Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9554/2003-4
Relator: DURO MATEUS CARDOSO
Descritores: ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- A providência cautelar de arbitramento de reparação provisória prevista no nº 4 do art. 403º do CPC é aplicável em casos de responsabilidade contratual, designadamente, laboral.
II- A existência de possibilidade de instauração de procedimento cautelar de suspensão de despedimento não é impeditiva da aplicabilidade do arbitramento de reparação provisória.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I- (A), intentou o presente procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, CONTRA,
IMPALA EDITORES, SA.
II- PEDIU que lhe seja arbitrada, como reparação provisória do dano, quantia não inferior a € 100.000,00, a serem pagos sob a forma de renda mensal não inferior a € 1.500,00.
III- ALEGOU, em síntese, que:
- Em 18 de Fevereiro de 1999, intentou contra a ora requerida, uma acção de condenação, pedindo, além do reconhecimento do direito a diversas retribuições que nunca lhe tinham sido reconhecidas e pagas (subsídio de utilização de monitores, subsídio de isenção de horário de trabalho e diuturnidades), a condenação a dar-lhe funções compatíveis com a sua categoria profissional e a pagar-lhe as retribuições vencidas e em divida;
- Na contestação à acção interposta pelo ora requerente, a requerida veio alegar que o contrato de trabalho do ora requerente caducara;
- Na sequência da referida contestação o ora requerente, considerando que a alegação da caducidade do contrato de trabalho configurava um despedimento ilícito, porque tal alegação era desprovida de qualquer fundamento, intentou providência cautelar de suspensão do despedimento, a qual veio a ser indeferida com fundamento no facto de a alegada caducidade ser objecto de discussão no processo principal;
- Entretanto, realizado o julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou improcedente a excepção da caducidade do contrato de trabalho alegada pela Ré, considerando plenamente válido e em vigor o contrato de trabalho celebrado entre as partes e condenou a ré a dar ao autor funções compatíveis com a sua categoria profissional - Chefe de Redacção;
- A demora do processo principal causa-lhe prejuízos irreparáveis porquanto, pese embora tenha obtido sentença que lhe foi parcialmente favorável, continua sem receber as retribuições a que tem direito uma vez que a Ré interpôs recurso da decisão e deduziu incidente de prestação de caução com vista à atribuição de efeito suspensivo ao recurso;
- Encontra-se em situação de carência económica em face dos seus rendimentos, pois recebe a prestação do subsídio social de desemprego de € 348,01 que deixará de ser pago em 18.11.03, estando a sua esposa desempregada;
- Em face da sentença proferida em 1ª instância, o requerente é hoje credor de mais de 42.000.000$00, sendo que o seu vencimento mensal na requerida ascendia a mais de 300.000$00.
IV- Foi então proferido despacho de indeferimento liminar do procedimento cautelar em que se entendeu que:
- O procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória não é admissível porque a existência do procedimento de suspensão de despedimento afasta a sua aplicabilidade;
- No caso de não ser legítimo o recurso à suspensão de despedimento por não se verificarem os respectivos pressupostos, "está afastada a possibilidade do trabalhador se socorrer da providência tipificada no art. 403º do C.P.C. sob pena de se subverter a vontade do legislador, que, manifestamente, quis restringir a intervenção judicial a casos muito pontuais e específicos, o que se compreende se atentarmos nos interesses em jogo e na circunstância de estamos perante decisões provisórias, tomadas com base numa apreciação indiciária da prova que, manifestamente, não podem banalizar-se - sob pena, até, de completa ineficácia dos tribunais face ao previsível aumento do número de acções";
- O disposto no art. 403º-4 do CPC é apenas aplicável aos casos de responsabilidade civil extra-contratual, pelo que, estando em causa nos autos principais responsabilidade meramente contratual, não se verificam o requisitos da providência pretendida.
V- Deste despacho, o requerente interpôs, a fols. 48 a 57, recurso de agravo, apresentando as suas conclusões de recurso nos seguintes termos:
A) A decisão recorrida não tem apoio na lei nem nos princípios subjacentes aos procedimentos cautelares no foro civil e principalmente no foro laboral;
Na verdade,
B) O âmbito de aplicação da norma constante do n.° 4 do art.° 403.°, ao contrário do entendimento da decisão sob censura, abarca as situações emergentes de responsabilidade civil contratual e as que têm na sua génese a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana;
C) Desde logo porque, perante a ausência de norma que enuncie a proclamada restrição do âmbito da referida providência às relações extracontratuais não é difícil fundamentar solução diferente;
D) Principalmente se atendermos ao facto de a demarcação dos campos das diferentes formas de responsabilidade civil estar em crise;
E) Em segundo lugar, porque, apesar de terem sido autonomizados no Código Civil os regimes jurídicos de cada uma das formas de responsabilidade, elas acabam por se cruzar num conjunto de normas (constantes dos arts. 562.° e ss.) relativas, quer aos limites, quer à natureza da obrigação de indemnizar, que pretendem abarcar todos os titulares do direito de crédito, independentemente da sua origem contratual ou extracontratual;
F) Em terceiro lugar, porque tendo sido genericamente prevista a tutela antecipatória no n.° 1 do art. 381.° do C.P.C., de modo a assegurar a efectividade do direito ameaçado, sem restrições quanto à sua natureza ou origem, seria contraditório e violador do princípio da igualdade, constitucionalmente garantido, vedar, na ausência de motivo evidente, através de uma interpretação restritiva do n.° 4 do art.° 403, a possibilidade da tutela do direito de indemnização de natureza contratual em situações de igual ou maior gravidade quanto à situação de necessidade (carência) do credor;
G) Entendimento que é sufragado pela maioria da doutrina (cfr., por todos, António Santos Abrantes Geraldes, e Lopes Rego);
H) Pelo que, podem, beneficiar da tutela antecipatória específica do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, entre outros, os titulares do direito de indemnização assente em qualquer facto originador de responsabilidade contratual, por incumprimento ou cumprimento defeituoso, que tenha afectado os mesmos bens fundamentais (a vida, a integridade física, o sustento e a habitação);
I) É o próprio legislador que admite, no art.° 47.° do CPT, a aplicação ao foro laboral dos procedimentos especificados regulados no CPC;
J) E se entendemos que é legítimo fazer uso do nº 4 do art. 403.º do C.P.C. no caso de um despedimento ilícito que traga consequências dramáticas para a vida familiar do trabalhador e dos seus dependentes, que apenas não foram integralmente absorvidas pela medida da suspensão do despedimento devido aos efeitos restritos ou por condicionalismos substantivos e processuais diversos da referida providência (como parece entender-se na decisão sob censura);
K) Também, por maioria de razão, devemos entender como legítimo o uso do mesmo mecanismo noutras situações em que o comportamento ilícito da entidade patronal tenha afectado seriamente a possibilidade de o trabalhador, por outras vias, judiciais e extrajudiciais, prover às necessidades básicas da vida corrente, respeitantes a si e ao seu agregado familiar;
L) Pelo que, não existem fundamentos legais ou materiais para rejeitar as potencialidades da medida de arbitramento de reparação provisória pelo simples facto de, no caso concreto, não ser legítimo ao requerente fazer uso da providência da suspensão de despedimento;
M) Muito pelo contrário, a sentença recorrida violou o constante no art. 403.º do CPC., e o disposto nos art.° 47.º do C.P.T.
VI- A requerida não produziu contra-alegações e a Mmª Juíza a quo, sustentou o despacho recorrido conforme consta de fols. 67.
Correram os Vistos legais.
VII- Como é sabido, o âmbito dos recursos, está delimitado pelas suas conclusões, nos termos dos arts. 684º-3 e 690º-1 do CPC.
As questões fundamentais que se colocam no recurso são as seguintes:
1ª- Se o disposto no art. 403º-4 do CPC é apenas aplicável aos casos de responsabilidade civil extra-contratual;
2ª- Se o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória não é admissível porque a existência do procedimento de suspensão de despedimento afasta a sua aplicabilidade;
3ª- Se o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória não é admissível quando não é legítimo fazer-se uso do procedimento cautelar de suspensão de despedimento individual.
VIII- Para a decisão deste recurso é relevante a seguinte factualidade resultante dos autos:
1- O requerente intentou, no TT Cascais, contra a aqui requerida, a acção declarativa de condenação com o nº 72/99, de que estes autos são um apenso, pedindo a atribuição de ocupação efectiva e o pagamento de diversas retribuições em dívida, bem como de uma indemnização por danos sofridos, no montante de 5.000.000$00;
2- A acção referida em 1) foi julgada em 1ª instância tendo sido proferida sentença a condenar a aqui requerida a dar ocupação efectiva ao aqui requerente, a pagar-lhe diversas retribuições e a pagar-lhe uma indemnização a título de danos não patrimoniais no montante de 2.000.000$00;
3- A sentença referida em 2) não transitou ainda em julgado tendo sido objecto de recursos principal e subordinados, sendo que no recurso interposto pelo requerente não foi impugnado o montante fixado a título de danos não patrimoniais;
4- O requerente intentou, no TT Cascais, contra a aqui requerida, procedimento cautelar de suspensão de despedimento, com o nº 145/99, que se encontra apenso à acção referida em 1), o qual foi objecto de despacho de indeferimento liminar que já transitou em julgado, por se ter entendido não ser possível apreciar em tal procedimento se a invocada (por parte da requerida) caducidade do contrato de trabalho consubstancia, ou não um despedimento.
IX- Decidindo.
Quanto à 1ª questão.
Antes de mais importa precisar que ao presente procedimento cautelar é aplicável o CPT de 2000 e não o anterior, como se refere no despacho recorrido, uma vez que este procedimento deu entrada em juízo a 21/3/03, como se alcança de fols. 2.
Analisando agora de fundo.
A introdução da nova redacção do art. 403º-4 do CPC veio trazer algumas dúvidas quanto ao alcance do preceito, designadamente no que tange à sua aplicabilidade aos casos de responsabilidade contratual.
Num dos primeiros casos em que a questão se colocou, o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 5/2/98, Col. 1998, T. 1, fols. 109, citado na decisão recorrida, veio sustentar a sua inaplicabilidade aos casos de responsabilidade contratual.
Porém, tal entendimento parece não ter tido qualquer seguimento jurisprudencial, desconhecendo-se qualquer outra decisão de Tribunal Superior no mesmo sentido.
Por outro lado, a Doutrina mais expressiva e liderante tem vindo a afirmar, uniformentente, que o entendimento sustentado naquele Aresto não será o melhor, pugnando pela aplicabilidade do art. 403º-4 do CPC aos casos de responsabilidade contratual. Assim, neste sentido podem ver-se António Santos Abrantes Geraldes, Temas da reforma do Processo Civil, 2ª ed., IV Vol., pags. 146 a 151; José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, pag. 112 e Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Dezembro de 1999, pag. 294.
Como escreve António Santos Abrantes Geraldes, obra citada, pag. 150, "Por conseguinte, na falta de norma abertamente excludente, o juízo que se formula é o da inclusão no leque dos interessados abstractamente tutelados pelo arbitramento de reparação provisória daqueles cuja pretensão tenha subjacente uma relação contratual e que, por alguma das vias previstas na lei, sejam titulares de um direito de indemnização, quando as circunstâncias revelem uma situação de perigo de insatisfação dos valores fundamentais atinentes ao seu sustento e habitação, em consequência de comportamentos ilícitos do devedor".
Tendo em conta, por um lado, a vontade legislativa concretizada na reforma que entrou em vigor a 1/1/97, de ampliar o leque e o alcance das pretensões antecipatórias e, por outro, as razões aduzidas por António Santos Abrantes Geraldes na sua citada obra, que nos escusamos aqui de transcrever ainda mais, também consideramos como aplicável à responsabilidade contratual, o disposto no art. 403º-4 do CPC.
Quanto à 2ª questão.
Não nos parece, como se decidiu em 1ª instância, que "o processo laboral prevê um procedimento específico - a suspensão de despedimento, prevista no art. 14° do Dec. Lei n° 64-A/89, de 27.2 e art. 39° do C.P.T. – cuja ratio é similar à da providência de arbitramento e que, portanto, afasta a aplicabilidade desta.".
Vejamos.
Como é sabido, a providência cautelar de suspensão de despedimento, tem o seu campo de acção balizado e definido pela especificidade do fim que a lei lhe atribui, ou seja, a suspensão do despedimento, constituindo um meio expedito do trabalhador assegurar o seu direito à retribuição, direito este, aliás, relativamente ao qual a lei unicamente atribui força executiva da decisão de suspensão, nos termos do art. 39º-2 do CPT.
Já a providência de arbitramento de reparação provisória prevista no art. 403º-4 do CPC nunca pode antecipar qualquer pretensão relativa a retribuições, pois apenas versa sobre direito indemnizatório (decorrente de facto que gere responsabilidade extra-contratual ou contratual, neste último caso, por incumprimento defeituoso). Como muito perspicazmente salienta António Santos Abrantes Geraldes, obra citada, pag. 151, nota 259, "Note-se que a reparação provisória apenas permite antecipar o direito de indemnização e não toda e qualquer pretensão creditícia relacionada com o incumprimento do contrato.".
Tendo as providências em cotejo finalidades tão assaz diversas, não se pode concluir pelo afastamento da aplicabilidade do arbitramento de reparação provisória pela simples existência da possibilidade de instauração do procedimento cautelar de suspensão de despedimento.
Quanto à 3ª questão.
No que concerne à não admissibilidade do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória quando não é legítimo fazer-se uso do procedimento cautelar de suspensão de despedimento individual, já o STJ se pronunciou quanto a tal questão, no seu Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, nº 1/2003, publicado no DR. I S. de 12/11/03, onde se escreveu: "Poder-se-ia pensar que a razão do entendimento da possibilidade de questionar e decidir, embora provisoriamente, da natureza do contrato ou da não causa da sua cessação estaria em não deixar desprotegido o trabalhador, ou uma tutela provisória do seu aparente direito, dado apenas se poder socorrer da suspensão do despedimento individual ou colectivo.
Porém, se já na vigência do CPT/81 se admitia o recurso às providências cautelares especificadas reguladas no CPC e, por maioria de razão, à providência cautelar comum, através dos respectivos procedimentos cautelares, agora, face ao disposto no artigo 32.º do CPT/99 e no artigo 44.º do mesmo Código, é óbvio que esta eventual razão cai competentemente pela base.
Se não se puderem socorrer do procedimento cautelar de suspensão do despedimento - singular ou colectivo - não deixam os trabalhadores de poder obter uma adequada providência cautelar, através dos procedimentos cautelares - comum e especificados - regulados no CPC, e que, pela natureza do conflito, sejam aplicáveis no foro laboral.".
Nada obsta, portanto, a que o requerente, impossibilitado de utilizar o procedimento de suspensão de despedimento, possa fazer uso do procedimento de arbitramento de reparação provisória.
O agravo tem, assim, de ter provimento, pese embora a pretensão antecipatória não possa ultrapassar o montante indemnizatório de 2.000.000$00, caso venha a obter procedência, uma vez que só pode recair sobre direito indemnizatório (v. factos nºs 2 e 3).
X- Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em dar provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, admitindo o procedimento cautelar, dê andamento ao mesmo.
Sem custas, em ambas as instâncias.
Lisboa, 3 de Novembro de 2004
Duro Mateus Cardoso
Guilherme Pires
Sarmento Botelho