Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6382/20.0T9LSB.L1-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: QUEIXA CRIME
CRIME SEMI-PÚBLICO
CADUCIDADE
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: - A determinação do concreto dia em que o exercício do direito de queixa se considera extinto está intrinsecamente conexo com a apreciação da tempestividade do exercício do mesmo direito.
- O cômputo do prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa inicia-se com a data em que o titular desse direito teve conhecimento naturalístico dos factos (do facto e dos seus autores) - 1ª parte do n.º 1 do art.º 115.º do Código Penal.
- Para dedução material do direito de queixa é suficiente o simples conhecimento naturalístico dos indícios, não sendo exigido qualquer valoração dirigida à subsunção jurídica dos factos indiciários e ao conhecimento concreto dos agentes.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1.1. No processo instrução número 6382/20.0T9LSB, do Tribunal Central Instrução Criminal, Lisboa - Juiz 7, foi proferido despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução interposto pela assistente AA, Unipessoal, Lda..
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1.2. Discordando daquele despacho de rejeição, a assistente veio interpor recurso, com as seguintes conclusões:
(transcrição)
(…)
1. O presente recurso incide sobre o Despacho Recorrido, que considerou intempestivo o exercício do direito de queixa exercido pela Assistente relativamente aos factos vertidos na Queixa.
2. De acordo com o artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal, o direito de queixa extingue-se seis meses após a data em que o seu titular teve conhecimento dos factos em causa e dos respectivos autores.
3. A jurisprudência e a doutrina têm considerado que está em causa o conhecimento integral dos factos com relevância criminosa e não de meros indícios ou factos conexos.
4. O Despacho Recorrido assentou a decisão na ideia de que a Assistente conhecera os factos relevantes, pelo menos, em dezembro de 2019, com base nos seguintes elementos:
(i) relatórios de investigação forense juntos aos autos pela Assistente; e
(ii) declarações feitas pelo representante legal da Assistente a fls. 586 dos autos.
5. Ora, dos elementos em causa, nomeadamente dos relatórios de investigação forense, resulta precisamente o inverso: que a Assistente apenas tomou conhecimento dos factos com relevância criminal, nos termos e para os efeitos do artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal, no final de janeiro de 2020.
6. Com efeito, os relatórios forenses demonstram inequivocamente que a investigação conduzida pela K:
(i) foi espoletada pela saída massiva de trabalhadores da Assistente, assim como pela existência de indícios de que teria havido extração de informação; e
(ii) apenas terminou em 30.01.2020, data em que o relatório com as conclusões foi remetido ao departamento jurídico da Assistente e, posteriormente, à sua administração.
7. Nem surge como verosímil a tese de que, sem estar finalizada a referida investigação, teria sido possível apurar dados técnicos e detalhados, como o volume e tipologia de informação extraída, os dispositivos de armazenamento utilizados e as datas das condutas em causa.
8. Por outro lado, as declarações do representante legal da Assistente a fls. 586 dos autos reportam-se a um convite do Arguido JM para ingressar em entidade concorrente e não a quaisquer factos com relevância para os ilícitos identificados na Queixa.
9. Por conseguinte, nunca poderiam tais declarações servir para afastar o que resulta abundantemente comprovado: que a investigação forense terminou em 30.01.2020 e que a administração da Assistente não teve, portanto, conhecimento dos factos em data anterior.
10. Face ao exposto, é forçoso concluir pela tempestividade do exercício do direito de queixa pela Assistente, que ocorreu em 08.07.2020 e, consequentemente, pela legitimidade do Ministério Público para prosseguir a ação penal.
(…)
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1.3. O MP apresentou resposta ao recurso interposto pela assistente expendendo as seguintes conclusões: (transcrição)
(…)
1. A Assistente teve conhecimento dos factos que fundamentam a apresentação da queixa em Dezembro de 2019, pelo menos.
2. Ao apresentar a queixa crime em Julho de 2020 mostrava-se já decorridos os seis meses após este conhecimento.
3. Esta decisão acompanha, nesta fase de Instrução, a decisão anterior do Ministério Público no que respeita ao arquivamento dos autos.
4. Nesta medida a instrução é legalmente inadmissível.
5. A decisão recorrida é a correta e não enferma de qualquer tipo de vício, nulidade ou irregularidade, não violando qualquer norma legal. (…)
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1.4. A Sr.ª Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso da assistente deverá improceder, sufragando os fundamentos de facto e de direito invocados na resposta do MP.
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1.5. Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.º 417.º do Código de Processo Penal, não foi deduzida qualquer resposta.
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1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Dispõe o art.º 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
As conclusões constituem, pois, o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, atentas as conclusões formuladas pela assistente, e conforme indicado na motivação, a questão a apreciar e decidir reconduz-se a saber se existe a caducidade[1] do exercício do direito de queixa por parte da ora assistente, conforme entendeu o despacho de não admissão do requerimento de abertura de instrução
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2.2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
(transcrição)
(…)
I.
AA, Unipessoal, Lda. constituída assistente, apresentou um requerimento para a abertura da instrução na sequência do despacho de arquivamento.
Tal requerimento não possui viabilidade processual quanto à pretensão apresentada.
Note-se, antes de mais, para evitar qualquer equívoco interpretativo (atentas as referências que lhes são feitas nos relatórios inframencionados), que, segundo a própria queixosa/assistente, em 2015 esta integrou-se no grupo D & P, que, por sua vez, em 2018, integrou o grupo K.
Como referiu o Ministério Público, a queixa foi feita pela ora assistente a 6 de Julho de 2020 (fls. 2 a 14), sendo que a mesma tinha conhecimento dos factos, pelo menos (cfr. fls. 586, com menção feita, por representante seu, ao sucedido em 21.11.2019), desde Dezembro de 2019, conforme se extrai dos relatórios, com tradução, que integram o Apenso referente à documentação junta pela queixosa para demonstração da factualidade em causa (ocorrida entre 03.06.2019 e 28.11.2019).
Daqueles relatórios resulta claramente que a queixosa de tal teve conhecimento (pelo menos) em Dezembro de 2019 (não obstante a data neles indicada como sendo a da respectiva conclusão e do seu envio para a equipa jurídica), razão pela qual logo então (em Dezembro de 2019) adoptou medidas de segurança destinadas a atenuar o risco decorrente de factualidade do tipo daquela, já então verificada.
Por isso, nos termos do disposto no art.º 115.º do Código Penal, o direito de queixa, que deveria ter sido exercido no prazo de seis meses a contar da data em que o titular teve conhecimento dos factos e dos seus autores, já se encontrava extinto quando, em 6 de Julho de 2020, foi apresentada a queixa que deu origem aos presentes autos.
Sendo assim, o procedimento penal mostra-se inadmissível quanto aos crimes de violação de segredo, p. e p. pelos art.ºs 195.º e 197.º, al. a), e de aproveitamento indevido de segredo, p. e p. pelo art.º 196.º, todos do Código Penal, de acordo com o exigido pelos art.ºs 48.º e 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 198.º do Código Penal.
Por isso, não é admissível o requerimento para a abertura da instrução apresentado.
A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução (prevista no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) inclui os casos em exista um obstáculo que impeça o procedimento criminal, designadamente a falta de legitimidade do Ministério Público para o promover em decorrência da extinção do direito de queixa pelo seu não exercício tempestivo.
II.
Nestes termos, a instrução pretendida pela assistente é legalmente inadmissível, assim se rejeitando totalmente o requerimento de abertura de instrução por ela apresentado.
(…)
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2.3. Cumpre apreciar e decidir
A ora recorrente argumenta que no direito de queixa, regulado no art.º 115.º, n.º 1 do CP, a jurisprudência e doutrina consideram que está em causa o conhecimento integral dos factos com relevância criminosa e não de meros indícios ou factos conexos.
No que tange à natureza jurídica dos crimes em questão não existem dúvidas que os mesmos assumem-se como semipúblicos, ou seja, a queixa constitui, no plano funcional, uma condição prévia para o desencadeamento do processo penal.
O art.º 115.º, n.º 1 do Código Penal dispõe:
O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz”. (sublinhado nosso)
É o segmento inicial deste normativo que importa destacar para a solução da questão suscitada. E qual é?
O conhecimento do facto e dos seus autores é um conhecimento integral e jurídico sustentado num grau de indícios suficientemente fortes e devidamente sustentados em elementos fácticos; ou, basta-se com meras suspeitas e conhecimentos naturalísticos, no sentido de que não se exige qualquer valoração dirigida à subsunção jurídica dos meros factos. Ou seja, ao referido “conhecimento de facto” não se exige a exacta valoração jurídica das condutas sob escrutínio.
Com o devido respeito, a argumentação da recorrente não nos convence. Propendemos, pois, para a solução que entende ser bastante para a dedução da queixa o conhecimento de meros indícios da prática delituosa. É que, para o fortalecimento desses indícios existe a fase do inquérito, em que se investiga e recolhe a prova suficiente para enquadrar as condutas nos respectivos ilícitos.
Neste quadro, não se justifica que se exija à vitima/ofendida que aquando da apresentação de uma queixa esteja na posse de todos os elementos fácticos pertinentes, já fortemente indiciados e suportados em todos os elementos probatórios relevantes, para que aquela seja devidamente validada.
O momento em que a ora assistente/recorrente tem conhecimento da violação do seu direito é quando em Dezembro de 2019 adoptou as medidas de segurança destinadas a atenuar o risco decorrente do tipo de factualidade já verificada. E tanto bastaria, neste momento temporal, para a assistente exercer o seu direito de queixa, sem necessidade de se fazer substituir ao MP no que tange à investigação dos indícios já conhecidos.
Como bem refere o MP na resposta ao recurso:
Ora a Assistente teve conhecimento dos factos que seriam suscetíveis de consubstanciar a prática de crime, pelo menos, em Dezembro de 2019, tanto assim que tomou medidas de segurança e decidiu aprofundar e esclarecer a sua extensão através de uma investigação interna.
O que não pode confundir-se é esta investigação, perfeitamente admissível, por parte da Assistente com o exercício tempestivo do direito de queixa em direito penal, que se adquire com a notícia do crime, mesmo sob a forma de mera suspeita, cabendo ao Estado a sua investigação e posterior punição, ou não, inexistindo a obrigação, mas também o direito, de cada vítima efectuar uma investigação autónoma e só apenas e na posse de todos os elementos que considerar relevantes e que podem não coincidir sequer com a relevância penal por parte do titular da acção penal, exercer o seu direito de queixa contando o respetivo prazo a partir do momento em que cada denunciante sentisse estar na posse de todos os elementos necessários.
O momento fulcral é o momento da prática dos factos e o momento em que o ofendido tem noção de que poderá estar a ser vítima de crime e dos factos que suportam essa suspeita, o que, no caso dos autos, ocorreu, pelo menos, em Dezembro de 2019.
É, de facto, a posição que melhor se enquadra nos entendimentos preconizados pela doutrina e jurisprudência. A título de exemplo, leia-se:
A queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (…), acrescentando: No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto … Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona.[2]
I. A queixa, exterior à ação típica, funciona nos crimes de natureza semi-pública (ou particular) como condição objetiva de procedibilidade, do exercício da perseguibilidade penal, de natureza processual, embora regulamentada no âmbito do direito penal substantivo, assim sendo concebida pela jurisprudência e pela doutrina mais autorizada (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 117). II. Não se exige que da queixa conste a fórmula sacramental de desejo de procedimento criminal; o seu conteúdo é muito menos exigente e tecnicista, situando-se ao nível da simples descrição fáctica. III. Não se exige, ainda, a identificação, total ou parcial, do sujeito ativo do delito, que o ofendido pode ignorar, competindo a sua individualização à entidade dirigente do inquérito – o MP – ou à entidade em quem ele delegue os inerentes poderes de investigação. IV. O que não dispensa é que dos seus termos ou dos que lhe seguirem se conclua, de modo inequívoco, a manifestação de vontade de perseguir criminalmente os autores de um facto ilícito (…)[3].
E, ainda, nesta mesma linha de entendimento confronte-se os acórdãos do TRL de 18.02.2003, [proc. n.º 0084955], TRP de 27.10.2010, [proc. n.º 989/05.3TASTS.P1], do TRC de 18.01.2012, [proc. n.º 45/10.2GDCVL.C1], 06.03.2013, [proc. n.º 763/09.8T3AVR-A.C2], todos publicados in www.dgsi.pt .
Como já supra-referido, o previsto prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa é substantivo e de caducidade e não processual ou judicial, cuja contagem deve, por isso, ser feita com observância das regras contidas no art.º 279.º do Código Civil e não com recurso às regras dos art.ºs 103.º e 104 do Código de Processo Penal e/ou às dos art.ºs 144.º, 145.º e 150.º do Código de Processo Civil.
Considerando que o momento temporal a considerar (para efeitos do conhecimento dos factos sob suspeita) está circunscrito ao período de Dezembro de 2019, o prazo de seis meses inserto no referido artigo 115º do Código Processo Penal já havia atingido o seu termo quando a assistente, em Julho de 2020, apresentou queixa contra os denunciados JFCLGM e AMCN.
Nestes termos, nenhum reparo há que dirigir à decisão sob censura, sendo o recurso totalmente improcedente.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela assistente e, consequentemente, mantêm nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Custas que se fixam em 4 Ucs.

Lisboa e Tribunal da Relação, 25.01.2023
Processado e revisto pelo relator (art.º 94º, nº 2 do CPP).
O relator escreve de acordo com a anterior grafia
Alfredo Costa
Rosa Vasconcelos
Francisco Henriques
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[1] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2012 de 21-05-2012 in Diário da República nº 98 Série I de 21/05/2012; Prof. Figueiredo Dias, citado por Vítor Sá Pereira in “Código Penal Anotado e Comentado” pág. 307,
[2] Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, págs. 665 e 675
[3] Acórdão do STJ de 29.01.2007, proc. n.º 4458/06 – 3.ª, Relator Armindo Monteiro