conduta por agir no cumprimento de um dever.
III- Tal só sucederá se a testemunha prestar um depoimento falso, com a consciência dessa falsidade. Neste caso, resultaria evidente o intuito doloso, havendo de concluir-se que o depoente agiu com o intuito de ofender o visado, estando igualmente afastada a eximente da ilicitude, pois faltando á verdade, a testemunha não cumpriu o dever legal previsto pela norma.
IV- Mas não é á testemunha que age no cumprimento de um dever que incumbe a prova da veracidade das suas afirmações, mas sim ao Estado no seio da investigação.
V- Seria um absurdo fazer recair nos ombros da testemunha, que foi coercivamente obrigada a depor e com verdade, o ónus da prova da veracidade das imputações. Se assim fosse, seria coarctar a liberdade e obrigação de denúncia de crimes, pois ninguém se disporia a prestar o seu depoimento sem primeiro saber se tinha meios para provar a verdade dos factos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.
           
I. RELATÓRIO.

            1. No Processo de Instrução nº 15749/03.8TDLSB do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, foi requerida a abertura de Instrução pelos arguidos F… e R… , melhor identificados nos autos, na sequência de Acusação Particular contra eles deduzida pelo Assistente E… , com os sinais dos autos, pela prática de crime de difamação, vindo o Mmº Juiz de Instrução a proferir Despacho de Não Pronúncia, por inexistência de indícios suficientes do prática do crime de difamação que lhes foi imputado.
 
            2. O Mmº Juiz de Instrução, nesse despacho de não pronúncia, consignou o seguinte que, na parte relevante, se transcreve:
   “(…).
   Tendo por base, pois, aqueles que são os elementos constitutivos do crime de difamação e tendo subjacente aquelas que são as finalidades da instrução, cumpre, desde logo, e também nesta sede, acentuar a correcção da posição do Ministério Público em sede de debate instrutório, ao concluir pela inexistência de indícios que permitam pronunciar os arguidos F… e R… pela prática do crime de difamação com publicidade e calúnia.
   Na verdade, a acusação particular é toda ela baseada nos depoimentos prestados por ambos os arguidos no âmbito do inquérito do denominado processo “…” –NUIP 1718/02JDLSB efectuados na Polícia Judiciária e no DIAP.
   O assistente alega a falsidade dos abusos sexuais sobre menores que lhe foram imputados e tais imputações configuram uma violação gravíssima do seu direito ao respeito da sua personalidade moral.
   Efectivamente, se nos abstrairmos do contexto e das circunstâncias em que as declarações dos arguidos foram prestadas, objectivamente tais declarações são graves e atentatórias da honra, dignidade e consideração do assistente.
   No entanto não podemos esquecer que ambos os arguidos prestaram tais declarações na qualidade de testemunhas e nessas declarações imputaram ao assistente a prática de actos sexuais com crianças, sendo que nos relatos que fizeram descreveram de forma pormenorizada o que foi feito, como, e quem foram os intervenientes, cfr. fls. 47 e ss, 55 e ss, 59 e ss, 74 e ss, 76 e ss, 80 e ss, 83 e ss, sendo que a fls. 104 decorre do depoimento do arguido R… que este terá sido ameaçado caso falasse nos nomes do depoente e de P… . Todas as declarações prestadas foram reiteradas ao longo de todo o inquérito, tendo-o também sido nestes autos.
   Ora, analisando os depoimentos dos arguidos verifica-se que os mesmos prestaram as suas declarações de forma objectiva e contidas dentro do âmbito do processo em investigação, não resultando do depoimento dos mesmos que tenham em momento algum tecido considerações ou efectuado juízos de valor acerca da pessoa ou personalidade do assistente. Limitaram-se, tão só, a relatar os factos por eles, alegadamente, vividos e por si conhecidos, tendo-o feito perante órgão de polícia criminal, autoridade judiciária e Instituto de Medicina Legal e a solicitação destes.
   De facto, na qualidade de testemunhas tinham o dever de falar com verdade, sendo que caso não o fizessem incorreriam na prática do crime p. e p. pelo artº 360º do CP.
   Ora, no caso, nada nos garante que os seus depoimentos sejam verídicos, mas também nada nos garante o contrário, daí não ter sido deduzida contra eles acusação pela prática do crime de falsidade de testemunho.
   Para que o tipo legal do crime de difamação esteja preenchido necessário seria que dos autos, designadamente da prova recolhida, se pudesse concluir que os arguidos ao imputarem ao assistente a prática de abusos sexuais sobre menores visassem atingir aquele na sua honra e dignidade. Não ficou demonstrado que tenham representado como consequência desses depoimentos a realização ou cometimento de um facto susceptível de ofender a honra e consideração do assistente. De facto, prestaram os depoimentos no âmbito de convocatórias que lhes foram feitas para o efeito e relataram factos por si, alegadamente testemunhados e vividos, não com um intuito de atingir o assistente na sua dignidade pessoal, mas no âmbito de um inquérito em curso, ou seja, no âmbito de um dever/obrigação legal. Não ficou, pois, minimamente demonstrado que com isso o que pretendiam era denegrir a imagem do assistente, nem tão pouco representaram tal como possível. E, a responsabilidade a título de negligência, neste tipo de crime, está excluída.
   Entender que os depoimentos prestados configuram a prática pelos arguidos de um crime de difamação, é coarctar a liberdade e a obrigação de denúncia de crimes por parte das respectivas vítimas caso estas não consigam desde logo fazer prova da veracidade das suas afirmações.
   É caso para perguntar, se antes de denunciar um qualquer crime ou prestar declarações no âmbito de um qualquer processo judicial ou disciplinar, cada um de nós, deverá, previamente, fazer um investigação particular e recolher prova a fim de comprovarmos a veracidade da nossa denúncia ou depoimento, pois caso contrário estaremos sujeitos a que nos seja instaurado um processo crime por difamação. Ora, isto é subverter a própria letra e espírito do preceituado no artº 180º e é subverter as regras da investigação criminal.
   (…).
   Assim, tal como refere a Digna Magistrada do Ministério Público o depoimento de uma testemunha, independentemente da veracidade ou não das declarações prestadas, não pode ter-se como uma conduta voluntariamente assumida. E a autoridade perante a qual o testemunho é prestado também não é um terceiro qualquer, mas sim alguém, um destinatário a quem a testemunha tem a obrigação de dizer a verdade sob pena de poder ser criminalmente responsabilizada, cfr. artº 360º, nº 1, do CP e 132º, 1, d), do CPP.
   O assistente não aponta factos nem prova que indicie minimamente que os arguidos conheciam a falsidade das imputações efectuadas ao assistente, limitando-se a referir contradições e imprecisões nos seus depoimentos, sendo que estas só por si são insuficientes para concluirmos, sem mais, pela inveracidade e falsidade dos depoimentos, pois os factos relatados ocorreram ao longo de vários anos, em diversos locais e com diversas pessoas.
   Mesmo que se considerasse que estaria preenchido objectiva e subjectivamente o tipo legal de difamação, o que não considero, atenta a já supra mencionada falta de dolo por parte de qualquer dos arguidos, sempre estaria a ilicitude da prática de tal crime excluída uma vez que ambos os arguidos depuseram no cumprimento de um dever imposto por lei, pelo que a ilicitude de tais condutas estaria excluída nos termos do disposto no artº 31º, 1, c) do CP.
   (…).
   As circunstâncias agravantes mencionadas e previstas nas alíneas a) e b) do artº 183º do CP, não se verificam de todo nestes autos, pois nada nos autos indicia que os arguidos tenham prestado os seus depoimentos por meios ou em circunstâncias que facilitassem a sua divulgação, pois prestaram-nos perante os órgãos competentes para o efeito (de polícia, judicial e médicos), os quais estão abrangidos, todos eles, pelo dever de sigilo e segredo de justiça. Se houve violação de tal dever, os arguidos não poderão, por isso ser responsabilizados, pois não tinham o “domínio do facto”.
   Também já foi referido que nada nos autos indicia que os arguidos tivessem imputado factos falsos ao assistente e que conhecessem tal falsidade.
   Por tudo o que fica dito alternativa não existe que não seja a de proferir despacho de não pronúncia, pois não se vislumbram quaisquer indícios de os arguidos terem querido “beliscar” a honra do assistente. (…).
   Nesta conformidade (…) mais não resta senão concluir pela inexistência de indícios suficientes da prática, pelos arguidos, de factos susceptíveis de integrar a prática do crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punível pelo artº 180º, 1 e 183º, 1, a) e b), do Código Penal, o que impõe a prolação de despacho de não pronúncia”.

            3.Inconformado com este despacho, o assistente veio interpor recurso.
            A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
            “A- Ao contrário do que vem decidido na douta decisão recorrida, foram recolhidos nos autos indícios bastantes da verificação dos requisitos objectivos e subjectivos da prática pelos arguidos do crime de difamação com publicidade e calúnia, p. e p. pelos artigos 180º e 183º, nº 1, al. a) e b) do Código penal.
            B- O teor dos depoimentos prestados pelos arguidos, objecto da acusação, são manifesta e profundamente ofensivos da honra e consideração do assistente, facto que parece não ser contestado na douta decisão recorrida.
            C- As entidades perante as quais os arguidos prestaram os seus depoimentos são terceiros, para os efeitos previstos no artº 180º do Código Penal, pois terceiro é “todo aquele que não é nem agente nem vítima do crime de difamação” (Ac. da Relação de Lisboa de 11.10.2006, acima citado).
            D- Apesar de as testemunhas estarem obrigadas a prestar depoimento quando convocadas para o efeito, o teor dos depoimentos que prestam é livremente conformado por elas, podendo, ou não respeitar o dever de falar com verdade.
            E- Assim, é incorrecta a afirmação da douta decisão recorrida de que as condutas dos arguidos não poderiam ser punidas -independentemente de serem verdadeiras ou falsas -por não se configurarem como actos voluntários, pois que, a ser assim, não faria sentido a tipificação do crime previsto no artº 360º do Código Penal, também configurado como crime doloso.
F- Atenta a gravidade das imputações realizadas pelos arguidos ao assistente -envolvendo factos cuja censurabilidade é apercebida transversalmente, por todos os extractos da sociedade portuguesa, como, aliás, a própria decisão recorrida não deixa de reconhecer –é evidente que os arguidos não podiam deixar de estar cientes da virtualidade ofensiva daquelas afirmações.
G- É irrelevante que os arguidos não tenham feito acompanhar a imputação de factos ao assistente de quaisquer juízos de valor sobre o carácter deste, porque a natureza dos factos relatados (e inventados), e bem assim os pormenores que os arguidos imprimiram na sua descrição, são de tal modo sórdidos e repugnantes que qualquer adjectivação que fosse empregue seria, no máximo, redundante, nada acrescentando às conclusões sobre o carácter das pessoas visadas que qualquer destinatário médio retiraria dos factos relatados.
H- Ao contrário do que defende a douta decisão recorrida, a causa de exclusão da ilicitude prevista no artº 31º, nº 2, al. c) do Código Penal não tem aplicação aos autos porquanto, para o crime de difamação, está prevista uma causa específica de exclusão da responsabilidade penal que determina que a conduta não será punível se, além do interesse legítimo, o arguido provar a veracidade das declarações prestadas ou, pelo menos, demonstrar que tinha fundamento sério para, em boa fé, as reputar verdadeiras –o que não se encontra minimamente indiciado.
I- Sem conceder, sempre se dirá que mesmo que fosse aplicável aquela disposição da parte geral, também aí não se teria por verificada qualquer causa de exclusão da ilicitude, pois verifica-se nos autos a total ausência de indícios de que os arguidos cumpriram o dever legal de depor com verdade.
J- Compete aos arguidos -e não ao assistente -a alegação e prova dos factos que constituam causa de exclusão da ilicitude das respectivas condutas pois, como se refere no douto Ac. da Relação de Lisboa amplamente citado nas presentes alegações, “a circunstância da veracidade da imputação poder ser uma eximente neste caso, não transforma a falsidade da imputação em elemento do tipo incriminador, tal como, por exemplo, a circunstância do legislador afastar a ilicitude em casos de legítima defesa não transforma a ausência de defesa legítima em elemento do crime”.
L- Considerar que o artº 180º do Código Penal admite interpretação como aquela da douta decisão recorrida -ou seja, que cabe ao assistente, visado pela ofensa à sua honra, demonstrar a falsidade dos factos que lhe são imputados -consubstanciaria a própria inconstitucionalidade daquela norma, por violação do disposto nos artigos 1º, 2º, 25º, 26º, nº 1 e 20º, nº 1, todos da CRP.
M- Nem se diga que tal prova seria, para os arguidos, impossível porquanto eles referem a presença de diversas pessoas que, se fossem verdadeiros os depoimentos -e não são -poderiam confirmar o seu teor.
N- Ao contrário, representaria para o assistente um ónus insuportável a demonstração de que aqueles factos que lhe imputam, em datas que não são precisadas, não ocorreram -é chamada “prova impossível”.
O- Em suma, o assistente contém na sua acusação e nos elementos recolhidos nos autos todos os elementos que permitem ter por indiciariamente demonstrada a prática do crime de difamação, consubstanciada na imputação pelos arguidos ao assistente, perante terceiros, de factos profundamente ofensivos da sua honra e consideração.
P- Finalmente, encontra-se também suficientemente indiciado que os arguidos utilizaram um meio –o inquérito do processo Casa Pia -para verter as suas atoardas injuriosas contra o assistente que sabiam de antemão viria a permitir a ampla divulgação daquelas imputações, verificando-se, assim, os requisitos de agravação previstos no artº 183º, nº 1, al. a) do código penal.
Q- Impunha-se, pois, ao contrário do decidido, a pronuncia dos arguidos pelos factos constantes da acusação particular.
R- A douta decisão recorrida é, consequentemente, ilegal por violação do disposto nos artigos 31º, 180º e 183º, do Código Penal, dos artigos 1º, 2º, 25º, 26º, nº 1 e 20º, nº 1, da CRP e artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.

            4.Este recurso foi admitido pelo despacho de fls.664.

            5. O Ministério Público respondeu à motivação, concluindo pela improcedência do recurso, sustentando o entendimento perfilhado pela decisão recorrida, pugnando pela não pronúncia dos arguidos, porquanto, resumidamente, refere que cotejados os autos e pesados todos os elementos probatórios recolhidos não se indicia suficientemente o cometimento, por parte dos arguidos, do crime de difamação que lhes foi imputado, não se verificando a possibilidade razoável de, em julgamento, virem os arguidos a ser condenados.

            6. O arguido F… veio responder à motivação, concluindo pela confirmação da decisão recorrida por ser a única conforme à lei e à justiça, com a argumentação que consta de fls. 699 a 704.
           
7. O arguido R… veio responder à motivação de recurso, concluindo igualmente pela confirmação da decisão recorrida, acentuando que foram chamados para prestar depoimento em inquérito crime, estando obrigados a prestá-lo, a declarar tudo o que de relevante tivessem conhecimento. O assistente não provou a falsidade ou intencionalidade de os Arguidos quererem, por sua própria motivação ou de terceiros, prejudicar a sua imagem pública. O Assistente não é constituído Arguido, provavelmente, em virtude dos factos que, contra si, poderiam consubstanciar uma acusação terem prescrito. Os Arguidos não foram acusados pelo crime de falsidade de testemunho. Os Arguidos efectuaram as suas declarações com vista a realizar um interesse legítimo - que neste caso até é um interesse público - a realização da justiça, e por último, que as testemunhas em processo-crime não podem ser responsabilizadas, e alvo de procedimento judicial pela prática de um crime de difamação, devido ao conteúdo dos depoimentos que prestem, quando efectuados não no âmbito da sua disponibilidade pessoal, antes no exercício de um dever legal.
           
            6. Neste Tribunal, o Exmº Srº Procurador-Geral-Adjunto quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o douto parecer de fls. 742 a 744, no sentido da manutenção da decisão de não pronúncia, sufragando por inteiro o entendimento e considerações expendidas quer no despacho impugnado, quer nas respostas do Ministério Público e dos arguidos, entendendo mesmo -por nada mais haver a acrescentar -que será caso de equacionar, por aplicação subsidiária da norma vertida no nº 5 do artº 425º do CPP, a confirmação do decidido por mera remissão para os seus precisos termos e fundamentos.
           
            7. Cumprido o artº 417º, nº 2, do C.P.P., o recorrente nada disse.
           
            II-FUNDAMENTAÇÃO.

            8.O objecto do recurso interposto pelo assistente, demarcado pelo teor das conclusões (cfr. artº 412º, nº 1, do CPP), resume-se à questão de saber se o processo contém indícios suficientes da prática do crime de difamação imputado aos arguidos pelo assistente.

Vejamos:
9. Resultam dos autos, com interesse, as seguintes ocorrências processuais:
a) Os presentes autos tiveram início com a apresentação de queixa pelo assistente contra F… e R…, aos quais imputa a prática de crimes de denúncia caluniosa ou de falsidade de testemunho e de difamação.
Os denunciados são testemunhas inquiridas no âmbito do processo com o NUIPC1718/02JDLSB, o denominado processo “…”, em cujos depoimentos imputam ao assistente a prática de abusos sexuais sobre menores, alunos da …, em locais que referiram.
b) O assistente considera que “tais depoimentos (…) são ignobilmente inventados, com o propósito de provocar a instauração de um processo contra ele que destrua a sua carreira política, como líder partidário, deputado e membro do Conselho de Estado, ao mesmo tempo que afecta gravemente a credibilidade do maior partido da oposição e de instituições chave do nosso sistema democrático”.
c) Foram realizadas as diligências de inquérito tidas por adequadas e pertinentes, vindo o Ministério Público a proferir despacho final de Arquivamento.
d) O assistente veio impugnar o despacho de arquivamento, requerendo ao abrigo do artº 278º do CPP a intervenção hierárquica, pedindo a revogação daquele despacho de arquivamento e a realização de diligências probatórias adicionais visando a dedução de acusação contra os arguidos pelos crimes indicados na queixa (cfr. fls. 406 a 419).
 e) Tal reclamação hierárquica, por decisão que consta de fls. 423 a 431, foi indeferida, mantendo na íntegra o despacho final de Arquivamento, entendendo-se, em síntese, que o despacho impugnado se mostra sobejamente fundamentado e nele foram devidamente apreciados os elementos de prova recolhidos, e as diligências de prova requeridas pelo assistente ou são inúteis ou ilegais.
 f) O assistente veio então deduzir a Acusação Particular que consta de fls.436 a 454, imputando aos arguidos F… e R… a prática de um crime de difamação com publicidade e calúnia, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 182º, 183º, 1, al. a) e b) e 30º, nº 2, do C.P., ou caso se não entenda aplicável o disposto neste artº 30º, nº 2, a prática de seis (6) crimes de difamação com publicidade e calúnia no caso do arguido F…, e no caso do arguido R… dois (2) crimes de difamação com publicidade e calúnia, previstos e punidos pelas mesmas referidas disposições legais.
g) Os factos que sustentam a imputação deste crime aos arguidos reportam-se aos referidos depoimentos prestados por ambos os arguidos no âmbito do inquérito do denominado processo “…”, nos quais imputam ao assistente a prática de abusos sexuais sobre menores, cujos depoimentos vêm reproduzidos na acusação particular, e que o assistente entende tratarem-se de “falsas alegações da prática de abusos sexuais de menores” e “uma violação gravíssima do seu direito ao respeito da sua personalidade moral”.
h) O Ministério Público, por despacho de fls. 462 a 470, não acompanhou a Acusação Particular pelas mesmas razões que o conduziram à prolação do despacho de arquivamento. Em última análise, entendeu que os mencionados depoimentos não preenchem o crime de difamação pela importância primordial que reveste a circunstância de tais imputações terem sido efectuadas pelos ora arguidos enquanto detentores da qualidade de testemunhas, no âmbito de um processo crime, em fase de investigação, que tinha por objecto precisamente a investigação dos abusos sexuais de que foram vítimas menores alunos da …., depondo os arguidos no cumprimento de um dever imposto por lei, o que consubstancia uma causa de exclusão da ilicitude, nos termos do artº 31º, nº 1 al. c) do Código Penal.
i) Os arguidos requereram a abertura da Instrução, visando a prolação de um despacho de não pronúncia, alegando, em síntese, que a sua a conduta não pode entender-se como um acto voluntário, mas como um acto devido, pois que obrigatório, imposto por lei, nos arts. 132º, 2, 134º e 145º do CPP e artº 360º, 2 do CP. Também em sede de exame médico-legal a obrigatoriedade decorre do estatuído no artº 6º da Lei nº45/04, de 19.08. Assim se excluindo a ilicitude da conduta dos arguidos. Dizem, ainda, que sempre beneficiariam da cláusula de exclusão da ilicitude prevista no artº 180º, 2, do C.P, pois as imputações visaram a prossecução de um fim legítimo -colaborar com a justiça penal e estavam convencidos da veracidade das suas afirmações.
j) Realizada a Instrução foi proferido a decisão instrutória de não pronúncia supra reproduzida, e agora sob recurso interposto pelo assistente.

10. A questão que importa então apreciar é de saber se foi ou não acertada a decisão de não pronúncia dos arguidos, mais concretamente, importa saber se os indícios que resultam dos autos se podem considerar suficientes para submeter os arguidos a julgamento, como pretende o recorrente.
A Mmª Juiz, na decisão recorrida, concluiu pela “inexistência de indícios” que permitam pronunciar os arguidos pelo imputado crime de difamação, porquanto, e em resumo, da prova constante dos autos não resulta que os arguidos, ao imputarem ao assistente a prática de abusos sexuais sobre menores, visassem atingir aquele na sua honra e consideração, nem que tenham representado como consequência desses depoimentos a realização ou cometimento de um facto susceptível de ofender a honra e consideração do assistente, não se apurando o dolo da sua conduta.

Vejamos então se lhe assiste razão.

Para melhor entender a solução a adoptar, importa, em primeiro lugar, ressaltar as finalidades da fase da Instrução. Como sabemos e resulta do artº 286º do CPP “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artº 308º, nº1, do CPP).
Conforme vem entendendo a doutrina e a jurisprudência a prova indiciária (indiciação suficiente) será aquela que permite formar a convicção de que existe uma “possibilidade razoável” de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa, no sentido de que será proferido despacho de pronúncia se a prova indiciária permitir em julgamento formular um juízo de condenação. Embora os fundamentos da pronúncia sejam ainda os mesmos da acusação -a existência de indícios suficientes -o certo é que o modo como se alcançam um e outro juízo são diversos. Na verdade, a instrução é já uma fase judicial, em que a sua estrutura eminentemente acusatória apresenta-se integrada pelo princípio da investigação, e é uma fase contraditória (enquanto o inquérito é secreto e não contraditório), permitindo-se o confronto da prova da acusação e da defesa e perante um Juiz. Daí que, nesta fase, o que se impõe apurar é se os elementos probatórios trazidos aos autos, analisados criticamente, permitem formular um juízo de culpabilidade. Trata-se, no fundo, de uma antecipação do juízo a formular em sede de julgamento, donde, se os indícios já nesta fase não revelarem uma probabilidade mais positiva de condenação, o arguido não será pronunciado[1].
Esta é, na nossa perspectiva, a orientação correcta na apreciação da “indiciação suficiente”, na medida em que a sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final conclua pela absolvição, é sempre um incómodo, se não um vexame, não se livrando o arguido do “calvário” do processo perante um tribunal e a comunidade. Até porque, se nesta fase, a prova produzida não permitir a formulação de um tal juízo de condenação, também o não permitirá na fase de julgamento, pois a prova não aumenta, quando muito diminui. No fundo, esta exigência na apreciação dos indícios é um imperativo que se impõe pela necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, de modo a não permitir a intromissão infundada na sua esfera de direitos.
Dito isto, importa agora atentar nos elementos típicos do crime de difamação.
Dispõe o artº 180º, do Código Penal que incorre na prática do crime de difamação “Quem, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo….”.
O nº 2 deste mesmo preceito estabelece o seguinte:
“A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b)O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”
Por sua vez o artigo 183º, nº1, als. a) e b), estipula que “Se nos casos dos crimes previstos nos artigos 180º, 181º e 182º: a) A ofensa for praticada através de meio ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou b) Tratando-se da imputação de factos, se a averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação, as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo” do Código Penal.
Podemos então definir a difamação como a atribuição a alguém, através de terceiros, de facto ou juízo que encerre em si um objectivo eticamente reprovável, no âmbito da lesão da honra e consideração, reclamando a sociedade tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento.
Assim, quanto aos elementos objectivos da ofensa, a conduta concretiza-se através da imputação de um facto ou por meio de formulação de um juízo, ofensivos da honra e consideração de outrem, ou ainda pela reprodução daquela imputação ou juízo. Estas descritas condutas não podem ser feitas directamente ao ofendido, têm de ser levadas a cabo “dirigindo-se a terceiros”.
 Quanto ao conceito de honra podemos de forma resumida dizer que ele encerra o conjunto de valores éticos que cada pessoa humana tem, como o carácter, a lealdade, a seriedade e rectidão, ou seja, a dignidade subjectiva ou património pessoal e interno de cada um. O conceito de consideração encerra a dignidade objectiva ou o património que cada um granjeou ao longo da sua vida, traduzido no merecimento que cada um tem no meio social, ou seja, o seu bom nome, a confiança, a estima e reputação de que goza.
Quanto ao elemento subjectivo, a sua forma de cometimento é dolosa, embora há muito que a lei deixou de exigir o dolo específico, ou seja, não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir.
O elemento subjectivo concretiza-se, assim, em o agente ter conhecimento e consciência de que os factos por si imputados, ou as expressões que utiliza, são de molde a produzir ofensa na honra ou consideração da pessoa visada e de que tal conduta é proibida por lei.
Por último, refira-se que o crime de difamação é de perigo concreto-abstracto e não de dano. A lei não exige o dano efectivo do sentimento da honra e consideração social, bastando à sua consumação o perigo de que esse dano possa verificar-se. Basta assim a consciência da genérica perigosidade da conduta empreendida (da imputação do facto ou formulação do juízo), que encerre em si mesmo uma genérica aptidão para produzir o evento danoso. O crime consuma-se, assim, com o perigo de que esse dano possa acontecer, o que se concretiza no momento em que terceiros tomem conhecimento da imputação ofensiva a outra pessoa, consumando-se, pois, logo que chegue ao conhecimento de uma pessoa diversa do ofendido.

Sendo este o quadro típico do crime de difamação, é tempo de descer ao caso concreto dos presentes autos.
Não restam dúvidas, conforme se refere na decisão recorrida, que os arguidos nos depoimentos que prestaram imputaram factos ao assistente que são, objectivamente, atentatórios da sua honra e consideração.
E contrariamente ao que afirmam os arguidos, a sua conduta, pela circunstância de as imputações terem sido produzidas no âmbito de um depoimento testemunhal, não deixa de ser uma conduta “voluntariamente assumida”.
Se é certo que os ora arguidos foram convocados para testemunhar, estando por isso legalmente obrigados a depor, não é menos certo que o teor ou conteúdo do depoimento foi livremente assumido. É que se num primeiro momento o “acto é devido” no sentido de que a testemunha se não pode recusar a comparecer e a depor, num segundo momento, que se prende com o conteúdo do depoimento que vai prestar, é um acto livre, “voluntariamente assumido”. Tanto assim é que a testemunha, ciente do dever de falar verdade, se se determinar a mentir, apurando-se a existência de discrepância entre a realidade e o depoimento prestado (depoimento falso), incorre na prática do crime de falso testemunho previsto no artº 360º, nº 1 do C.P.[2]
E também a situação dos autos preenche o requisito de a imputação ter sido feita perante terceiros. Mesmo nas circunstâncias em que foi feita a imputação -no cumprimento de um dever –a imputação não deixa de ser feita perante terceiros, para os efeitos do artº 180º, do Código Penal, que embora não sendo um terceiro qualquer, mas o destinatário a quem a testemunha tem o dever/obrigação de prestar o seu depoimento, não é nem o agente nem o ofendido.
 E como dissemos, sendo o crime de difamação de perigo concreto-abstracto e não de dano consuma-se logo que a imputação do facto chega ao conhecimento de uma pessoa diversa do ofendido. O crime consuma-se, assim, com o perigo de que o dano efectivo do sentimento da honra e consideração possa acontecer, donde a conduta empreendida há-de revelar aptidão para que o evento danoso se produza. In casu, o facto de o terceiro ser alguém que está sujeito ao sigilo profissional e o processo em investigação estar sujeito ao segredo de justiça, não retiram por isso ao meio da imputação do facto a aptidão para que o evento danoso se possa produzir. Contudo, os eventuais danos emergentes da propagação e conhecimento público dos factos (que não no âmbito do processo em investigação) não podem ser directamente imputados aos arguidos, a não ser que existam indícios suficientes de que tal divulgação pública se ficou a dever à sua acção.

Desta forma, em face dos elementos constantes dos autos, se conclui que a conduta imputada aos arguidos preenche os elementos objectivos do crime de difamação.

Vejamos agora o elemento subjectivo, que se traduz em o agente ter conhecimento e consciência de que os factos por si imputados a terceiro são de molde a produzir ofensa na honra ou consideração da pessoa visada e de que tal conduta é proibida por lei.
Como é bom de ver os arguidos ao mencionarem tais factos não podiam deixar de representar a possibilidade de o assistente se sentir ofendido na sua honra e consideração. Como sabemos, a denúncia de quaisquer factos desagradáveis, ainda para mais com a gravidade destes, acarreta consigo sempre a probabilidade de as pessoas visadas se sentirem atingidas na sua honra e consideração, quer os factos sejam verdadeiros ou falsos.
Só que neste caso, o crime de difamação tem como particularidade crucial o facto de os arguidos terem agido no cumprimento de um dever legal. Este facto condiciona necessariamente a análise do tipo legal, com repercussões sobretudo ao nível do elemento subjectivo ou da intencionalidade, assim como ao nível da ilicitude da conduta.
 Como já o dissemos, a testemunha quando é chamada a depor cumpre um dever que é imposto por lei, pois, em princípio, não se pode recusar a depor, e tem a obrigação de falar com verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho, previsto no artº 360º do C.P.
Nesta posição, mesmo sabendo que com o seu depoimento pode lesar o bem jurídico protegido com a norma, a testemunha não pode recusar-se a depor.
O depoente cumpre assim um dever legal (cfr. artº 31º, nº 2, al. c), C.P.), realizando um interesse legítimo, e que radica no dever mais geral inerente a uma sociedade livre e solidária de denunciar a prática de um crime de que se tem conhecimento.
Ora, quem age no âmbito do cumprimento de um dever, estando obrigado a falar com verdade, mostra-se indiferente ao facto de as suas revelações poderem ou não atingir a honra e consideração do visado, pelo que, nestas circunstâncias está afastada a possibilidade do agente, ao imputar factos que em si são difamatórios, querer ferir ou atingir a honra e consideração do visado. Está assim afastado o dolo em qualquer das suas modalidades (artº 14º, do CP) e afastada a ilicitude da sua conduta por agir no cumprimento de um dever legal.
Assim, depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados à pessoa visada sejam em si difamatórios, nunca lhe poderá ser imputado o crime de difamação.
Tal só sucederá se a testemunha prestar um depoimento falso, com a consciência dessa falsidade. Neste caso, resultaria evidente o intuito doloso, havendo de concluir-se que o depoente agiu com o intuito de ofender o visado, estando igualmente afastada a eximente da ilicitude, pois faltando á verdade, a testemunha não cumpriu o dever legal previsto pela norma.
Assim, se no decurso da investigação os elementos de prova recolhidos forem de molde a demonstrar que a testemunha mentiu, tendo consciência da falsidade das imputações, ou seja, que declarou factos contrários aos factos do mundo exterior por si conhecidos, e com a consciência de que tais imputações são difamatórias, incorrerá, pois, na prática do crime de difamação.
 
Regressando ao caso em apreço, importa então analisar criticamente o quadro de indícios recolhidos nos autos.
Importa saber se existem “indícios suficientes” de os arguidos terem conscientemente faltado á verdade.
Vejamos.
O teor dos depoimentos a que nos temos vindo a referir constam de certidão junta aos autos e mostram-se reproduzidos na acusação deduzida pelo assistente.
Mostram-se igualmente junto aos autos os relatórios periciais e exames médico-legais e de avaliação psicológica dos arguidos.
Os denunciados foram interrogados como arguidos, e o assistente prestou o seu depoimento por escrito.
O assistente manteve integralmente o teor das queixas que apresentou.
Negou tais imputações e considera que aqueles factos “são inventados, com o propósito de provocar a instauração de um processo crime contra ele que destrua a sua carreira política, como líder partidário, deputado e membro do Conselho de Estado, ao mesmo tempo que afecta a credibilidade do maior partido da oposição”.
As declarações dos arguidos foram reiteradas ao longo de todo o inquérito, tendo-o também sido neste inquérito.
O assistente limitou-se a apresentar contradições pontuais e imprecisões nos depoimentos prestados, sem que tenha apontado qualquer facto que pudesse indiciar que os arguidos conheciam a falsidade das imputações e que pretendiam denegrir a sua imagem.
A verdade é que, conforme se afirma no despacho recorrido, os arguidos “… prestaram as suas declarações de forma objectiva e contida dentro do processo em investigação, não resultando do depoimento dos mesmos que tenham em momento algum tecido considerações ou efectuado juízos de valor acerca da pessoa ou personalidade do assistente. Limitaram-se tão só, a relatar os factos por eles, alegadamente vividos e por si conhecidos”.
E as contradições e imprecisões a que alude o recorrente não são de estranhar se tivermos em conta que os factos relatados pelos arguidos terão ocorrido já há alguns anos, a que acresce a natural dificuldade em depor sobre factos desta natureza. Contudo, tais contradições entre alguns factos e a datação imprecisa de alguns acontecimentos não permitem, por si, fazer um juízo de falsidade acerca dos mesmos.
Por outro lado, importa atentar no facto de as perícias aos arguidos bem como os exames médico-legais de natureza sexual a que foram submetidos concluíram ser de admitir a consistência dos relatos (cfr. fls. 276-328).
Ora, os elementos probatórios constantes dos autos, analisados criticamente não nos permitem concluir que os depoimentos prestados pelos arguidos sejam verídicos, mas também não permitem a conclusão contrária, pelo que, pelo menos pela aplicação do principio in dubio pro reo, enquanto regra de apreciação da prova, ter-se-á de concluir pela inexistência de indícios suficientes de que os arguidos ao proferirem tais imputações tivessem agido com dolo, ou seja, que tivessem querido atingir o assistente na sua honra e consideração, inexistindo igualmente indícios da ilicitude da conduta dos arguidos, pois inexistindo indícios de que os arguidos tenham prestado um depoimento falso, não podemos concluir pela ilicitude da sua conduta, pois se tiverem prestado um depoimento verídico a sua conduta já não é contrária às normas legais.
Chega-se assim a um non liquet, que só pode ser resolvido a favor dos arguidos, assim se concluindo pela “inexistência de indícios” que nos permitam imputar-lhes o crime de difamação.
E deste modo, em face do quadro de indícios acima referidos, tem-se como muito mais provável em sede de julgamento a absolvição dos arguidos que a sua condenação, pelo que outra não poderia ser a decisão instrutória que não fosse a não pronúncia dos arguidos, pelo que bem andou a decisão recorrida, não merecendo qualquer censura.

Diga-se, por último, que não faz qualquer sentido a discussão trazida pelo recorrente quanto a definir a quem compete o ónus de prova da falsidade ou veracidade das imputações, empurrando tal ónus para os arguidos, a quem, na sua óptica e interesse, incumbia a prova da verdade das imputações, e não conseguindo aqueles fazer tal prova teriam de ser responsabilizados por tais imputações. Ora, nada de mais errado, pois a prova dos elementos constitutivos de um crime compete ao Estado e ao Assistente nas vestes de acusador. A existência ou não de indícios da prática de um crime há-de emergir no seio da investigação, dos elementos de prova carreados para os autos, apreciados segundo o princípio estabelecido no artº 127º do CPP e pelos princípios gerais de direito. Como sabemos nem todas as investigações permitem a recolha de “indícios suficientes” da prática do crime denunciado, mas o que se não pode é subverter as regras de investigação criminal, colocando, neste caso, a cargo do depoente a prova da verdade dos factos.
 E se é certo que o art. 180º, nº 2, alínea b), do C.P. expressamente onera o arguido com a prova da veracidade da imputação, importa não esquecer nunca que nesse caso o agente faz a prova da veracidade para que a conduta não seja punível (situação em que o crime se mostra perfectizado). Só que no caso em apreço, e retomando o que dissemos supra, os arguidos agiram no cumprimento de um dever, o dever de prestar depoimento enquanto testemunhas. Nessa particular posição, não faria o menor sentido estar ainda a onerá-lo com a prova da veracidade das suas afirmações. Ele não decidiu livremente prestá-las. Foi coercivamente levado a tal, coerção que se manifestou não só na necessidade de prestar as declarações, como ainda na sujeição ao dever de verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falsidade de testemunho. E, sendo certo que ninguém teria a ousadia de defender que num eventual inquérito pela prática de um crime de falsidade de testemunho, recairia sobre o arguido o ónus de provar que falou com verdade, por ser por demais evidente que seria ao MP que caberia provar que ele mentiu, donde, pela mesma forma, no inquérito por difamação, decorrente dessa alegada falta à verdade no depoimento prestado, se não pode fazer recair nos ombros do arguido o fardo da prova da verdade das suas afirmações.
 Se assim fosse, seria coarctar a liberdade e obrigação de denúncia de crimes, pois ninguém se disporia a prestar o seu depoimento sem primeiro saber se tinha meios para provar a verdade dos factos.
O absurdo traduzir-se-ia em impor ao depoente que fizesse a prova daquilo que a investigação penal, como neste caso, não conseguiu.

11.Face ao exposto, resultando da análise crítica e conjugada da prova junta aos autos não se poder concluir por um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade dos arguidos, face á inexistência de “indícios suficientes” da prática do crime de difamação que lhes foi imputado, temos por bem fundado o despacho de não pronúncia, interpretando correctamente as normas legais aplicadas.
 Assim se conclui pelo acerto da decisão recorrida.

Improcede, pois, o recurso interposto.

*
                                                                        
III-Decisão.

Nestes termos, e com os fundamentos acima expostos, acordam os Juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, não se pronunciando os arguidos.
 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cfr. arts. 87º, nº 1, al. b) e 3, do C.C.J. e 513º, do C.P.P.).
Notifique.
                                                                     *
Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Gonçalves e assinado pelos Desembargadores Margarida Ramos de Almeida e Rui Gonçalves.


                                   
                                                                       Lisboa, 16/07/2008.

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[1] A Lei nº 48/2007, de 29/08, que recentemente alterou o Código de Processo Penal, veio reforçar este entendimento, face ás alterações introduzidas, designadamente nos artigos 86º e 289º, que vão no sentido de aproximar a instrução do julgamento (pôs fim ao segredo de justiça na instrução, vigorando sem excepção a regra da publicidade –cfr.artº 86º- e tal como na fase de julgamento, os intervenientes processuais passaram a poder assistir a todos os actos de instrução, a suscitar esclarecimentos e a requerer a formulação de perguntas que tenham por pertinentes para a descoberta da verdade -cfr. artº 289º,nº 2).

[2] Da conjugação dos artigos 132º a 134º e 116º, todos do CPP, e 360º do C.P. resulta que a falta injustificada de apresentação é punida nos termos do artº 116º, do CPP. A recusa injustificada equivale à recusa de depor, e a recusa injustificada de prestação de depoimento, são punidas nos termos do artº 360º, nº 2, do C.P., e, finalmente, o depoimento falso é punido nos termos do artº 360º, nº1, do C.P.