Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
621/17.2SYLSB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – Da conjugação das normas dos artigos 2º e 28º da Lei nº 30/2000, de 29/11, resulta uma descriminalização relativamente ao consumo de estupefacientes, revogando-se o artigo 40º, do Decreto-Lei nº 15/93 – excepto quanto ao cultivo – que punia como crime o consumo, passando a integrar contra-ordenação, mas só até quantidades que não poderão exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

– A questão colocada é a de definir o que sejam o “limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária” e o “consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

– Mantendo-se em vigor o artigo 71º do Decreto-Lei nº 15/93, importa atender ao mapa a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26/03, sendo certo que os valores indicativos contidos nesse mapa anexo, revestem valor de mero meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não sendo de aplicação automática, podendo pois ser impugnados e afastados pelo tribunal, desde que com a devida fundamentação.

– Considerando os limites definidos no mapa mencionado no artigo 9º, da Portaria nº 94/96, o limite quantitativo máximo diário para a substância canabis-resina é de 0,5 gramas, tendo como referência uma dose média diária com base na variação de conteúdo médio do THC existente nos produtos de canabis e atendendo a uma concentração média de 10% (cfr. alínea e) da nota 3 do mapa).

– O critério da tabela relativamente à canabis é o de que não se indica apenas um limite quantitativo para a dose média individual diária, mas diz-se que os limites quantitativos apresentados, conforme se trate de folhas e sumidades floridas ou frutificadas, resina ou óleo,referem-se a concentrações médias de THC,que seguramente têm em conta dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usuais nos diversos produtos da canábis e a quantidade indicada para a canabis-resina (0,5 gramas) refere-se “a uma concentração média de 10% de A9THC”.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


1.–Nos presentes autos com o NUIPC 621/17.2SYLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 1, em Processo Especial Sumário, foi o arguido B. condenado, por sentença de 06/09/2017, na pena de 110 dias de multa, à razão diária de 6,00 euros, pela prática de um crime de detenção de estupefacientes para consumo, p. e p. pelo artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela Anexa I-C.

Foi absolvido da prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21º, nº 1 e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela Anexa I-C, que lhe era imputado.

2.–O arguido não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso.

2.1Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1.A douta sentença recorrida violou o n.º 2 do art. 40.º do Decreto, Lei n.º 15/93, de 22/01, o n.º 2, do art. 32.º, da Constituição da República Portuguesa e o art. 9º e mapa anexo da Portaria 94/96, de 26-03.
2. Foram dados como provados os seguintes factos:
“No dia dia 17 de Agosto de 2017, pelas 12h, novinterior da estação de metropolitano denominada Baixa-Chiado, sita na Rua do Crucifixo, em Santa Maria Maior,o arguido foi abordado pela PSP tendo sido encontrada na sua posse uma embalagem de produto suspeito de ser estupefaciente que, submetido ao teste rápido, se apurou ser haxixe. Realizado exame laboratorial ao produto apreendido, verificou-se tratar-se de vários pedaços de canabis resina, com peso líquido de 6,177 gramas, apresentando um grau de pureza de 14,9%, correspondente a um total de 18 doses médias diárias. O arguido detinha o estupefaciente mencionado para seu consumo. O arguido conhecia as características, natureza e efeitos do produto estupefaciente que tinha na sua posse sabendo que a sua detenção não lhe era permitida.
Actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei."
3.O Arguido foi condenado peia prática, em 17 de Agosto, de um crime de detenção dc estupefacientes para consumo, p. e p. pelo art. 40º/2 do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa a este diploma, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de 6,00 (seis) euros, a que perfaz um total de 660 euros (seiscentos e sessenta euros).
4.Ora, o tribunal a quo ao condenar o Arguido entendeu que a substância apreendida ao mesmo excedia a quantidade necessária para o consumo médio durante o período de dez dias, o que salvo melhor opinião em contrário, não podia ter dado como provado.
5.Segundo o acórdão de fixação de jurisprudência 3/2008, DR 150, Série I, de 5/8, do STJ "Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29/11, o art. 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só "quanto ao cultivo" como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
6.Por sua vez, o art. 2.º da Lei 30/2000, de 29-11, qualifica como contra-ordenação a conduta de quem adquire ou detém para consumo próprio aquelas substâncias em quantidade inferior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.
7.A sentença recorrida ignorou o grau de pureza da substância submetida a exame pericial no LPC.
8.A percentagem do princípio activo encontrado na substância examinada é de 14,9%, correspondendo a 0,920 gramas de princípio activo existente no produto.
9.O princípio activo da canabis, que é o responsável pela maioria dos seus efeitos psicotrópicos é o tetrahidrocabinol (THC) existente no produto, a que se faz referência nas tabelas anexas, enquanto "droga pura".
10.Ora, tendo o exame quantificado a percentagem do princípio activo, o tribunal recorrido devia tê lo em conta para se socorrer dos valores constantes do mapa anexo à Portaria n.º 94/96 e adequá-los ao caso concreto.
11.Neste sentido o acórdão do Tribunal Constitucional de 07-08-1998:
«Assim, os limites fixados na portaria, tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e da letra do artigo 71.º ao Decreto-lei n.º 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que previ o tipo de crime privilegiado. Não está em causa a remissão para regulamento da definição dos comportamentos puníveis através do artigo 26.º, mas tão-só, bem mais modestamente, a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhado da devida fundamentação. Claro que esta conclusão só é legítima porque, por um lado, está em causa uma determinação de natureza eminentemente técnica, própria da prova pericial; e porque, por outro, é sempre por decisão do juiz e não por força da portaria n.º 94/96 que se concretiza o conceito de "princípio activo para cada dose média individual diária" utilizado na lei.»
12.Assim, só perante a percentagem do princípio activo constante da substância apreendida, só perante um produto "puro", seja canábis, seja qualquer outra substância, mormente heroína ou cocaína é que podemos avaliar se a quantidade detida é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
13.O produto "puro" apreendido ao arguido corresponde a 0,920 gramas.
14.Corresponde a menos de 1,000 gramas.
15.Como é sabido e nos ensinam as regras da experiência comum, "as drogas" encontram-se adulteradas no mercado, com adicionantes ou misturas para aumentar a quantidade e o correspondente lucro dos traficantes.
16.Dos 6,177 gramas do produto apreendido, apenas 0,920 gramas do produto se referia ao THC, o princípio activo cuja posse é proibida.
17.Os adicionantes ou misturas para aumentar a quantidade do produto não são proibidas por lei.
18.A Portaria n.º 94/96 prevê os limites de quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, estipulando para a canábis (resina), incluída na tabela I-C, anexa ao D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a quantidade de 0,5 gramas.
19.Se o tribunal a quo tivesse atendido ao grau de pureza da substância submetida a exame, certamente teria chegado à conclusão de que o produto "puro" apreendido não era minimamente suficiente para ultrapassar o consumo médio individual de 10 dias.
20.Impunha-se que ficasse apurado o consumo médio individual do Arguido, para que se pudesse concluir se excedia ou não a quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
21.Uma vez que, nem todos os consumidores necessitam da mesma quantidade diária de estupefaciente, nem se poderá deixar de atender às necessidades diárias de estupefaciente de cada consumidor.
22.Não ficou apurado o consumo médio individual do Arguido.
23.O conceito de quantidade necessária superior para o consumo médio individual durante o período de 10 dias poderá ser encontrado segundo vários critérios a ponderar em cada caso concreto, como seja o modo de consumo, e o grau de pureza da substância submetida a exame.
24.O princípio activo é a substância de estrutura química responsável por produzir uma alteração no organismo que pode ser de origem vegetal ou animal, no caso dos autos essa substância de estrutura química corresponde a 0,920 gramas, pelo que é imperioso concluir que tal quantidade não é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
25.O Arguido foi condenado sem fundamento legal.
26.A sentença recorrida violou o n.º 2 do art. 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, o n.º 2, do art. 32.º, da Constituição da República Portuguesa e o art. 9.º e mapa anexo da Portaria 94/96, de 26-03.
27.Bem como, a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova a que alude o art. 410º, nº 2, alínea c) do C.P.P., uma vez que deu como provado algo que notoriamente está errado.
28.Nestes termos e nos melhores de direito, deverão V. Exas., absolver o Arguido do crime de consumo de estupefacientes, constituindo antes o seu comportamento a prática de uma contra ordenação.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta decisão ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, V. Exas., porém, melhor apreciarão, fazendo a costumada Justiça

3.– O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu à motivação de recurso, pugnando por lhe ser negado provimento.

4.– Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5.– Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo recorrente em que afirma encontrar-se impossibilitado de responder ao parecer da Exmª Procuradora-Geral Adjunta, porquanto remete este para a resposta ao recurso elaborada pelo Ministério Público junto da 1ª instância e desta não foi notificado, pelo que foi praticada irregularidade processual, nos termos do artigo 123º, do CPP.

Não obstante, na mesma peça processual refere considerar que à “Digna Procuradora-Geral Adjunta do Ministério Público, não assiste razão”, apresentando argumentação nesse sentido e concluindo pela revogação da decisão recorrida.

6.– Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO.

1.–Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscita, são as seguintes:

Vício de erro notório na apreciação da prova.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido/recorrente.

2.– A Decisão Recorrida
                                             
Ouvida a gravação da audiência, onde consta a sentença oralmente proferida (artigo 389º-A, do CPP), constata-se que o tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:
No dia 17 de Agosto de 2017, pelas 12:00 horas, no interior da estação do metropolitano denominada Baixa-Chiado, sita na Rua do Crucifixo, em Santa Maria Maior, o arguido foi abordado pela PSP tendo sido encontrada na sua posse uma embalagem de produto suspeito de ser estupefaciente que, submetido ao teste rápido, se apurou ser haxixe.
Realizado exame laboratorial ao produto apreendido, verificou-se tratar-se de vários pedaços de canabis resina, com o peso líquido de 6,177 gramas, apresentando um grau de pureza de 14,9%, correspondente a um total de 18 doses médias diárias.
O arguido detinha o estupefaciente mencionado para seu consumo e conhecia as características e efeitos do produto estupefaciente que tinha na sua posse, sabendo que a sua detenção não lhe era permitida.
Actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
O arguido exerceu a profissão de vendedor, encontrando-se actualmente desempregado. Habita com os pais e irmãos, sendo sustentado pelos seus pais.

Mais se considerou como provado que sofreu as seguintes condenações:
Por decisão transitada em julgado em 02/02/2015, foi condenado pela prática, em 16/12/2014, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de quarenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros.
Por decisão transitada em julgado em 21/09/2015, foi condenado pela prática, em 25/01/2015, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de sessenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros e cinquenta cêntimos.
Por decisão transitada em julgado em 06/11/2015, foi condenado pela prática, em 01/04/2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):
Que o produto estupefaciente que o arguido detinha na sua posse nas circunstâncias mencionadas na acusação fossem por ele destinadas à cedência a terceiros.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
(…)

Apreciemos.

Questão prévia
(…)

Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido

O recorrente insurge-se contra a sua condenação pela prática do crime p. e p. pelo artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, considerando que a quantidade de canabis que detinha, atendendo ao respectivo grau de pureza e a que se destinava ao consumo próprio exclusivo, integra conduta não criminalizada, apenas susceptível de se configurar como contra-ordenação.
Provado se encontra na decisão recorrida, sem que tinha sido objecto de impugnação, que o recorrente detinha 6,177 gramas de canabis (resina) - substância contemplada na Tabela I-C, anexa ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 - com um grau de pureza de 14,9%, cujas características conhecia e destinava ao consumo próprio e exclusivo, não possuindo para tanto autorização legal.

Ora, estabelece-se no artigo 40º, da Lei nº 15/93, de 22/01:

“1–Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 30 dias.
2–Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias (…)”.

Com a entrada em vigor da Lei nº 30/2000, de 29/11 e concretamente do seu artigo 2º, passou a vigorar que:

“1.– O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.

2.– Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

E, o artigo 28º, desta Lei nº 30/2000, veio revogar o dito artigo 40º, “excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”.

Concatenando entre si estas normas dos artigos 2º e 28º enunciadas, resulta uma descriminalização relativamente ao consumo de estupefacientes, revogando-se o artigo 40º, do Decreto-Lei nº 15/93 – excepto quanto ao cultivo – que punia como crime o consumo, passando a integrar contra-ordenação, mas só até quantidades que não poderão exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça pelo Acórdão nº 8/2008, de 25/06/2008, in D.R. nº 146, Série I-A, de 05/08/2008, fixou jurisprudência no sentido de que “não obstante a derrogação operada pelo art. 28º da Lei 30/2000, de 29/11, a Lei 15/93, de 22/01, manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo, como relativamente à detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”

A problemática encontra-se então na densificação do que sejam o “limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária” e o “consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

Pois bem, mantendo-se em vigor o artigo 71º do Decreto-Lei nº 15/93, importa atender ao mapa a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26/03, sendo certo que os valores indicativos contidos nesse mapa anexo, revestem valor de mero meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não sendo de aplicação automática, podendo pois ser impugnados e afastados pelo tribunal, desde que com a devida fundamentação.

Considerando os limites definidos no mapa mencionado no artigo 9º, da Portaria nº 94/96, o limite quantitativo máximo diário para a substância em análise – canabis-resina - é de 0,5 gramas, tendo como referência uma dose média diária com base na variação de conteúdo médio do THC existente nos produtos de canabis e atendendo a uma concentração média de 10% - cfr. alínea e) da nota 3 do mapa.

Ora, tendo em consideração que o arguido detinha 6,177 gramas de canabis (resina), com a substância activa presente (tetrahidrocanabinol ou A9THC) e com um grau de pureza de 14,9%, sendo a dose média individual de 0,5 gramas, para um grau de concentração média de 10%, chegamos à conclusão que tinha consigo o correspondente a 18 doses diárias - 6,177 x (14,9% / 10%) / 0,5. Ou seja, quantidade que sabia corresponder ao consumo médio para mais de 10 dias e, por isso, legalmente proibida e punida pela lei penal.

O entendimento expresso pelo recorrente de que só perante a percentagem do princípio activo constante da substância apreendida, só perante um produto “puro” (…) é que podemos avaliar se a quantidade detida é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, não tem em consideração a concentração média de 10% de tetrahidrocanabinol retro mencionada.

Como se pode ler no acórdão deste Tribunal da Relação e Secção, de 06/11/2012, Proc. nº 5929/09.8TDLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt:

“No que concerne aos derivados da canabis, o fenómeno da adulteração é, aparentemente, muito menos significativo, ainda que possível (Veja-se Eduardo Hidalgo, “Sabes lo que te metes? Pureza y adulteración de las drogas en España”, Edicones Amargord, 2007. Capítulo 1: pag. 25-45. Segundo este autor, os estudos realizados em Espanha pelo Instituto Nacional de Toxicologia não têm confirmado as queixas ou suspeitas de muitos consumidores de haxixe: em 2005, das 6.095 amostras analisadas, apenas 0,78% estavam adulteradas; em 2004, 0,06%; em 2003, 1,6%; em 2002, 0,6%; em 2001, 7,6%; em 2000, 3,2%; em 1999, 2%, e assim sucessivamente).

O Supremo Tribunal de Espanha – atente-se que em Espanha não existe uma tabela comparável à da Portaria n.º 94/96, ainda que o Supremo tenha fixado valores de consumo diário das diversas substâncias para efeito de preencher o conceito de “notória importância” do tráfico agravado (que foi jurisprudencialmente estabelecido a partir das 500 doses referidas ao consumo diário) - tem mesmo entendido que, relativamente ao derivados da canabis, não é necessário concretizar o grau de THC, ou seja, a concentração de tetrahidrocannabinol, já que se trata de um componente da própria planta e não se encontra em estado puro, variando por causas naturais, como a qualidade da planta, a zona de cultivo, a selecção das partes componentes (já que a concentração varia na mesma planta), etc.

Do que se infere que não se vendem no mercado derivados de canabis que possam apresentar THC em estado puro.

Assim se compreende o critério da tabela relativamente à canabis: não se indica apenas um limite quantitativo para a dose média individual diária, mas diz-se que os limites quantitativos apresentados, conforme se trate de folhas e sumidades floridas ou frutificadas, resina ou óleo, referem-se a concentrações médias de THC, que seguramente têm em conta dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usuais nos diversos produtos da canabis.

Esclarece-se, assim, que a quantidade indicada para a canabis-resina (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC”.

Provado não está que o recorrente consumisse diariamente uma dose de canabis superior a 0,5 gramas (embora em sede de conclusões de recurso se aduza que “não ficou apurado o consumo médio individual do arguido”, certo é que não impugnou na modalidade ampla a matéria de facto dada como provada e também da análise da decisão recorrida, com vista a detectar um eventual vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, enunciado na alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do CPP, que é do conhecimento oficioso, não resulta transposto que o tenha mencionado) e, porque assim é, temos de concluir que, efectivamente, detinha quantidade de estupefaciente que excede a necessária ao seu consumo individual pelo período de 10 dias, pelo que a conduta subsume-se na previsão do artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, inexistindo violação alguma da norma contida no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que, cumpre negar provimento ao recurso.

III–DISPOSITIVO.

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B. e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.



Lisboa, 9 de Janeiro de 2018.


(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)

                                 
(Artur Vargues)                                
(Jorge Gonçalves)

Decisão Texto Integral: