Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1410/2003-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
RENÚNCIA
PENHORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: CONFIRMADO.
Sumário: A reserva de propriedade pode ser estabelecida em benefício do mutuante que entrega ao vendedor de um veículo automóvel o preço convencionado para a compra e venda deste.
A reserva de propriedade pode extinguir-se por virtude de renúncia abdicativa por parte do seu titular.
A reserva de propriedade inscrita sobre um veículo automóvel não cabe no rol dos direitos que caducam com a venda em execução e devem ser mandados cancelar oficiosamente.
Por isso, ainda que o beneficiário da reserve nomeie à penhora o veículo, a execução não pode prosseguir sem que seja cancelado por aquele o respectivo registo.
Não sendo tal penhora registada provisoriamente, não tem aplicação o mecanismo previsto no art. 119º do C. Reg. Predial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

  I – Banco A ... em execução que moveu a B ... e seu marido C ..., para deles obter o pagamento de quantia que foram condenados a pagar-lhe por sentença transitada em julgado, nomeou à penhora, entre outros bens, o veículo automóvel da marca Opel, modelo Monterey, com a matrícula 96-92-ED.
  Efectuada esta penhora e junta nota do respectivo registo e certidão dos ónus e encargos que incidem sobre o veículo, constatou-se ter a exequente inscrita a seu favor reserva de propriedade sobre ele.
  Foi proferido despacho – fls. 78 - ordenando a notificação da exequente para requerer o que se lhe oferecesse sobre tal reserva.
Veio esta dizer que nada tinha a requerer quanto a essa reserva de propriedade, limitando-se a reiterar o já antes solicitado cumprimento do disposto no art. 864º do C. P. Civil.
Foi então proferido despacho – fls. 81 - onde, afirmando-se a impossibilidade de os autos prosseguirem quanto ao veículo penhorado sem que a exequente renuncie expressamente àquela reserva de propriedade, se ordenou que os mesmos aguardassem que aquela requeresse o que tivesse por conveniente a esse propósito.
Contra esta decisão agravou a exequente, tendo apresentado alegação onde, pedindo a sua revogação e substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos, formula conclusões do seguinte teor:

II – Para além do já descrito no relatório deste acórdão, os factos a  ter em consideração para a decisão do recurso são os seguintes:
a) Ao nomear à penhora o veículo automóvel no requerimento executivo, a agravante indicou-o como pertencendo aos executados.
b) Efectuada essa penhora, a exequente trouxe aos autos nota do seu registo definitivo na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa e certidão de onde consta que, relativamente àquele veículo, se encontram feitas, na mesma Conservatória, as seguintes inscrições:
- direito de propriedade a favor de B ..., inscrição datada de 17.11.97;
- reserva da propriedade a favor do Banco A ..., inscrição datada de 17.11.97;
- penhora, tendo como sujeito activo o Banco A ..., e sujeito passivo B ... para garantia do pagamento de 1.557.683$00, proc. nº 727-A/2000 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, 6ª juízo Cível – inscrição de 27.12.2001.

 III – Considerando o teor do despacho agravado e o conteúdo das conclusões formuladas pela agravante – que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso – a questão a decidir consiste essencialmente em saber se o facto de a exequente não ter renunciado expressamente à reserva da propriedade de que é titular sobre o veículo penhorado, reserva que se mantém inscrita a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel, obsta, ou não, ao prosseguimento da execução no tocante àquele bem.

Deve dizer-se antes de mais que, contra o afirmado - certamente por lapso - pela agravante  na parte da alegação que precede as conclusões – fls. 94 –, esta em lado algum dos autos “confirmou que renunciava à reserva de propriedade que a seu favor se mostra registada sobre o veículo dos autos (...).”. Demonstra-o claramente a descrição acima feita das ocorrências processuais havidas antes do despacho impugnado, de onde resulta que a agravante, interpelada uma primeira vez para dizer o que se lhe oferecesse sobre a inscrição daquela reserva, afirmou, expressamente, nada ter a requerer a esse propósito e, posteriormente, confrontada com o despacho que afirmou a impossibilidade de prosseguimento dos autos, em face daquela reserva, dele interpôs recurso.

A reserva da propriedade, figura instituída no art. 409º, nº 1 do C. Civil – diploma a que respeitam as normas doravante referidas sem menção de diferente proveniência - para os contratos de alienação, assume-se como uma condição suspensiva da transmissão da propriedade da coisa alienada, transmissão essa que, em princípio e segundo o princípio geral constante do art. 408º, é mero efeito de contratos daquela natureza.[1]
Através do “pactum reservati dominii” o alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
Daí que se venha afirmando a utilização da propriedade como garantia, exactamente porque, nestes casos, “a titularidade do direito de propriedade é atribuída a um sujeito, não para que ele disfrute da coisa, mas sim como garantia de um seu crédito...”. [2]
Apesar de originariamente pensada para contratos de alienação, nada obsta, tendo em conta o princípio da liberdade contratual, à aplicação desta figura a contratos diferentes, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o de compra e venda de veículo automóvel apresenta uma relação de estreita conexão, consubstanciada no facto de o objecto do primeiro – quantia mutuada – representar o preço do segundo.[3]
Foi exactamente o que aconteceu no caso dos autos em que a reserva da propriedade sobre o veículo foi estabelecida, não a favor do vendedor, mas em benefício da mutuante, justamente porque o primeiro recebeu, mercê do contrato de mútuo outorgado pelo comprador, o preço convencionado no âmbito da compra e venda do veículo.
A estes casos são aplicáveis, como é evidente, os efeitos prescritos na lei e próprios da reserva de propriedade como se esta houvesse sido constituída a favor do vendedor.
Daí que, mostrando-se inscrita na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa reserva da propriedade do veículo penhorado, a favor da exequente - o que faz presumir a existência do direito e que este  pertence ao titular inscrito, nos termos do art. 7º do Código do Registo Predial, aplicável por força do art. 29º do Dec. Lei 54/75, de 12 de Fevereiro –, se deva concluir que a propriedade daquele se não transferiu para a titularidade da executada, mantendo-se na esfera jurídica da exequente.
Não obstante, esta, dizendo que o mesmo pertence aos executados, nomeou-o à penhora e esta foi efectuada, defendendo agora, depois de ter recusado declaração expressa no sentido da renúncia àquela reserva, que nada obsta ao prosseguimento da execução.
Em prol da sua tese, argumenta, essencialmente, que a circunstância de ter optado pelo cumprimento do contrato, em detrimento da sua resolução que envolveria o funcionamento da reserva de propriedade a seu favor, consubstancia a renúncia à mesma, renúncia que igualmente se extrairá, a seu ver, do facto de ter nomeado à penhora o bem que dela é objecto e que desde o início indicou como pertencendo aos executados. Diz, ainda, não obstar ao prosseguimento da execução a circunstância de aquela reserva continuar inscrita a seu favor na competente Conservatória, na medida em que, por imposição legal, a mesma, após a venda do bem, será mandada cancelar oficiosamente.

Em nosso entender, não lhe assiste razão, embora se reconheça que a questão em apreço não é de solução fácil.
É certo que alguma da nossa doutrina e jurisprudência vem entendendo que o facto de o vendedor não resolver o contrato, optando pela via da satisfação coerciva do seu crédito e instaurando execução onde nomeie ou aceite a nomeação do bem cuja propriedade reservou para si, envolve a renúncia a essa reserva.[4]
Afigura-se-nos que tal reserva, instituída no âmbito do princípio da liberdade contratual, como meio de afastar o princípio segundo o qual a transferência da propriedade é mero efeito do contrato de alienação, é passível de renúncia abdicativa (ou renúncia strito sensu) por parte do respectivo titular.
Esta, como escreve Francisco Pereira Coelho[5], corporizar-se-á em negócio ou acto unilateral que, constituindo ex nunc uma nova situação de direito, tem como efeito real a perda ou extinção do direito renunciado, dele ficando privado o respectivo tilular.
E a declaração unilateral do titular do direito é bastante para a produção do resultado abdicativo.[6]
Mas, quer se veja na actuação da exequente acima descrita a materialização tácita duma tal renúncia – art. 217º, nº 1, 2ª parte do C. Civil -, quer se entenda que para tanto é necessária declaração expressa da agravante nesse sentido, certo é que a execução não pode prosseguir quanto ao veículo penhorado.
Isto porque, ao contrário do que defende a exequente, a reserva de propriedade sobre o veículo, enquanto direito real de gozo que apenas produz efeitos em relação a terceiros se registado for – arts. 409º, nº 2 e 5º, nº 1, al. a) do Dec. Lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro –, porque foi inscrita a seu favor em data anterior àquela em que registada foi a penhora efectuada nos autos, não cabe no rol dos direitos reais que, nos termos do art. 824º, nº 2 do C. Civil, caducam com a venda em execução e são mandados cancelar oficiosamente, ao abrigo do disposto no art. 888º do C. P. Civil.
Significa isto que, a efectivar-se a venda judicial do veículo cuja propriedade a agravante para si reservou, estaria o tribunal impedido de ordenar o cancelamento do seu registo, o que levaria à transmissão do bem com aquele ónus.
Daí que, contra o defendido pela agravante, sem o cancelamento do registo daquela reserva a execução não possa prosseguir.[7]

Finalmente, carece de qualquer fundamento a invocação, feita pela recorrente em prol da sua tese, do regime instituído no art. 119º do C. R. Predial.
Na verdade este preceito, pressupondo, além do mais, a existência  penhora registada provisoriamente por o bem respectivo estar inscrito a favor de pessoa diferente do executado, cria mecanismo tendente a evitar que a execução deixe de prosseguir apenas porque, em virtude de desactualização, a inscrição registral relativa à titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado não retrate a realidade.
Ora, no caso dos autos, a penhora promovida pela agravante e efectuada nos autos não se mostra registada provisoriamente - antes foi inscrita a título definitivo -, nem se levanta qualquer dúvida acerca da total conformidade entre titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado e aquilo que a esse propósito consta do registo. O que obsta ao prosseguimento da execução não é a circunstância de a executada ter deixado de promover o cancelamento da reserva, apesar de verificada a condição suspensiva que envolveria a transmissão, para si, da propriedade do veículo, mas antes a circunstância de a agravante, titular dessa reserva, e única interessada nesse facto, não ter procedido a esse cancelamento.

Pelo exposto, não sendo de atender as razões invocadas pela recorrente tendentes a demonstrar que não obsta ao prosseguimento da execução o facto de continuar inscrita a seu favor reserva da propriedade sobre o veículo que, por nomeação sua, foi penhorado nos autos, impõe-se a improcedência do recurso.

IV – Assim, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da agravante.
Lxa. 13.5.03
Rosa Maria Mendes Cardoso Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
Rua Dias
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[1] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, pág. 376 e Luís Lima Pinheiro, “A Cláusula de reserva de Propriedade” pág. 93 e 113.
[2] Luís Lima Pinheiro, mesma obra, pág. 105.
[3] Ac. desta Relação, de 21 de Fevereiro de 2002, agravo nº 789/02.
[4] Na jurisprudência, cfr., entre outros, o acórdão junto pela agravante com a sua alegação; na doutrina,  cfr. Lobo Xavier, “Venda a prestações, Algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil”, Coimbra, 1977, pág. 23 a 25.
[5] A Renúncia Abdicativa no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica 8, Coimbra Editora, 1995, pág. 63 a 65.
[6] Autor e obra referidos, a pág. 103, 104, 107
[7] Neste sentido se pronunciaram, entre muitos outros, o acórdão já acima citado, proferido no agravo 789/02, C. J. 2002, tomo I, pág. 112 e segs. e, bem assim, os desta 7ª secção, proferidos, respectivamente, no agravo nº 529/02, C. J. 2002, tomo II, pág. 124 e segs., relatado por um dos Adjuntos que intervêm neste, e no agravo 8886/02, em que a relatora deste interveio como ajunta.