Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1537/07-9
Relator: FRANCISCO CARAMELO
Descritores: INSUFICIÊNCIA DO INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público que detém a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, art.º 262º e 263º do Código Processo Penal, sendo este livre – dentro do quadro legal e estatuário em que se move e a que deve estrita obediência, art.º 53º, 267º do Código Processo Penal - de promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar.
Decisão Texto Integral: Pº 1537/07.9

Acordam em conferência na 9.ª Secção Criminal de Lisboa:

1.No processo de instrução n.º 1587/06.0TDLSB do 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, no seguimento do despacho de arquivamento proferido a fls. 156 a 159, pelo Mº.Pº., foi requerida a abertura de instrução pela assistente, I. ( conf. fls. 166 a 195destes autos ).
Declarada aberta a instrução, o Mº JIC, através do despacho de fls. 207, por considerar inexistirem actos instrutórios a realizar, designou data para o debate instrutório.
No decurso do debate instrutório a assistente, por considerar verificada a nulidade p. na alínea d) do artº 119 do CPP. ( falta de inquérito… nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade ) veio requerer a nulidade do despacho de arquivamento e de todos os actos subsequentes.
Perante este requerimento foi proferido o despacho de 17/11/2006, (conf. fls. 218 a 225) que, no que ao objecto do recurso interessa, declarou a nulidade do inquérito “ por falta de promoção, nos termos do artº 119 al. b) do CPP “ declarando nulo o despacho de arquivamento e todos os actos posteriores.

2- Inconformado com esta decisão, interpôs recurso o Mº.Pº., que motivou concluindo da seguinte forma:
- “ ...
- Ao Ministério Publico compete a acção penal;
- Assim devendo receber as denuncias e apreciar o seguimento a dar ás mesmas;
- Abrindo inquérito se for o caso;
- O que ocorrerá sempre que se denunciam factos que integrem um ilícito; E assim, nao havendo denuncia de factos susceptíveis de integrarem ilícitos penais nao há lugar a inquérito;
- Por falta de fundamento;
- Devendo os autos serem liminarmente arquivados;
- O que aconteceu nos autos;
- O que não consubstancia uma falta de promoção;
- Pois o M.P, promoveu, ao apreciar a denuncia, arquivando o inquérito;
- Pelo que ao entender que uma denuncia obrigatoriamente acarretará a abertura do inquérito, sem o que se verifica uma falta de promoção processual, foram violados os arts 48 a 54, 243, 246 e 267, C.P.P.
- Deve ser dado provimento ao recurso, em consequência se ordenando a prolação de novo despacho, que se pronuncie sobre o pedido formulado no pedido de instrução, da pronuncia do arguido.

3- O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.(conf. fls. 240 )
4- Respondeu a assistente, (fls. 280), pugnando pela manutenção do decidido, ainda que com base no entendimento da verificação da nulidade do inquérito p. no artº 119 – d) do CPP e na subsunção dos factos denunciados aos tipos legais de crime de abuso de confiança, burla e falsificação de documentos.
5- Neste Tribunal o Ex.mo Procurador -Geral Adjunta teve vista nos autos e emitiu o douto parecer de fls. 317 a 320, concluindo pela procedência do recurso e a sua revogação por despacho que conheça da pronúncia.
6- Cumprido o disposto no artº 417 nº 2 do C.P.P., a assistente respondeu reiterando o sustentado na peça recursória.
Colhidos os vistos legais procedeu-se à conferência.

7- O objecto do recurso, tal como decorre das conclusões da motivação, reporta-se à apreciação da alegada existência da nulidade do inquérito a que alude o despacho recorrido.
Vejamos:
Entendeu o despacho recorrido, julgar verificada a nulidade p. no artº 119, al. b) do CPP e, em consequência, declarar nulo o inquérito, por falta de promoção do Mº.Pº., consubstanciada no facto de se não ter procedido à inquirição das testemunhas indicadas na denúncia.
Por sua vez, a assistente, pretexta que a verificação de tal factualidade – não ter o Mº.Pº. em inquérito procedido à inquirição das testemunhas indicadas na denúncia, nem efectuado quaisquer outras diligências –configura a nulidade p. na alínea d) do artº 119 do CPP.
Cumpre apreciar:
Com a queixa apresentada pela assistente foi junta diversa documentação, sendo que, no âmbito do inquérito foi obtida cópia de decisão judicial proferida noutro processo e, examinada tal prova documental, foi proferido pelo Mº.Pº. o despacho de arquivamento constante de fls. 156 a 159, por em conclusão ter considerado “ não se vislumbrar, por parte do denunciado, a prática de qualquer ilícito penal “.
A lei processual penal vigente não impõe a prática de quaisquer actos típicos de investigação.
A direcção do inquérito cabe ao M°P°, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art.° 263° CPP), praticando, conforme preceituado no art° 267° CPP, os actos e assegurando os meios de prova necessários à realização das finalidades a que alude o art.° 262°, n.°1 CPP, ou seja, "o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação".
Compete ao juiz de instrução praticar, ou ordenar ou autorizar, os actos referidos nos art.°s 268° e 269° CPP, respectivamente, sendo a intervenção do juiz, nesta fase, circunscrita a actos isolados e específicos. Por seu turno, ao assistente compete colaborar com o M°P° a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo podendo desenvolver as competências previstas no art.° 69° CPP, entre as quais as de intervir no inquérito oferecendo provas e requerendo diligências, deduzir acusação e interpor recurso das decisões que os afectem. E compete ao JIC, em sede de instrução, conhecer das nulidades cometidas durante o inquérito e arguidas pelo assistente nos termos prevenidos no art.° 308°, n.°3 CPP.
Resta saber se a falta de inquirição das testemunhas e a realização das restantes diligências pelo M°P°, constitui ou não as apontadas nulidades. ( a da alínea b) do artº 119 do CPP, como sustenta o despacho recorrido, ou a da alínea d) do mesmo artº. como pretexta a assistente ).
Perante a formulação legislativa constante dos art.° 119 e 120 do Código Processo Penal, tem a jurisprudência questionado se a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de actos obrigatórios, ou a esses e ainda a quaisquer outros actos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade. A solução maioritariamente seguida, partindo daquilo que consideramos uma correcta ponderação da estrutura acusatória do processo penal, art.° 32° n.°5 da Constituição, dos princípios do contraditório e da oficialidade, entende que só se verifica esta nulidade quando ocorra ausência absoluta ou total de inquérito [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.1099 Colectânea de Jurisprudência Ano XXIV Tomo 4, p. 158.1, e/ou se omita acto que a lei prescreve como obrigatório. Ancora-se esta solução no entendimento de que a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, pertencem ao Ministério Público, art.° 262° e 263° do Código Processo Penal, sendo este livre — dentro do quadro legal e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência, art.° 53°, 267° do Código Processo Penal de promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam os actos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo, de notificação ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito e no que respeita a certos crimes, actos investigatórios imprescindíveis para se aferir dos elementos de certos tipos de crimes, nomeadamente os exames periciais nos termos do art.° 151° do CPP. [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado, e Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR II série de 9.10. 04, p. 149751).
Na decisão desta problemática olvida-se não raramente o modelo de autonomia que em sede de exercício da acção penal o legislador no actual Código Processo Penal desenhou para a actividade do Ministério Público [Pertence ao Estado o dever de administração da justiça, art.° 202 da Constituição através de uma entidade pública que é o Ministério Público, art. 219° da Constituição, art.° 48 do Código Processo Penal. O Ministério Público promove o processo penal depois de adquirir a notícia do crime, art.° 241° do Código Processo Penal. A investigação decorre naquilo que se chama a fase de inquérito, art.° 262°, sob a direcção do Ministério Público]. Como se refere no Acórdão n.° 581/00 do Tribunal Constitucional de acordo com o disposto no n.° 1 do artigo 219° da Constituição, ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade. Esse exercício é regulado pela lei e, como decorre da remissão contida neste preceito para o número seguinte, acarreta um estatuto próprio do Ministério Público e a sua autonomia. Do n.° 1 do artigo 219° da Constituição pode retirar-se que o exercício da acção penal pelo Ministério Público comporta a direcção e a realização do inquérito por esta magistratura, não se cingindo esse exercício à sustentação da acusação em juízo [Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal", Jornadas de Direito Processual Penal (O Novo Código de Processo Penal), 1988, p. 8-9].
No mesmo sentido se pronuncia Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, volume Ill, 2a edição, p. 91) sustentado que a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa e que a omissão de diligências de investigação não impostas por lei, não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade de actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.
Do exposto resulta que só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei determinam nulidade do inquérito.
Assim, a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público. O Ministério Público é livre, salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei [Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR 11 série de 9.10. 04, p. 14975).
Voltando ao caso dos autos, verifica-se que o Mº.Pº. de acordo com o disposto no artº 48 do CPP, depois de ter adquirido noticia dos crimes denunciados pela assistente, promoveu e exerceu a acção penal, dirigindo e realizando o inquérito, que se bastou com a prova documental junta, por forma a concluir, como o fez, pelo arquivamento do mesmo. Ou seja, competindo-lhe a direcção do inquérito, entendeu, face à prova documental junta, não serem necessárias a realização de quaisquer diligências, nomeadamente as indicadas pela assistente na queixa apresentada, com vista à realização da sua finalidade.
Apesar disso, não deixou de apreciar a queixa apresentada, concluindo pelo arquivamento dos autos, conforme resulta do despacho de fls. 156 a 159.
Do exposto, resulta que não se verificam as nulidades p. nas alíneas b) e d) ou 120 nº2 – d) do CPP, na medida em que o Mº.Pº. não deixou de promover o processo e, tratando-se de omissão de diligências não impostas por lei, como já se referiu, tal facto não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, na medida em que a apreciação da necessidade da realização dessas diligências (promoção de diligências que repute necessárias com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito ) é da competência exclusiva do MºPº.
Concluindo, procede assim, a pretensão do recorrente.

8- DECISÃO:
Face ao exposto, acordam os juízes da 9ª Secção deste Tribunal da Relação em:
Julgarem procedente o recurso interposto, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, nos termos do artº 308 do CPP. se pronuncie sobre o pedido formulado no requerimento de instrução.

Sem Tributação.