Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
53/13.0TJLSB-A.L1-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
DENÚNCIA PARA HABITAÇÃO
NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Os contratos de duração indeterminada podem ser denunciados com os fundamentos previstos no artigo 1101.º do CCivil, sendo a denúncia feita mediante comunicação ao arrendatário,
2. Esta denúncia não corresponde ao conceito técnico-jurídico dessa forma de cessação do contrato, porquanto, embora se reporte a um contrato de duração indeterminada, consubstancia uma desvinculação não discricionária, pelo que terá de ser motivada.
3. No caso da denúncia justificada para habitação é necessária a alegação e demonstração da necessidade de habitação pelo senhorio ou pelos seus descendentes (art. 1103.º, n.º 1 do CCivil), para além de outros requisitos.
4. Exercitado extrajudicialmente o direito potestativo de denúncia do contrato de arrendamento, com fundamento na necessidade de habitação própria, ao abrigo do disposto no artigo 15º do RAU, através de notificação judicial avulsa, desta devem constar factos concretizadores, que revelem a intenção séria de fixar residência no local onde se situa o prédio e a consequente situação de carência material de habitação autónoma e adequada às necessidades do denunciante.
5. Sendo a necessidade facto constitutivo do direito do senhorio, por força da regra prevista no artigo 342º, nº 1 do Código Civil, é ao senhorio que compete a alegação e prova dos factos constitutivos do direito invocado.(sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – RELATÓRIO

H…, M… e Ma… vieram intentar procedimento especial de despejo contra, I…, pedindo o despejo do 1º andar direito do nº…, por “denúncia pelo senhorio” que, para o efeito, juntou contrato de arrendamento de 26/10/1976 (fls 47-48  dos autos) e “notificação judicial avulsa” (fls 52 a 54 dos autos), realizada em 16-07/2010, conforme fls. 67 dos autos.

Citado, o R. deduziu oposição, alegando que foi notificado com documentação ilegível, e que a notificação judicial avulsa não produz os efeitos pretendidos, uma vez que o A. apenas diz que pretende regressar a Portugal, não invocando fundamentos sérios.

Foi proferida decisão que, ao abrigo das regras do artigo 15º-H/3 da Lei 6/06 de 27-II, na redacção da Lei 31/12 de 14-VIII, julgou improcedente o presente procedimento, e absolveu o Réu do pedido.

Recorrem os Requerentes da decisão, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:

A) Os apelantes são proprietários de um imóvel situado na …, que foi dado de arrendamento em 01 de Novembro de 1976 ao aqui apelado.

B) Em 31 de Maio de 2010 interpuseram Notificação Judicial Avulsa com o intuito de solicitar a devolução do locado.

C) Ao abrigo do artigo 1101º alínea a) do Código Civil, foi indicado na notificação judicial avulsa, o motivo da pretensão dos apelantes (necessidade da casa para habitação própria).

D) Os apelantes não possuem outro imóvel em Portugal.

E) E quando se deslocam ao país Natal ficam na casa do seu procurador He…, irmão do apelante.

F) Os apelantes são pessoas de idade avançada (conforme referido no artigo 3º da notificação judicial avulsa), sendo a apelante reformada por velhice e o apelante reformado por invalidez.

G) Na data da celebração do contrato de arrendamento, em 1976, os apelantes apenas possuíam a casa dada ao arrendamento, situação que se mantém até aos dias de hoje – não possuem outro imóvel.

H) E “uma vez que a prova dos factos que comportam a decisão do tribunal a quo, tem de ser feita pelo réu, é necessário ter em consideração esse ónus probatório aquando da selecção dos factos relevantes para a decisão da causa.

Nestes termos, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta.

Contra-alegou o Requerido para, no essencial, concluir pela improcedência do recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os Vistos legais,

                        Cumpre apreciar e decidir.

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, em causa está, no essencial, apreciar e decidir se existe fundamento para se estão preenchidos os requisitos de denúncia do arrendamento por parte do senhorio, com fundamento na necessidade do arrendado para habitação do senhorio.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1 - Os Apelantes são proprietários de um imóvel situado na ….

2 - Que foi dado de arrendamento em 01 de Novembro de 1976 ao aqui apelado.

3 - Em 31 de Maio de 2010 deu entrada em juízo a notificação judicial avulsa de fls. 52 a 54, com o intuito de solicitar a devolução do locado;

4 – O Apelado tomou conhecimento do teor da notificação judicial avulsa.

5 - Os apelantes alegam que não possuem outro imóvel em Portugal.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Como é sabido, o arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei. [artigo 1079.º do CCivil. As normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento têm natureza imperativa, salvo disposição legal em contrário (cfr. art. 1080.º do CCivil).

O contrato de duração indeterminada cessa por denúncia de uma das partes, apenas com os fundamentos previstos na lei (cfr. artigo 1099.º do CCivil). Assim sendo, o senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada nos casos seguintes:

- Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau;

- Para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado;

    Os contratos de duração indeterminada podem ser denunciados com os fundamentos previstos no artigo 1101.º do CCivil, sendo a denúncia feita mediante comunicação ao arrendatário, com antecedência não inferior a 6 meses sobre a data pretendida para a desocupação e da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia (artigo 1103.º, n.º 1 do CCivil ), sendo certo que, atendendo à anterior redacção da Lei 6/2006 (RAU)[1], aplicável ao caso dos autos, esta denúncia tem de ser declarada por decisão judicial (acção de despejo).

     A questão que aqui se coloca tem, a ver com a necessidade de alegação (e prova) dos factos que consubstanciam a denúncia. Com efeito, esta denúncia não corresponde ao conceito técnico-jurídico dessa forma de cessação do contrato, porquanto, embora se reporte a um contrato de duração indeterminada, consubstancia uma desvinculação não discricionária, pelo que terá de ser motivada.

     No caso da denúncia justificada para habitação, não pode deixar de ter-se como necessária a alegação e demonstração da necessidade de habitação pelo senhorio ou pelos seus descendentes (art. 1103.º, n.º 1 do CCivil), para além de outras obrigações, como seja a obrigação de pagamento do montante equivalente a 1 ano de renda (art. 1102.º, n.º 1 do CC). O valor de renda anual corresponderá a 1/15 do valor do locado, avaliado nos termos do CIMI (art. 26.º, n.º 4, al b) do RAU).

     Como também decorre do disposto no artigo 1102º, n.º1 do CCivil, importa ainda que se verifiquem os seguintes pressupostos:

    a) Ser o senhorio proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de dois anos ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por sucessão;

b) Não ter o senhorio, há mais de um ano, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País casa própria que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1.º grau.

            2. Requisitos da necessidade
No caso dos autos, os AA. exercitaram extrajudicialmente o direito potestativo de denúncia do contrato de arrendamento celebrado com o R., com fundamento na necessidade de habitação própria, ao abrigo do disposto no artigo 15º do RAU, através de notificação judicial avulsa.
Porém, tal direito potestativo tem, além de outros, como pressuposto constitutivo fundamental, a necessidade do arrendado para habitação própria do denunciante, perspectivado este requisito como facto essencial e nuclear a densificar, necessariamente, através da alegação de factos concretizadores, que revelem a intenção séria de fixar residência no local onde se situa o prédio e a consequente situação de carência material de habitação autónoma e adequada às necessidades do denunciante.
Em suma, a necessidade de habitação tem que ser real, séria, actual ou futura, não eventual mas iminente, traduzida em razões ponderosas, não se confundindo com uma maior comodidade e deve corresponder a uma intenção séria de fixar residência no locado, devendo ser apreciada objectivamente em função das condições, vida, interesses e carências do senhorio, sob pena de se poder transformar em mero pretexto para obter uma desocupação.
Ocorre, deste modo, essa necessidade quando o estado de carência seja objectivamente motivado por um condicionalismo que, segundo a experiência comum, determinaria a generalidade das pessoas que nela se encontrassem, colocadas na peculiar situação do denunciante, a precisar do arrendado para sua habitação. Aliás, este direito de denúncia ter-se-á por excluído quando a invocada necessidade de habitação tenha sido intencionalmente criada, sob pena de abuso de abuso de direito[2].

A necessidade, actual ou iminente, de casa para habitação própria do senhorio, complementada pela verificação dos restantes pressupostos supra referidos deverá verificar-se à data da respectiva denúncia, não sendo concebível, que este se limite de modo genérico, a concluir pela necessidade, ou a prever que tal situação, hipotética ou futura, se venha a verificar.

3. Dos ónus de alegação e prova
Sendo a necessidade facto constitutivo do direito do senhorio, por força da regra prevista no artigo 342º, nº 1 do Código Civil, aos Recorrentes competia a alegação e prova dos factos constitutivos do direito invocado, o que não sucedeu.

O Réu deduziu oposição alegando os AA.. não demonstram a real necessidade do locado, apenas referindo que pretendem regressar a Portugal.

A decisão recorrida, dando razão ao oponente, conclui, com acerto, que, da notificação judicial avulsa, com cópia a fls. 52 a 54, não consta qualquer facto de onde se possa inferir a existência de uma situação de necessidade do proprietário, pelo que, não se verifica o requisito previsto na alínea a) do artigo 1101 ° do Código Civil.
Com efeito, no caso dos autos, do texto da notificação judicial avulsa, não constam quaisquer factos que, a provarem-se, justifiquem a necessidade do locado por parte do senhorio, a invocar a idade avançada e necessidade de regressar para Portugal e fazer uso próprio da habitação (cfr notificação judicial avulsa, fls. 53), o que consubstancia um racíocinio conclusivo e não matéria de facto de que decorra a existência de uma necessidade de habitação real, séria, traduzida em razões ponderosas.

A circunstância de os Apelantes não possuírem outro imóvel em Portugal, para além do locado, é apenas um requisito (objectivo) a cumular com o da necessidade.
Aliás, nas alegações de recurso, vêm, no fundo, os Recorrentes tentar colmatar a deficiência que se verifica no texto da notificação judicial, alegando agora matéria de facto que, a provar-se, poderia conferir o direito à denúncia. Contudo, a fase recursória, não é o momento próprio para o efeito, posto que, como é sabido, aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas, mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo.
Assim sendo, conclui-se pela não verificação do requisito previsto na alínea a) do artigo 1101° do Código Civil, pelo que não se pode julgar validamente denunciado o contrato.

4. Por outro lado, à denúncia com o fundamento na necessidade de habitação pelo senhorio ou pelos seus descendentes em 1.º grau, continua a aplicar-se a alínea a) do n.º 1 do art.107.º do RAU (cfr. art. 26.º/4, al. a)), que se transcreve:
«1. O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstância:

   a) Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho».

    Ora, no caso, o R. veio, na oposição, alegar que tem 92 anos, juntando cópia do bilhete de identidade de onde consta que nasceu em 10/01/1921, pelo que, sempre lhe seria aplicável a referida excepção constante no citado artigo 107º, nº 1 do RAU, impeditiva da denúncia do contrato.           

            IV – DECISÃO

   Termos em que acorda em julgar improcedente a apelação assim se mantendo a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 13 de Março de 2014.

(Fátima Galante)

(Gilberto Santos Jorge)

(António Martins)


[1] Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto, a denúncia deixa de ser efectuada com recurso ao Tribunal, passando a operar por mera comunicação ao arrendatário da qual conste o respectivo fundamento.
[2] Ac. STJ de 21 de Março de 2012, Relator: Lopes do Rego, www.dgsi.pt/jstj.